Uma história calada Do período da ditadura militar no Brasil, o silêncio é a lembrança mais marcante Josiane Goetze Juliana Bencke
Foi em silêncio que Nilce Azevedo Cardoso sentiu na pele o significado da repressão política dos anos de chumbo no Brasil. Presa pelo Departamento de Ordem e Política Social (Dops), a militante da Ação Popular - organização clandestina de esquerda - foi torturada entre abril e julho de 1972. Nesse período, era comum escutar a música alta que abafava os gritos dos companheiros durante as sessões de socos, pontapés, choques e ofensas. Mas, no caso de Nilce, não era preciso esconder os gritos. Ela ficava quieta. Os sons e as vozes dentro de sua cabeça já incomodavam o suficiente. O silêncio que tentava calar os ruídos também guardava os segredos do movimento, os planos de uma revolução socialista e os endereços dos companheiros. No Relatório Azul* de 1997, ela conta o início do ataque, assim que chegou ao Dops. “Arrancaram minhas roupas, com palavras de depreciação, na tentativa clara de baixar a minha autoestima. Perguntaram meu nome e eu disse: ‘Nilce Azevedo Cardoso’. Vieram então socos de todos os lados. Insistiram na pergunta, com socos na boca do estômago e no tórax. Mal podendo falar, eu disse que meu nome estava na carteira de identidade. Aumentou a violência. Ligaram fios e vieram os choques. Fiquei muda daí para frente”. Presa ao pau de arara - barra de ferro atravessada entre os punhos amarrados e a dobra dos joelhos, na qual o preso ficava amarrado e pendurado a cerca de 20 centímetros do chão -, Nilce teve o útero queimado por choques. “Entrei em coma sem dizer uma palavra”. Ficou assim durante oito dias. Quando “recuperou-se”, as torturas continuavam e a memória começou a apagar. Nilce teve amnésia a ponto de não lembrar os nomes dos pais. Foram 17 anos de análise para reconstruir a identidade e lembrar a própria história. As marcas no corpo são corrigidas por próteses e tratamentos feitos até hoje, aos 68 anos de idade. Mesmo queimado pelos choques, o útero foi capaz de gerar dois filhos. O apoio do marido, Antônio Norival Soave - também militante e preso por dois anos -, de familiares e amigos foi fundamental no processo de superação.
Quatro décadas depois da tortura, ela garante que os dias de dor e silêncio não foram em vão. “Valeu a pena. Fiz o que deveria ter feito, fazendo parte de uma geração de jovens que deram sua vida pelo fim da ditadura e por uma sociedade em que os direitos humanos fossem respeitados”. Para Nilce, que ingressou na militância durante a faculdade, conheceu a luta de classes trabalhando ao lado das operárias do ABC Paulista e viveu clandestinamente até ser presa em Porto Alegre, a ditadura é um regime “impensável”. “A liberdade não existia para nós, mas, sim, para os militares e civis que deram o golpe. Podiam matar, torturar e fazer o que bem entendessem”, relembra. Na opinião de Nilce, a ditadura não mudou apenas a sua trajetória, mas também a sociedade. “É uma injustiça com todo povo brasileiro. A falta de esperança e o medo atingiram todos”. Embora reconheça os avanços nos direitos humanos, a militante acredita que há muito a aprender com o período que matou e torturou centenas de pessoas. Hoje, percebe a conquista da democracia, e, por isso, relata sua história para que isso nunca mais aconteça. “Essa página ainda não foi lida e, portanto, ainda não podemos virá-la”. Quando “sindicato era bandido”
Assim como Nilce, Guerino Antonio Moser, 69 anos, também é personagem dessa página triste da história brasileira. De tempos em tempos, ele tem um sonho. Uma ventania, “levando folhas, levando tudo”. Esse é o som que lembra um período de trabalho árduo, luta e repressão. Enquanto o comando do Brasil estava sob as armas dos militares, Moser era peão de fábrica que ajudava a construir o País. Ao longo de quase 20 anos como trabalhador de empresas metalúrgicas, atuou na construção da ponte RioNiterói, da Usina Hidrelétrica Engenheiro Souza Dias (Jupiá), em Três Lagoas (MS); e na Hidrelétrica de Itaipu, na divisa com o Paraguai. Apesar disso, em época de regime militar, Moser fazia parte de um grupo nem um pouco bem visto pelo governo: o dos sindicalistas. “No tempo da ditadura, sindicato era bandido. Não éramos entendidos por querer nossos direitos”. A fama de bandoleiros fazia com que os dias dos metalúrgicos fossem tumultuados. “Não podiam ver mais de duas pessoas juntas. Era uma perseguição”. Precisavam agir no silêncio. Natural de Guaporé, no Rio Grande do Sul, e criado no Rio de Janeiro, Moser ingressou no setor metalúrgico, como montador, já com veia sindicalista. “Sempre lutei pelo bem de todos”, afirma. Nas décadas de 1960 e 1970, buscar o bem de todos
significava reivindicar o básico: comida decente, equipamentos de segurança e melhores condições de trabalho. Ao longo da trajetória como metalúrgico e sindicalista, Moser foi preso duas vezes. A primeira foi em 1974, em São Paulo, às vésperas de uma reivindicação dos metalúrgicos do ABC Paulista em busca de mais segurança de trabalho. Surpreendidas em uma reunião que organizava o ato, 18 pessoas foram presas. Entre elas, Guerino Moser e o irmão Euclides. Moser lembra bem do camburão escuro, cheio de gente, no qual os sindicalistas eram transportados para um local desconhecido. Se não se sabia nem mesmo o destino, o direito de defesa também não existia. “Tu não ia para a delegacia. Não era ouvido em lugar nenhum. Era levado para um esconderijo”, explica. No local, cerca de 80 homens dividiam espaço e a porção diária de comida. Todas as madrugadas, uma rajada de água molhava a cela. Foram 11 dias assim. Em uma das trocas de turno dos guardas, Moser conseguiu escapar, rastejando pelo chão. O irmão, entretanto, não teve a mesma sorte. Foi encontrado morto junto com outros quatro companheiros. Durante a ditadura, muita gente conhecida de Guerino Moser sumiu. As famílias, raramente recebiam os corpos. Os anúncios de abandono de emprego nos jornais também escondiam a realidade dos trabalhadores mortos pela polícia. Ele relata: “Encostava a cabeça no travesseiro, moído de trabalhar o dia inteiro e chorava sozinho de noite. Não conseguia ficar com a consciência tranquila”. Foi ao lutar pelo descanso dos trabalhadores do polo petroquímico de Montenegro, em 1981, que Moser foi preso pela segunda vez. Todas as noites, a polícia invadia os alojamentos dos metalúrgicos para fazer revisão. Os “peões” não descansavam. A fim de resolver o problema, procurou o sindicato em Canoas. A denúncia caiu nos ouvidos da polícia. A partir daí, Moser, “o cabeça” da mobilização, passou a ser procurado. Em uma noite, ao chegar ao alojamento, encontrou os trabalhadores com mãos para cima e pernas abertas apanhando de policiais. “Queriam saber quem é que tinha colocado o sindicato na obra. Me apresentei e me entreguei”, conta. Junto com outros 13 colegas que organizavam as mobilizações, ficou preso em Montenegro por mais de duas semanas. Ao voltar para a obra, articulou uma última greve. Depois disso, deixou as empresas metalúrgicas para trabalhar como autônomo. Hoje, apesar das lembranças
tristes da época, sente-se feliz pelo engajamento. “Tenho orgulho de estar vivo pelo que eu fiz pelos colegas”.
O observador
As ações de Moser e Nilce no combate à ditadura refletiam na sociedade e atingiam até mesmo pessoas que não entendiam com clareza a situação. Cláudio Luiz Escobar não foi militante nem conheceu vítimas da tortura durante o regime militar. Viu a repressão de longe, apesar de os anos de chumbo terem sido cenário de sua infância e juventude. Em uma tarde do final de abril, no segundo módulo da exposição “Movimento de Justiça e Direitos Humanos – Onde a esperança se refugiou”, em Porto Alegre, o aposentado observa as fotos daquela época. Em silêncio. Com o olhar entristecido, vê as lembranças que também marcaram sua trajetória: correria, multidões, violência, gritos, a falta de liberdade, a opressão. E, por fim, o medo. “Não podíamos sair à rua sozinhos. A polícia abordava e prendia todo mundo”. Os pais explicavam que as pessoas queriam liberdade de expressão. E não se podia ir contra o governo ou militares. Escobar ouvia histórias sobre a tortura, via os confrontos durante as manifestações estudantis. Apesar das recordações, por vezes falhas, pois tinha 10 anos, acredita que hoje as pessoas dão mais valor à liberdade: “Desde que não prejudique ninguém, temos direito a qualquer coisa”, acredita.
O eco
Escobar, Moser e Nilce viveram o regime militar de forma diferente. Cada um traz consigo as lembranças e marcas do período. Mas essas consequências não são exclusivas deles: atingem também os brasileiros de hoje e de amanhã. Sob o pretexto de uma contrarrevolução, o golpe militar de 1º de abril de 1964 inaugurou um período obscuro da história brasileira, no qual a sirene da polícia e os gritos dos manifestantes eram sons comuns. Em contrapartida, um período no qual o silêncio motivado pela repressão política e pela propaganda nacionalista pairava sobre a sociedade. De 1964 a 1985, no Brasil, 366 pessoas foram mortas com a justificativa de impor ordem ao País. Presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), o historiador Jair Krischke acompanhou de perto os 21 anos do regime. Em Porto Alegre, na sala do
MJDH - grupo que ajudou a fundar, durante o período -, ele relembra o ano de 1964. O militante, na época com 26 anos, conta que as pessoas não tinham a dimensão do que se iniciava com o golpe militar. Imaginava-se mais uma “quartelada” - uma tentativa de golpe dos militares, que iria acabar logo em seguida. “Nos pegou tanto de surpresa que no dia 2 de abril eu encontrava companheiros na rua, tentando resistir. Nós não sabíamos, mas no Brasil estava se inaugurando algo absolutamente novo, a introdução da doutrina de segurança nacional”, relembra. Quase 50 anos depois, Krischke observa que, de fato, o período se estendeu muito mais do que o esperado. As sequelas decorrentes do regime ditatorial afetam a economia, a política e sociedade brasileira como um todo. “Do ponto de vista econômico, a ditadura endividou e atrasou o Brasil. A corrupção rolou solta e a imprensa amordaçada não podia falar nada”, comenta, ao ressaltar que o Brasil patrocinou golpes militares no Chile, na Bolívia e na Argentina. Outro ponto citado por ele é a desarticulação da sociedade brasileira. A repressão, a tortura e as mortes tiram dos sindicatos, dos movimentos populares e das associações seus principais representantes e ideais. “A União Nacional dos Estudantes (UNE) foi destroçada. A ditadura interviu em sindicatos e vários segmentos foram desarticulados. Criaram dois partidos políticos: o partido do Sim e o do Sim, senhor, e aí tocaram esse país”, lamenta Krischke. O sociólogo Valter Freitas vê a situação pelo mesmo viés. Ele explica que, em 1965, o Ato Institucional Número 2 (AI-2) reduziu os partidos em Aliança Renovadora Nacional (Arena) e Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Os resistentes ao golpe foram cassados. Os que conviveram com o regime militar abdicaram da sua história ou sua história era compatível com os princípios da ditadura. “Não dá para dizer que tem resistência quando os militares têm poder de descartar a liberdade, difundir o medo, fechar o Congresso”, esclarece Freitas. É justamente no aspecto político que Krischke identifica o maior prejuízo da ditadura: a morte dos futuros políticos brasileiros - jovens que militavam em organizações estudantis e sindicados e desenvolviam liderança social nesses espaços. Se comparados à lista de mortos da Argentina durante o regime militar - 8.961 pessoas-, os 366 nomes de brasileiros que perderam a vida entre 1964 e 1985 parecem poucos, se é possível quantificar em números o valor e a representatividade de uma vida. Entretanto, na opinião de Jair Krischke, essa diferença revela uma característica particular da ditadura brasileira: a repressão seletiva. Escolhiam-se as principais “cabeças” para
serem assassinadas, como forma de desarticular os movimentos. “O aparelho repressivo do Brasil foi imenso, a ação muito seletiva”, pontua o historiador. Ele ainda destaca: “se o mal pode ser inteligente, nesse caso, ele foi”. A estratégia foi certeira. “Terminaram com uma geração de políticos. Olha esse Brasil... há um vazio. Quem faz política nesse país são senhores com bastante idade e uns caras que não têm nada a dizer, sem conteúdo, sem ideologia”, opina o presidente do MJDH. Valter Freitas concorda. “Os políticos nascem dos movimentos sociais. O básico da política e do mundo não são eles, mas uma sociedade que construa consciência do que é essencial e vital”, explica. Krischke ainda identifica outro ponto importante quando se fala em política. Para ele, os militares “desocuparam a praça”, mas a ditadura permanece. “No Brasil não houve transição, houve transação”, defende o historiador, ao lembrar que Tancredo Neves, primeiro presidente eleito, depois do regime militar, já participava do governo antes da ditadura, em 1961 e 1962, como primeiro ministro. Dessa forma, a eleição de Neves não teria um caráter tão democrático como pareceu com o a mobilização pelo movimento das Diretas Já. Para Freitas, o regime ditatorial está vivo: há a ditadura do banalismo, da mídia que ensina a matar e não trata de questões relevantes. “Sempre tem uma ditadura para a minoria”, argumenta. De acordo com ele, a violência é outro resquício do regime militar, pois foi nesse período que se aprendeu a oprimir e a desrespeitar as leis. A própria Lei da Anistia** é um exemplo de contradição aos direitos humanos. “O acerto de contas precisa ser feito no Brasil, para humanizar a sociedade”. Na opinião do sociólogo, o início seria a revisão da Lei, para julgar os torturadores. “Mas a Comissão Nacional da Verdade já nasce sem poder. Ela só vai fazer o inventário das atrocidades”, afirma. Apesar de os movimentos ficarem frágeis e as gerações terem se calado após a ditadura, Freitas percebe mudanças. “Os movimentos estão ganhando força novamente. As pessoas estão encorajadas a dizer ‘não’, a dar limite, e dizer que a polícia não pode tudo”. No entanto, ele reconhece que, como a sociedade foi individualizada, “recompor esse elo é um processo lento”.
* O Relatório Azul da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos (CCDH) é uma publicação anual da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. Seu objetivo é oferecer um panorama das violações e garantias dos Direitos Humanos no RS.
**Lei da Anistia: Decreto-Lei nº 2.225, de 1985, Art.1º: Concede anistia (absolvição) aos que cometeram crimes políticos e eleitorais; aos que tiveram direitos políticos suspensos; aos servidores da Administração, dos Poderes Legislativo e Judiciário; aos militares e representantes sindicais, durante o período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.
*** Comissão Nacional da Verdade foi instituída em 16 de maio de 2013, pela Lei 12528/2011. O objetivo é resgatar as violações dos Direitos Humanos entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988.
**** O Exército Nacional foi contatado para apresentar a opinião atual do órgão sobre o período militar. No entanto, não quis se manifestar sobre o assunto.