Miguel Ângelo

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Miguel Ă‚ngelo Gilles NĂŠret





Gilles Néret

Miguel Ângelo 1475–1564


Capa

Daniele da Volterra Retrato de Miguel Ângelo, cerca de 1541 Desenho a pedra negra, 29,3 × 20,9 cm Teylers Museum, Haarlem Ilustração da Página 5

O Rapto de Ganimedes, cerca de 1533 Pedra negra, 19 × 33 cm Fogg Art Museum, Cambridge (MA) Ilustração da Página 7

Rapaz nu em movimento e a acenar, 1496 – 1500 Desenho à pena, 37 × 23 cm The British Museum, Londres

Edição em exclusivo para Paisagem

© 2006 TASCHEN GmbH Hohenzollernring 53, D – 50672 Köln www.taschen.com Edição original

© 1998 Benedikt Taschen Verlag GmbH Concepção: Gilles Néret, Paris Capa: Catinka Keul, Angelika Taschen, Colónia Tradução: Fernando Tomás, Lisboa Paginação: Atelier da Imagem, Lisboa Printed in Singapore ISBN 3 – 8228 – 4375 – X



Índice

08 Um Canteiro ∙ 1475-1505 22 O Papa e o Artista ∙ 1505-1513 48 Os Sonhos de um Titã ∙ 1513-1534 64 A Paixão Amorosa ∙ 1535-1547 82 A Glória de Deus ∙ 1547-1564 90 Cronologia



Um Canteiro 1475 — 1505


Um Canteiro ∙ 1475 — 1505

jamais ocultou que, sem descanso, desde a sua juventude até a sua velhice, as paixões atormentaram a sua vida. No turbilhão – semelhante ao de Dante – que arrasta a obra deste Titã para as alturas como para o Inferno, as figuras de belos adolescentes ocupam um lugar de eleição. Fingiu-se ignorar isso durante muito tempo. Tentou-se mesmo, de modo pouco hábil, esconder tal facto, com um escrúpulo que é quase uma injúria. Uma censura moral, que nada tem que ver com esta força criadora monumental, pensou ser engenhoso lançar um véu por cima desses amores, tão ardentes como místicos, saídos do cinzel ou do pincel do artista. Miguel Ângelo

David, 1501-1504 Mármore, altura 434 cm Galleria dell’Accademia, Florença

Em Miguel Ângelo, no entanto, a paixão e criação têm sua origem no mesmo fogo: «O que constitui a minha substância é o que me abrasa e me inflama, pois é desejável que viva daquilo que os outros morrem…» proclama ele, ainda cedo, nos seus poemas, verdadeiros cantos de «lava ardente e rochosa». E o sofrimento que este fogo perpétuo lhe causa é, por vezes, tão intolerável que ele chega a lamentar não ter arrancado os próprios olhos, ainda que fonte de beleza: «Se, na minha juventude, eu tivesse reparado que o benéfico esplendor do belo, pelo qual me apaixonara, havia de acender no coração, ao refluir a ele, um fogo de tormento imortal, como eu teria de bom grado extinguido a luz do meu olhar!…» Logo que uma hipocrisia, qualquer que ela seja, deixa de levantar obstáculos, surge, em toda sua majestade, este edifício consagrado à beleza, que Miguel Ângelo quis elevar para Deus. Este triunfo, que não tem nada que o equivalha na história da arte e que, por conseguinte, faz dele um fenómeno único e sem verdadeira descendência, é devido à maneira como ele conseguiu conciliar forças aparentemente opostas: no seu espírito, a aliança de uma sensibilidade feminina e de uma força de Hércules; na sua obra, a luta entre o movimento e a matéria, estática por definição. Só um Miguel Ângelo, com aspirações e com dons tanto masculinos como femininos, podia arriscar-se a tal e triunfar sem se enredar em estranhas contradições. Não se trata já, como era o caso antes dele, de ganhar o céu pela fé, mas antes de elevar-se pela contemplação exaltante da beleza. Exercício perigoso, pois que se não contempla impunemente a beleza humana e, sobretudo, a dos efebos, sem nela se abrasar e ser devorado pelo amor. É um suplício tão desejável como inevitável para um Miguel Ângelo que quer alcançar o céu: «Ama, abrasa-te, pois que quem quer que morra não terá outras asas para chegar ao céu.»

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Um Canteiro ∙ 1475 — 1505

Crucifixo do Convento Santo Spirito, cerca de 1492 (O primeiro Cristo nu) Madeira polícroma, 142 × 135 cm Casa Buonarrotti, Florença

«Tondo Doni» — A SAGRADA FAMÍLIA COM SÃO JOÃO BAPTISTA, 1503–1504 Painel a têmpera em forma de «tondo» Diâmetro: 91 × 80 cm Galleria degli Uffizi, Florença

Foi o que Giorgio Vasari bem compreendeu e que resumiu nestes termos: «A ideia deste homem extraordinário foi a de compor tudo em função do corpo humano e das suas proporções perfeitas, na diversidade prodigiosa de suas atitudes e, além disso, em todo o jogo dos movimentos passionais e dos arrebatamentos da alma». Mal hajam as críticas irrisórias e as acusações de introduzir o pagão onde se esperava o religioso e mesmo as de o furor dos bem-pensantes ao mostrar-lhes em pormenor a nudez do homem. É, com efeito, ao corpo humano, tal como ele saiu da mão divina, que Miguel Ângelo manda que tudo diga, nem que seja num tecto de um altar pontifício. Para Miguel Ângelo, a beleza humana, tal como ele a representa, é um reflexo da beleza celeste e, por conseguinte, deve reconduzir a alma ao divino quando se a contempla. É fazer obra piedosa, para um artista criador como ele, misturá-la com as imagens santas e chegar ao ponto de dar ao Salvador «a bela vestidura da sua nudez». Daí, um Cristo em madeira, integralmente nu, talhado aos dezessete anos, com toda a ternura que o génio nascente pode ter (pág. 10). Daí, o David (pág. 8 – 9), representação do homem e desarmado, mas cujo olhar oblíquo e determinado, de sobrolho carregado, é a expressão dessa terribilità, própria de toda a obra de Miguel Ângelo, que juntou assim uma dimensão psicológica à perfeição da sua escultura. Jogando com o contraste entre o lado direito, calmo, que está sob a proteção divina, e o lado esquerdo, vulnerável, exposto às potências do mal – segundo a distinção moral que se fazia na Idade Média – Miguel Ângelo inovou nesta representação ao optar por não fazer um David vencedor, mas torná-lo no símbolo da forteza e da ira, consideradas como virtudes cívicas no Renascimento, em especial pela república florentina que comandou a obra. Daí, o Tondo Doni (págs. 10 – 11), que representa uma Sagrada Família que nada tem de religioso mesmo que dê a impressão disso pela sua grave doçura, pela sua força altiva. Mas, que vem então fazer esta grinalda de efebos, de garzoni, que ornamenta o fundo do quadro, senão dar prazer ao pintor que acha natural prestar homenagem à beleza que ele prefere? Estes Ignudi, ainda adolescentes, encontrar-se-ão mais maduros, na abóbada da Capela Sistina, menos anjos sem asas do que rapazes chegados, conhecidos do artista, parecendo não haver qualquer razão para se acharem ali, entre tantas cenas bíblicas altamente significativas, a não ser, uma vez mais, para darem testemunho da sua beleza ambígua.

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Fascinado sobretudo pela beleza de um corpo e de um rosto, foi quando se apaixonou por Tommaso dei Cavallieri, famoso pela «sua incomparável beleza» (Bendetto Vartchi), assim como

« Uma Sagrada Família não muito católica… Curiosa maneira que a Virgem tem de estender a mão para o sexo do filho. E que faz, num quadro religioso, esta grinalda de efebos de nudez pagã? »


Um Canteiro ∙ 1475 — 1505


Um Canteiro ∙ 1475 — 1505

Fra Bartolomeo Retrato de Savonarola, cerca de 1497 Óleo sobre madeira, 53 ×47 cm Museo di San Marco, Florença

Anónimo Retrato de Lorenzo il Magnifico diante do panorama da sua cidade Florença, cerca de 1485

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pela distinção do seu espírito, que Miguel Ângelo dominou a sua busca, ao estabelecer uma ligação entre «a forza d’un bel viso» e a verdadeira beleza da alma. A partir de então, pôde aceitar sem rubor a prevenção de Sócrates: «Aquele que ama o corpo de Alcibíades ama, não Alcibíades, mas alguma coisa que pertence a Alcibíades, ao passo que aquele que ama a alma dele ama-o a ele próprio verdadeiramente». Com efeito, como observa Pierre Leyris, «é bem a alma do jovem romano que, para lá do seu rosto e do seu corpo, ele aspira a contemplar sem fim, a desposá-la intimamente até já não ser com ela senão uma e a mesma coisa.» Da dualidade deste amor da beleza do corpo, tanto como da alma, nasceram forçosamente sofrimento e criação que são justamente as duas forças que impulsionaram toda a obra de Miguel Ângelo. Não há dúvida que com «este coração de enxofre e esta carne de estopa» que a si mesmo ele atribuía, e de que ele responsabiliza o seu criador num soneto célebre, ele sucumbiu às fraquezas da carne e de um e de outra fez uso tão livre com os rapazes, cujos nomes balizam a sua vida, como Botticelli e Vinci o faziam, como é notório, com os seus garzoni. Mas, é porque ele era «um homem pecador, de pecados habituais», como ele repete dolorosamente nos seus poemas, que ele pôde sofrer e criar. André Chastel estabelece da seguinte maneira uma espécie de hierarquia entre as diferentes maneiras que os grandes artistas do Renascimento tinham de viver a sua diferença e de a tornarem num acto criador: «A beleza para Rafael era a própria promessa da felicidade, para Leonardo da Vinci a instância de um mistério; para Miguel Ângelo, ela torna-se em princípio de tormento e de sofrimento moral. Ninguém levou tão longe a intuição – tão claramente afirmada pelos platónicos de Florença – que o apelo da beleza é, pelo movimento do amor que ressoa no ser por inteiro, a força criadora por excelência, digna só de uma alma nobre. Mas ninguém experimentou de maneira mais dolorosa a dificuldade de desligar das formas sensíveis a beleza e de sublimar inteiramente o amor». Miguel Ângelo atribuiu, gracejando, a sua vocação ao leite que tinha mamado na sua infância. Nascido a 6 de Março de 1475 em Caprese, no Casentino, da velha família dos Buonarrotti Simoni, mancionadas nas crónicas florentinas desde o século XII, ele tinha sido entregue aos cuidados de uma ama-de-leite, mulher de um canteiro de Settignano. Os seus primeiros passos neste meio de artífices foram, sem dúvida, propícios ao seu gosto apaixonado de talhar a pedra. Na escola, em Florença, só se interessava pelo desenho, o que lhe custou muitas vezes ser sovado pelo pai que gostava pouco da profissão de artista mas que, afinal, consentiu que o filho seguisse a sua vocação.


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« Miguel Ângelo foi profundamente influenciado por esta escultura grega do período romano. Ele estava presente quando a desenterraram, em Roma, em 1506 »

A primeira oficina onde ele trabalhou foi a de Domenico Ghirlandaio com quem, a breve trecho, se desaveio. A verdadeira razão disso, sem dúvida, foi que, desde então, se recusou definitivamente a considerar a pintura uma arte e que acabava de descobrir que a essência do seu génio o atraía para a escultura. O artista que os frescos da Capela Sistina imortalizaram não queria pintar e nunca o fez senão coagido e forçado. Foi por isso que preferiu ir para a oficina de Giovani di Bartoldo, discípulo de Donatello, que dirigia uma escola de escultura ao mesmo tempo que a colecção de objetos da Antiguidade Clássica reunidos por Lorenço de’Medici (pág. 12), nos jardins de San Marco. Aí Miguel Ângelo pôde saciar duas paixões: reencontrar em Bartoldo a tradição de Donatello e, ao mesmo tempo, estudar os modelos da Antiguidade. Aí encontrou mais ainda: a amizade do príncipe e da elite dos pensadores florentinos, entrando ao mesmo tempo no coração do Renascimento, no meio dos humanistas e dos poetas, em relação íntima com tudo o que a Itália tinha então de mais nobre. Lorenzo de’Medici, fascinado, deu-lhe alojamento no palácio, recebeu-o à mesa e, deste modo permitiu que ele, logo nos primeiros passos de artista, neste meio de paganismo que o marcará de maneira duradoura, se inebriasse com a Antiguidade, se empanturrasse com as formas heróicas da Grécia e transpusesse tudo isto para as suas esculturas misturando-lhes a sua violência selvagem. Assim nasceu o Combate dos Centauros e dos Lápitas, da Casa Buonarrotti (pág. 13), combate de homens nus, com corpos e movimentos atléticos, outra manifestação do belo segundo Miguel Ângelo. Mas já nele se travava outro combate que durou quase toda a sua vida: como conciliar esses dois mundos adversos que são, um, a sua atracção pelo paganismo e, outro, a fé da sua alma cristã? Luta pela qual ele sofreu e criou. Por um lado, um pai, «homem à sua velha maneira, temente a Deus», um irmão mais velho, Lionardo, que se tornou frade dominicano em Pisa, e Savonarola (pág. 12) que começava, em Florença, as suas prédicas inflamadas sobre o apocalipse. Do outro lado, o amor do belo e da natureza que o levava a estudar com afinco a anatomia dos cadáveres, ao ponto de o cheiro o fazer adoecer. Mesmo não sendo indiferente às palavras ardentes de Savonarola, que do alto da sua tribuna lançava o raio sobre o Papa e os príncipes, Miguel Ângelo preferiu fugir de uma Florença apavorada pelo frágil pregador e refugiar-se por algum tempo em Veneza. Longe do gládio ameaçador de Deus, ele preferiu esculpir para o tabernáculo de San Domenico, igreja de Bolonha, onde reside por certo tempo depois de Veneza, um anjo que, apesar das asas, parece antes esperar o sinal de partida e estar a preparar-se para correr a maratona do que voar para o céu.

Agessandro, Polidoro e Atenodoro de Rodes Grupo do Laocoonte, cerca de 150 a.C. Museo Pio Clementino, Beldevere, Vaticano

Combate dos Centauros e dos Lápitas, 1492 Baixo-relevo de mármore, 81 × 88,5 cm Casa Buonarrotti, Florença

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Enquerrand Quarton (atribuído a) Pietà de Villeneuve-lèsAvignon, cerca de 1455 Óleo sobre tela, 163 × 218 cm Musée du Louvre, Paris

Agnolo Bronzino Descida da Cruz (pormenor), cerca de 1542 – 1545 Óleo sobre madeira, 268 × 173 cm Musée des Beaux-Arts, Besançon, França

Pietà, 1499 Altura: 174 cm Base: 195 cm São Pietro, Vaticano

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De 1492 a 1497, durante todo o tempo em que decorreu a tragédia de Savonarola, nunca Miguel Ângelo foi tão pagão. É a época de um Baco que dá testemunho do seu profundo conhecimento da Antiguidade pela sensualidade do modelo, digno dos exemplos helenísticos, assim como do famoso Cupido Adormecido, esculpido em plena Florença mística, e que ele ousou vender como falso mármore antigo ao cardeal Riario, amador de escultura grega (1496). Savonarola, que acabou na fogueira em 1498, atribuía à arte uma rigorosa finalidade de edificação religiosa. Miguel Ângelo desprezava esta arte feita para os devotos. Ele pensava que era mais religioso ao esculpir belos corpos harmoniosos «para as mulheres, sobretudo as idosas ou para as mais jovens, assim como para os frades, para as freiras e para alguns nobres, que não ouvem a verdadeira harmonia». Mesmo que a Pietà de San Pietro (págs. 14 – 15), começada no ano da morte de Savonarola, tenha, pelo tema, um ar mais religioso que as outras obras da época, assemelha-se mais aos magníficos deuses do Olimpo que encantavam Miguel Ângelo, do que às virgens lacrimosas, a gritarem de dor, pintadas por Donatello, por Luca Signorelli ou por Andrea Mantegna. O que surpreende sobretudo neste grupo harmonioso, é a calma beleza da Virgem juvenil em cujos joelhos repousa Cristo em postura de criança adormecida. Como sempre, em Miguel Ângelo, a beleza prevalece em relação às trágicas declamações dos pintores, mesmo que os Cristos deles adoptem uma pose semelhante, mas inteiriçada pela dor e pelo sofrimento, como em Agnolo Bronzino (pág. 14) ou em Enguerrand Quarton (pág. 14). O comentário que o próprio Miguel Ângelo fez da sua Pietà mostra que o seu pensamento místico dependia da beleza que ele pretendia insuflar na sua escultura, em especial quando ele explica o contraste existente entre a eterna juventude da Virgem, comparada com o Cristo que tem o ar de um homem amadurecido: «Não sabes tu – dizia ele a Ascanio Condivo – que as mulheres castas se conservam muito mais frescas que as que não são castas? Quanto mais, por conseguinte, uma virgem que jamais teve o menor desejo imodesto a perturbar-lhe o corpo…». Em relação ao filho, em contrapartida, nada de milagre: ele encarnou o homem e envelheceu como ele e não há necessidade de fazer desaparecer o humano por detrás do divino. «Não te espantes pois, – concluiu Miguel Ângelo – se, por tais razões, representei a Santíssima Virgem, Mãe de Deus, muito mais jovem do que a sua idade exigia e deixei ficar o filho com a sua própria idade.»


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Pietà, 1499 Pormenor do rosto de Maria

Pietà, 1499 Pormenor do rosto de Cristo

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Aristotèle da Sangallo A Batalha de Cascina, inspirado em Miguel Ângelo, parte central do esboço, cerca de 1542 Óleo sobre prancha, 76,5 × 130 cm Holkham Hall, Norfolk

Petrus Paulus Rubens O Episódio do Estandarte da Batalha d’Anghiari, cerca de 1600 Desenho inspirado em Leonardo Da Vinci, 45,2 × 63,7 cm Musée du Louvre, Cabinet des Dessins, Paris

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Os dois faróis do Renascimento, Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo, nunca tiveram grande simpatia um pelo outro. Da Vinci interessava-se por tudo, mas recusava-se a tomar partido, Miguel Ângelo, atormentado pelas suas paixões inconstantes, odiava os que não tinham qualquer partido nem nenhuma fé, como era o caso do seu rival e, por diversas vezes, manifestou a Leonardo da Vinci, publicamente, a sua aversão por ele. E eis que, no momento de um conflito de Batalhas entre os dois rivais, o Renascimento ia ter uma viragem decisiva. Em 1504, a senhoria de Florença pô-los frente a frente numa obra comum: a decoração da sala do Conselho. Enquanto Leonardo da Vinci começava o esboço da Batalha de Anghiari, Miguel Ângelo atirava-se ao da Batalha de Cascina (pág. 16). Então, Florença dividiu-se em dois campos apaixonados por cada um dos rivais. A ironia do destino quis que estas obras, que desempenharam um papel histórico tão importante, tenham ambas desaparecido. Para a destruição do fresco de Leonardo da Vinci bastou ele mesmo ao inventar um novo revestimento que se derramou pelo chão com a própria obra. Quanto ao esboço de Miguel Ângelo, foi destruído em 1512, por ocasião de desordens políticas. Mas nem por isso os dois esboços de Leonardo da Vinci e de Miguel Ângelo tinham deixado de ter tempo de exercerem em toda a pintura italiana uma influência capital. Leonardo da Vinci tinha exposto sua batalha com toda a sua lucidez mas também com toda a sua frieza analítica. Miguel Ângelo, à sua maneira habitual, tinha virado as costas à história e aproveitara a ocasião para pintar uma multidão de homens nus no banho, com toda a liberdade. Para exprimir a violência dos movimentos e a atitude dos combatentes – a que o próprio Miguel Ângelo chamou «a loucura bestial» da guerra – Miguel Ângelo tinha-se inspirado num episódio da «Crónica» de Villani e tinha representado os soldados florentinos que, avisados da aproximação do inimigo quando tomavam banho no Arno, se apressaram a vestir-se e a pegar nas armas para lhes fazerem frente. Este episódio tinha-lhe servido de pretexto para representar aquilo que ele mais gostava, isto é, homens nus em atitudes insólitas e violentas, mas servira-lhe também para dar provas do seu perfeito conhecimento de anatomia humana e da sua aptidão para dar aos movimentos e às personagens um intenso valor expressivo. E aqui está o que era absolutamente novo para a época e que ia revolucionar a pintura do Renascimento.


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As duas obras, apesar do excesso analítico em Da Vinci e da tentação de abstracção em Miguel Ângelo, tinham criado uma autoridade nova na maneira de abordar o tema. Rafael copiou-as, Fra Bartolomeo inspirou-se nelas, Andrea Del Sarto passou o seu tempo a estudá-las. Era a morte de todos os encantadores pintores primitivos, de Pinturicchio e Signorelli ao Perugino. Esta autoridade tornou-se, de imediato, universal e tirânica. Benvenuto Cellini dizia, em 1559: «O esboço de Miguel Ângelo foi colocado no palácio dos Medici, o de Leonardo da Vinci na sala do Papa; durante todo o tempo que ali estiveram expostos, foram ensino para as pessoas». Mas, nem toda a gente é Leonardo da Vinci ou Miguel Ângelo e Romain Rolland, entristecendo-se com «o súbito desfavor e com a espécie de decreto de exílio» da pintura primitiva, pôde, com razão, lamentar: «... tanta graça, tanta elegância, tanta energia sacrificados a uma beleza sem dúvida superior, mas a que nem todos podiam chegar. Em vez de dar maior amplitude ao espírito, a admiração de Leonardo da Vinci e de Miguel Ângelo tornou-o exclusivo e estreito».

Nu masculino e dois estudos de pormenores para a Batalha de Cascina, 1505 — 1506 Pedra negra, ligeiros realces de branco, 40,5 × 22,5 cm Teylers Museum, Haarlem

Nu masculino de costas, cerca de 1504 Pena e tinta sobre traços de pedra negra, 40,9 × 28,5 cm Casa Buonarrotti, Florença É, certamente, um dos estudos para os guerreiros da Batalha de Cascina.

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Um Canteiro ∙ 1475 — 1505

São Próculo, 1494 — 1495 Mármore, altura 58,5 cm Basílica San Domenico, Bolonha

Apolónio, filho de Nestor O Torso do Beldevere, cerca de 50 a.C. As torções deste corpo atlético marcaram profundamente Miguel Ângelo. Encontram-se sinais disso no tecto da Capela Sistina e, de modo mais particular, nas estátuas de escravos para o monumento a Júlio II.

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Um Canteiro ∙ 1475 — 1505

«Tondo» para B. Pitti — Virgem com o Menino e o Pequeno São João, 1503 — 1504 Baixo-relevo de mármore, diâmetro 85,5 × 82 cm Museo del Bargello, Florença

«Tondo» para Taddeo Taddei, 1505 — 1506 Baixo-relevo em mármore, diâmetro 109 × 104 × 106 cm Royal Academy of Arts, Londres

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Um Canteiro ∙ 1475 — 1505

Leonardo Da Vinci Virgem, O Menino Jesus, Santa Ana e São João Baptista, cerca de 1498 Lápis de carvão, realce de branco sobre cartão, 141,5 × 104,6 cm National Gallery, Londres

Virgem com o Menino, cerca de 1504 Mármore, altura 128 cm Notre-Dame, Bruges

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Um Canteiro ∙ 1475 — 1505

Rapariga de Joelhos, virada para a direita Estudo para a personagem em baixo, à esquerda, de A Sepultação, cerca de 1503 – 1504 Pedra negra, pena e tinta de dois tons, 27 × 15 cm Musée du Louvre, Cabinet des dessins, Paris

A Sepultação, inacabado, hoje atribuído a Miguel Ângelo, cerca de 1504 Óleo sobre madeira, 161,7 × 149,9 cm National Gallery, Londres

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O Papa e O Artista 1505 — 1513


O Papa e o Artista ∙ 1505 — 1513

« A trabalhar torcido, apanhei papeira ∙ como a água provoca nos gatos da Lombardia ∙ (a menos que seja de outro país qualquer) ∙ e tenho o ventre, por força, colado ao queixo. » « A Minha barba aponta para o céu, sinto a nuca ∙ sobre as costas, tenho um peito de harpia ∙ e a pintura cons-tantemente escorre ∙ para a minha cara faz dela um pavimento. » « Os meus lombos meteram-se-me na pança, ∙ fazendo, em compensação, do meu cu uma garupa ∙ de cavalo e eu deambulo às apalpadelas. » « Tenho pela frente a crosta que se alonga ∙ ao passo que, por detrás, ela se encarquilha ∙ e estou recurvado como um

arco de Síria. » « Enfim, os juízos que faço sobre o meu espírito ∙ aparecemme falazes e falseados: quando se usa ∙ uma sarabana torta, não se acerta. » « Esta porca desta pintura, ∙ Protege-a, Giovanni, e protege a minha honra: ∙ Estarei eu em boa postura e serei eu pintor? »

A partir da tradução francesa de Pierre Leyris, Ed. Mazarine, 1983, págs. 37 — 38.

Miguel Ângelo não podia suportar a pintura a óleo, de que ele dizia «ser boa para as mulheres… ou para os madraços, como Sebastiano del Piombo». Ela afigurava-se-lhe, como a Platão, menos viril e menos pura do que a estatuária, pela sua própria sedução, pela «sua magia ilusória» que simula «a aparência das coisas» e só cria fantasmas. E desdenhava dela tanto mais quanto mais ela recorria à atracção da cor, à custa da ideia.

Sexto vão da Abóbada, A Criação de Adão, 1510 – 1511 Fresco, 280 × 570 cm.

Que teria ele pensado dos impressionistas, ele que condenava a paisagem e não via nela, também como Platão, senão «um esboço vago e ilusório, um jogo para as crianças e para os iletrados…». Ele detestava também o retrato que, para ele, mais não era que «adulação feita à curiosidade vã e às ilusões imperfeitas dos sentidos». Tudo isto em contradição com a maior parte da escola italiana do século XVI ou com a ingénua profissão de fé de Dürer, esse bom burguês piedoso da Alemanha que declarava, quase pela mesma época, em 1513: «A arte da pintura está a serviço da Igreja, para mostrar os sofrimentos de Cristo e muitos outros bons modelos; ela conserva também a figura dos homens após a morte deles».

Sem dúvida, a mais conhecida das imagens da Capela Sistina.

Miguel Ângelo não se limitava a desprezar a pintura, ele rebaixava-a perante a escultura. Numa carta escrita em 1547 a Benedetto Varchi, dizia: «A pintura parece-me tanto melhor quanto mais se assemelhar à escultura, e a escultura tanto pior quanto mais se assemelhar à pintura. A escultura é a facho da pintura e há, entre uma e outra, a mesma diferença que existe entre o sol e a lua». E acrescenta – perfídia que parece de facto visar o seu rival Leonardo Da Vinci: «Quem escreveu que a pintura era mais nobre que a escultura, se entendeu tão bem as outras coisas que fez como aquela, então a minha criada tê-las-ia feito melhor do que ele». Imagina-se o terrível castigo que foi para ele a obrigação imposta pelo Papa Júlio II, em 1508, de decorar com frescos a abóbada da Capela Sistina. Quer dizer, cobrir, contrariado, 1000 metros quadrados com pinturas que mostram cerca de 300 figuras, realização que ocupou o artista de 1508 a 1512, num trabalho obstinado e solitário. Miguel Ângelo sofreu terrivelmente durante este trabalho de gigante e queixou-se amargamente em cartas que provam um forte desânimo: «Isto não é da minha profissão – gemia ele. Perco o meu tempo sem resultado. Que Deus me ajude!». E, no entanto, haveria outros artistas também tão pouco dados à pintura como Miguel Ângelo que pudessem ter atingido, graças a ela, uma tal glória universal? (veja-se o soneto que mostra o artista a pintar – pág. 23).

Soneto-autógrafo de Miguel Ângelo, 1509 – 1510, acompanhado de um esboço a pena e a tinta castanha, 28,3 × 20 cm. Archivi Buonarroti, Florença

Rafael, Retrato do Papa Júlio II, cerca de 1511 – 1512 Óleo sobre prancha, 108 × 80,7 cm National Gallery, Londres

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O Papa e o Artista ∙ 1505 — 1513

Quarto vão da Abóbada, O Pecado Original, Adão e Eva no Paraíso, 1509 – 1510 Fresco, 280 × 270 cm Capela Sistina, Vaticano

O caso tinha, no entanto, começado de forma idílica, em 1505, quando o Papa Júlio II tinha chamado Miguel Ângelo a Roma para realizar com ele os seus projectos grandiosos, em especial erigir um mausoléu espetacular destinado ao pontífice na Basílica do Vaticano. A ideia de Júlio II era explorar o sentido e o valor político das obras de arte num programa da restauratio da Roma papal, prelúdio da sua renovação política, na tradição da Roma imperial. O Papa e o artista foram feitos para se entenderem e não houve choque entre eles. Ambos eram violentos, orgulhosos, grandiosos e fervilhavam em ideias gigantescas. O projecto do túmulo que Miguel Ângelo apresentou ao Papa, verdadeira montanha de arquitectura, com mais de quarenta estátuas, em parte colossais e com numerosos relevos em bronze, agradou-lhe tanto que, segundo Condivi, «o enviou logo a Carrara (Abril de 1505) com o encargo de cortar todo o mármore que fosse necessário… Miguel Ângelo ficou dois meses na montanha, com dois criados e um cavalo». Estava dominado por uma exaltação sobre-humana. Na sua efervescência, pensou mesmo em esculpir uma montanha inteira, trabalho digno de Hércules… ou de Miguel Ângelo. Quando os blocos chegaram a Piazza di San Pietro, «a massa das pedras era tão grande que provocou o espanto das pessoas e a alegria do Papa». Mas Júlio II era inconstante e, aconselhado por rivais invejosas de Miguel Ângelo, como Donato Bramante, abandonou de súbita o projecto e Miguel Ângelo, indignado com a afronta, fugiu de Roma a cavalo, recusando regressar.

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Será preciso esperar pela ocasião da entrada vitoriosa de Júlio II em Bolonha, em 1506, para que os dois homens irredutíveis se voltem a encontrar para uma reconciliação forçada: «Vi-me forçado a ir, de corda ao pescoço, pedir-lhe perdão» – disse Miguel Ângelo. Júlio II tinha outra ideia em mente. Ele impôs a Miguel Ângelo outra tarefa, tão inesperada como perigosa. Ordenou ao escultor, que só a «custo pintava e que nada sabia da técnica do fresco », que pintasse a abóbada da Capela Sistina. Era uma armadilha que Bramante e os outras rivais de Miguel Ângelo tinham posto na mente do Papa. A aposta deles era que ou Miguel Ângelo não aceitaria e se indisporia outra vez com Júlio II, ou então aceitaria e seria muito inferior a Rafael que, nesse mesmo ano de 1509, começava a pintura das Stanze de maneira incomparavelmente feliz e que seria preciso superá-lo ou desaparecer. Durante muito tempo Miguel Ângelo tentou esquivar-se àquela honra, dando como desculpa não ser a sua arte e temer não ser bem sucedido.

« Miguel Ângelo tem o costume de aproximar um rosto que se supõe feminino e um sexo claramente feminino. Já se viu no Tondo Doni (págs. 10 – 11). Ainda se verá no pormenor de Catarina de Alexandria ajoelhada e virada para São Brás, numa “postura pouco honesta” que suscitou, quando na inauguração, um verdadeiro escândalo (pág. 73). »

« Segundo Miguel Ângelo, a serpente tentadora era uma mulher, como testemunha disso o seio que lhe atribui. »


O Papa e o Artista ∙ 1505 — 1513


O Papa e o Artista ∙ 1505 — 1513

O Dilúvio (pormenor), 1508 – 1509 Fresco, 280 × 570 cm Capela Sistina, Vaticano Esta mão escultórica tem o heroísmo selvagem e a força hercúlea de um titã ao qual se acrescentou um par de seios.

Ele propôs mesmo que Rafael ficasse em seu lugar. Nada impediu que fosse como o Papa queria e, perante a obstinação deste, Miguel Ângelo resolveu-se por fim, a encarregar-se da obra. O trabalho, formidável, começou a 10 de Maio de 1508. Para Miguel Ângelo, foi preciso inventar tudo. Recusou o andaime erguido por Bramante e armou o seu. Recusou a ajuda de pintores que tinham experiência do fresco e que tinham sido chamados de Florença para o ajudarem e só, fechado na capela com alguns operários, decidiu não só pintar a abóbada, mas também as paredes da capela e até os frescos antigos. No centro da abóbada foram, em primeiro lugar, as nove Cenas do Génesis que descrevem sucessivamente a solidão de um Deus atlético suportado pela nuvem dos espíritos, solidão a que dá remédio a criação de um homem à sua imagem (pág. 22) e de uma mulher não menos possante, pois que carrega consigo toda a humanidade. Como templos de carne, estes primeiros humanos de torsos como troncos, de braços como colunas, de coxas formidáveis estão já prenhes das paixões e dos crimes que implicam os castigos que Miguel Ângelo descreveu em seguida: A Tentação, O Pecado Original (págs. 24 – 25), O Dilúvio (págs. 26 – 27). Nos ângulos das cornijas, vinte Ignudi (págs. 28 – 29), verdadeiras estátuas vivas, irmãos espirituais ou amantes do artista, mistura de feminidade e de masculinidade pelos traços e pela musculatura, agitam-se em todas as posições, divididos entre o pavor e o furor, o desvairio e o sofrimento, dominados pelas paixões terrenas.

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Dominam em seguida os doze Profetas e Sibilas (págs. 30 – 31) penetrados de dúvida tanto como de saber, «tochas trágicas do pensamento que se consomem na noite do mundo pagão e judeu; toda a sabedoria humana que espera o Salvador» (Romain Rolland). Por cima das doze janelas, os Precursores e os Antepassados de Cristo (págs. 32 – 33) esperam, na angústia e no medo. Por último, nos quatro ângulos da abóbada desdobra-se a história sinistra do «povo de Deus»: David a degolar Golias, Judite com a cabeça de Holofernes, os Hebreus a torcerem-se com as mordeduras das serpentes de Moisés (págs. 38, 40), Aman a ser crucificado. Pensamentos cruéis, fanatismo assassino, de um povo sem Deus, no qual vivem o terror, a tristeza e a expectativa… Com efeito, para nós que sabemos como Miguel Ângelo, trinta anos depois, acabou com o Juízo Final o ciclo do seu pensmento, já compreendemos o que todos eles esperam: é Cristo que fulmina.


O Papa e o Artista ∙ 1505 — 1513

O Dilúvio (pormenor), 1508 – 1509 Fresco, 280 × 570 cm Capela Sistina, Vaticano

Segundo vão da Abóbada, O Dilúvio, 1508 – 1509 Fresco, 280 × 570 cm Capela Sistina, Vaticano

« Parece que O Dilúvio foi a primeira cena executada pelo artista e a que lhe levantou mais problemas técnicos. Em especial, segundo Condivi, Miguel Ângelo viu-se perante o problema das manchas de bolor e pensou em deixar tudo. Mas o Papa enviou-lhe o arquiteto Giuliano da Sangallo que lhe resolveu o problema. Miguel Ângelo, como de

costume, optou por representar o pavor e a angústia de preferência ao motivo apenas da Arca. A cena é de uma intensidade dramática tanto mais forte quanto o espectador conhece o desfecho fatal: a cólera de Deus só poupou os ocupantes da Arca. »

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O Papa e o Artista ∙ 1505 — 1513

Ignudi, 1509 Pormenor perto de O Dilúvio e por cima da Sibila de Eritreia.

Os exegetas de todos os partidos e de todas as épocas deram deste primeiro ciclo interpretações iconográficas diversas e, muitas vezes, contraditórias. Quer se trate de factos históricos ou ficcionados, o que conta, de facto, é que neles Miguel Ângelo se dá nu, de corpo e alma, traído sem dúvida, tal como temia, por essa arte do fresco indiscreto, que lhe arranca, sem vergonha, os seus segredos, e contra a qual mais não pode senão irritar-se. Se, segundo Miguel Ângelo, a escultura é a arte suprema, ela é, também segundo ele, a escola do pintor e o ideal da pintura. Tinha aprendido com Sócrates que o objecto da pintura era represetar a alma e o mais íntimo do ser. Os homens que ele pinta, só lhe interessam, de resto, por aquilo que neles há de eterno. Deixa de lado o aspecto fugitivo e mutável da fisionomia deles, o encanto delicado da vida para os outros pintores que se entregam, segundo ele, a «uma ilusão vazia e desagradável». Para esses, a arte cria fantasmas. Os objectos que eles representam são «sonhos da imaginação humana destinados às pessoas acordadas… e uma imagem que se mostra de longe às crianças, sem discernimento, para as iludir». Para Miguel Ângelo, esses fantasmas dos sentidos desviam as almas das únicas realidades: as ideias eternas. Ora, as pinturas de Miguel Ângelo são grandes, também, porque são imitadas da sua escultura. Sobretudo, elas revelam tudo acerca dele e, através deles, as «ideias imortais» que ele tomava a peito. Quem conheça esta obra, conhece também Miguel Ângelo, em especial a dualidade que é a essência da sua personalidade, os mundos inimigos que estão frente a frente e se reúnem, nele e na sua obra: uma brutalidade material e um idealismo sereno; uma embriaguez da força, da beleza pagã e um misticismo cristão; uma mistura de violência física e de abstracção intelectual; uma alma platónica num corpo de atleta. Esta união indissolúvel de forças opostas, que, sem dúvida, fez parte dos seus sofrimentos e que faz também a sua grandeza única e universal.

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Que se pode sentir perante o espetáculo admirável da Capela Sistina posto em cena por Miguel Ângelo? Um pouco, sem dúvida, daquilo que sentiu Fabrice del Dongo, o herói do romance de Stendhal, «La Chartreuse de Parme» (1839), em plena batalha de Waterloo. Fabrice só podia ver desta batalha um pouco de fumo e alguns cavaleiros que se degolavam mutuamente. Ele não podia vê-la toda, por inteiro, e ainda menos imaginá-la no seu conjunto. Do mesmo modo, não pode o visitante da Capela Sistina, perante aquela abóbada e aquelas paredes revestidas de uma efervescência tumultuosa de gigantes, uns maiores que outros, apreender à primeira vista, a poderosa unidade

« Nos ângulos das cornijas, vinte “ignudi”, verdadeiras estátuas vivas, irmãos espirituais ou amantes do artista, parecem expostos às paixões terrenas como está a seu criador. Estes belos jovens sem relação com as cenas bíblicas altamente significativas que o rodeiam são os mesmos, um pouco envelhecidos, que faziam companhia à Sagrada Família do “Tondo Doni” (págs. 10 – 11). Parece não haver outra razão para estarem ali, a não ser a de darem prazer ao artista, dando testemunho da sua beleza ambígua. »


O Papa e o Artista ∙ 1505 — 1513

que delas se desprende. Deixemos Romain Rolland, que conhecia intimamente Miguel Ângelo, como conhecia também esse outro génio-irmão, Beethoven, descrever-nos as suas emoções: «É muito perigoso descrever a obra: encalha-se nesta tarefa impossível. Têm-se multiplicado as análises e os comentários. Eles matam a obra, esmigalhando-a. Há que enfrentá-la e mergulhar no abismo dessa alma alucinada. É uma obra terrível, que se não pode olhar com sangue frio, com risco de não a compreender em nada. Há que odiá-la ou adorá-la. Ela asfixia, queima. Nada de paisagem, nada de natureza, nada de ar, nada de ternura, quase nada de humano. Um simbolismo de primitivo, uma ciência de decadente, arquitecturas de corpos nus, convulsionados, um pensamento árido, selvagem e devorador, como um vento do Sul num deserto de areia. Nem um canto de sombra, nem uma fonte para dessedentar. Uma tromba de fogo. A vertigem grandiosa do pensamento delirante e sem outro alvo a não ser Deus no qual vai se perder. Tudo chama por Deus, tudo o teme, tudo o proclama. Um furacão sopra, de um extremo a outro deste povo de gigantes – o furacão que faz rodopiar no ar o Deus que cria o sol, como um bólide lançado através dos espaços. O estrondo da tempestade rodeia-vos e ensurdece-vos. Não há nenhum meio de vos abstrairdes dele. Se não quiserdes de modo algum odiar essa força brutal que vos violenta, o único recurso está em vos entregardes a ela sem resistência, como essas almas de Dante que um ciclone eterno arrasta. Quando se pensa que este inferno foi, durante quatro anos, a própria alma de Miguel Ângelo, compreende-se – como adiante se verá – que ele tenha ficado queimado por ele até às fontes da vida, como uma terra esgotada que já não pode produzir.

Um dos quatro Ignudi que rodeiam o profeta Jeremias Miguel Ângelo, em referência às glandes heráldicas de Júlio II aproveitou para dispor perto da figura um belo molho de glandes de grande tamanho…

Nesta abóbada e nestas paredes feitas de corpos heróicos cuja efervescência tumultuosa e cuja unidade poderosa evocam conjuntamente os sonhos monstruosos da imaginação hindu e a imperiosa lógica, a vontade de ferro da antiga Roma, floresce uma beleza selvagem e pura. Em alguma parte se viu algo de semelhante. Ela tem qualquer coisa ao mesmo tempo de bestial e de divino. Um perfume de elegância e de nobreza helénica mistura-se nela com um odor de humanidade primitiva. Estes gigantes, de peitos olímpicos, de costas e flancos enormes, onde se sente, como dizia o escultor Gilliaume, «o peso das fortes entranhas», mal se desprendem ainda da sua dupla origem: a do animal e a dos deuses.» Miguel Ângelo tinha pois saído vencedor deste combate titânico, frustrando as expectativas dos seus inimigos que se contentavam com o seu malogro. Mas, à custa de quantos sofrimentos e de

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O Papa e o Artista ∙ 1505 — 1513

A Sibila de Delfos Pormenor do rosto

quantas lutas, que o levaram muitas vezes a apetecer deixar tudo e fugir outra vez. Foi assim que, mesmo a meio de O Dilúvio, o fresco começou a criar bolor, alterando as figuras e as cores. Despreparado, Miguel Ângelo pensou imediatamente em virar costas. Mas o Papa enviou-lhe o arquitecto Giuliano da Sangallo, técnico hábil, que liberou o fresco do bolor: o mal estava na cal que continha água de mais. A técnica do fresco é, com efeito, delicada e exige um grande domínio do ofício, de que Vasari nos dá um exemplo: é preciso «executar num só dia a totalidade do trabalho previsto… esta pintura faz-se sobre a cal ainda fresca, sem descanso, até ao acabamento da porção prevista para o dia… as cores postas sobre uma parede húmida produzem um efeito que se modifica quando ela seca…» Ao contrário das outras técnicas (o óleo, a aguada), a pintura a fresco só pode ser retocada a seco – ora «o que foi trabalhado a fresco permanece e o que foi retocado a seco é levado pela esponja molhada». As relações entre o Papa e o pintor eram, frequentemente, tempestuosas. «Um dia – diz Condivi – tendo o Papa perguntado a Miguel Ângelo quando acabava, respondeu-lhe este, como era seu hábito: «Quando eu puder!» o Papa, que era irritável, deu-lhe com o bastão, dizendo: «Quando eu puder! Quando eu puder!». Miguel Ângelo correu para casa e preparou-se para deixar Roma. Felizmente, o Papa apressou-se a mandar-lhe Accursio, um rapaz muito amável, que lhe levou 500 ducados, o acalmou o melhor que pôde e apresentou as desculpas de Júlio II. Miguel Ângelo aceitou as desculpas». Mas o fresco nunca mais terminava e o Papa, impaciente, acabou por ameaçar Miguel Ângelo de o mandar do andaime abaixo. Miguel Ângelo teve de obedecer e desvendar a sua obra-prima: «Vem daí – dizia ele depois – que essa obra não tenha sido tão perfeita como desejaria, visto que a pressa do Papa o impediu».

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A 1 de Agosto de 1511, Júlio II dizia a missa na Capela Sistina, ut picturas novas ibidem noviter detectas videret, e a obra inteira estava terminada em Outubro de 1512. A 31 de Outubro de 1512, a Capela Sistina era aberta ao público. Quatro meses depois, morria Júlio II. Ele, que tinha punido Miguel ao obrigá-lo a pintar em vez de esculpir, era, por seu turno, punido pouco aproveitando da obra-prima que tinha suscitado.


O Papa e o Artista ∙ 1505 — 1513

Primeiro vão da Abóbada – A Sibila de Delfos desenrolando um pergaminho e parecendo estar a voltar-se para a multidão para o ler, 1509 Fresco, cerca de 350 × 380 cm Capela Sistina, Vaticano

A Sibila da Líbia 395 × 380 cm, que fecha e repõe o grande volume dos tempos Capela Sistina, Vaticano

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O Papa e o Artista ∙ 1505 — 1513

dois pormenores da Luneta de Jacob e José, 1511 – 1512 Fresco, 215 × 430 cm Capela Sistina, Vaticano

Luneta de Jacob e José, 1511 – 1512 Fresco, 215 × 430 cm Capela Sistina, Vaticano Sequência geneaológica dos antepassados de Cristo. No Evangelho Segundo São Mateus: «Jacob (à esquerda) gerou José, esposo de Maria (à direita) da qual nasceu Jesus, a quem se chamou Cristo»

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O Papa e o Artista ∙ 1505 — 1513


O Papa e o Artista ∙ 1505 — 1513

Estudo para a figura de Adão, 1511 Sanguina, 25,3 × 119,9 cm Tylers Museum, Haarlem

Estudo para A Sibila Líbia, 1511 Giz sobre papel, 29 × 21 cm The Metropolitan Museum of Modern Art, Nova Iorque

Estudo para a Criação de Adão, cerca de 1510 Sanguina, 19,3 × 25,9 cm The British Museum, Londres

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O Papa e o Artista ∙ 1505 — 1513


O Papa e o Artista ∙ 1505 — 1513

O Profeta Jeremias 390 × 380 cm Anuncia o novo pacto da aliança que o Senhor tem a intenção de fazer com seu povo.

Oitavo vão da abóbada, A Criação dos Astros, 1511 Fresco, 280 × 570 cm

Vista parcial do fresco da Capela Sistina que se desenrola por 1000 m² e põe em cena cerca de 300 figuras. A realização ocupou o artista de 1508 a 1512, num trabalho obstinado e solitário.

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« “O Profeta Jeremias” e A “Sibila da Líbia” pertencem ao nono vão da abóbada da Capela Sistina. São os dois medalhões que prolongam “A Separação da Luz e das Trevas”. Estas cenas anunciam “O Juízo Final” e tem-se frequentemente interpretado a personagem de Jeremias, mergulhado numa meditação dolorosa, como um auto-retrato imaginário de Miguel Ângelo, oprimido pela angústia da “segunda morte” e pelo peso dos seus pecados »

« Acima, a criação do Sol e da Lua. “Deus fez as duas grandes Luminárias, a grande luminária para presidir ao dia, a pequena para presidir à noite e às estrelas” (Génesis, 1,16) »



Os Sonhos de um Titã 1513 — 1534


Os Sonhos de um Titã ∙ 1513 — 1534

Os sofrimentos por que passou Miguel Ângelo nos quatro anos que andou nos andaimes da Capela Sistina esbateram-se, «a agitação acalma-se pouco a pouco, como um mar encapelado que acaba por amansar» (Romain Rolland). Miguel Ângelo, apesar do triunfo do seu fresco, pôde, por fim, abandonar a pintura para voltar à escultura e ao grande projecto que ele tomara a peito: o Túmulo de Júlio II (pág. 39). É o que Condivi traduz por estas palavras: «Deste modo, Miguel Ângelo entra de novo na tragédia do túmulo». A «tragédia», por inteiro, estendeu-se, efectivamente, por quarenta anos, de 1505, data do primeiro projecto, até 1545, data do acabamento do túmulo após a sexta versão. Nada menos que seis projectos, com efeito, se sucederam, e não se pôde tornar Miguel Ângelo – que se vê sempre grande de mais – no único responsável desta longa demora. Durante este período, os acontecimentos sucederam-se, os Papas e as suas ideias também mudaram.

« Os Projectos sucessivos do Túmulo de Júlio II, reconstituídos segundo Charles de Tolnay: “À esquerda, o que resta do projecto: o Moisés, em baixo, que, por si só, resume todo o monumento e que, como um espelho mágico, reflecte para Miguel Ângelo a imagem divinizada da sua alma. Em cima: ao alto, o projecto ambicioso de 1513 e em baixo o de 1516 já reduzido, com o moisés no primeiro nível.” »

Júlio II, realista, tinha estipulado no seu testamento que o monumento fosse reduzido a proporções menos colossais e parece que os executores testamentários não se conformaram com este pedido. Miguel Ângelo, por seu lado, isolou-se para trabalhar no túmulo mas, na solidão, o projecto cresceu ainda e tornou-se mais grandioso que o precedente. O novo Papa, Leão X, Giovanni, filho de Lorenzo de’Medici, estimulou-o, pelo contrário, e ele assinou um novo contrato a 6 de Março de 1513. Miguel Ângelo, encantado por terem aceite as suas ideias, notou: «Na morte do Papa Júlio e no começo do papado de Leão, o Agenense (cardeal de Agen, executor testamentário) quis aumentar o monumento e fazer obra de maior envergadura do que era o meu primeiro propósito; fez-se um contrato». Comprometeu-se a executar o monumento em sete anos e a não empreender, até que ele estivesse terminado, nenhum outro trabalho de importância. Receberia por esta obra 16 500 ducados, de que deduziria 3 500 já pagos em vida de Júlio II. O novo projecto compreendia agora trinta e duas grandes estátuas destinadas a ilustrar a triunfo da Igreja contra o mundo pagão. No nível inferior, deviam ficar as Vitórias, quer dizer, «as províncias subjugadas por este pontífice e submetidas à Igreja Apostólica» (Vasari); os Escravos, simbolizando os povos pagãos que reconheciam a verdadeira fé. As esculturas do segundo nível, Moisés e São Paulo, exprimiam a vitória do espírito contra o corpo. Segundo o contrato pormenorizado, o monumento (pág. 41, ao alto, à direita) devia ficar aplicado à parede da igreja: «Em cada um dos três lados, haveria dois tabernáculos, contendo cada um um grupo de duas figuras; a cada uma das pilastras que ladeariam os tabernáculos, uma estátua. Entre os tabernáculos, relevos de bronze. Sobre a plataforma, por cima do envasamento, a figura do Papa seria mantida por quatro figuras assentes

Pormenor do «Moisés» para o túmulo de Júlio II, cerca de 1515 – 1516 Chiesa San Pietro in Vincoli, Roma

Moisés, Pormenor do Túmulo de Júlio II, 1513 – 1515, retocado em 1542 Mármore, altura 235 cm Igreja San Pietro in Vincoli, Roma

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Os Sonhos de um Titã ∙ 1513 — 1534

Moisés, Pormenor do Túmulo de Júlio II, 1513 – 1515, retocado em 1542 Mármore, altura 235 cm Igreja San Pietro in Vincoli, Roma

em pedestais. Por fim, o coroamento do túmulo teria trinta e cinco palmos de altura e cinco estátuas colossais». É grande a distância, como se vê, entre o projecto que inflamava a imaginação do artista na época e a realização acabada em 1545 que é apenas um pálido reflexo dele. Os sonhos deste titã, entre 1516 e 1534, estão com efeito, balizados por grandes projectos não realizados. Durante três anos, no entanto, Miguel Ângelo consagrou-se quase exclusivamente a esta obra e, do projecto ambicioso saíram as suas obras de escultura mais perfeitas. Pense-se nisto: o Moisés (págs. 38 – 40) por si só, resume o monumento. Ele era pra ser uma das seis figuras colossais que coroariam o nível superior do monumento. Hoje, é ele que se visita na Igreja de San Pietro in Vincoli em Roma. Irmão mais velho dos Profetas de Capela Sistina, não será ele também a imagem de um Miguel Ângelo que pretendia ser – como Tolnay descreve a estátua – uma figura fremente de indignação em que a explosão da ira está domada. Com efeito, partindo de uma alegoria fria, abstracta e quase cortesã quanto ao monumento cujas estátuas deviam exprimir que «todas as Virtudes ficavam prisioneiras da Morte com o Papa morto», Miguel Ângelo, arrastado pela sua paixão como de costume, fez cair as mentiras e lançou um grito furioso de revolta contra a baixeza do mundo e a opressão da vida. Vasari, com admiração, declara: «Ele deu muito bem no mármore o carácter divino marcado por Deus neste rosto de grande santidade; além dos sulcos profundos feitos na esplêndida voluta dos bordos, os músculos dos braços, os ossos e os nervos das mãos são de uma execução muito bela e muito perfeita, pernas, joelhos e pés tratados com as sandálias próprias». Do mesmo modo, com duas outras obras-primas saídas do monumento onde deviam ser colocadas nas pilastras do nível inferior, o Escravo Moribundo (pág. 41) e o Escravo Rebelde (pág. 41) considerados de início como símbolos dos povos pagãos a reconhecerem a verdadeira fé, Tolnay sugere que Miguel Ângelo, superando uma vez mais o seu propósito, os transformou «de troféus em símbolos da luta áspera e sem esperança da alma humana contra as prisões do corpo». Fizesse o que fizesse, como se vê, Miguel Ângelo traía-se em pintura, no mármore ele fazia mais: esculpiase…

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Mesmo que se seja Papa e da família Medici, quando se sucede a um membro da família fica-se um pouco com inveja dele. Durante três anos, Leão X absteve-se de parecer levantar obstáculos à glorificação do seu predecessor e deixou que Miguel Ângelo prosseguisse no seu sonho com toda


Os Sonhos de um Titã ∙ 1513 — 1534

Escravo Moribundo, 1513, Mármore, altura 215 cm Musée Du Louvre, Paris

Escravo Rebelde, 1513, Mármore, altura 215 cm Musée Du Louvre, Paris

Escravo Atlas 1519 – 1530, Mármore, altura 277 cm Galleria dell’Accademia, Florença

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Os Sonhos de um Titã ∙ 1513 — 1534

Estudo para a cabeça de Leda, cerca de 1530 Sanguina, 33,5 × 26,9 cm Casa Buonarrotti, Florença

Estudo para o Profeta Jonas, cerca de 1512

a liberdade. Em 1515, deixou-se de reservas e procurou arrancar o artista ao seu trabalho para que se consagrasse aos seus projectos. Começou então por acariciar o orgulho aristocrático de Miguel Ângelo nomeando o seu irmão Buonarroto comes palatinus e dando aos Buonarroti o direito de colocarem nos seus brasões a palla dos Médici, com três flores-de-lis e o monograma do Papa. Sobretudo lançou a Miguel Ângelo o engodo a que este não poderia resistir: um novo projecto – o de construir a fachada de San Lorenzo, a igreja dos Medici em Florença. Convencido de que podia levar a cabo duas obras a par, Miguel Ângelo ficou entusiasmado com o projecto de Leão X e enviou mesmo um desenho para a fachada (pág. 45). Escreveu, febrilmente, a Domenico Buoninsegui, em Julho de 1517: «Tenho vontade de fazer desta fachada de San Lorenzo uma obra que seja um espelho da arquitectura e da escultura para toda a Itália… Fá-la-ei em seis anos. Messer Domenico, dê-me uma resposta firme a respeito das intenções do Papa e do cardeal: isso dar-me-ia a maior das alegrias». O contrato foi assinado em 19 de Janeiro de 1518. Eram-lhe dados oito anos. Os herdeiros de Júlio II tinham contra-atacado prendendo Miguel Ângelo com um novo contrato menos apertado que o artista tinha de imediato assinado, persuadido de poder levar a cabo as duas simultaneamente. O monumento do Papa ficava reduzido em metade, as estátuas passavam de trinta e duas para vinte e concediam-se-lhe nove anos mais para acabar o trabalho. Mas, segundo Miguel Ângelo, Leão X retirou-lhe a breve trecho qualquer autorização para trabalhar no monumento de Júlio II: «O Papa Leão X – escreveu ele – não queria que eu fizesse o monumento de Júlio». Como tantas vezes, a história terminou mal. O Papa não vendo, ele tão-pouco, as coisas acabadas, desligou Miguel Ângelo, por breve de 12 de Março de 1520, do contrato de 1518 respeitante à fachada de San Lorenzo. Na verdade, desta vez, era o génio ávido e inconstante do artista o verdadeiro culpado. Querendo abarcar demais, Miguel Ângelo não tinha conseguido nem elevar a fachada de San Lorenzo nem acabar o túmulo.

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Novo Papa, novo projecto. O cardeal Guili de’Medici, elevado ao trono pontifício com o nome de Clemente VII em1523, quis, por seu turno, prender a si Miguel Ângelo confiando-lhe a construção da sacristia nova de San Lorenzo e os túmulos dos Medici (pág. 47). Tratava-se de construir quatro túmulos – Lorenzo de’Medici; para Giuliano, duque de Nemours, seu filho e

« Este estudo Para cabeça de Leda é o único vestígio que nos ficou do quadro. Parece que esse rosto de mulher é, na realidade, o de um “garzone” da oficina, porque se adivinha um gibão no começo do pescoço. »

« O profeta Jonas fecha o décimo vão. Tem-se feito a comparação dele com o rosto da Virgem do Tondo DOni (págs. 10 – 11). Para uma mesma pose, Miguel Ângelo passa, sem problema, do feminino para o masculino. »


Os Sonhos de um Titã ∙ 1513 — 1534

Três estudos para os Escravos, 1505 Desenhos à pena, de cima para baixo: 37,5 × 20 cm; 34 × 16,5 cm; 40 × 21 cm Musée Du Louvre, Cabinet des dessins, Paris

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Os Sonhos de um Titã ∙ 1513 — 1534

Jacopo Chimentí, chamado Jacopo da Empoli Miguel Ângelo apresentando a Leão X o seu projeto para a fachada de San Lorenzo e outras construções da Laurenziana, 1619 Casa Buonarrotti, Florença

para Lorenzo, duque de Urbino, seu neto, aos quais se juntava o de Leão X e o do próprio Papa Clemente VII. Também lhe foi confiada a construção da biblioteca de San Lorenzo (pág. 45). Se estes projectos se malograram também, não foi por falta de solicitude de Clemente VII. Este tinha atribuído a Miguel Ângelo uma pensão que era o triplo da que ele pedia, e também uma casa em San Lorenzo. Apoiava-o moralmente dirigindo-lhe mensagens de afecto: «Tu sabes que os Papas não têm uma vida longa, e nós não podemos desejar mais ardentemente do que desejamos ver a capela com os túmulos dos nossos parentes… assim como a biblioteca. Recomendamos ambas ao teu zelo». Preocupado com a saúde, ele proibia-o «de trabalhar, de qualquer maneira, em outra coisa que não seja o túmulo (de Júlio II) e a obra que te confiámos, de modo que possas por mais tempo glorificar Roma, a tua família e tu mesmo». Dizia-lhe também: «Quando se te pede um quadro, tens de atar um pincel ao pé, fazer quatro traços e dizer: “o quadro está feito”». No meio dos trabalhos, rebentou a revolução em Florença. Miguel Ângelo, não conseguindo conciliar o seu amor à liberdade com as suas obrigações para com os Medici, pôs-se na primeira fila dos revoltosos. A República pediu-lhe então que se ocupasse das fortificações de Florença e ele fê-lo com todo o zelo. Mas Florença teve de capitular. O Papa, vencedor, perdoou. Miguel Ângelo retomou, em Setembro-Outubro de 1530, o seu trabalho em glória daqueles que tinha combatido.

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Mas, o projecto dos Medici, tal como o de Júlio II, nunca ficou acabado. O que dele nós hoje conhecemos tem apenas uma remota relação com o que o titã tinha sonhado. As esculturas que emergiam do desastre pouco têm que ver com o propósito: render homenagem à família dos Medici. Como de costume, Miguel Ângelo põe-nos em frente do par O Dia e A Noite, e da Aurora e do Crepúsculo (págs. 48 – 49), os quais, em vez de nos dizerem, como estava previsto pelo artista: «Com a nossa corrida rápida, conduzimos à morte o duque Giuliano», são, na realidade, alegorias do tempo a que o corpo humano está sujeito. Quem pensa apenas nos Medici? Uma vez mias, sopra forte o vento árido e escaldante da Capela Sistina, caro a Romain Rolland, mas não é já a expectativa trágica do Filho do Homem, é o que nada pesa sobre estes gigantes. No que diz respeito às outras esculturas, realizadas ou não, Vasari perguntou em vão a Miguel Ângelo a que nichos ele as destinava e não se soube onde colocá-las.


Os Sonhos de um Titã ∙ 1513 — 1534

Estudo para a fachada de San Lorenzo, 1517

Entrada e vestíbulo da Biblioteca Laurenziana Os primeiros planos datam de 1524, mas a cosntrução não foi acabada antes de 1532 – 1533

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Os Sonhos de um Titã ∙ 1513 — 1534

Projecto para os Túmulos dos Medici, 1516 – 1532 Pedra negra, 26,4 × 18,8 cm The British Museum, Londres

Quanto à Biblioteca Laurenziana, só dela ficou terminada a construção do vestíbulo e do tecto, tendo Miguel Ângelo deixado Florença. A escadaria não tinha sido começada e quando se quis mandar fazê-la não se encontrou qualquer modelo. Tendo Vasari perguntado a Miguel Ângelo quais as suas intenções precisas a este respeito, respondeu-lhe ele, amavelmente, «que não se faria rogado, se pudesse lembrar-se disso, que tinha, de facto, uma vaga ideia – como num sonho – de certa escadaria, mas que pensava que não era a que ele tinha projectado, pois que seria absurdo». Segundo Romain Rolland: «Ele tinha de tal modo renunciado a todos os seus empreendimentos que acabara por apagá-los da memória. Ou, antes, a sua memória tinha-se apagado com eles». O próprio Miguel Ângelo confessa: «A memória e o espírito passaram-me à frente para me esperarem no outro mundo».

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Os Sonhos de um Titã ∙ 1513 — 1534

Túmulo de Giuliano de Medici, 1526 – 1531 Mármore, 630 × 420 cm Capela Medici, San Lorenzo, Florença

Túmulo de Lorenzo de Medici, 1524 – 1531 Mármore, 630 × 420 cm Capela Medici, San Lorenzo, Florença

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Os Sonhos de um Titã ∙ 1513 — 1534

A Aurora, pormenor do túmulo de Lorenzo de Medici, 1524 – 1531 Mármore, largura 203 cm

Decoração mural Capela Medici, San Lorenzo, Florença

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Os Sonhos de um Titã ∙ 1513 — 1534

Giuliano de Medici, pormenor da cabeça, 1526 – 1533 Mármore, altura da estátua inteira: 173 cm

Máscara de A Noite, pormenor de túmulo de Giuliano de Medici, 1526 – 1533 Mármore Capela Medici, San Lorenzo, Florença

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Os Sonhos de um Titã ∙ 1513 — 1534

A Alma Danada, cerca de 1525 Tinta negra, 35,7 × 25,1 cm Galleria degli Uffizi, Florença

Estudos de cabeças grotescas, 1530 Sanguina, 25,5 × 35 cm The British Museum, Londres

Três Trabalhos de Hércules, 1530 Sanguina, 27,2 × 42,2 cm Royal Library, Windsor

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Os Sonhos de um Titã ∙ 1513 — 1534


Os Sonhos de um Titã ∙ 1513 — 1534

O Castigo de Títio, cerca de 1533 Pedra negra, 19 × 33 cm Royal Library, Windsor

A Queda de Fateonte, cerca de 1533 Pedra negra, 41,3 × 23,4 cm Royal Library, Windsor Esboço erótico que evoca o «fogo» em que ardia Miguel Ângelo a respeito de Cavalieri e a quem ele deu de presente. « Este terceiro herói, depois de Títio (pág. 53) e de Ganimedes (pág. 6) completa o ciclo erótico em homenagem a Tommaso dei Cavalieri, “La forza d un bel viso…”

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“Que incentivo para mim a força de um belo rosto! Nada mais no mundo me dá prazer como erguer-me vivo entre os espíritos bem-aventurados, por uma graça ao lado da qual tudo me parece mais medíocre”

“Se a obra se harmoniza bem com seu criador, por que razão pretenderia a justiça que eu fosse culpado, se amo, se me abraso, e se as minhas concepções divinas dão honra e glória a qualquer pessoa nobre?” »


Os Sonhos de um Titã ∙ 1513 — 1534







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