Diário de uma tragédia

Page 1

Maristela Pereira

Ilhota, 28 de novembro de 2008.

DiĂĄrio de uma

TragĂŠdia


2009, Maristela Pereira. Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 5988/73. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios, sem prévia autorização dos editores. Livro Ilhota, 28 de novembro de 2008. Diário de uma tragédia. Ficha Catalográfica:

363.35642 P436d

Pereira, Maristela Ilhota, 28 de novembro de 2008 : diário de uma tragédia / Maristela Pereira. - Blumenau : HB, 2009. 272p. : il. col. - (Resgate de memória) ISBN: 978-85-86864-52-0 1. Ilhota (SC) – Desastre natural – Novembro de 2008 2. Ilhota (SC) – História – Novembro de 2008 3. Desastre natural – Ilhota (SC) – Narrativas I. Título.

Textos e fotos originais: Maristela Pereira Depoimentos prestados à autora, todos com autorização de publicação. Coordenação Editorial e Gráfica: Christina Elisa F. Baumgarten Revisão: Jairo Pacheco Martins Projeto Gráfico e Editorial: Hermann Baumgarten Editora Ltda. Servidão Manoel Félix da Silva, 297Q Itacorubi – Florianópolis/SC Fone: (48) 3233 2625 Direção de Arte e Diagramação: Ermelino Rocha Junior Apoio Cultural: Dal Costa Moda Praia Ltda.


Agradecimentos

A

Deus, minha família e todos os amigos que me acompanharam nesta jornada, e todas as pessoas que colaboraram de uma ou outra forma para que eu realizasse esse meu projeto. Em especial agradeço ao meu sobrinho Marcos Leonel Pereira Neto, pelo companheirismo e auxílio prestado. Ele ajudou esta obra a se tornar realidade.



Dedicatória

D

edico este livro com imenso carinho e respeito às famílias abaixo nominadas, que, como verdadeiros heróis, não só sofreram os efeitos da imperiosa calamidade que se abateu sobre a região do Vale do Itajaí e o município de Ilhota, em novembro de 2008, como também prestaram seu depoimento para que este livro pudesse se transformar em realidade.

Famílias: ADÃO, AFALI, ALTENHOFEN, ALVES, AMORIM, ARNDT, ANNATER, ANDERSON, ANDRADE, ANDREGUETTO, ANDRIETTI, ANJOS, ARAGÃO, ARDNT, ARTIGAS, ÁVILA, AZEVEDO, BAADER, BACHAMANN, BAIHER, BAR, BARNHAUSEN, BARRETO, BATISTA, BAUER, BELARMINO, BERNARDES, BERTOTTI, BITENCOURT, BLOCK, BOHR, BOLLMANN, BORCK, BORGES, BORH,BORNHAUSENBRAATZ, BRADER, BRESSANINI, BRITO, BRIZOLA, BRUNS, BUDAG, CÂNDIDO, CARDOSO, CARMO, CARNEIRO, CHAGAS, CHIQUILIAR, CIDRAU, CLASEN, CLICIANO, CONCEIÇÃO, CORDEIRO, CORREA, COSTA, COTA, COUTINHO, CREWER, CUNHA,CUSTÓDIO,CYBELL, DAY, DESCHAMPS, DIAS, DIRSCHAIBEN, DOHR, DREHER, DUTRA, DUVE, DUWE, EMIDIO, ERVOG, ESPIG, EUGÊNIO, FARIAS, FAURO, FELICIANO, FELÍCIO, FERRARI, FERREIRA, FERRETI, FISCHER, FLORIANO, FLORINDO, FONSECA, FRANCISCO, FRANCO, FRANZINA, FRANZINE, FREITAS, FUCH, GAIO, GALDINO, GEMELLI, GEOVANELA, GERALDO, GERMANO, GIL, GOEL, GOMES, GONÇALVES, GOTZINGER, GRAHL, GRAHR, GRAUF, HAMMES, HARBES, HARBS, HAUSMANN, HAVENSTAIN, HELLMAMM, HENCHE, HENTCHEN, HERMES, HERTEL, HOFFMANN, HOSTERT, HOSTIN, HOSTIM, HOSTINS, INÁCIO, JACINTO, JINKES, JORGE, JUNCKES, JUNKLAUS, KARL, KATH, KLEINE, KLOWSKI, KNOTH, KONRAD, KOTLEWSKI, KRATZ, KRAUS, KRAUSE, KREMER, KRESS, KRETZER, KREWER, KUBAS, KUPAS, KUTH, LABEL, LAMIN, LAZARETTI, LEHMANN, LEITE, LEMOS, LEPINSKI, LIMA, LIZ, LONGHI, LOPES, LOURENÇO, LUIZ, LUTTKE, LUZ, MABA, MACHADO, MACIEL, MALOKE, MANES, MANSOTO, MARCINHAK, MARINHO, MARQUES, MARTENDAL, MARTINS, MELLIES, MELLO, MENDES, MEURER, MIRANDA, MOJE, MONSOTO, MOREIRA, MORETI, MORGRIT, MORLO, MULLER, MURSESK, NEUMANN, NEVES, NIESCIUR, NOGUEIRA, NOWASKI, NUNES, OECHSLER, OLIVEIRA, OZÓRIO, PADILHA, PAIVA, PALOSCHI, PASQUALINI, PASSOLD, PAULINO, PAVESOLI, PELZ, PEREIRA, PETRI, PETRY, PIRES, PISKE, PITZ, PRADO, PRIM, RABECK, RAINERT, RANGEL, RECH, RECHERT, REGDER, RÉGIS, REICH, REICHART, REICHERT,REICHERTZ, REINERT, REIS, RESSEL, REUNECKE, RIBEIRO, RICHART, RICHARTS, RICHARTZ, RÜNKOS, ROCHA, RODEN, RODRIGUES, ROFISTEIN, ROSA, ROWEDER, RUNCO, RUSSI, RUTHES, SABEL, SALM, SALVADOR, SAMULESKI, SANTANA, SANTOS, SAPLINSK, SAPLINSKY, SCHARAMM, SCHELL, SCHILL, SCHIMIDT, SCHIMITT, SCHIMITZ, SCHITZ, SCHMITT, SCHMITZ, SCHRAMM, SCHUBERT, SCHULTZ, SCHVAMBACK, SCHWABACH, SCHWEIZER, SEBERINO, SENA, SERPA, SIBEL, SIEBERT, SILVA, SOUZA, SPEBER, SPERBER, SPEREBER, TELMA, TESCH, THEISS, TIRONE, TOLARDO, TOM, TORRES, TREVESINI, TRINDADE, TURQUES, ULLMANN, VALDRIS, VALENTE, VALTRICH, VARGA, VARGAS, VIEIRA, VINOTTI, VITTI, VOLPI, WAGNER, WALDRICH, WALTRICK, WERNER, WILBERT, WOLECK, WOLSKIWSKI, ZABEL, ZIMMERMANN.


Foto executada pela minha querida amiga V창nia da Silva.


Maristela Guerreira

M

aristela chama-se Pereira, mas bem poderia se chamar Guerreira. Mulher de múltiplas habilidades e talentos, encontrou na fotografia o seu alter ego e uma forma única, talentosa e especial de se expressar e reconhecer o mundo. Prosseguindo numa carreira onde deu asas a múltiplos talentos, como ela mesma narra nas páginas iniciais deste relato, iniciou na fotografia produzindo os catálogos de moda da empresa da família, mas encontrou o ápice do seu talento no material que segue nas páginas desta obra: o registro fiel e emocionado da tragédia que assolou a região do Vale do Itajaí em novembro de 2008. Com extrema persistência e coragem, enfrentou todo tipo de adversidade e venceu barreiras diante das quais muitos teriam desistido para reunir o material que compõe este livro. Para além do rico e incomparável registro de imagens que reuniu, transcendeu o papel de quem registra fatos para o de quem os vive, vibra e sofre com eles. Maristela sentiu e viveu na carne e nas emoções a flor da pele, a dor dos sobreviventes da tragédia e, com paciência de tecelã, começou a coletar depoimentos e narrativas sobre a catástrofe. O resultado superou toda e qualquer expectativa adrede imaginada e criou nela a compulsão de publicar o trabalho. Outra batalha, que esta guerreira venceu com as armas da coragem e do arrojo. Toda esta verve admirável está expressa nas páginas a seguir, que serão o guia para uma inesquecível viagem de quantos lerem esta obra admirável, cujo principal mérito está em mostrar que a coragem,o denodo e a solidariedade são a principal marca desta maravilhosa raça humana!



Mas... E eu que achei que a lua não brilhasse Sobre os mortos no campo da guerrilha, Sobre a relva que encobre a armadilha Ou sobre o esconderijo da quadrilha... Mas brilha! E achei que nenhum pássaro cantasse, Se um lavrador não mais colhe o que planta, Se uma família vai dormir sem janta, Com um soluço preso na garganta... Mas canta! Também pensei que a chuva não regasse A folha cujo leite queima e cega, A carnívora flor que ao inseto pega, Ou o espinho na macega... Mas rega! Pensei também que o orvalho não beijasse A venenosa cobra que rasteja, No silêncio da noite sertaneja, Sobre as ruínas de esquecida igreja... Mas beija! Imaginei que a água não lavasse O chicote que em sangue deprava, Quando de forma monstruosa e brava, Abre trilhos de dor na pele escrava... Mas lava! Apostei que nenhuma borboleta, Por ser um exemplo vivo de esperança, Dançaria contente, leve e mansa, Sobre o túmulo de uma criança... Mas dança! E eu pensei que o sol não mais aquecesse Os campos que a guerra empobrece, Onde tomba do homem, a própria espécie E a sombra da dor enlouquece... Mas aquece! Por isto, achei que eu não mais fizesse poema algum, Após tanto embaraço, tanta decepção, tanto cansaço, Tanta espera em vão por um abraço... Mas faço! (autor desconhecido)



Apresentação

Falando em reconstrução...!

O

amor de Deus se faz presente em toda a parte, em cada detalhe da natureza, derrama-se por toda a criação como um sopro de esperança. Mesmo quando o quadro é de total destruição, ainda assim podemos perceber a presença divina através da natureza. Quando observamos os escombros deixados pela fúria das tempestades, pode nos parecer que nada mais poderá existir em tão deprimente paisagem... No entanto, em breve tempo as mãos hábeis e competentes dos homens deixam o local em condições de ser habitado novamente. Mesmo quando temos a impressão, ao olhar um local, de que ali a vida bateu em retirada para sempre, ainda assim haverá sinais de esperança, se olharmos com maior atenção aos recados enviados pela natureza. O mesmo calor solar que mantém no estado líquido a água dos rios e dos mares, conduz a seiva à fronde das árvores e faz pulsar o coração dos abutres e das pombas! A luz que espalha o verde nos prados e nutre as plantas com um sopro impalpável, também é a mesma que povoa a atmosfera de raios e pode ocasionar grandes desastres. O som que estremece a folhagem, é o mesmo que canta na orla dos bosques, ruge nas placas marinhas e assusta nas tempestades. Em tudo vemos uma correlação de forças físicas que abrange num mesmo sistema a totalidade da vida sob a comunhão das mesmas leis, que são as soberanas leis divinas. Por isto, até no aparente caos em que se transformou a região alvo desta narrativa e destes depoimentos, também há uma grande lição a colher. É a lição da reconstrução! Unida pela desgraça, a comunidade soube potencializar novas energias e um oculto senso de solidariedade que lhes marcará, pelo resto da existência, a trajetória de vida! Há que olhar com desassombro para o alto e entender que, na destruição, existe uma grande mensagem divina. Não foi por outra razão que a HB Editora abraçou, com imenso carinho e cuidado, a edição do livro de Maristela Pereira. A par de um trabalho exaustivo, desafiante e minucioso, a autora transcendeu o simples papel de repórter a serviço do registro de todo o ocorrido, vestindo a roupagem da mesma solidariedade que registrou com suas lentes e anotações. Maristela surpreende pela dedicação quase sacerdótica com que abraçou esta tarefa, construindo para os leitores e para toda a posteridade um registro de indiscutível valor histórico, humano e sentimental. Ao percorrer as páginas deste livro, todo o leitor sentirá no íntimo a dor que as vítimas sentiram, a angústia que viveram, as perdas que amargaram. E vai compreender, afinal, que até nestes momentos Deus fala conosco – basta querermos escutar! Christina Elisa F. Baumgarten – Editora HB Editora


Sumรกrio:


Capítulo I: Ilhota, o encanto do vale............................................... p. 14 Capítulo II: Histórias entrelaçadas.................................................. p. 16 Capítulo III: Ilhota, uma visão fotográfica...................................... p. 18 Capítulo IV: Diário de uma tragédia............................................... p. 20 Capítulo V: Os números.................................................................. p. 26 Capítulo VI: Registrando a sobrevivência...................................... p. 28 Capítulo VII: Depoimentos............................................................. p. 48 Capítulo VIII: Homenagem............................................................ p. 272


14


Ilhota, O Encanto Do Vale.

I

lhota é uma jovem cidade catarinense. Localizada no centro do vale do Itajaí, possui uma área de 253,9 km2 e aproximadamente 12 mil habitantes, sendo parte da região turística denominada Costa Verde Mar. Colonizada por imigrantes Belgas, herdou esse nome dos indígenas que habitavam a região antes da chegada dos primeiros colonizadores, motivados pela existência de uma pequena ilha no Rio Itajaí-Açú, localizada em frente à Igreja Matriz São Pio X. A emancipação político administrativa deu-se no dia 21 de junho de 1958, tendo atingido o cinquentenário em 2008.

15


Histórias

Entrelaçadas

M

eu nome é Maristela Pereira, sou filha de Marcos Leonel e Nilva Jasper Pereira, tenho 3 irmãos: Marisa Terezinha, Márcio e Márcia Izabel e vivo há 44 anos nesta cidade. Minha família é de Canelinha/SC, conhecida como a “Terra das Cerâmicas”, inclusive meu pai veio para Ilhota juntamente com meu tio Pedro Pereira para montar uma cerâmica de tijolos em Ilhota. Casei-me em 1982, com Carlos César da Costa, tivemos uma filha, Nathália Pereira da Costa, hoje com 24 anos. Decidimos então abrir uma confecção de vestuário, mas não sabíamos exatamente no que iríamos trabalhar, porém resolvi aproveitar a minha experiência em confecção de moda praia, adquirida durante o período em que trabalhei com minha amiga Vanda da Silva neste ramo. Assim nasceu a Dal Costa, numa parceria que contava ainda com um sócio, Élio Costa, meu ex-cunhado. Por aproximadamente três anos os negócios foram bem, fazíamos feiras, inclusive em Balneário Camboriú e Itapema entre outras. Depois de algum tempo, como a empresa atravessasse alguns problemas administrativos, foi repassada aos meus pais, mantendo o mesmo nome, devido ao fato de já estar conhecida. Troquei os biquínis por vestidos de noivas, trabalhei muitos anos com locação,vestindo noivas de toda a região. Mais tarde, com o número de casamentos diminuindo, resolvi me desfazer desse negócio e parti para o mundo das imagens. Câmera e ação! Fui cinegrafista por mais ou menos oito anos, estava em todos os eventos, desde casamentos até comícios políticos. Descobri que tinha um outro dom, a fotografia. Depois de alguns anos Ilhota começou a se desenvolver no ramo de confecções, tanto de moda praia como lingerie, tendo adquirido mais tarde o título de “Capital Catarinense da Moda Íntima e Moda Praia”, sendo a Dal Costa Maiôs e Biquínis a pioneira no ramo. Algum tempo depois, com o fim de meu casamento, resolvi voltar a trabalhar na Dal Costa, na área de modelismo e estilismo, no setor de desenvolvimento. Acumulo a esta função a de fotógrafa, sendo responsável pela maior parte das fotografias para o catálogo, desenvolvendo este trabalho em parceria com meu sobrinho Marcos Leonel Pereira Neto, responsável pelo projeto gráfico dos catálogos. Continuei a executar este trabalho, pois a fotografia é para mim uma verdadeira paixão! Nossa empresa completou 21 anos de existência em 2008, e a cada ano que passa nos surpreende com o movimento de turistas e “fãs de moda praia”.

16


17


18


Ilhota, Uma Visão Fotográfica.

H

á cerca de um ano, eu e minha irmã Marisa, Secretária de Indústria, Comércio e Turismo do município, tivemos a idéia de editar um livro intitulado: “Ilhota, uma visão fotográfica”. Na ocasião Ilhota estaria completando 50 anos e levamos em consideração o imenso acervo que eu possuía, com ótimos registros de todo o município, inclusive todo o complexo do Baú (o qual é composto por seis localidades de área rural, sendo elas: Baú Baixo, Baú Central, Braço do Baú, Alto Braço do Baú, Baú Seco e Alto Baú). Como eu simplesmente amo a arte da fotografia, nutrindo pela mesma uma paixão incondicional, senti que me realizaria editando um trabalho no qual pudesse mostrar a minha visão pessoal dessa arte. E digo pessoal porque não possuo muito conhecimento técnico, entretanto tenho um olhar muito bom – apesar de ter miopia - meu olhar é clínico, resumindo, eu tenho dom! Em quase todos os eventos do município, lá estava eu fotografando e gerando importantes registros, não para comercializar, mas por gosto mesmo. Sei que futuramente estes registros farão parte de nossa história e de nossas vidas. Hoje, sentimos falta de imagens do passado, o que temos é escasso, são verdadeiras raridades. Inclusive, sou um exemplo disto, tenho uma só foto de quando era bebê e dois anos, junto com toda a família, e mais uma, eu banguela com minha amiga Maria Aparecida Maes Mabba Quintino, a Tita, em um casamento do casal Márcio e Sílvia Mendes, nossos vizinhos, no dia 20 de julho no ano de 1968. Tita foi a minha primeira amiga. Conheci-a quando chegamos a Ilhota, tinha apenas quatro anos. Lembro-me muito bem de seus pais Aparício e Maria Maes Mabba, ambos falecidos. Dona Maria era uma costureira de mão cheia! Tenho muitas saudades! Naquela época os registros eram feitos uma vez por ano. Reunia-se toda a família, vestia-se as melhores roupas, arrumava-se o cabelo e, de preferência, a família posava na frente da casa para fundo da foto. Hoje é tudo muito fácil, o mundo está muito diferente, a tecnologia tomou conta dos nossos dias, trazendo a facilidade de obtermos uma foto em questão de segundos. Libertamo-nos dos filmes de rolo e a inovação da digitalização superou o mercado da antiga tecnologia. Sou uma pessoa tão emotiva que um bom exemplo disso vem da minha infância. Desde quando estudava no primário, sempre chorei nas homenagens cívicas ao ouvir o nosso lindo Hino Nacional. Por este simples exemplo sei que vocês vão imaginar o quanto eu chorei nestes dias tão tristes em que convivi com a nossa grande catástrofe, e agora quando estou escrevendo isso. Acho que é uma característica do meu signo, que é de Peixes! Falando em signo de peixes lembrei do ditado que afirma: ”Filho de peixe, peixinho é!” Meu pai e eu somos bons exemplos disso, se juntar-nos, não se sabe quem chora mais. Em relação à música, sou bem eclética, sou 8 ou 80, tanto gosto de Chalana, de Almir Satter e Sérgio Reis como amo Blowin’in the Wind, de Bob Dylan, e o curioso é que ao ouvir ambas eu choro!

19


Diário da Tragédia

D

ia vinte e três de novembro de 2008, um domingo de chuva, eram sete horas da manhã quando acordei com um telefonema. Ana Maria Debarba ligou por engano para minha casa, estava querendo avisar sua irmã Luciana que o Vale do Itajaí estava em estado de alerta, e acabou passando o recado para mim também. Minha filha Nathália estava em Balneário Camboriú. Chamei Danilo Antônio Vieira (Sagu), funcionário nosso que há uns cinco anos reside aqui conosco e fomos correndo para casa e loja de meus pais, localizada a uns 700 metros. Lá, a maior enchente dos últimos anos, a de 1983, chegara a 1m50cm. de água dentro de casa, enquanto que na minha casa apenas 5 cm. Fomos correndo para lá apavorados, pois estávamos só nós dois e havia muito trabalho pela frente. Nisso chegaram meus sobrinhos Marcos e Marcel, depois liguei para minhas vizinhas, reunindo um pequeno time para auxiliar no trabalho. “Graças a Deus!” pensei, um pouco mais consolada com a presença deles. Começamos a erguer tudo, e não demorou para percebermos que o tempo passava e o trabalho não rendia o suficiente. Além da loja, havia ainda a casa e ao lado da loja o café Dal Costa, que pertence a minha sobrinha Aline Pereira Bedin. Meu sobrinho Marcel e sua esposa Jéssica já tinham começado a erguer tudo, liguei para minha irmã Márcia que estava também em Balneário com a família, pedindo a todos que viessem ajudar, pois a água subia cada vez mais. Estavam todos com medo de depois não poderem voltar, decidiram então vir e ficar por aqui. Nesse meio tempo Marcos, meu sobrinho, chamou o amigo João Paulo, que já estava isolado da família, e hospedado na casa dos pais dele, que são meu irmão Márcio e sua esposa Heliane. Danilo também ligou para alguns amigos, para que todos se reunissem em uma força tarefa. Chegaram então Rodrigo (Ets) e Carlos que trabalham na empresa e Ruan e Rodrigo (Secão), amigos nossos. Ficamos muito agradecidos. Liguei para minha filha apavorada para ela vir para casa, mas o nervosismo só aumentava porque ela não atendia o celular. Só consegui contato com ela por volta das 11h00, e intimei-a a vir logo para casa, em função da rápida progressão de subida do nível do rio. Meu temor era que, se ela demorasse muito, não conseguisse mais passar! Graças a Deus ela conseguiu chegar a tempo e transpor o trecho mais baixo do trajeto, que fica entre o trevo de Itajaí e a localidade do Espinheiro, um dos primeiros lugares a serem atingidos pelas águas, quando há enchente. Ela me disse que pegou muita água no carro, mas mesmo assim conseguiu. Minha irmã Márcia, meus sobrinhos Felipe, Aline e seu namorado, Daniel Pilon de Oliveira (Dani), chegaram em seguida.

Enchente de 1983, fotos cedidas por Mauri Miglioli

20


Minha outra irmã Marisa, estava indo a um evento na cidade de Curitiba, com nossa amiga Delísia Vivan, e acabou ficando em um congestionamento próximo à cidade de Joinville, devido a uma barreira que havia caído na BR-101. Resolveram então retornar. Antes de virem para Ilhota, foram para Balneário Camboriú. Preocuparam-se em fazer compras de mercado, porque poderiam faltar alimentos e outros artigos necessários, como botas de borracha para podermos nos proteger e ter mais facilidade de andarmos na lama após as águas baixarem. Por este motivo não conseguiu mais passar, infelizmente. Ficamos sem os alimentos e sem as botas, mas a gente sempre dá um jeitinho. Chovia muito... Todas as pessoas da cidade estavam em sinal de alerta, levando os carros para lugares mais altos, levantando móveis, socorrendo animais. Muitos abandonaram suas casas e se abrigaram em casas de parentes e amigos, era um correcorre... tínhamos que nos agilizar... Próximo à loja há um riacho e quando a água atingisse o asfalto, não poderíamos mais passar porque a correnteza seria forte demais, daí o acesso da minha casa para a casa de meus pais seria temporariamente interditado. Sabíamos que em breve ficaríamos isolados completamente por dois lados. Eram mais ou menos 2 horas da tarde quando levamos os carros para o morro da Igreja Matriz. Só por volta das 17h00 fomos embora exaustos, depois de um intenso trabalho de salvaguarda dos principais pertences da empresa. Viemos para casa, e depois de uma hora já estávamos isolados por completo. Chovia demais, parecia o fim do mundo, o que mais temíamos era que as águas continuassem a subir... Questionávamos: e se a água chegar até dentro da nossa casa, o que faremos? E nossa cachorra, a Dalila, uma São Bernardo bem pesadinha para podermos levar no colo... tínhamos muito medo mesmo, tanto nós quanto os vizinhos e todos os moradores que já estavam isolados. A energia elétrica foi cortada, acendemos velas, o medo aumentava, ficávamos dentro do carro ouvindo rádio, era uma tristeza só, os pedidos de socorro aumentavam, pessoas sem poder sair mais das casas, procurando parentes, mães com crianças pequenas desesperadas, de todos os lugares, Blumenau,Gaspar e Itajaí. Havia chovido durante 3 meses quase sem intervalo, foram poucos os dias de sol, a terra estava encharcada, não dava mais conta de absorver tanta água. Resolvi então ir até a casa de dona Lúcia e lá estavam muitas pessoas, todas desesperadas, alguns resolveram ir para casas de amigos, casas mais altas, principalmente quem tinha crianças. Nessa hora já passaram com muita água, e eu só pensava... Meu Deus... se encher muito o rio... como vou sair com Dalila? A gente se vira, mas eu imaginava a dificuldade que seria colocar aquele enorme animal num bote, do jeito que é agitado poderia derrubar todos nós! Dalila não é nem um pouco social, conosco é muito dócil, mas não se dá bem com outros ani-

21


mais, quer morder a todos. Eram mais ou menos nove horas da noite, estávamos todos em frente da casa conversando, quando de repente ouvimos um estouro muito forte, a impressão foi de ter caído uma casa, fiquei apavorada, porém quieta, pensei logo na casa de meus pais, liguei para o celular de meus sobrinhos, da minha irmã que estavam lá na casa... e nada. Estavam mudos, daí então gelei. Em seguida outro estrondo, todos nós nos apavoramos, mas sem saber o que poderia ser _”amanhã saberemos”. Um tempo depois consegui falar com o pessoal na casa, lá eles não ouviram nada e nada sabiam.Voltei para casa... chovia torrencialmente, passava por nossa mente um verdadeiro filme de terror! Ainda naquela noite terrível tivemos um alento quando a energia elétrica retornou... ficamos felizes demais! Esta noite demorou a passar, dormimos pouco, a preocupação era muito maior que o sono, que pesadelo! Que tormento! Pela janela do quarto via a chuva cair... Nem tínhamos idéia do que se passava no Baú naqueles dias. Amanheceu, 24 novembro, segunda-feira, a chuva cessou. Saí à rua para registrar tudo, convidei alguns vizinhos e fomos até onde a água nos permitisse passar. Segui registrando moradores e moradas, muitas atingidas, muitas foram abandonadas por necessidade e não por vontade, pessoas estavam em casas altas nos pisos superiores. Avistávamos a casa onde estava minha família, mas um pouco antes... o riacho... muita correnteza, passamos de mãos dadas, fomos em frente... Até o cachorro, o Ogro, estava lá em cima. Acenei para eles e continuamos até a cerâmica, onde conseguimos chegar. Para frente não mais, pois a água já estava quase na nossa cintura. Foi quando decidimos voltar para nossas casas. No dia seguinte fomos para a limpeza da loja e casa dos meus pais. Aproveitávamos a própria água da enchente para isso enquanto a lama não secasse, e com o lava jato usávamos água direto da piscina. Evitamos usar a água potável, que já estava escassa. Meu irmão Márcio ficou encarregado da limpeza da cerâmica com outros funcionários. Nessa correria toda e a casa toda bagunçada, Ogro, o cão da minha irmã Márcia, que já estava há alguns anos com meus pais, ficou sem canil nesses dias e ficou num quartinho improvisado, no meio de muitas tranqueiras, mas feliz porque estava sempre sendo paparicado por todos. (Infelizmente no dia 18 de março, após tudo isso acontecer, recebi um telefonema da minha irmã Márcia que em prantos me dizia que seu cão Ogro havia morrido). Tínhamos poucos funcionários para nos ajudar, pois a maioria foi também atingida ou não tinham como chegar até o local. A família unida e mais alguns amigos e funcionários deram jeito em tudo, com muita vontade e suor. Demorou, mas com muito esforço as coisas foram se ajeitando. Em alguns dias já voltamos a funcionar em expediente normal, e receber os clientes. Nessa época do ano o comércio todo da cidade se preparava para receber o turismo e recuperar o prejuízo com as lojas fechadas nesses dias de enchente. Somente depois, através de conhecidos e da própria mídia é que ficaríamos sabendo a proporção da enchente, no centro. Da região do Baú, também ouvimos falar de uma grande catástrofe,

22


ocorreram muitos deslizamentos de terra, cercada de muitas desgraças, mortes, casas soterradas, resultando em um cenário triste, um verdadeiro “pós - guerra”. A situação era tão grave que parecia haver passado por lá um tsunami de lama. Os pedidos de socorro foram chegando. O povo se mobilizou, 100% das pessoas ficaram assustadas com tantas desgraças, o centro e bairros próximos foram atingidos, a água veio e foi rápido, destruindo algumas casas e pertences... Porém, as vidas foram poupadas. Minha irmã Marisa conseguiu chegar a Ilhota, conforme o prometido, com as botas e alimentos, e rapidamente foi para o salão paroquial onde, com outros voluntários, estavam sendo feitos cadastros das pessoas que iam chegando, resgatados dos locais atingidos pelas cheias, e as orientando para os lugares onde iriam se alojar, assim facilitando os encontros de familiares que as procuravam. Começaram a chegar resgates de todo o Brasil, o campo municipal era o local de pouso, e ali tanto os helicópteros traziam alimentos como as pessoas resgatadas de todas as áreas atingidas, principalmente de todo o complexo do Baú, famílias inteiras, doentes, idosos, todos desciam desesperados, chorando, por alguns momentos parecia mesmo que estávamos em uma guerra. No momento que fiz as fotos estava tão comovida e ao mesmo tempo assustada que não vi que pertinho de mim estava o ator Alexandre Frota. Eram tantas as pessoas correndo e gritando um com o outro para agilizarem a entrega dos alimentos que só fui perceber ao chegar em casa, passando as fotos para o computador. Aí chamei pela minha filha Nathália, mostrei a ela e falei: “Veja, filha, que homem parecido com Alexandre Frota!” E ela também achou parecido, depois uma amiga falou que era ele mesmo, e no outro dia o vi em um programa de TV, achei muito bacana seu trabalho voluntário, e feliz por todos os moradores. Essas pessoas que chegavam eram encaminhadas por bombeiros voluntários para postos médicos ou abrigos, lugares onde pudessem se alimentar. Faziam um cadastro de chegada para encontrarem familiares e amigos. No salão paroquial era o local onde as vítimas faziam seus cadastro, e onde se alimentavam, vários voluntários ali estavam dia após dia, tanto na cozinha, preparando desde o café da manhã até o jantar, ali passavam inúmeras pessoas, tanto pessoas desalojadas quanto voluntários, e também ali estavam estocadas as doações enviadas. Muitos cidadãos solidários de todo o estado e do país e também doações vindas do exterior, inúmeras foram elas. Márcia, minha irmã de Jaraguá do Sul, também ajudou na ação de voluntariados, auxiliando tanto na hora de servir as refeições, quanto na distribuição de roupas, juntamente com seus filhos Aline e Felipe Bedin, e sua namorada Miriam Nagy, todos de Balneário Camboriú. Muitos helicópteros levavam os bombeiros voluntários, e pessoas que vinham de todo o país para ajudar nos resgates de vidas e em busca de pessoas soterradas, e mortas pela tragédia. Todo o

23


Marco Gamborgi

país foi mobilizado, a consequência foi absurda, jornalistas, a imprensa de nível mundial, era uma correria total. E lá estava eu, registrando tudo. Sentada na arquibancada do campo vi coisas terríveis, cenas chocantes. Numa tarde, estava na companhia de Miriam, namorada do meu sobrinho Felipe, e passou por nós um bombeiro com uma sacola plástica branca, quando olhei já imaginei na hora que havia ali dentro um corpo de uma criança, e realmente era o corpo de uma criança morta de quase dois anos, com a chupeta ainda na boca. Meu Deus! Por quê? Como eu gostaria que tudo o que vi não passasse de um sonho! Recordo um homem que, ao fotografá-lo, olhou bem nos meus olhos, e através daquele olhar, ele não precisou me falar nada, era só tristeza, só sofrimento, mais uma vez, não me contive, sem que ninguém percebesse, novamente chorei. Vi também uma moça com uma gaiolinha e seu gato, um homem com seu violão, aquele menino, o Eduardo, de quatro anos apenas me falava que não pôde trazer seu cachorro, porque não deu tempo para soltá-lo, outros casos curiosos e emotivos, como aquele senhor que discutia com o capitão querendo voltar para casa, outro senhor, o querido João Fischer, que saiu do helicóptero muito emocionado, e entre lágrimas apertou a mão do Major agradecendo, junto sua esposa dona Gerci, doente posta imediatamente em uma maca por bombeiros. Aqueles bombeiros por sua vez, corriam de um lado para o outro com equipamentos de resgates, subindo e descendo dos helicópteros, muitos acompanhados por cães para auxiliarem nas buscas de corpos. Todos estavam inconformados com tudo, de repente Ilhota se transformou em um cenário de horror, a cidade ficou conhecida mundialmente pela desgraça que sofreu. A proporção de voluntários jamais era esperada, pessoas de diversos lugares do mundo se sensibilizaram,enviando muitos donativos, entre eles, roupas, alimentos, água, medicamentos, colchões, doados pelo próprio povo, e empresas, o necessário. Vinham coisas que nem imaginávamos. A ajuda foi de grandes proporções, também vieram muitos profissionais, como médicos, psicólogos, bombeiros, profissionais de todas as áreas que possamos imaginar. No dia 28 de novembro o prefeito Ademar Felisky de Ilhota tomou uma medida enérgica, pois muitos moradores insistiam em ficar por lá, em áreas que a defesa civil considerava de altíssimo risco, podiam ocorrer novos deslizamentos, o que vinha acontecendo de fato. Então, a medida foi fazer um pente fino na área, mesmo com a teimosia das pessoas, que não temiam o perigo. Homens da Força Nacional e policiais civis e militares bloquearam as estradas que davam acesso a essas áreas ameaçadas, para que os moradores não pudessem voltar, a maioria deles preocupados com saques em suas moradas, e não queriam se desfazer de seus bens, mas com isso corriam risco de perderem suas vidas. A prioridade do município foi essa, não deixar que os óbitos aumentassem, e tentar abrigar todas as vítimas, conduzindo-as para lugares onde pudessem ter conforto e segurança.

24


Meu amigo Adriano Junkes e alguns colegas se prontificaram a ajudar. Trouxeram colchões doados pela população de sua cidade natal, Jaraguá do Sul. Da cidade de Vitória, no Espírito Santo, vieram através do Orkut inúmeras mensagens de solidariedade ao nosso povo, enviadas por Jonatas Oliveira Torres, a quem não conheço. Uma amiga de nossa família, Liamara Bedin Pirajá, da cidade de Sinop, no Mato Grosso, quando de sua passagem pela cidade de Ilhota, se comoveu tanto com o sofrimento do povo que imediatamente transformou-se em voluntária e passou a auxiliar na distribuição de roupas, que estava acontecendo no Salão Paroquial.

25


Os Números.

A

Baú Seco: Aline Cristina Bachmann-19 José Jaime Bachmann-46 Josemar Bachmann-16 Sávio Bachmann-13 Sueli Terezinha Bar Bachmann-43 Vitório Bar-76

proximadamente 3,5 mil dos 12 mil habitantes estavam desalojados ou desabrigados. Ilhota foi o município com maior proporção em vítimas fatais, num total de 32 pessoas, sendo que um corpo não fora encontrado, o de Larissa Schwambach de 11 meses. Na região do Alto Baú: Adelaide Harbes-81 Deonilda Seberino-62 Joana Maria Annater - 7 meses João Pedro da Silva-1 ano e 8 meses. Luís Paulo Hostim -17 Maria Tatiana Hostim-7 meses. Marinéia Martendal Schwmbach-23 Nelson Galdino da Silva-61 Nilma Karl Lana-17 grávida de 7 meses. Nivaldo Karl-27 Norberto Karl-62 Rodolfo Harbes-81

Alto Braço do Baú: Tione Loss Zabel-36 Laudelina Zabel-63 Larissa Tolardo Zabel-4 Marcelo Zabel-7 Marques Zabel-13 Braço do Baú-Morro Azul: Antônio Roberto Richartz-48 Aparecida Dossi Richartz-45 Augusta da Rocha Richartz-59 Bárbara Cristina Richartz-23 José Roberto Richartz-20 Giane Richartz-27 Leandro Marildo Bachmann-5 Lindomar Rodrigo Bachmann-26

26


27


Registrando a Sobrevivência.

N

unca imaginávamos que o encantador vale do Baú um dia iria passar por isso tudo, pois sempre pensávamos que lá era um lugar seguro, livre de enchente, mas o volume de água das chuvas durante quatro meses consecutivos foi um recorde histórico. E assim foi dia após dia! Eu andava de um lado ao outro, registrando e conversando com as pessoas que por ali passavam, ouvia muitas tristezas e quando retornava à minha casa desabafava num choro copioso, relembrando o que as pessoas me diziam. Tinha muita vontade de fazer uns registros aéreos e fui cedo ao campo municipal, lá falando com Paulo Roberto Drun, da Defesa Civil do município, ele então pediu que aguardasse, que de uma hora para outra seria possível o sobrevoo. Sentei lá na arquibancada e fiquei de plantão, comigo estavam meus amigos da imprensa Miro Santos e Antônio Carlos (Gaúcho), além de representantes da imprensa de todo o Brasil. Minha dúvida era se eu conseguiria ir, uma vez que havia ali tanta gente com o mesmo objetivo! Como não usava crachá, imaginava que não iria, pelo menos naquele dia.O sub comandante Cidnei Conink também tentava me ajudar, volta e meia pedindo para um e outro piloto dos helicópteros que iam chegando, às vezes até três ao mesmo tempo, parecia um campo de concentração de uma guerra. Pousava um helicóptero e todos corriam, parecia uma guerra. Junto comigo havia dois amigos também do local, gostaríamos de ir junto, mas estava muito concorrido. Aconteciam até algumas piadas entre nós do tipo: - Mulher tatuada não pode ir! Ao que eu retrucava, para quebrar a tensão: - Vamos avaliar por peso, primeiro os magros! Assim, a tarde ia passando. Liguei em um momento para minha mãe e pedi para ela fazer um cafezinho para todos que ali estavam, porque ninguém queria arredar o pé dali, minha irmã Márcia foi que trouxe o café. Algum tempo depois, quando pousou outro helicóptero, um bombeiro voluntário do município, Claiton Silva, sabendo que eu estava desesperada me chamou e eu corri, junto foi um dos amigos cinegrafista, o Gaúcho, e outros dois de outras emissoras.

28


Fomos então, naquela porta aberta todos amontoados querendo registrar tudo. Foram momentos difíceis, mas apesar do empurra, consegui bons registros, só clicava sem olhar, nem tinha como, teve muitas fotos que apareciam só cabeça, câmeras, pés... Houve uma hora em que um dos cinegrafistas me ajudou e me segurou, onde pude soltar a outra mão e fazer melhores fotos. Foi neste momento que pude avaliar pela primeira vez a extensão da desgraça que acometera o local! No que havia se transformado meu querido vale do Baú, meu “Studio fotográfico”, minha paixão! Naquele momento eu só não desabei e chorei porque a ansiedade e adrenalina eram muito grandes, acompanhadas da pressa de obter bons resultados no trabalho, mas como sempre, depois quando já estava lá embaixo novamente, eu chorei...e muito! O cenário era de uma tristeza imensa, lá de cima não sabíamos identificar nada, não se sabia onde era estrada, onde era rio, era só barro vermelho, tamanhos foram os deslizamentos de terra. Naquele momento parecia estar sonhando, que aquilo fazia parte de um pesadelo. Era impressionante verificar no que havia se transformado aquele verdadeiro paraíso ecológico em questão de pouco tempo! Que calamidade! De volta a Ilhota, que tristeza meu Deus! Aquelas imagens não me saíam da cabeça. Depois disso tudo que vi e registrei, fiquei com muita vontade de ir para o Baú e descer lá, ver mais de perto, era difícil, somente pessoas capacitadas e habilitadas poderiam descer lá, havia muitos pontos críticos, de alto risco. De uma hora para outra, onde imaginávamos que era seguro, ocorriam deslizamentos. Dia após dia eu ia até o campo municipal, conversava com todos que por ali passavam para que eu pudesse ir para o Baú, quem sabe com um grupo de bombeiros, ou de reportagens, resgates... Só sei que eu batalhei para isso... e nada. Até que num certo dia convidei meus amigos Fernando de Vito e Itelvina Dagnoni (ex-moradora de Gaspar e atualmente residindo em Balneário Camboriú. Esta amiga acabou se transformando em voluntária das mais ativas, pois vinha diariamente para ajudar na cozinha, na limpeza e em tudo o mais que estivesse ao seu alcance) para tentarmos ir de carro pelo menos até Braço do Baú, mas ao chegar na igreja, a Polícia Ambiental estava barrando todos que por ali tentassem passar, por ser área ainda de risco e um acesso muito precário.

29


Estava um calor intenso neste dia, lá encontramos vários amigos Bombeiros Voluntários de Ilhota, pedi ainda para eles me darem uma forcinha para que a Polícia Ambiental me deixasse passar, mas não foi possível. Não desisti, ficamos por um bom tempo por ali e quando estava quase desistindo, o Fernando me ajudou, conversamos com um casal de um jornal, conhecidos nossos, e como eles estavam com crachá de identificação foi fácil e como sobrara um lugarzinho na camionete da Polícia, adivinhem quem foi? Eu! Só dei meu nome para identificação, entrei rapidinho no carro e fui ansiosa e com uma sensação de realização! Estava muito ansiosa para ver e registrar tudo. Janela aberta para fotografar? Nem pensar! A lama era tanta que respingava alto, poucas vezes dava para arriscar. Só o que era nítido, mesmo com as janelas fechadas, era que estava tudo muito destruído, a paisagem transformada em lama, pedras e troncos de árvores. As moradas abandonadas, tudo abandonado, parecia realmente um lugar fantasma. A destruição trouxe consigo não só lama, também muita areia, tinha uma área enorme que estava mais parecendo um deserto. Registrei o que pude, enquanto o jornal fazia sua matéria. Fiz fotos impactantes de cenários horríveis. Então voltamos para a igreja, e me encontrei com meus amigos, contente por ter conseguido boas fotos, mas decepcionada com o que vi. Depois Fernando e eu fomos até o salão paroquial e nos deparamos com três caixões feitos em madeira bruta de pinus pelos próprios moradores do Braço do Baú. Um senhor que estava por ali nos falou que eram para três corpos, ainda não encontrados. Ficamos muito impressionados quando vimos e ouvimos o que não queríamos ter visto e nem ouvir. Votamos a Ilhota muitos tristes com tudo isso. Deixei meus amigos no centro e voltei para minha casa. No dia seguinte lá estava eu, novamente me posicionando no mesmo lugar, naquela arquibancada do campo municipal, esperando uma oportunidade de continuar o meu trabalho. Não estava conformada ainda, queria ir para o Alto Baú, mas sabia muito bem o quão difícil seria, porque lá o perigo era bem maior e não tinha acesso por terra em hipótese alguma. Tentei de várias maneiras, com várias pessoas, mas foi tudo tempo

30


perdido, acho que dei o número do meu celular para todos que por ali circulavam, ficava atenta às chamadas, mas... Nada, nada de positivo! Num domingo, ia para o salão paroquial da Capela Cristo Rei do Baú Baixo, que se transformara em um abrigo, para fazer parte de uma reunião com o Governador do Estado, Luís Henrique da Silveira, que aconteceria naquele dia, para ajudar a resolver as questões de moradia, estradas e tudo que se referisse às pessoas desabrigadas de todo o vale do Baú. Quando fui tentar atravessar a balsa para ir para a margem esquerda, acesso para toda a região do Baú, a balsa nos deixou na mão, deu um probleminha e ela foi parar alguns metros da saída. Desisti então porque já estava ficando tarde, e para passar por Gaspar seria uma solução, mas iria chegar com um grande atraso. Então fiquei por ali, conversando com um, com outro. Quando a balsa retomou suas atividades, passou um senhor de moto, tanto ele quanto a moto estavam completamente sujos de barro, e vi que tinha uma mulher com um menino loirinho lindo com ela e comecei a conversar. Falou-me que seu marido tinha ido para o Alto Baú pela mata buscar sua moto, porque dependia dela para o trabalho. Perguntei para ela do que estavam precisando. Ela começou a chorar e me disse que o menino que estava com ela, no momento queria muito sua motoca que havia deixado no Baú, e o mais velho sua bola de futebol e que já havia acertado em Blumenau para fazer um book para sua filha mais velha, e iria dar de presente no natal, mas que com isso tudo não tinham mais condições. Comovida, eu prometi que daria um jeito nos presentes para seus meninos e que daria o book que sua filha tanto queria. Emocionada ela me abraçou e agradeceu muito. No dia seguinte, uma segunda feira, fui ao comércio do nosso município e comprei uma motoca e uma bola de futebol, convidei minha mãe para ir até o abrigo comigo. Chegando lá chamei por ela, trouxe as crianças e eu lhe entreguei os presentes, ficaram felizes da vida! No momento a senhora se surpreendeu com o filho caçula, que ao receber a motoca sorriu muito, porque depois da tragédia ele nunca mais reagira daquela maneira, até então só chorava e vivia triste pelos cantos. E faltava o book da moça, só conseguiu realizar seu sonho depois de um mês. Numa certa tarde, lá conversando com as pessoas, apareceu a moça para quem eu havia prometido o book, de imediato a convidei para fazê-lo naquela mesma noite. Enquanto combinávamos horário e tudo mais, apareceram mais duas moças também pedindo que eu as fotografasse, na hora fiquei comovida e fechamos negócio: dar o book completo para a moça a quem havia prometido anteriormente, e para as duas daria somente as fotos, o book depois seria mais fácil de adquirirem, tudo isso com direito a toda a produção. Assim feito, todas de acordo. Por volta das oito horas voltei ao abrigo, trouxe as três moças para minha casa, minha sobrinha Jéssica fez uma produção legal de maquiagem e cabelo, roupas, uma parte elas mesmas trouxeram, a maior parte haviam pego nas doações, roupas até bem interessantes, e algumas eu e minha filha Nathália cedemos, então, prontas e lindas, que transformação! Era só câmera e ação! O resultado foi muito bom, me surpreendi, elas foram muito queridas, trabalharam legal, todas muito simpáticas, depois disso fiz uma grande amizade, foi uma noite muito divertida, terminamos o trabalho por volta de meia-noite. Depois de uma semana levei as fotos no abrigo, só que no dia só estava uma delas, adorou, lá mostramos para todos, e estava presente a mãe de outra moça, coloquei todas as fotos em cima de uma mesa, quando esta senhora viu, dizia: Vocês estão querendo me enganar! Lógico que essa não é mi-

31


nha filha! Achou que a filha havia ficado muito diferente com toda a produção, gostou muito. E a moça a quem prometi o book, chegou no outro dia, fui lá novamente e lhe entreguei, tanto ela quanto a mãe ficaram muito felizes! Voltando à vontade insaciável de ir ao Alto Baú, meu Deus! Ninguém me ligava, ninguém me convidava! No quartel, acho que o BV Carlos Machado Dias não podia mais me ver, de tanto que eu ligava e que ia lá perguntar sobre a possibilidade de eu ir para o Alto Baú. Eu já não dormia mais, só tinha pesadelos de tanta vontade de ir para lá. Passaram-se alguns dias, fui até o salão paroquial fazer mais uma tentativa, lá estavam vários bombeiros, inclusive o Comandante Leão, que ao notar que eu estava muito revoltada por não ter ido, disse-me: - Da próxima vez que nós, bombeiros voluntários formos ao Alto Baú, você irá junto como fotógrafa oficial do nosso quartel, mas desde que não nos desobedeça, sempre terá que seguir à risca todas as ordens, porque lá ainda é uma área de risco e qualquer coisa que acontecer com um dos bombeiros ou com você, a responsabilidade será totalmente minha! - Nossa! Fiquei feliz da vida, e só na expectativa! Passaram-se um, dois, três, quatro dias e nada! Nesse meio tempo meus pais me convidaram para ir a Boiteuxburgo, uma cidadezinha do interior do nosso estado, um lugar muito agradável, muito parecido com a região do Baú, só muito frio por ser um lugar de maior altitude. Esta cidade é a terra natal de minha mãe, onde antigamente meus avós Benedito Jasper e Cecília Goedert moravam e tinham um pequeno comércio. Anos mais tarde meus pais demoliram a casa velha que já estava em estado precário e construíram uma casinha nova, que volta e meia nos serve de refúgio e descanso. Então fomos para lá, mas eu me limitei a levar meus pais e voltei correndo no dia seguinte, dirigindo em alta velocidade serra abaixo, sentindo grande ansiedade e esperança de ir lá para o Alto Baú. Quando cheguei de volta a Ilhota, adivinhem o que aconteceu? Fiquei sabendo que várias pessoas haviam me procurado, exatamente no dia em que viajei! O Comandante Leão, amigos, pessoal da prefeitura, do trabalho, bombeiros, todos aqueles para quem eu havia dado o número do meu celular, avisando que iriam para o Alto Baú, e me convidando conforme o prometido. Meu celular estivera fora de área justamente neste dia tão especial. Confesso que fiquei arrasada, lembrando tudo o que batalhara, a espera que eu havia administrado com tanta ansiedade, para justamente quando saio por algumas horinhas acontecer isto! Somente depois de alguns dias, já um pouco conformada por haver perdido aquela oportunidade, fui avisada através do telefonema de um amigo que iríamos para o Alto Baú no sábado seguinte, que seria dia 20 de dezembro. Foi muito difícil conter a minha ansiedade por mais aqueles dias até que chegasse novamente a tão almejada oportunidade de ir para a região confrangida pela catástrofe. Felizmente o dia amanheceu lindo, preparei uns lanchinhos, em uma mochila levei um travesseirinho, lençol, toalha de banho, mais uma roupa e algumas coisinhas básicas de higiene pessoal, esqueci do repelente, mas lembrei muito bem do meu batom e meu lápis de olho. Lógico que não poderia esquecer da minha inseparável companheira, a câmera. Vesti minha roupa, botas e outros equipamentos e, juntamente com meu amigo Danilo e uma amiga, fomos até ao campo municipal para pegar o helicóptero. Chegando lá estavam alguns bombeiros, dentre eles minha amiga Adriana, neta do sau-

32


doso Herculano Baptista, esposa do subcomandante Cidnei Conink, de Ilhota, o comandante Leão e sua esposa Gislane, residentes em Balneário Camboriú, município no qual atua, e alguns bombeiros voluntários da cidade de Pomerode. Tinham me avisado que teria que estar antes das oito da manhã, esperamos muito e nada do helicóptero chegar. Havia saído um antes, apenas com rações para os cães do Baú, e nós... Nada. Já pensei:- Quer ver só que eu não vou novamente? Deu 8, 9, 10 horas e nada... Apareceu então o BV Pedro Paulo com o micro ônibus escolar da prefeitura, porque infelizmente não apareceu mais o helicóptero por algum motivo que eu não fiquei sabendo. Tudo bem! Para mim tudo bem, eu queria mesmo era chegar lá. E lá fomos nós! Na direção Pedro Paulo, e Leão no comando, seguimos em frente. Passamos por Gaspar, tudo bem, no bairro Belchior... a estrada começou a piorar, a situação já mais difícil, mais obstáculos no caminho, até chegar numa curva, tentando subir e nada!O ônibus ali ficou e todos tiveram que dar uma mãozinha empurrando. Daquele ponto, Pedro Paulo então retornou para Ilhota, e nós enfrentamos uns cinco quilômetros a pé. Sol de rachar, o cansaço ia vencendo, as subidas iam aumentando, eu achava que não iria conseguir andar tanto, mesmo sendo praticante de academia era demais para mim, mas pensava assim: - Não posso desistir, tenho que ter fé que vou conseguir, afinal quis tanto vir! Eu transpirava demais, parecia que estava me dando uma violenta gripe, e eu de novo pensava: - Tenho doenças de A a Z, será que não vai me dar um treco? Mas não, fui indo com todos, não só eu cansava, todos paravam para descansar volta e meia. Thiago me ajudava a levar minha mochila, além dela tinha a bolsa com a câmera, acessórios e uma bolsinha térmica com frutas. A cada passo que avançávamos, víamos muita destruição, um cenário com suas características transformadas, não era mais o mesmo Baú. Fui registrando toda essa paisagem brutalmente destruída. Continuávamos a andar, parávamos para reabastecermos, mas continuávamos logo porque tínhamos muito chão para andar. Graças a Deus chegamos! Fomos para uma serraria onde estavam os bombeiros voluntários da cidade de Navegantes, e um professor de física de Brasília, Cefas Queróis, que estava por ali também como voluntário, todos pessoas muito especiais que vieram também para ajudar nosso povo e nossa Pátria. Ajeitaram um fogão a gás, fervemos água, e fizemos um macarrãozinho com sardinha enlatada, depois Cefas pega o violão para descontrair um pouco, e ao lado de outros bombeiros tentam cantar um pouco.

33


Marco Gamborgi Marco Gamborgi Marco Gamborgi

Alojamo-nos numa casa na qual, antes da tragédia acontecer, funcionava uma facção de costura, lá conseguimos ligar luz através de um gerador. O BV Thiago rapidamente arranjou uma “tobata”, então o Comandante Leão reuniu todo o pessoal e decidiram o que iriam fazer de imediato. Como o meu objetivo ali era registrar, o Bombeiro Voluntário Evélito Strapasson de Navegantes me levou ao local onde existia a casa do Sr. Daniel Manoel da Silva, onde haviam morrido cinco pessoas da família, ao lado da serraria em que estávamos. Neste dia em que estivemos no local, todos os corpos já tinham sido resgatados por Bombeiros Voluntários ajudados por civis, que em nenhum momento temeram o medo e o perigo que os seguiam a cada passo. Eternamente iremos agradecer tudo o que esses homens bravos fizeram por nosso povo, podendo ser considerados verdadeiros guerreiros! Foi lamentável o que aconteceu, com essa e tantas outras famílias, que foram vítimas dessa tamanha crueldade. Fiquei impressionada com tudo que vi, e muitos dias depois fiquei sabendo que era o primeiro dia que esta família dormira na casa, recém-construída, era tudo novo para eles, seria um sonho que dona Iolanda tanto almejara. Um sonho que se transformara em lágrimas e saudades, do irmão muito querido Nelson, dos netos amados Paulinho e João Pedro, e das lindas netinhas Joana e Maria Tatiana, uma família destruída em segundos, por escombros, lama e muita dor.

34


Tamanha foi a minha dor que saí dali arrasada porque pensava a todo instante no drama e no terror que esses inocentes passaram naquela noite. Depois da reunião pegamos carona com a tobata, conduzida por Thiago, e acompanhamos os bombeiros para suas missões, eu no entanto preferi ir andando, por temer as manobras um pouco violentas do motorista da tobata, o que principalmente inviabilizaria o meu trabalho de fotografia. A fotos sairiam péssimas, por não ter equilíbrio total. Inclusive o veículo acabou enguiçando logo em seguida. O que víamos a nossa frente era só destruição, cada vez ficávamos mais abismados com tamanha profusão de casas destruídas, de vidas destruídas. Houve muitos momentos que eu ficava num silêncio só, quando me deparava com cãezinhos deitados nas portas das casas, com certeza esperando seus donos. Naquela tarde, depois de andarmos muito, fomos até o local denominado “Tifa do Grahl”, porém antes paramos num rancho para descansarmos um pouco, lá o professor Cefas encontrou um cachorrinho trancado num rancho, e imediatamente o batizou de Esquecido. Penalizada, dei-lhe água e minha barrinha de cereal, não era difícil perceber que estava faminto e com muita sede. O acesso para a Tifa foi muito difícil, estava tudo muito destruído, tínhamos que passar por dentro do rio, com muitos obstáculos, pedras, árvores. Fomos até o local onde existia a casa da dona Guerda Harbes Karl, sua vida fora destruída por uma grande barreira, levando todos seus sonhos embora, seus pais Rodolfo e Adelaide, seu marido Norberto, seu filho Nivaldo, e Nilma, sua filha grávida de sete meses da menina Gabi. Apenas ela e seu filho Niberto conseguiram escapar com vida. Foi muita tristeza para eles. Somente o tempo fará com que consigam reencontrar um sentido para suas vidas. Perdas são assim, só quem teve é que sabe como dói, e principalmente uma perda tão bruta e estúpida. Deus com certeza os protegerá e os guiará. Depois de vermos todo aquele barro envolto por lembranças de várias vidas, retornamos ao nosso alojamento. No caminho o professor Cefas pegou o cachorro Esquecido e levou conosco. Chegava o entardecer de um cansativo dia. Os bombeiros de Navegantes e Pomerode retornaram para suas cidades, e nós fomos para o alojamento, onde ficamos num total de sete pessoas: eu, Paulo Sérgio de Castro Leão, sua esposa Gislaine, Adriana Conink, Thiago Brassanini, Cefas Queróis, de Brasília e Paulo Schoroeder de Ascurra, e começamos a nos organizar. Cefas e Thiago saíram de tobata para tratar os cachorros que por lá ficaram, levando ração de casa em casa, sede não passaram, pois havia muitos córregos passando por todo lugar. Depois arrumaram os colchões emprestados, fizemos janta e... surpresa! Macarrãozinho com sardinha! Depois da janta, sentamos na rua, a noite estava convidativa parecia nos oferecer novos ares, de renovação de ânimos e esperança. A beleza da lua aparecia nos proporcionando momentos de refrigério. Cefas então tocou violão e cantamos e cantarolamos, de Raul Seixas até Maria Bethania, aquela cabeleira fazia transformações e provocava risos, um momento de descontração depois de um dia exaustivo. Por volta da meianoite fomos dormir e constatei que fora uma excelente idéia ter levado meu lençol e travesseiro, mesmo assim foi difícil dormir, mas aos trancos e barrancos, carrapichos e borrachudos, piadas e risadas, até cansarmos, o sono finalmente encontrou seu lugar. Na manhã do dia 21, acordamos com toda a disposição e pique

35


para nova jornada. Ao abrirmos a porta, nossos cães amigos, rebatizados por Cefas, lá estavam. O professor lutou muito para salvar e guardar essas vidas tão indefesas. Com muita dedicação, medicou e tratou de todas as maneiras para que pudessem se safar das dores de ter perdido um dono. A alegria deles abanando os rabinhos, quando entendiam que estavam sendo amados novamente por várias pessoas, em especial por Cefas, o professor que virou doutor veterinário! Estava sempre envolvido com os bichos, ajudando no que podia para vêlos saudáveis. Fui até o morro próximo de onde havia caído a casa do senhor Daniel. Pretendia fotografar uns carros no meio do barro e no caminho conheci o senhor João Polanski, que mostrou o estado de seu carro, dizendo-me que não sabia o que fazer, pois tinha ainda muitas parcelas para pagar. Tomamos nosso café e pé na estrada, cada um em sua missão, eu e Adriana nos bandeamos da turma, sabendo que estávamos erradas, porém queria registrar alguns lugares mais além do trajeto com maior liberdade. No caminho encontramos um homem conduzindo umas vacas, e quando vi que uma delas era brava, corri e me escondi atrás dele, já Adriana se jogou um pasto, passando por baixo de uma cerca de arame farpado. Não deixei de fotografar, só não foi possível captar o hilário da nossa situação e as risadas que demos quando percebemos que estávamos “salvas”. Eu e Adri rebatizamos essa rua como “Rua da Vaca”! Nesse mesmo dia, em uma casa ao lado de onde tudo aconteceu, havia uma família que viera passar o dia em casa, três crianças riram muito do acontecimento, eram a Maria Eduarda, Andrieli e Andriel, umas gracinhas! Pousaram para uma foto e nos despedimos.

36


Seguimos nosso caminho, até que chegamos à Igreja Luterana Apóstolo Paulo, e vimos a destruição do cemitério. Sabia que era lamentável a perda de vários túmulos. Como havia feito fotos aéreas da Igreja, fiquei curiosa para chegar perto, de cima já tinha visto que a situação era muito complicada. Para chegar até a igreja passamos por um córrego, tinha muita correnteza, atravessamos de mãos dadas, tínhamos medo de encontrar algum buraco, tudo era inseguro. Chegando lá, ficamos muito tristes e lamentamos muito pelo cemitério, os galpões destruídos serão de mais fácil recuperação, mas o cemitério é muito complicado. Logo ao lado existia a cooperativa das costureiras do Alto Baú e a casa de Flávio e Josiane. Ambas as construções ficaram completamente destruídas. Depois de vermos muitas moradas em estado semelhante, seguimos caminhando para o alojamento. Ao chegarmos, contei para todos que tivemos que passar por um córrego no qual havia uma forte correnteza e o comandante Leão nos deu uma bronca, porque havíamos desobedecido. Comandante Leão precisava entrar em contato com alguém da prefeitura para conseguir um trator e como era domingo, dei a ele a idéia de ligar para minha irmã Marisa, funcionária da prefeitura. Fomos então até a casa do senhor Marcílio, pois era a única residência que possuía telefone com antena e funcionando, próxima onde estávamos alojados, mas com acesso muito difícil, pois não existia mais a ponte e tínhamos que passar por cima de barrancos e tubos. O comandante sempre me orientando, e eu cuidando da câmera e minha bolsa com lentes e outros acessórios, com medo que caísse e quebrasse algo, mas no fim deu tudo certo, passamos, fizemos a ligação e conseguimos falar com minha irmã. Depois na volta, deu o que falar! O comandante dizia: - Onde eu pisar, você pisa, com muito cuidado! Fui bem... Até quase no final, onde tinha um barranco e ele falou: - Dê um impulso agora! Quando eu dei o impulso para passar para o outro lado, me desequilibrei por conta da câmera pesada e voltei atrás. Naquele momento já me vi toda quebrada, câmera e tudo mais, só que... eu me agarrei rapidamente nas costas do Comandante e ele, numa rapidez que eu nunca vi igual, virou-se e eu acabei caindo em seu colo e com um dos braços no ombro dele, meu Deus! Foi por pouco, na hora um moço que estava por ali de moto deu risadas, e viu que foi realmente um tombo, porque se alguém não visse o antes, pensaria que estávamos sentados

37


abraçados batendo papo. E então não parava de rir do nervosismo e de achar a cena engraçada mesmo, e ele sério! Até acho que fui indelicada de tanto rir. Depois do almoço, composto de... adivinha: macarrãozinho com sardinha? Não! Com carne! Mas o macarrãozinho continuava no cardápio. Naquela tarde voltamos para Ilhota caminhando. Eu, Adriana e Paulo fomos caminhando até o bairro gasparense, Belchior e os outros foram mais tarde, também até ao Belchior e depois o Subcomandante Cidnei Conink foi buscá-los de ambulância. Nosso cansaço era inexplicável, quase não nos sustentávamos nas pernas e por sorte, de lá pegamos carona com um morador do Alto Baú, que estava no abrigo no bairro de Ilhotinha. Na balsa eu e Adriana descemos e fomos até o Dal Costa Café, e Paulo foi para o quartel dos bombeiros. Estávamos com uma fome de lobos e loucas de vontade de comer outra coisa que não fosse aquele macarrãozinho. Da balsa até o café pareceram quilômetros, isso que só dava uma distância de 100 metros, o pé esquerdo de minha bota ficou defeituoso enquanto caminhava, por conta de um machucado no pé, virava para dentro, era automático, andava igual uma velhinha... bem velhinha! Chegamos no café e todos que lá estavam se assustaram conosco: minhas irmãs Márcia e Marisa, Jéssica, minha sobrinha e Douglas, que trabalham lá, além de muitos clientes da loja que estavam no Café. Parecíamos duas porquinhas de tão sujas e muito exaustas. Comemos um lanche muito bom, feito pelas moças do café, Ana e Ivete, mas com a fome que estávamos parecia um banquete, e nós, duas mendigas. Depois levei Adriana para sua casa, e tive a satisfação de ver sua filhinha, a pequena Ariane, matar a enorme saudade que sentia da mãe. Despedime e vim para casa! Que delícia reencontrar minha filha, minha cachorra Dalila, um bom banho e cama boa! Estava com muitas saudades! Matei a saudade com muitos abraços, beijos e lambidas! Até parece que havia viajado durante meses, mas vou explicar, é que era muito arriscado ir para todo o vale do Baú depois de tudo que aconteceu por lá. Não se sabia onde era seguro ficar, onde era seguro andar, se chovesse então, nem se fala, por isso a preocupação dos familiares de que repentinamente acontecesse alguma coisa conosco por lá. Durante a noite quando precisava levantar da cama para ir ao banheiro, nem conseguia andar, tinha que ir me arrastando, tamanha a dor que sentia nas pernas, principalmente nas panturrilhas. Dois dias depois, Cefas e Paulo retornaram para o Alto Baú, a fim de continuarem suas missões. Paulo, com mais uma equipe de Ascurra, trabalhou abrindo estradas, e Cefas cuidando de todos os cães da redondeza, muitos cães o seguiam e acabavam ficando no próprio alojamento. E todos os dias ia de casa em casa levar ração. A maior parte destas rações vinham de doações. Além de tratar e medicar todos os cães, Cefas fazia tudo que estava ao seu alcance. Teve um dia que Cefas me pediu para levar a ração que fora doada e consegui ir só até ao Belchior, pois para lá o carro em que estava não subia e dali em diante foi levada de tobata até o Alto Baú. Passados dois dias voltamos ao Alto Baú com o objetivo de ir até o Parque Botânico Morro do Baú, novamente com aquele carro, emprestado de meu pai e que, por ser mais alto, não batia no chão. Equipamo-nos eu e Adri, ela de férias e eu matando serviço por justa causa, e repetimos toda a romaria da outra vez: de carro até o Belchior, depois uma extenuante caminhada, culminando numa estratégica parada no alojamento para conversarmos com o Cefas, o “abestado”, era assim que ele nos chamava com

38


muito carinho, e olha que esse jeitinho tão especial pegou! A nossa amizade com ele aumentava a cada dia. Ele fora nos conquistando gradativamente com atitudes que revelavam a pessoa maravilhosa que é. Soubemos que o BV Thiago também estava por ali naquele dia, e em seguida continuamos o nosso caminho. E nesse dia também encontramos vários geólogos, vinham de toda a parte do país, analisando os pontos e definindo-os como áreas de risco. Assim essas equipes agilizavam o retorno dos moradores dos abrigos para suas casas. Ao passarmos em frente a morada do senhor Nelson e dona Irene, (aquela senhora simpática que quando nos vê, diz: - tadinhas!) que sempre nos recebeu muito bem no Alto Baú, e o Nino, seu filho, sempre o encontramos andando de bicicleta por lá. No dia do resgate lembrava muito dela por estar mascando um chiclete e, quando a fotografava, o tal do chiclete atrapalhava. Rimos muito quando falamos sobre isso. Paramos para tomar água, ela estava preparando o almoço e nos convidou, como tínhamos muito chão pela frente, falamos para ela que na volta, mesmo que tardasse muito, pararíamos. Antes de prosseguir ainda dei um chiclete para ela, e sempre que vou até lá, quando lembro, levo um chiclete, sei que ela gosta. Também passamos perto da casa do Maurici e Terezinha, amigos que fiz depois dessa tragédia, os quais conheci no abrigo do colégio Marcos Konder. Em seguida passou um carro dos bombeiros de Indaial, pedimos carona, eram o comandante Vinotti e Steffens, que nos levaram um pouco após a entrada, até onde a caminhonete podia passar, e dali para frente mais uma longa caminhada. Tudo o que víamos era destruição e mais destruição. Nessa estrada que leva até ao parque acho que fomos das primeiras a ir, porque estava completamente fechada por barreiras, crateras gigantes na estrada. Tínhamos que descer pelos barrancos, por entre galhos, rios com muitas pedras, foi terrível e demorado para chegarmos até ao parque. Logo na entrada do parque vimos muitos cachorros famintos e Adri deu umas bolachas, no que eles fizeram a maior festa! Na entrada nos decepcionamos, havia um enorme buraco obstruindo a passagem, foi necessário passar por cima de tábua que servia de ponte nos equilibrando e conseguimos. Olhei para o outro lado e não vi mais aquela casinha verde, a casinha centenária, no caminho já estava imaginando, o porquê de tantas tábuas pintadas de verde espalhadas pelo rio abaixo, lamentável. O parque foi destruído por uma enorme barreira, atingindo quase toda a área do camping.

39


Resolvemos não voltar pelo mesmo caminho, devido ao tempo que levamos e ao perigo que oferecia, assim sendo decidimos ir pelo Baú Seco e na hora lembrei que a Dona Irene poderia ficar preocupada, porque demos nossa palavra que iríamos voltar, e o que ela iria pensar? Que alguma coisa pudesse ter acontecido, porque o caminho até o parque era realmente muito perigoso. Falaram-nos que lá estavam abrindo uma estrada, que só levaríamos uns 20 minutos. Esses vinte minutos multiplicaram-se por 10, levamos muito tempo, passamos em uma casa e pedimos informações. Informaram que tínhamos que passar por dentro de um pasto atrás da igreja, e que lá iríamos achar a estrada. Acabamos nos perdendo e voltamos, nisso uma das crianças que estava na casa veio correndo e nos explicou certo. Fomos andando então, acho que naquele dia estávamos inaugurando a estrada, até encontramos ali um senhor com uma enxada, ajudando nas obras. Um pouco mais adiante meu celular tocou, mas foram só alguns segundos, logo saiu de área novamente. Adiante encontramos vários bombeiros voluntários abrindo a estrada, ali já com maquinários, junto deles estava Paulo Schroeder, de Ascurra. Fizemos a volta, encontramos nosso amigo, o BV Thiago manobrando seu tobata, novamente com problemas. Fomos até o alojamento pegar algumas coisas que por lá deixamos. Encontramos nossa amiga Irene Rosa, seus filhos, Vanusa e Nino, e realmente ela ficou muito preocupada, dizendo para nós: - Estive esperando vocês para almoçar lá em casa! Eles foram andando conosco no sentido Belchior, junto também veio Thiago e um voluntário de Brasília, que teria de viajar naquele dia pois iria participar da corrida de São Silvestre dentro de poucos dias. Caminhamos até onde estava o carro, naquele dia estávamos detonadas, terrivelmente cansadas. Demos carona para dona Irene e filhos até um posto mais a frente e os outros foram conosco até Ilhota, no quartel. Levei Adriana para sua casa e retornei para minha. Outro dia eu e minha querida companheira Adriana fomos até o Alto Baú para dar um recado para Cefas, de sua família que reside em Brasília. Estavam todos muito preocupados com ele, sua mãe já estava até doente sem notícias do filho, então seu irmão Jason me localizou pela internet,via Orkut, e pediu para que eu avisasse a ele para entrar em contato urgente com eles.

40


Algum tempo depois, novamente numa tarde fomos para o mesmo local. Deixei o veículo do meu pai, que vinha usando para essas incursões, no Belchior, e lá encontramos dois senhores sentados em um tronco de árvore e lhes perguntei: Será que esse carro sobe o morro? E um deles respondeu: - Não! É melhor vocês voltarem! Teimosa como sou respondi: - Vou tentar! Ao que ele redarguiu: - Se tu fores, vais te danar! E eu não dei ouvido, fui, e fui... E me danei mesmo! Então pedi para outro senhor que estava por ali para me ajudar a tirar o carro, porque fiquei com medo, sei lá, de de repente atolar de vez. Depois o deixamos em uma morada. E agora? Não tinha ninguém para dar uma carona, estava um deserto total, nenhum caminhão a vista, nem trator, nada! Então pensamos: vamos caminhando. Nisso passa um trator movido a gás, com um carretinha atrás, no qual Osvin Benner e seu filho Eduardo Martin iam para o Alto Baú buscar porcos. Pedimos uma carona, subimos com eles, e acho que foi o dia em nossas vidas em que mais rimos, porque essa carretinha pulava tanto, que cheguei a ficar com vários hematomas. Com uma das mãos eu segurava em uma cordinha que tinha por cima, tentei fotografar, mas foi tão difícil, tremia demais, fiz umas 50 fotos, consegui ainda salvar umas 6, depois de muito pula-pula, quase vomitando, chegamos bem (bem quebradas) mas seu Osvin foi uma benção, porque, ou viríamos com ele ou teríamos que caminhar uns 6 quilômetros, quebradas igualmente. Ficamos muito agradecidas a ele, tanto que pedimos carona para voltar, mesmo que no meio dos porcos. Já estava ficando tarde e tínhamos medo de não podermos voltar antes que escurecesse e chovesse, ameaça esta que nos punha muito medo. Procuramos o Cefas e foi uma cena muito engraçada vê-lo chegando de bicicleta. Tal visão nos provocou uma reflexão, pois verificamos que lá no Baú, a gente andava de todo o tipo de veículo, o acesso era muito difícil.Transmitimos a ele o recado do seu irmão Jason, conversamos um pouco e do nada apareceu o caminhão caçamba da prefeitura de Ilhota, que estava mais acima abrindo as estradas. Pedimos carona e subimos na caçamba, mas o fundo estava completamente molhado de óleo, escorregadio! Meu Deus! Não foi só a vinda com risadas, mas a volta também! Tínhamos que nos segurar muito, e eu volta e meia soltava uma das mãos para fotografar, haja equilíbrio! Como se não bastassem os escorregões e os arranhões, os galhos das árvores vinham em cima do rosto, porque eu ia do lado direito, tudo que vinha, batia e provocava o maior susto. O resultado? Novamente, apenas umas 6 fotos! Pegamos o carro, e voltamos para Ilhota.

41


Descansei um dia e no outro... Adivinhem qual o programa? Aquele dia de dezembro, depois do natal, quase ano novo, 36 graus de temperatura... Praia? Piscina? Baú! Eu e Adriana novamente na estrada, antes porém passei no Café, peguei quatro pães de queijo e duas fatias de bolo de milho que só a Ana e a Ivete sabem fazer, e, se você que está lendo não conhece, passe por lá e experimente a delícia que é! Algumas garrafinhas de água, mochila pronta, e vamos “simbora”! Novamente estávamos a bordo do carro do meu pai, com aquele mesmo destino: até onde o carro pudesse ir! Fomos no sentido do Baú Central para o Alto Baú, chegando ao parque aquático Recanto Natural Duas Quedas, de propriedade de José Gonçalves, que foi também muito destruído. Observamos que dali para frente não passava mais carro, teríamos que ir a pé, como já estávamos quase que acostumadas...! Eram 11 horas da manhã, e iríamos até onde desse, até onde nossas pernas aguentassem. E eu continuava com aquelas botas, cujo pé esquerdo virava para dentro. Andando, andando, víamos aquela beleza, aquele paraíso todo destruído, que tristeza, meu Deus! E fomos em frente, passamos por lugares nos quais eu costumava fazer fotos, surpreendendo-me com tudo! Estradas? Poucas, tudo se transformara, estava tudo virado em rio e pedras gigantes, um cenário transformado. Avançávamos cada vez mais, tivemos sede e fome, paramos para tomar uma água quente e comer um pãozinho de queijo. Descansamos um pouco e seguimos, não tínhamos vontade de voltar, porque a curiosidade era tão grande quanto a coragem, podia de uma hora para outra virar o tempo e dar uma trovoada, porque o calor era demais, e se isso viesse a acontecer, para onde iríamos correr? Barreiras para todos os lados, verdadeiramente ficamos com medo e apertamos o passo. Estávamos já no meio do caminho quando decidimos não voltar pelo Baú Central, e optamos por sair no Belchior e de lá tentar encontrar uma carona. O carro pegaríamos quando conseguíssemos chegar em Ilhota. O acesso foi tão difícil, que eu não quis mais voltar. Vimos dois cavalos lindos e bem assustados, acho que estavam perdidos e sem rumo. Seguimos nosso objetivo, ir até o fim. No caminho encontramos vários amigos de Ilhota, fazendo trilha de motos, Paulo, Ney, Maycon e Mano, não sei como conseguiram passar, pedimos para eles, se caso chovesse ou demorássemos a voltar, para que alguém viesse atrás de nós.

42


Continuamos, atravessamos o rio novamente de mãos dadas, não sabíamos onde estávamos pisando. Passamos em um local onde era o Poço das Cordas, lugar muito visitado nos dias de calor, era muito especial! Porém constatamos que não havia mais nada de belo, só lama, árvores arrancadas, o local se modificou por completo. Chegamos a uma morada e no pátio vimos uma rês morta, rodeada de urubus, que cena macabra! Ficamos com muita pena. Sede, muita sede, tínhamos que tomar aquela água na temperatura em que estava, não tinha nenhuma casa por ali, nenhuma alma viva. Filtro solar, repelente e sol quente. Depois de muito andar, chegamos num lugar e vimos algumas pessoas tentando resgatar um carro que havia ficado isolado, estavam tentando passar por um rio, foi muito difícil, mas com muito suor conseguiram, e ali nos ajudaram a passar o rio, nos guiando. Meu Deus! Chegamos à entrada da Tifa do Grahl, não acreditávamos que já tínhamos caminhado tanto, e minha bota cada vez mais torta, meu pé esquerdo cada vez mais para dentro. Estávamos exaustas, e falávamos uma para outra que não imaginávamos ter andado tanto. É que a gente vai vendo os lugares,vai se distraindo com tudo, se surpreendendo com tudo, o tempo vai passando sem que se sinta. Finalmente chegamos naquele alojamento em que havíamos ficado a primeira vez no Alto Baú e lá não encontramos ninguém conhecido. Fomos em direção ao Belchior e já eram 4 horas da tarde. Um pouco mais à frente sentamos a uma sombra e resolvemos comer aquele bolo saboroso de milho, só que estava em farelos, mesmo assim, como estávamos com fome, comemos repartindo com senso de irmandade os farelos. De repente aparece um carro da polícia ambiental, fizemos sinal, tentando pegar carona, porque já tínhamos andado 20 quilômetros e não aguentaríamos mais andar por muito tempo, graças a Deus a viatura parou, eram três policiais à procura de dois bombeiros, e como não os acharam, fomos no lugar deles, ainda bem! Não acreditávamos que estávamos ali, sentadas. O pessoal foi muito bacana, eram das cidades de Laguna e Joinville. No momento achamos que iríamos até a BR 470, e de lá tentaríamos um ônibus. Sorte que eles estavam indo até o Braço do Baú, estavam trabalhando naquela região por aqueles dias, e foram tão gentis que nos levaram até o parque onde estava o carro que não era meu! Do parque, ainda fomos até o Alto Braço do Baú, onde morreu toda a família do Zaíro Zabel, vítima de uma enorme barreira, que soterrou três casas de parentes e amigos. Onde havia a casa de Zaíro, encontramos um vaso de flores e uma homenagem de “feliz ano novo” em cima de um freezer, deixando-nos muito sensibilizadas. Fomos um pouco mais em frente, até a Igreja Santa Paulina, lá conhecemos o senhor Alfredo Tolardo, com seus cães, contounos que também perdera parentes e que sua casa fora arrastada pelas águas. Voltamos e fomos em direção ao Braço do Baú, no Morro Azul, onde morreram Giane e Augusta Richartz, mortes também estúpidas. Giane era uma moça que vivia rindo, simpática que só ela, passou sua última noite trancada sobre escombros ao lado do seu querido pai que não a largou por nenhum segundo, ficando a seu lado até seu último momento. Também no Morro Azul, Luca nos acompanhou, mostrando todo o local onde uma barreira soterrou duas casas, infelizmente lá morreu toda a família, o irmão Rodrigo, foram seis pessoas, Bárbara, esposa

43


e Leandro, filho e seus sogros e Antônio Roberto, Aparecida e seu cunhado José Roberto. Lamentável! Depois de termos visto tantas tristezas, tantas realidades que por todos instantes queríamos que fosse uma grande mentira, fomos para nossas casas refletirmos sobre tudo o que vimos e passamos. Novamente chegamos cansadas de um jeito que queríamos realmente descanso. Depois fomos muitas vezes para o Baú, tantas vezes mais com Adriana como também com a BV Rejane, muito especial, foi uma guerreira junto com mais treze pessoas, sendo ela a única mulher a atravessar o rio de bote, depois de barco até chegarem ao Braço do Baú, com um só objetivo, ajudar as vítimas da enchente. Algumas vezes que fomos ao Alto Baú, passamos por um caminho bem mais curto, ia do Belchior passando por trás da barreira que derrubou a casa do senhor Daniel Manoel da Silva. Um atalho que o próprio Cefas conseguira ajeitar, fazendo pontes com troncos de árvores por cima dos córregos, escadas nos morros, minimizando os riscos de todos que por ali passassem. Mesmo assim ele enchia o local com alertas, instruindo sobre os perigos que por ali existiam. Por aquele caminho sempre encontrávamos os cães, o Esquecido o Meia-Noite, e outros que foram batizados por Cefas,e nos seguiam por quilômetros. Falando no Cefas, ele sempre ali, acho que foi o único voluntário a ficar no Alto Baú. Chegou em 7 de dezembro e ficou por lá até fevereiro, e naquela luta, dando muita atenção para os animais, em especial os cães, tratando-os e medicandoos, evitando assim que morressem abandonados, fragilizados ou ainda que alguém pudesse sacrificá-los... E infelizmente

44


isso aconteceu! Outro dia passando por esse acesso, encontramos o senhor Daniel retirando todos os carros e caminhões dos escombros. Em outra oportunidade, quem encontramos foi o senhor Edson Hostim, e mais algumas pessoas pegando uns peixes em uma vala. Havia estourado uma lagoa e os peixes vinham aos cardumes por água abaixo. Demos uma paradinha no alojamento onde ficamos no primeiro dia que fui ao Alto Baú Ali ficou sendo a base onde todos que por ali passavam, ou ficavam alojados ou apenas para fazer aquela refeição que dona Neusa preparava todos os dias. E nesse dia paramos para um breve descanso, água e um bom almoço! Depois eu e Adriana seguimos até onde era a casa de Carlos e Kátia Hostim, que foi completamente destruída. Naquele dia a família foi para casa dos pais de Kátia, Daniel e Iolanda da Silva, e lá perderam seus dois filhos, Paulinho e Maria Tatiana. Em outro dia eu, Rejane, Adriana, e o Choquito (cãozinho da Rejane que a seguia por onde ela fosse), paramos um pouco onde o comandante Vinotti e sua equipe estavam, em busca do corpo de Larissa. Paramos e ficamos por um bom tempo, de repente aparece aquela menininha a Maria Eduarda, sabia que ela morava por ali, porque uns dias antes chegamos na casa de Maria Eduarda e falei bem alto: “Tem café?” Seu Vicente, o pai dela, fez um ótimo cafezinho, e nesse dia levei um presentinho

45


para ela, que ficou muito feliz! Fomos depois até onde era a empresa Martendal. Ali faziam conservas de palmito, pela estrada para todos os lados havia plantações de palmitos, uma bela paisagem. Seguimos subindo o morro, na descida avistamos a grande destruição, toda a empresa no chão, a sorte que as casas da família não foram atingidas, somente mais abaixo que havia a casa de Juliano, Marinéia e Larissa, ela filha de Braz e Luzia Martendal. Essa sim foi totalmente soterrada, matando Marinéia e a pequena Larissa. Marinéia era a única filha mulher do casal, com apenas 23 anos e Larissa em menos de um mês completaria 1 aninho. Já em fevereiro eu e Adriana fomos para o Alto Baú de carro, que felicidade! Com o meu carro, porque as estradas já estavam em boas condições, mesmo assim às vezes batia embaixo em algumas pedras. Paramos no alojamento e depois, juntamente com Cefas fomos ao Posto de Saúde Ali estava a polícia ambiental, controlando entradas e saídas de todos que por ali passavam. Houve muitos saques nas casas e só dessa maneira os moradores que tinham suas casas fechadas por ali, sentiamse mais seguros e tranquilos. Ali Cefas me apresentou o restaurante “Buffet dos cães”, colocava ração sob uma tábua e os cachorros vinham em fila. Seguimos nosso caminho até quase a casa de Nelson e Irene Rosa, lá infelizmente fiquei com medo de passar adiante, havia muita lama na estrada e fomos até mais adiante a pé. A missão do Cefas era ir recolhendo todos seus amigos cães que estavam órfãos dos donos, porque no outro dia vinham ONGs de Blumenau e Balneário Camboriú, resgatá-los e medicá-los, e depois, com saúde perfeita seriam doados. A todos os cães que ficariam no Baú, e que tinham donos, passava medicando-os se preciso. Assim feito Cefas ia resgatando um por um, colocando-os numa corda e ia em frente. Foi até a uma serraria próxima ao alojamento, deixando os cachorros lá. Dizia ele que era “Evacuação anti-extermínio.” Eu e Adriana então retornamos de carro. No outro dia vim com Rejane e acompanhamos o pessoal das ONGs. Fizeram ótimos trabalhos, pessoas super dedicadas, essas que dão a vida pelos bichos. Fomos com eles até o início da estrada que levava do Parque Botânico. Ali trataram e medicaram os cães que iriam ficar, e levaram um cão que estava muito magro, necessitando de melhores cuidados. Falando no Cefas, depois que ele saiu do Alto Baú, ficou um bom tempo em Ascurra, trabalhando no quartel, lá com nosso amigo Paulo Schroeder, depois conseguiu um emprego em Blumenau, e me telefonou dizendo que se tornou um cidadão catarinense, e é aqui que quer ficar!

46


Cada vez que retornava ao Baú, percebia que havia melhorias nas estradas, e obviamente de melhor acesso que as antigas. Sempre que passava, qualquer dia da semana, fins de semana ou feriados, lá estava o pessoal sem faltar um dia, somente se o tempo não colaborasse. Um trabalho árduo e com muitas dificuldades. Víamos sempre por lá o Valdi Agustinho da Silva, popular Canha, da secretaria de transportes, Antônio Schimitz, popular Tonho, viceprefeito, Paulo Drun, secretário da defesa civil e tantos outros, inclusive os próprios moradores que trabalharam dando início às obras com seus próprios tratores, motosserras, pás e enxadas. Fui também ao Baú Seco com Ana Maria Sperber, sua nora Darline e seu filho Lucas, até o local onde um grande deslizamento de terra matou seis pessoas, a família Bar, e Bachmann, o senhor Vitório, filha, genro e três netos, morreram todos tentando salvar um ao outro. Não sei exatamente quantas vezes fui ao Baú, mas acredito que foram mais de trinta dias, de Baú em Baú. Vi nosso Baú destruído, vi escombros, vi vidas destruídas, e vidas encerradas! Ouvi choros, ouvi desabafos, ouvi lamentos! Senti tristezas, senti dor, e senti ódio do por quê! Fiquei com muitas imagens terríveis em minha mente, acho que jamais sairão. E em todos esses meses de andanças, percebia que conforme o tempo ia passando, as estradas iam melhorando, os moradores voltando, que felicidade de poder ver uma janela se abrindo, um aceno de mão e um sorriso! Exatamente no dia 8 de janeiro de 2009 decidi escrever este livro, comecei escrevendo sentada na fila do banco, esperando a liberação do meu FGTS, peguei meu caderninho, concentrei-me e fui em frente. Depois então comecei a visitar as pessoas, pedindo seus depoimentos. Com essa nova experiência fiquei conhecendo minuciosamente todo o vale do Baú. Sempre ia para lá, mas não distinguia o Braço do Alto Braço, são tantos os Baús. Por toda parte que passava aprendia um pouco mais dos costumes e conhecimento das pessoas, e cada dia que passava via que em toda a região e em todos os abrigos conhecia pessoas maravilhosas, todos me davam atenção, me ouviam. Entre abraços e lágrimas percebi que aconteceu essa catástrofe toda, essa barbaridade para eu conhecer uma a uma as pessoas, cada uma delas com sua história, cada uma delas com seus desabafos, e cada vez mais eu ia me apegando a elas e sentindo seus valores e seus sofrimentos. Orgulho-me muito daqueles moradores que no mesmo dia em que tudo aconteceu, arriscaram suas próprias vidas salvando seus amigos, indo com toda a coragem, resgatando-os debaixo de escombros, lama, chuva e correndo o risco de também ficarem soterrados. Eu, Maristela Pereira acho que todas essas pessoas merecem uma medalha de honra ao mérito, pela bravura e coragem! E todo o resumo que tenho desse povo, que com toda sua simplicidade, e com tudo que passaram, podem ser considerados verdadeiros guerreiros! O material que se segue nas próximas páginas é o resultado de um árduo trabalho de coleta de informações nos mais diversos lugares e ocasiões, alojamentos, na rua, etc. Nesta parte será possível conhecer mais de perto o que realmente aconteceu no Baú, após 23 de novembro de 2008, as fotos que acompanham os depoimentos falam por si e podem tornar cada leitor uma testemunha ocular da história Ilhotense.

47


Quatorze heróis!

imaginavam o que iriam ver e ouvir por lá. E como iriam fazer? Atravessar o rio Itajaí-Açu com uma correnteza forte e colocar os bombeiros em situação de risco? Mesmo com todo o perigo que tinham que enfrentar, conseguiram 14 voluntários com muita coragem e disposição. Reuniram-se quatorze pessoas, oito bombeiros voluntários e seis civis. Com muita coragem, uma única mulher arrisca sua vida indo junto.

O

início: No dia 24 de novembro, segunda-feira, o quartel recebe uma ligação de Rene Hess de Souza (Ney), para alguns bombeiros irem com ele buscar alimentos que estava doando para os desabrigados das cheias. Pedro Paulo, Patrício, Leandro, Edinilson, Júlio e Ney pegaram o caminhão caçamba da prefeitura e foram até o Sítio Tio Duda, a uma distância de uns seis quilômetros do centro de Ilhota, sentido Itajaí. Chegando lá começaram a carregar os alimentos, havia muita carne, a doação foi muito bem-vinda ao município. Nesse meio tempo, Pedro Paulo recebe um telefonema, era da Marilete, esposa do Arno Freitas (Dado), de Ilhota, avisando que no Braço do Baú, um bairro rural que fica à margem esquerda do rio Itajaí-Açu, estavam precisando de ajuda e que o povo estava desesperado. Nesse instante cai a ligação e ele não consegue mais contato com ela, não ficou sabendo de mais nada. Ele então comenta com Ney, e ele gentilmente nos oferece um barco, caso precisassem. Retornaram para Ilhota para levar os alimentos e para saber a real situação do Braço do Baú. Conversaram com o prefeito, e ele também havia recebido uma ligação e já estava sabendo que lá acontecera uma tragédia muito grande, com deslizamentos de terra, vitimando várias pessoas. Depois de uma reunião com prefeito Ademar Feliski, Paulo Vilmar Batista (Expresso), Comandante Administrativo dos Bombeiros Voluntários e alguns bombeiros voluntários e civis, foi decidido enviar pessoas capacitadas, com o objetivo de ajudar aqueles moradores que passavam por momentos de extremo perigo, só que ninguém ali imaginava a proporção da catástrofe, não

Bombeiros Voluntários: Cidnei Conink - subcomandante dos Bombeiros Voluntários. Éderson José Luiz da Silva Fábio Geovane Costa Jean Carlos Benassi Jornas Rodrigo Maciel Josimar Cunha Pedro Paulo Batista Neto- Presidente dos Bombeiros Voluntários. Rejane Gabriela Cunha Civis: Edinilson José Carvalho Júlio Schloegel Leandro Minuzzi Patrício Zuccki Paulo Minuzzi Pedro Zulmar de Oliveira Abreu Então às 14.30h buscaram o barco que Ney havia cedido e com mais um do quartel saíram com destino ao Braço do Baú. Atravessaram dois deles um em cada barco e os outros no bote da balsa, a correnteza estava muito forte, a travessia muito extensa, o perigo era constante. Atravessando o rio, dividiram-se em sete pessoas em cada barco, e foram até o Baú Central.

Jornas Rodrigo Maciel, Cidnei Conink, Pedro Paulo Batista Neto, Pedro Zulmat de Oliveira Abreu, Edinilson José Carvalho, Fábio Geovane Costa, Rejane Gabriela Cunha e Patrício Zuccki.

48


Dia 20/01/2009 :: Depoimento de

Ademar Felisky Prefeito Municipal de Ilhota uando iniciaram as chuvas, principalmente no sábado e no domingo, pela janela de casa observei que algo de ruim iria acontecer. Sabíamos que pessoas precisavam do poder público para tentar ajudá-las nesta que seria sem dúvida a maior catástrofe, a maior calamidade já ocorrida no muni-

Braço do Baú,na igreja Nossa Senhora da Glória. Sobrevoamos aquela área com o comandante da aeronave, e não acreditávamos no que estávamos vendo, a grande quantidade de água nas partes baixas, a grande quantidade de entulhos, uma quantidade enorme de deslizamentos nos morros. Uma paisagem desolada e destroçada que só era visivel do alto. E quando eu cheguei na localidade do Braço do Baú,mais precisamente no galpão da igreja, encontrei perto de quatrocentas pessoas clamando por ajuda, corpos estendidos, pessoas com membros fraturados necessitando de medicamentos urgente, porque a carência era total. A equipe do PSF,algumas pessoas da saúde estavam, em sistema de mutirão, tentando atender aquelas pessoas. Mas foram cenas horríveis, vi o padre Alexandre desesperado, bem como o vice prefeito e vereadores daquela localidade,todos eles clamando por socorro. A sensação era de que ali passara um tsunami, que ocorrera uma guerra, imagens como aquelas só vistas até então pela televisão. Rapidamente percorri a pé algumas áreas e não acreditava no que via, um bairro forte como é a região do Braço do Baú,um bairro auto suficiente, de um dia para o outro se viu transformado num verdadeiro cenário de guerra. Isso me chocou bastante. Retornamos até o centro da cidade já que estava prestes a escurecer. Outras aeronaves também se deslocaram para lá e fizeram socorro de algumas pessoas. No dia seguinte, terça feira pela manhã retornamos, e me deparei com uma situação extremamente chocante quando o Padre Alexandre veio ao meu encontro e me perguntou porque eu não tinha levado caixões para enterrar os corpos. Tive de lhe explicar que, em algumas situações difíceis, cabe a autoridade tomar atitudes drásticas e que, dada a gravidade da calamidade, eu optara por priorizar o envio de medicamentos e alimentos para socorrer os vitimados. Enquanto tentava auxiliar as pessoas, percebi que nestas situações somos insignificantes, mesmo sendo o prefeito da cidade eu senti

cípio de Ilhota. Passou-se o sábado, domingo, na segunda feira ao percorrer o município, por volta de 10 horas da manhã, consegui receber uma ligação de alguém do Baú, porque nós estávamos completamente ilhados, isolados daquela região, tanto na questão de travessias, por conta das cheias do rio Itajaí-Açu, que não permitiam a travessia de balsa ou de bote, quanto em relação a rodovia SC, Jorge Lacerda, que no sentido de Itajaí estava interditada, devido a inundação, e também num entroncamento no bairro de Minas, na Rua Silvério Silveira Ramos. Então nós estávamos completamente isolados daquela região. E como os deslizamentos lá derrubaram os postes deixando todas aquelas comunidades sem energia, e conseqüentemente sem telefone também, e aquela área não possuí cobertura de telefone celular, nós ficamos isolados. Somente na segunda feira, recebi uma ligação da esposa do vice prefeito, Antônio Schmitz, que conseguiu subir um morro e captar um sinal de uma única torre e fazer a ligação, pedindo socorro, urgência e emergência, para que levassem helicópteros, medicamentos, mantimentos para o Baú, porque havia acontecido lá uma tragédia muito grande, vitimando diversas pessoas. Como eu estava visitando o bairro de Boa Vista, retornei a prefeitura e, a partir daquele momento, envidamos todos os nossos esforços no sentido de mobilizar helicópteros com todo o tipo de auxílio para tentar socorrer as vítimas que estavam machucadas. Somente as 18h00 daquele mesmo dia é que conseguimos um helicóptero, para irmos até a localidade do

Ademar Feliski,no campo municipal em Ilhota, durante a tragédia.

49


Ademar Feliski, no Alto Baú durante a tragédia.

uma sensação enorme de impotência diante da calamidade que se abateu, não só na localidade do Braço do Baú, mas em todo o complexo do Baú, composto de seis diferentes localidades. Naquele dia permaneci quase que o dia inteiro na região do Braço do Baú, indo com uma aeronave ao Alto Baú também. Lá encontramos a mesma situação, se não mais grave do que a que ocorrera no Braço do Baú, uma verdadeira avalanche de terra, vitimando 32 pessoas. Até hoje o que eu mais lamento é não ter conseguido resgatar o corpo da Larissa, uma menina de 11 meses, cujo corpo permanece até hoje sob os escombros. Não tive como dar um enterro digno a ela, nem ao pai dela. São estas e outras as mágoas que uma calamidade como esta deixa em nossos corações. Avistando aquela localidade do Braço do Baú e do Alto Baú, eu pude perceber o quanto a fúria da natureza se faz presente em um único dia. Hoje, no dia em que concedo esta entrevista, passaramse 117 dias da calamidade e a maior constatação é de que muito já foi feito, mas ainda assim quase cem dias de trabalho com mais de 25 máquinas não conseguiram recuperar 50% do que a natureza estragou num dia. Se eu pudesse resumir o que aconteceu lá em uma única frase, eu diria que a natureza quis tomar para ela de volta o que já lhe pertencera. As mudanças promovidas ali - o que era rio passou a ser estrada e o que era estrada passou a ser córrego, casas desmoronadas, corpos pelo chão, pessoas pedindo ajuda, animais mortos arrastados pela correnteza – mostram que a natureza em fúria simplesmente promoveu a devolução do que era dela! As cenas que eu presenciei vão ficar tatuadas em minha memória; se eu pudesse passar uma borracha na minha mente e apagar definitivamente o que vi faria,mas acho que jamais conseguirei, tamanha foi a desgraça, tamanha foi a proporção do desastre.

50


Dia 31/01/2009 :: Depoimento de

Ademar Valdris Morador do Alto Baú, atualmente morando em sua residência, na rua do Maroca.

N

o dia em que tudo começou eu estava em casa, daí começou a chover muito, daí eu disse para minha esposa: (Angelita Valdris) Olha! Esse morro aqui na frente da casa do Calinho, (Carlos Hostim) vai cair tudo! Minha esposa disse:- tu estás doido, homem! Então é o fim do mundo! Aí eu disse:- olha, ta bom, então é o fim do mundo! Daí ela disse, - é melhor tu botar um casaco e vamos sair de casa, porque a água está aumentando cada vez mais. Quando eu estava colocando o casaco, escutei um estalo, olhei para frente, vinha aquela madeira, tudo andando pra cima daquela casa, daí sim essa mulher ficou apavorada, ela disse!’ Meu Deus do céu Ademar! Vá lá acudir o Calinho, eleestá lá gritando que nem um louco!’Porque ele achava que o filho (Luis Antônio) tinha ficado embaixo daquela barreira lá! Em vez, o filho estava lá embaixo no pasto, já tinha corrido para lá. Daí ele pegou o filho, pegou o caminhão e saiu que nem um louco com a mulher (Kátia Hostim ) os filhos (Luis Antônio e Maria Tatiana). Foi lá pra casa do sogro dele (Daniel M. da Silva). Nisso só vi aquele clarão, daí eu disse para minha esposa, é o fim do mundo! Daí todo mundo achava que era o fim do mundo mesmo, né! Queestá como que nem daquela folha da Bíblia, aquele clarão assim! E nós fomos para casa do Gil (Gilberto Schmidt), eu, a mulher, minha filha ( Ângela) e meu neto (Alissom), fomos andando por dentro da água, daí ficamos lá no Gil. Quando chegamos no Gil, daí eles falaram que era a explosão do gás, aí até que me conformei mais, porque pensei que ia acabar o mundo mesmo, ta doido, um clarão daquele! Eles falam que foi o gás, porque explodiram mais morros, não é! Mas vai saber, eu não sei! Era muita chuva, pode ser que o gás ajudou também a descer um bocado de barranco, né! Já que estava tudo molhado, com aquele soco do gás, né. Depois, caiu a casa(do Sr.Daniel) lá, com eles. Lá ele(Carlos Hostim) perdeu dois filhos, esse homem. A menina (Maria Tatiana e o (Paulinho). Daí segunda-feira de manhã viemos para baixo para ver a situação da nossa casa. Chegando aqui essa casa (do Calinho) já não se via mais nada, caiu mais uma barreira em cima. Daí já vinha o Julinho (Juliano Scwambach) chorando, eu fui ao encontro dele, e ele disse que tinha perdido mulher, filha, casa, carro, tudo! Daí eu disse: agora é o fim do mundo! Eu não tinha palavras para dizer para esse homem, é muito triste, eu nem gosto de lembrar! Só nos abraçamos e fomos para frente, por água a fora, fomos para a casa do Gil. Daí lá, eu ajudei a carregar os feridos para o campo de futebol, eu e minha esposa ajudamos a carregar eles em cima das tábuas e depois para casa do Gil. O Gil foi o verdadeiro herói, aquela casa dele se transformou em hospital, ali nós tínhamos remédio, gente que trabalhava como enfermeira, tinha comida para todo mundo. O Gilberto,mesmo, olha! Botaram cuca, botaram doce, para nós comermos à vontade. Os colchões, tudo que eles tinham, roupa de cama, as melhores que eles tinham, botaram tudo à vontade, pro pessoal. Não tinha onde tu botares o pé, tinha que cuidar, se não botava o pé em cima do pessoal, de tanta gente que tinha! Era um desespero! Depois mesmo que caiu lá na casa do seu Daniel, formou uma barragem lá e encheu de água, isso podia vir para baixo de uma hora para outra, podia matar todos nós aqui na casa do Gil! Daí todo mundo começou a subir o morro de eucalipto, ali pra cima, levando aqueles feridos atrás, gritando que só. Mas era obrigado a levar, né! Não dava pra deixar embaixo, senão morria todo mundo ali, porque podia despencar tudo, mas graças a Deus não despencou! Deu tempo para os aviões virem e tirar gente com vida. Lá pelas onze horas, aí começou a vir os helicópteros e a gente embarcou nos helicópteros e fomo até Blumenau. Chegamos lá já era de noite, sete e meia, quase oito horas. Daí, dali ficamos dois meses e

quatro dias, lá fora, na casa da minha cunhada (Elizabeth), no bairro Badenfurt). Daí resolvemos vir aqui pro Baú, nós estamos aqui na nossa casa agora por enquanto. Só a filha continua lá ainda, porque ela não consegue trabalhar daqui, não tem estrada ainda. Quando a gente estava em Blumenau, a gente vinha aqui ver a casa, e agora a defesa civil liberou para nós morarmos aqui! Perguntei ao senhor Ademir e para a senhora Angelita, se eles não têm medo quando chove muito! A gente fica atento, se chover demais a gente vai embora, né! Porque agora a estrada já está um pouco melhor, daí a gente vai na defesa civil e eles levam a gente para fora, daí,ou vamos a pé mesmo, porque eu não posso bobear aqui! Choveu dois dias a fio, a gente tem que se mandar, porque aqui é área de risco! Perguntei sobre os vizinhos. Não tem ninguém aqui, tem pouca gente, só eu e mais um ali em cima. Faz quatro dias hoje que estamos aqui, sem luz, à noite acendemos velas, comprei uma vela de sete dias! E sobre a família do Sr.Daniel? Perguntei. Olha! O Calinho não sabia de nada, (sobre a morte dos dois filhos) só a mulher dele sabia, a Kátia. Ela não deixou dizer nada pro Calinho. Ninguém falava nada, nada. Todo mundo quieto. Dona Angelita falou: Era um desespero tão grande, eles estavam todos em estado de choque, parecia, sabe! Era uma loucura! Sr.Ademar continua: Ele estava muito mal, pensei que ele ia morrer aquela noite, ta doido! Ele trincou a espinha, o médico está admirado porque não ficou aleijado. Falei com o irmão dele hoje, ele disse que o médico falou que foi um milagre. Ele só soube no hospital sobre o falecimento dos filhos dele. E como estavam Sr Daniel e a senhora Iolanda? Eles já sabiam da desgraça! Eles estavam assim, como minha esposa diz, em estado de choque. Quem estava mais desesperada, que a gente notou assim, era a Débora, que ela perdeu o filho e não queria ir embora com o helicóptero sem tirar o filho (João Pedro) debaixo do barro, mas tirar como, essa criança dalí! Depois de alguns dias que foram achar ele ali. Essa estava desesperada, coitada! E quando Alexandre chegou? (Pai de João Pedro) Estava viajando quando tudo aconteceu. Eu estava lá no meio do mato, dos eucaliptos, com os outros todos, eu vi ele chegar no campo de futebol, eu não estava perto. Dona Angelita responde: A gente viu de longe, o pessoal começou a contar para ele. Ficou desesperado, chorando, e nós estávamos lá em cima do morro, com medo que a barragem descesse, porque o pessoal do helicóptero também não deixava chegar perto, só as pessoas que iam entrando. Sr Ademar: Nos helicópteros pequenos, primeiro os feridos, ia pouca gente porque tinha equipe médica junto. Os grandes vieram só depois que os bombeiros vieram e constataram que a barragem podia descer e matar nós todos ali. O bombeiro ficou com medo, subiu para o morro, ligou para o Rio de Janeiro, aí vieram os helicópteros grandes, vieram três, aí num instante o mato estava vazio. Perguntei o que eles esperavam agora, depois disso tudo acontecer. Sr.Ademar responde: Eu espero que todo mundo supere esse medo, né, e volte pará cá, para continuar isso daqui, que isso é o nosso lugar! A gente viveu aqui, nossa vida está aqui, espero que esse povo bote na cabeça que isso aconteceu uma vez e talvez daqui a cem anos vai acontecer de novo ou nunca mais aconteça. Eles devem de voltar, é isso que eu peço a eles! Para cuidar disso aqui! E se eu pudesse apagar isso tudo da memória, seria bom!

51


Dia 13/02/2009 :: Depoimento de

Ademir Bollmann e Sílvia Reichert Bollmann Moradores do Alto Baú,atualmente morando no Máximo, localidade já pertencente a Luís Alves.

S

ílvia: No dia 23, um domingo de manhã, chovia muito, queríamos subir o morro com medo que o rio represasse e com medo a rua estava toda alagada. De repente, por volta de 8 que o morro pudesse cair, nós subíamos e descíamos. Fizemos isso horas da manhã, olho pela janela da minha casa e vejo umas 4 vezes. Na casa do Gil tinha um bebê morto, a Joana, neta do uma barreira descer e falei para meu marido: - Vamos seu Daniel, foi muito triste,e ficou ali até vir o helicóptero. Da casa do correr! Vimos cair a cooperativa,(CCAB Cooperativa das seu Daniel veio uma moça pedindo ajuda, a Débora, o filhinho dela, Costureiras do Alto Baú) onde costuravam toalhas em frente a nossa o João Pedro ficou... só que ninguém tinha coragem de ir lá, ninguém casa, e também cair a parte de trás da casa de Flavinho. Ademir foi tinha experiência, mas alguns foram e conseguiram resgatar alguns lá correndo avisar que estava vindo a maior com vida ainda. Mais tarde escutamos barreira, que depois caiu e represou o rio, cair outra barreira, não estava muito que começou a passar onde era a estrada. escuro, porque o gás que havia explodido Saímos então todos correndo. ainda estava queimando.Foi tudo muito Se tivesse acontecido à noite, morreríamos complicado! Tínhamos celular, mas todos lá. já estava acabando a bateria. Até que Ademir: Flavinho, Joziane sua mulher e conseguiram pedir socorro, e na segundaa filha Natália de 4 anos, foram conosco feira depois do meio-dia os helicópteros para casa do meu irmão Mário Bollmann, começaram a chegar, nós saímos de lá por estavam junto meus filhos Eduardo volta de 4 horas da tarde. Fomos para Henrique(4), o Dudu, e Elaine(19), a Blumenau, ficamos lá até o outro dia. casa fica uns 100 metros mais para cima Depois fomos todos para Gaspar,de lá da nossa casa. Almoçamos ali, e a chuva tivemos que sair para dar lugar às pessoas era cada vez mais forte, não parava mais, de Blumenau, também desabrigadas. então resolvemos sair mais dalí, porque Sílvia: Quando estávamos dentro do Eduardo Henrique Bollmann, o Dudu ônibus para irmos até Ilhota, a minha ficamos com muito medo e assustados. À noite Flavinho dormiu dentro do carro com cunhada, a Rose, foi nos buscar para e seu cachorro Tofe, ao lado de sua a família num pasto. irmos para sua casa no Baú Baixo. casa, onde existia uma lagoa de peixe. Fomos indo para cima, tinha muita água Ademir: Ficamos lá durante duas na estrada, tivemos que atravessar um rio, semanas, depois fomos para casa dos nós quatro agarrados um no outro, com a meus sogros no Máximo, próximo a Luiz água pela cintura. Mas como tinha baixado Alves. um pouco, pensamos; ou tudo ou nada. Ademir: Fomos de caminhonete um pedaço, Não levamos nada conosco, só a roupa que e depois de trator, para ver o que estava estávamos usando. acontecendo por lá. Sílvia: E eu ainda vim com uma roupa que Sílvia: Só estavam em casa meu pai, nem era minha, era emprestada. Porque a Norberto e meu irmão Osnildo, que minha estava muito molhada. também tinha entrado água em sua casa, e ele veio ficar com o pai aqui, e minha Perguntei para Eduardo, o Dudu, onde mãe, Anilda Reichert estava internada, ficou o cachorro dele, porque no dia do doente, no Hospital em Luís Alves e eu não Dudu nos braços do Bombeiro resgate em Ilhota, ele me contou bem sabia. Ficamos muito preocupados, porque Voluntário Falcão, de Gaspar, no triste que havia deixado o cachorro lá pensávamos que ela estava com a família em no Baú. Fiquei muito triste quando ouvi casa,e achávamos que lá também poderia dia do resgate em Ilhota. ele falando, e nos disse que tinha quatro ter acontecido o mesmo que aconteceu no aninhos. Ele me respondeu. Alto Baú.Depois de tudo que aconteceu, O nome do meu cachorro é Tofe, eu queria minha mãe me disse que quando estava no trazer ele junto, mas não deu tempo, porque hospital ficou sabendo da tragédia e achou saímos correndo com medo, ele ficou lá que tínhamos morrido, ficou mal, a pressão sozinho e amarrado, nem deu tempo para subiu demais. Por outro lado foi bom que soltar. estava internada, porque se tivesse em casa Então Ademir fala para Dudu: e doente, iria sofrer bem mais. Quando a casa nova ficar pronta vamos Ademir: Chegamos no sábado, à noite comprar outro. chovia muito. Íamos ficar aqui, mas os Ademir: Fomos lá para cima no campo de bombeiros falaram que era para todos futebol, perto da serraria, ficamos na casa do irem para a igreja que era um lugar mais Gil (Gilberto Schimitt). Já era noite quando seguro. Naquela noite passamos na igreja, Dudu no dia do resgate em chegamos lá. Lá então tinha mais gente. no outro dia os bombeiros nos falaram Ilhota, falando para os bombeiros Ajudamos a fazer uma barraca no morro que não seria bom ficarmos ali, que quem voluntários, Falcão e Rejane que para nos proteger das chuvas. Da casa do quisesse sair daquele local, eles levariam. Gil, vimos a casa do seu Daniel cair, era mais Nós nos reunimos e decidimos ir embora tinha quatro anos. ou menos meia-noite, ficamos apavorados, de novo.

52


Sílvia: Meu pai e meu irmão não foram, ficaram por lá. Ademir: E nós fomos para Ilhota no campo de futebol, de lá fomos para casa da Rose no Baú Baixo novamente. Ficamos lá mais duas semanas. Perguntei sobre a morada do Alto Baú. Sílvia: Não vamos mais voltar, antes de tudo acontecer tínhamos vendido nossa casa, mas não havíamos entregue ainda, recebemos a metade do dinheiro e já estávamos construindo próximo da casa dos meus pais, um terreno que ganhei de herança, já pretendíamos morar aqui, e o dinheiro da casa vamos devolver para os que seriam os futuros donos, é... de uma casa que não existe mais. Tinha uma lagoa de peixes ao lado, destruiu tudo, não sobrou nada, nem o carro, ficou na garagem e ficou todo retorcido. Ademir: Íamos sair no final do ano e os novos moradores iriam entrar. A gente caprichava muito na casa. Agora lá só sobrou o terreno,vou tentar limpar e deixar lá... Talvez um dia consiga vender,ou fazer outra casa...Vamos ver!

Morada da família Bollmann, antes da tragédia, no Alto Baú.

O Eduardo me falou que não quer mais voltar para o Alto Baú porque está tudo rachado. Falou-me também que gostou muito de andar de helicóptero e que gostaria de andar novamente, e que onde morava tinha bastante amiguinhos, e que agora conheceu mais dois, o João e o Vítor. E também me contou que já havia completado 5 anos quando estava na casa da tia Rose, foi no dia 9 de dezembro e fizeram um bolo. Perguntei para o casal quanto tempo depois eles foram ver a morada no Alto Baú. Ademir: Depois de três semanas da tragédia, eu e meus dois cunhados, Osnildo e Osni, fomos pelo mato, porque não tinha acesso ainda. Quando nós saímos naquele dia, e naquela correria lá do Alto Baú, a casa ainda estava lá, normal, não imaginaria que um dia iria ver tudo aquilo que construí daquele jeito, aquela imagem não me sai da cabeça, nunca mais vou esquecer! não acreditava no que via, a casa estava no chão, só havia escombros, então sentei na estrada e comecei a chorar.

Morada da família Bollmann, depois da tragédia ,no Alto Baú.

Futura morada da família Bollmann, no Máximo em Luiz Alves.

53


Dia 24/02/2009 ::Depoimento de

Adriana Day moradora do Alto Baú. Presidente da CCAB - Cooperativa das Costureiras do Alto Baú.

CCAB, Cooperativa das Costureiras do Alto Baú, antes da tragédia.

CCAB, Cooperativa das Costureiras do Alto Baú, depois da tragédia.

A

dalto dos Santos (falecido), é que deu início à cooperativa há dez anos. Deu emprego para muitas moradoras da região do Alto Baú. Costurávamos toalhas para uma empresa de Blumenau. Tinha um caminhão que fazia frete, buscava e levava o serviço. Na época que aconteceu a tragédia, que atingiu todo o Baú, a cooperativa estava com 32 costureiras, tinha dois turnos, 28 mulheres e quatro homens que eram embaladores. Depois disso tudo os funcionários foram para abrigos e casas de parentes em Blumenau, Gaspar e Ilhota. Porque além de suas casas serem atingidas, a cooperativa também foi, por um grande deslizamento de terra, não sobrando nada. As maioria das pessoas ficaram sem suas casas e sem trabalho. Charles Tches, Jeferson Fauro e Angelina, foram até lá, levantaram a cobertura da cooperativa e conseguiram resgatar as oito máquinas, todas foram

Adriana Day, costurando na cooperativa provisória em Ilhota. Alguns funcionários da cooperativa provisória em Ilhota. 54

para o conserto, duas delas talvez não tenham mais conserto. Duas máquinas foram doadas por um representante da empresa Smit Rebras, de Itajaí, para podermos dar continuidade ao nosso trabalho que era o que mais queríamos. Ficamos muito felizes. Reunimos todas as costureiras que estavam nos abrigos aqui em Ilhota, o Paulo Vilmar Batista, o Expresso que conseguiu alugar uma sala no bairro de Ilhotinha, assim voltamos ao trabalho em 12 pessoas, todas que já eram empregados no Alto Baú. São elas: Adriana Day, Alexandra Sperber, Amarildo…………..,, Ângela Loss, Angelina Day Tches,Charles Tches, Daiane Day, Darline Sperber, Inguilore Fauro, Jeferson Fauro, Simone Fauro e Valdineia Riincos. A maioria já saiu dos abrigos, e alguns estão morando em Ilhota e Blumenau em casas de parentes ou em casas alugadas. A prefeitura arrumou um carro para ir buscar-nos de manhã cedo e depois nos leva. Aqui é provisório, queremos voltar para o Alto Baú, já doaram um terreno, e também um galpão pré-moldado, assim que construído voltaremos todos para lá, e com certeza todas as outras costureiras também voltarão, porque muitas delas já voltaram a morar no Alto Baú, em casas liberadas pela defesa civil, em áreas fora de risco. À minha casa não poderei voltar porque não sobrou nada, a da minha irmã Andréia também, morávamos uma próxima da outra, mas graças a Deus,estamos todos vivos. Na minha casa morávamos,eu, meu marido Amarildo, minhas filhas Daiane(17), Luíza Vitória (3), Adair José (10) e meu pai, José Day. E na casa da minha irmã, Andréia, que também caiu, moravam ela, o marido Vildomar, e 3 filhos, José Francisco(15), Gabriele(9) e Gabriel(4). Sábado, dia 22 de novembro, começou a cair a casa da Ana, tiramos ela com a família a uma hora da manhã, caiu só a parte da garagem. No domingo de manhã voltamos à casa dela lá para tentarmos tirar o barro, porque estava entrando na cozinha. Quando estávamos começando a tirar o barro, meu marido, Amarildo, disse:’corram que está vindo tudo!’ Só deu tempo para ela se jogar e saiu de rolo, e nós saímos correndo, e vimos a casa dela toda cair, ficamos muitos assustados e fomos para a nossa que era bem ao lado. Meu pai confortava Andreia, dizendo que ainda tinha a casa de Adriana para ficarmos. Demos banho nas crianças que estavam todas sujas de lama, arrumei roupas nossas para eles porque na casa deles não


tinha mais como pegar nada. Dali a pouco começou um barulhão, e nós dentro de casa, ficamos desesperados e chorávamos muito. Meu pai foi na varanda da frente da casa e falou: Meu Deus! Que barulho esquisito é esse? Parece que está vindo um caminhão, sei lá que coisa é isso? Quando ele disse isso em alguns segundos o morro desabou e a cooperativa sumiu, não se via mais nada, nós ficamos desesperados, todos paralisados pensando que íamos morrer, de repente também caiu um pedaço da casa do vizinho Flávio e Joziane, não demorou muito ela com a filhinha no colo veio correndo. A chuva não parava, ficamos com muito medo, todo mundo começou a sair das suas casas. Nós tínhamos uma caixa d’água, ficamos com medo que ela fosse cair em cima da casa da minha outra irmã,a Ângela. Resolvemos sair todos dali, chuva, chuva, nós sem sombrinhas, pegamos todas as crianças e fomos para casa do seu Mário Bollmann, pai da Joziane. Ficamos uma meia hora lá, porque ficamos com medo, e subimos para a casa da dona Judite. Por volta do meio-dia, as crianças começaram a chorar com fome então meu pai disse:Vamos para casa de volta, seja o que Deus quiser! Voltamos para casa e ficamos até umas 3 horas. Quando começou a chuva de novo, meu pai então nos falou: Vamos sair! Vamos! Vamos lá para cima que lá é mais seguro, porque aqui está meio perigoso! Arrumamos uma sacada de roupa e fomos, queríamos chegar lá no campo, na frente da casa da Alzira Schimitt. Lá chegando, não pudemos passar porque o rio encheu muito e a estrada já estava coberta,voltamos e ficamos no rancho das vacas da dona Judite, lá já havia mais pessoas, ficávamos correndo, para cima e para baixo, para ver se conseguíamos atravessar o rio. Minha filha,a caçula, começou a ficar ruim, ela me dizia;- mãe,eu to com fio,eu to ruim! Ela tremia muito, e eu comecei a ficar desesperada, meu pai me vendo naquele estado me falou: - Deixa, eu vou lá na casa buscar o carro, colocamos aí no meio do pasto e vamos ficar ali, vamos passar a noite aqui porque é mais seguro!

Então passamos a noite toda de domingo, dia 23, dentro do carro, eu, meus três filhos, meu marido, meu pai, minha irmã e a filha dela. Havia muitos carros, estavam todos meus vizinhos. Mas corremos umas dez vezes naquele pasto, saíamos do carro e voltávamos, quando dava uma estiadinha na chuva, nós pegávamos as crianças e corríamos para ver se o rio abaixava. Eram umas 8 horas o pai disse:- Chega, agora não adianta mais! Daí sentamos dentro do carro e ficamos. Eram quase 9 horas, eu abri a janela do carro e deu um clarão que parecia dia, a noite parecia dia, deu um desespero que ninguém sabia o que iríamos fazer! Achamos que estava acabando o mundo, meu menino começou a passar mal e dizia: - Mãe, o que é isso, eu estou ficando ruim! Então eu fechei o vidro do carro que era bem escuro, pedi para meus filhos fecharem os olhos e falei:- seja o que Deus quiser! Aquela noite foi um tormento, ninguém dormiu um minuto, era muito barulho. Amanheceu o dia, acho que nem eram seis horas, meu marido correu para buscar comida e roupa seca para as crianças, porque não tínhamos mais nada. Já havia estiado um pouco.Quando ele chegou na frente de casa... não havia mais nada.... estava tudo no chão. Ele disse que não sabia o que fazia, e que não tinha mais chão embaixo dele. Voltou correndo, contou para o pai, aí o pai veio no carro para dizer para nós, que era para nós sairmos dali correndo porque não tínhamos mais nada, mas pelo menos estávamos vivos, não faz mal, nós vamos conseguir tudo de novo. Saímos todos correndo. Mas na hora assim, sabe... Para mim, minha casa estava lá, eu só queria escapar, na hora meu pai disse para nós correr, mas não me passou pela cabeça que a minha casa havia caído naquela noite, na hora não entendi nada, não era minha casa, nem imaginei. Passamos o rio e fomos até o campo, ali era cada vez mais notícias ruins, só gente morta. Lá ficamos esperando por socorro, na hora que os helicópteros chegaram,começou a dar estouros e então eles pediam

Lucas Gonçalves

Vista parcial onde as barreiras destruíram a Cooperativa, moradas da família Day, família Souza, família Bollmann e família Azevedo.

55


O pouco que sobrou da casa da família de Adriana Day. para subir morro acima com as crianças. Os helicópteros iam chegando e levando as pessoas, os doentes e machucados, idosos, mães com crianças, como a minha vez estava demorando, e minha irmã e meu pai já estavam indo, dei minha filha de três anos para ela levar, eu queria que meus filhos se salvassem, foi um desespero, depois mandei meu menino de dez anos e fiquei por último com meu marido e a minha filha mais velha. Fomos para o abrigo da matriz em Blumenau, lá encontrei toda minha família, ficamos uns 4 dias, depois de lá fomos para Gaspar, no abrigo da igreja Santa Terezinha, ficamos mais duas semanas, e depois para Ilhota no abrigo do colégio Marcos Konder, ali ficamos um mês e pouco até dia 28 de dezembro. Passamos o natal lá, fizeram uma ceia, eu gostei muito porque estava toda nossa comunidade, amigos, parentes.Uma senhora de Gaspar fez uma árvore de natal toda decorada, fez a ceia, estava bem bonito, as crianças ganharam bastante presentes. Para gente vai ser um ano terrível e inesquecível de tantas desgraças, para as crianças um ano de lembranças boas, porque nunca ganharam tantos presentes, a gente jamais teria condições de dar tantos presentes. Comentei para Adriana que no dia em que estive no Alto Baú, e que fui onde era sua casa, encontrei um caderninho com uma poesia para a mamãe, eu na hora que li, fiquei muito comovida, achava até então que poderia ser de alguma criança da casa, então perguntei a ela de quem era. Ela então chorando me respondeu: Era da minha falecida mãe (Ruth Bremmer Day) ela que escreveu. Eu e ela éramos professoras de catequese, então no dia das mães ela passava para os alunos para fazerem homenagens na igreja. Minha mãe faleceu faz 4 anos. Eles moravam em sua própria casa, mas quando minha mãe faleceu, meu pai foi morar comigo. Tinha muitas lembranças dela lá, muitas coisas eu tirei e muitas

estavam sujas ou molhadas. Perguntei se queria voltar para o Alto Baú. Não, por enquanto não, lá onde tinha minha casa, estão aterrando. Mas por enquanto não, vamos esperar um ano, quando estiver tudo arrumado, seguro, só assim voltaremos, então compraremos um terreno, no Alto Baú não, tenho muito medo, vamos construir em outro lugarzinho ali por perto, para que quando a cooperativa estiver pronta, não ficar muito longe para eu trabalhar. Vamos ver como vai ficar tudo, depois começamos de novo! Por enquanto estamos morando no Bairro Fortaleza em Blumenau, dividindo o aluguel com três irmãs com suas famílias.

Caderno que encontrei de dona Ruth, mãe de Adriana. 56


Meu relato após o depoimento de Adriana Day. Depois de algumas semanas do depoimento de Adriana Day, exatamente no dia 15 de março, fui até a casa do Amarildo Sperber, aqui em Ilhota, para buscar Ana Maria, sua esposa, filho Lucas e a nora Darline, para irmos para a região do Baú. Quando entrei na casa, percebi que todos estavam tristes, então Ana Maria me contou que Angelina Day Tches, uma das costureiras da cooperativa e irmã de Adriana e Andréia, falecera em um acidente de moto em Blumenau na sexta-feira, dia 13 de março. Seu marido, Charles Tches, motorista da cooperativa,

vinha pilotando a moto, e no acidente sofreu alguns ferimentos, e ela infelizmente morreu no local. Angelina deixou uma linda filha, Letícia Tech. Eu que vi esta moça sorrindo no trabalho, não posso acreditar! E em pensar que esta família passara por toda aquela tragédia perdendo suas casas, e agora... uma irmã tão querida! É muito sofrimento em um espaço de tempo tão curto, agora que estavam de volta ao trabalho, felizes, começando aos poucos, reconstruindo suas vidas... Lamentável!

Meu relato no dia em que estive no que restou da casa de Adriana Day, no Alto Baú. Num certo dia do mês de dezembro, ainda antes do natal, eu e Adriana Conink fomos mais uma vez para o Alto Baú. Chegamos em um local onde havia muitos escombros de casas, não sabíamos quantas. Havia uma casa que restou ainda de pé, um pedacinho da cozinha, era uma casa de cor vermelha. Na época nem tínhamos idéia de quem seriam os proprietários. Só sei que quando entrei, naquele único lugar que sobrara da casa, não sei o porquê, mas chorei, e muito, pensei na família que com certeza teve que fugir às pressas, com medo de morrerem soterrados, deixando ainda alguns móveis erguidos, sem poder salvá-los. Pensei: ‘Meu Deus! O porquê disso tudo? E essa família onde está? De repente Adriana vem me dizendo que atrás da casa havia uma lagoa e que os peixinhos estavam morrendo, aquilo me cortou o coração, não conseguia nem olhar aqueles peixinhos pedindo socorro, saltando para fora da lagoa, não consegui me controlar, e caí no choro novamente. Naquele local então resgatei algumas fotos e documentos. Depois de alguns dias fui até o abrigo do colégio Marcos Konder tentar descobrir o dono daqueles pertences que havia recolhido, e descobri que a proprietária era a Adriana Day, a encarregada da Cooperativa Das Costureiras do Alto Baú.

Dia que estive na casa da família Day.

Cozinha da casa, a única parte que ficou de pé. Lagoa de peixes nos fundos da casa da família Day. 57


Dia 20/03/2009 :: Depoimento de

Alex Sutil e Pedro Warnava Bombeiros Voluntários de Concórdia

Corporação de Bombeiros Voluntários do município de Concórdia SC.

O

uvindo e assistindo os acontecidos no nosso litoral Catarinense, nós, bombeiros voluntários da região oeste e centro-oeste nos colocamos à disposição, durante o dia 23/11/08. O comando entrou em contato com o comando dos bombeiros de Ilhota, ofertando nossa ajuda. À noite recebemos um telefonema no qual aceitavam nossa ajuda. Assim o comando de Concórdia reuniu outras corporações, Arabutã, Ipumirim, Lindóia do Sul, Seara e Caçador. No dia 24/11/08 partimos de Concórdia com destino a Ilhota com uma viatura e um ônibus com aproximadamente 30 a 35 homens das duas regiões. Durante o percurso vínhamos discutindo sobre o acontecido, com o que nós íamos enfrentar ou nos deparar. Saímos da nossa região com muito calor, um clima de seca e chegamos com um clima totalmente diferente. No dia seguinte então, já com as equipes todas formadas, partimos para o nosso destino, o Morro do Baú. Nunca imaginei que a natureza poderia fazer um estrago grande como este. No decorrer do dia de nossa jornada fomos de casa em casa em busca de sobreviventes, mas as cenas eram chocantes: carros, casas e animais, todos abandonados, isolados. O que nos restava a fazer era soltar os animais presos para que pudessem achar alguma coisa para comer. A manhã estava quente, abafada e chuvosa quando o helicóptero nos apanhou em Ilhota. Era um voo de aproximadamente 30 minutos até o morro do Alto do Baú. Vi de perto as enchentes dos anos 80 e lembro-me dos vendavais pelo estado, mas o que veríamos nos

58


próximos dias superaria tudo que vi nestes meus 46 anos de vida. Do alto víamos o que as chuvas desses últimos meses haviam provocado: alagamentos, animais mortos e ilhados, casas submersas, semi ou completamente destruídas, muitos deslizamentos pelas encostas e um rio de destruição ao longo do pequeno córrego que anteriormente descia pelo Morro do Baú. Foi, sem dúvida uma série de avalanches compostas por água, pedras, árvores inteiras, pedaços de casas, carros, caminhões, plantações e toda sorte de entulhos. Quando o helicóptero nos deixou no campo de pouso improvisado no Alto do Baú, saltamos e ao tocar o solo, as botas afundaram e a lama subiu até os joelhos, mas o que veríamos nos próximos dias seria pior, pois em muitos lugares nem dava para pisar, caso contrário seríamos engolidos pela lama, de tão mole e profunda que estava. Inicialmente saímos em busca de sobreviventes, mas o que encontramos foram os indícios do pavor que aquelas pessoas, adultas e crianças, passaram durante a tragédia. Na ânsia de buscar abrigos mais seguros, alguns buscaram abrigo na mata, pois suas casas estavam se desfazendo e sumindo em meio às avalanches. Mas dentro da mata também estava tudo destruído, as árvores caíram a esmo de tão encharcada que a terra estava. Havia barracas em meio à lama, comida, roupas, remédios, ferramentas, alguns brinquedos, tudo esparramado pelo chão. Também muitos

animais domésticos que escaparam e conseguiram sobreviver, porcos, galinhas, patos e muitos, mas muitos cães vagavam sem rumo em meio às equipes de resgate. Começamos a vasculhar casa por casa, das que ainda estavam em pé, na busca de sobreviventes, mas só encontrávamos animais mortos, ou presos, os quais íamos libertando à própria sorte, para que pelo menos tivessem uma chance de sobreviver. Uma vaca quando nos viu, veio em nossa direção, berrando para ser ordenhada, pois há vários dias ninguém tirava o leite. Um cascudo grande, de mais ou menos 1 kg, estava há uns dois metros do chão sobre os galhos de uma árvore, jogado lá pela água das avalanches. Encontrava-se de tudo em todos os lugares: postes caídos, fios de energia e telefone, motos, carros, caminhões, motosserras, restos de comida perdidos na fuga. Em algumas casas a mesa ainda estava posta para a refeição, e um cheiro terrível saía dos freezers e geladeiras onde a comida apodrecia. Fizemos isso durante dois dias. No terceiro começamos a procurar os corpos dos desaparecidos. Encontramos o corpo de uma criança que ainda segurava seu bico na boca. Outras equipes também encontraram alguns corpos, mas acredito que alguns nunca serão encontrados. Acredito que fiz a minha parte para ajudar aquelas pessoas, mas procuro não pensar naqueles dias, pois as imagens são muito fortes e chegam a me deprimir. Sempre peço aos bons espíritos que ajudem os que se foram e os sobreviventes e que Deus os ilumine e dê força para que possam superar isso e se recuperar para levar à frente suas vidas, e que tirem disso algum aprendizado, e nós também, pois na vida nada acontece por acaso.

Corporação de Bombeiros Voluntários do município de Concórdia SC, junto também o civil morador do Alto Baú, Amarildo Sperber, popular Malique.

59


Dia 15/02/2009 :: Depoimento de

Altamir Santos (Miro), Reporter e Apresentador. Morador do município de Ilhota.

Altamir Santos (Miro)

O

momento mais marcante de toda essa tragédia que assolou e sensibilizou o Brasil, foi quando visitei um senhor que estava abrigado no Colégio Marcos Konder. Sendo morador do Alto do Baú ele perdeu tudo (bens materiais) com os estragos feitos pelas águas. O nome dele, não recordo bem, mas creio eu que se chamava José. Vendo sua tristeza estampada no rosto, fui conversar com aquele homem já de meia idade. Depois dele expor sua tristeza de alma falei a ele que não tinha nem ouro e nem prata para ajudá-lo, mas tinha um abraço amigo e no momento foi como ali estivesse Deus consolando aquele homem. O choro foi evidente e as lágrimas corriam em nossos rostos. Nunca vou esquecer desta cena da qual fiz parte. Chorei com os que choraram. Foi marcante.

Miro e o repórter Cabrini no campo municipal de Ilhota 60


Dia 26/02/2009 :: Depoimento de

Alvorina Schell Tolardo, Moradora do Alto Braço do Baú.

N

aquele fim de semana eu e meu marido, Alfredo Tolardo, saímos de casa porque estava chovendo muito e tínhamos medo que acontecesse o pior na nossa casa, queríamos ficar em lugar seguro, fomos para casa do meu sobrinho Rafael. Lá ficamos com muito medo porque nós não tínhamos notícias dos nossos filhos, o Adriano, que morava no Alto Baú e Adilson que morava no Baú Seco. Pensamos muito nas esposas e nos netos, ficamos muito preocupados. Na segunda-feira de manhã soube que a nossa casa não caiu, mas foi arrastada pela força da água, ela não está mais no local onde foi construída. Quando Alfredo foi à casa para limpar, a casa já estava daquela maneira. Dos móveis pouca coisa deu para recuperar. Só na quinta-feira é que tivemos notícias dos filhos, graças a Deus estavam todos bem. Foi muito pesado para mim. Perguntei para dona Alvorina sobre a sua irmã Laudelina Zabel que também foi mais uma vítima fatal da tragédia. Aconteceu o deslizamento de terra que matou minha irmã, a esposa do meu sobrinho, a Tione Zabel, e os dois filhos, Marques e Marcelo, e a filha da minha sobrinha Giovana, a Larissa, às 9.30 da noite de domingo, dia 23 de novembro, e ficamos sabendo somente na segundafeira às 10 horas da manhã. Giovana foi hospitalizada em seguida, mas perdeu o bebê que esperava de sete meses, e o braço. Ficamos muito tristes. Só na quarta-feira é que encontraram o corpo de Laudelina, estava lá no Baú Central. Não pude ir ao enterro de minha irmã, não tive como, não tínhamos acesso para lugar algum. Fomos retirados de helicóptero na terça-feira à tarde, e levados até o Braço do Baú. Depois dali fomos transportados com ônibus até o Baú Central. Alguns dias depois meu marido voltou para nossa casa para olhar os animais. Lá havia porcos e galinhas. Foi um trecho de moto com um amigo por Luís Alves, depois um trecho a pé, chegou à casa tratou os animais e quando estava voltando, passando próximo à Igreja Santa Paulina, os bombeiros responsáveis pelos resgates o viram e o levaram

Dia em que Sr. Alfredo Tolardo foi resgatado e levado para Ilhota.

Marco Gamborgi.

para o campo no centro de Ilhota, e depois então para o Baú Central, onde eu estava. Depois ele conseguiu ligar para o nosso filho Adilson que estava hospedado na casa de um conhecido, Sr.Brás Coradini, então o cunhado do meu filho foi buscá-lo e levou para junto de sua família. Ficamos 10 dias, e depois voltamos para casa do meu irmão, o Jozelino Schell, no Braço do Baú, lá ficamos três semanas, depois voltamos para a escola do Alto Braço, ao lado da Igreja Santa Paulina, onde ainda estamos morando. Até quando eu não sei. A nossa casa, do que ficou de pé nós desmanchamos, porque alguma coisa dá para aproveitar, mas pouca coisa. Lá no mesmo lugar não tem como construir mais, fez muitos buracos, não dá mais, bem que eu queria, porque lá era um lugar muito sossegado. Estamos tentando comprar um terreninho por perto da igreja,vamos ver o que vamos fazer daqui para frente!

Casa da família Tolardo, após a tragédia. 61


Dia: 02/02/2009 :: Depoimento de

Amarildo Molinari Comandante do Corpo de Bombeiros Voluntários do município de Campo Belo do Sul, SC.

N

O 1º Deslizamento atingiu os adolescentes de 13 e 16 anos, e enquanto a mãe e a irmã de ambos tentavam desesperadamente cavar e retirálos, ambas foram arrastadas pelo 2º deslizamento, então o pai e sogro tentaram resgatar as duas mulheres e o pior aconteceu, um terceiro deslizamento soterrou o pai até a cintura e matou o sogro. O pai sobreviveu e foi resgatado pelos familiares no outro dia devido ser muito escuro e o risco de novos deslizamentos, segundo familiares. Na família houve cinco perdas. Levamos 2 dias e com a utilização de um córrego que se formou atrás da casa, após um desvio por sobre o possível local onde estariam os adolescentes a água ajudava nas escavações e após 10 horas de trabalhos resgatamos os adolescentes. No dia 27 de Novembro de 2008 devido à situação fugir da nossa resposta, as equipes foram para o Morro do Baú onde no final do dia haveria uma Reunião para Instalar o SCO Sistema de Comando em Operações. No dia 27 foram resgatados 02 corpos adultos e 01 corpo de uma criança. Foram resgatados também 6 idosos com vida que estavam em uma área isolada por um Córrego. No dia 28 eu passei a integrar a equipe que ficaria responsável pelo posto de Comando na formação do SCO - Sistema de Comando em Operações montado na Cidade de Ilhota na Prefeitura Municipal.

o dia 24 após tomar conhecimento da situação do Vale do Itajaí, entrei em contato com os Bombeiros Voluntários de Indaial para verificar se precisavam de ajuda e com a informação da necessidade, deslocamo-nos para Indaial, ainda no

dia 24/11/08. No dia 25 nos deslocamos para a Localidade do Belchior, onde havia vítimas de soterramento e áreas para serem evacuadas. Devido a Comunidade não estar preparada para tal situação, muitas pessoas esperavam em suas residências ou abrigos, equipes de socorro para que pudessem levá-las para um local seguro. No trajeto que percorremos, alguns locais eram de difíceis acessos devido aos deslizamentos, mas como havia pessoas isoladas e as aeronaves não tinham acesso para pouso, tínhamos que ultrapassar as dificuldades e os obstáculos. No caminho orientávamos os moradores e na localidade do Alto do Serafim evacuamos 40 moradores entre idosos, crianças e adultos. A situação era caótica! “Todos os moradores estavam em pânico”. No mesmo dia, na Localidade do Baú Seco resgatamos dois corpos (mãe e filha) vítimas de um soterramento no qual além dos moradores já terem resgatado com vida o pai e sem vida o sogro, ainda havia dois adolescentes para serem resgatados. Na casa foi uma tragédia atrás da outra.

Resgates de vidas e vítimas no Baú.

62


No desastre havia mais de 80 Bombeiros Voluntários, Equipes de Resgate apareciam de São Paulo, Brasília, Minas Gerais e outros Estados, além dos Bombeiros de São Paulo e da Força Nacional. Não podemos criticar a ninguém por causa da situação local que era crítica, mas a falta de articulação das equipes dificultou para obtermos um resultado melhor na resposta ao Desastre. Por fim foi uma experiência para todos que mostrou a necessidade de reforçar o ditado que diz que A União faz a Força, pois ainda temos muito a melhorar, não para que surja outro desastre, mas sim para que caso aconteça, possamos atuar de forma harmônica e obter bons resultados. Vale também agradecer Aos Governos Federais/Estaduais/Municipais À Aeronáutica Ao Setor Privado À Comunidade que se colocou à disposição para ajudar Às equipes de emergência Privadas Aos mais de 80 Bombeiros Voluntários À Imprensa Às Polícias Militares /Civis/Ambiental A todos aqueles que de alguma forma colaboraram para que pudéssemos atender as comunidades atingidas. Garanto que mesmo diante de tantas dificuldades todos deram o máximo de si, visando beneficiar a quem necessitava.

63


Dia 12/02/2009 :: Depoimento de

Ana Maria De Souza Sperber Moradora do Alto Baú.

Rio completamente destruído depois da tragédia, que passa em frente à casa da família Sperber

M

eu nome é Ana Maria de Souza Sperber, natural de Ilhota. Sou casada com Amarildo Sperber, popular Malique, temos 2 filhos, Rodrigo e Lucas, e em breve seremos avós. Moro no Alto Baú há 20 anos e anteriormente no Baú Central. Dia 22 de novembro de 2008, um sábado, amanheceu com muita chuva, mais que o normal, pois já chovia há meses. Naquele dia eu acordei angustiada, com um aperto no peito, mas não imaginava o que iria acontecer. Já estávamos sem energia elétrica, os telefones já estavam sem carga, aí foi o início de um pesadelo. O rio encheu bastante, mas não atingiu a estrada, a chuva dá uma trégua, onde o nível da água do rio baixa. À noite, começou a chover novamente. Meu filho Rodrigo e minha nora Darline, estavam em nossa casa comigo e meu marido. Fiz pastéis para a janta, e depois que jantamos meu filho e nora foram para casa, e eu e meu marido fomos dormir. O barulho que as pedras faziam quando rolavam no rio era terrível e não demorou muito para que nosso filho Rodrigo nos acordasse aos gritos, dizendo que estava chegando água em sua casa. Então eu, Malique e meu outro filho, o Lucas saímos correndo com água já pelos joelhos, tentei gritar com meu cunhado, que mora ao lado, mas não deu tempo de alertá-lo. Quando meu filho correu das águas, esqueceu de salvar seus 2 cachorrinhos, Sufi e Dhoni, depois só ouvíamos seus latidos, mas nada pudemos fazer, pois nossa casa estava tomada pelas águas. Então corremos todos para casa da minha mãe,Lúcia de Souza,que fica num lugar mais alto. Mesmo assim nos sentimos inseguros, pois ao lado mora minha tia Maria, e a casa dela corria risco de cair sobre a da minha mãe. Então passamos o resto da noite em alerta, e o barulho das pedras rolando no rio continuava muito assustador.

Casa de Rodrigo Sperber e Darline Andreguetto Ristow, destruída após a enchente.

64


Finalmente amanheceu, fomos então para nossa casa, foi muito triste ver todo meu jardim destruído com muita sujeira, e minha casa cheia de lodo e encontramos a cachorrinha Sufi... morta. Ficamos isolados sem saber o que fazer, a estrada estava completamente destruída, tudo revirado. Voltamos para casa da minha mãe e na hora do almoço, não conseguimos comer, pois era angustiante demais ver aquele rio tranquilo se transformar em um rio ameaçador, que ia destruindo tudo o que encontrava, arrastando árvores, casas, postes, muito triste presenciar tudo aquilo. Então no domingo à noite resolvemos ir para casa da minha sogra, Maria da Silva Sperber, que achávamos ser segura, só que naquele momento não sabíamos mais onde realmente era seguro. Todos nós fomos para casa dela, menos meu padrasto, Bruno Tomé de Souza. Por volta das 10 horas, ele não suportou o barulho do rio e da barreira que havia caído atrás da minha casa e do meu filho, e foi para casa onde estávamos também. Na segunda-feira, mal amanheceu o dia, meu marido foi até a nossa casa e ela estava de pé, mas a casa do nosso filho Rodrigo estava completamente destruída, aquela barreira que caiu durante a noite a derrubou. Minha prima Nia e seu marido Zeca também estavam conosco na casa da minha sogra. Confesso que aqueles dias foram os piores de nossas vidas, pois o medo e a angústia eram imensos, não conseguíamos conversar e sim gritávamos uns com os outros. Pegávamos água que passava em frente à casa para tomarmos banho e fazermos comida porque estávamos sem água potável. Na terça-feira, dia 25, os helicópteros começaram a sobrevoar, achamos meio esquisito aquilo tudo, pois sabíamos que estávamos sem saída, que tinham acontecido algumas coisas conosco, mas não que toda a região do Baú estava destruída e que até tínhamos perdido amigos.

Vista aérea após a tragédia da região do Alto Baú, onde fica a casa da família Sperber.

Marco Gamborgi

Tristeza de Malique nos resgates dos corpos.

65


Chegada da família Sperber no campo municipal em Ilhota, resgatadas no Alto Baú,conduzidas pelo policial Leoni Baldança “Canal” Meu marido e nosso filho Rodrigo, resolveram atravessar o mato para conseguir contato com o pessoal do lado de cima da estrada. Num trecho que percorríamos em 15 minutos, eles levaram uma hora para atravessar. Lá, os dois ficaram realmente sabendo de toda a desgraça, que havíamos perdido pessoas queridas, crianças maravilhosas, amigas que convivíamos dia-a-dia. E o nosso amigo do peito, Luiz Paulo, o Paulinho, um jovem de apenas 17 anos, não temos palavras para dizer o quanto sentimos. Quando meu marido e nosso filho voltaram e nos contaram tudo o que tinha acontecido, ficamos em desespero, sentíamos uma dor imensa, não podíamos imaginar aquelas pessoas mortas. Algumas pessoas que estavam ali perto resolveram sair de helicóptero, mas minha família teimava em ficar lá. Na terça-feira, foi a noite mais horrível de minha vida, pois a incerteza, o medo que o dia não amanhecesse para todos nós. A casa da minha sogra é velhinha e de madeira, então se no meio da noite alguém levantasse, dava a impressão que a casa iria cair. No meio daquela escuridão só se ouvia barulho do rio e as batidas dos nossos corações, na angústia de uma noite que parecia não ter fim. Finalmente na quarta-feira nos levantamos e começamos a nos preparar para sair daquele pesadelo. Meu marido saiu para o lado que fica nossa casa, pois lá do outro lado do rio moravam 4 famílias, ele insistiu e eles vieram conosco. Então meu marido ajudou os bombeiros na travessia dessas pessoas, enquanto isso eu, minha mãe, meu padrasto, meus filhos, meus primos e minha nora fomos até o campo de futebol próximo dali, para pegarmos o helicóptero e sair imediatamente. O helicóptero estava chegando e meu marido não chegava, eu e meu filho Rodrigo fomos ao encontro, e nesse momento ele já estava vindo, e nossa surpresa foi grande, pois meu marido sempre se mostrou forte e nessa hora ele estava chorando. Graças a Deus conseguimos sair dali. Não consigo pensar em morar no Alto Baú novamente, pois só de imaginar de ver tudo aquilo destruído, até os meus lindos gansos sumiram todos com o tempo! Tudo é muito triste! Dói em saber que deixamos nossas vidas para trás, mas nos animamos em saber que podemos recomeçar, pois só depende dos nossos esforços. Triste é saber que mesmo que tudo se resolva, jamais o nosso Morro do Baú será o mesmo, tínhamos o que antes era uma vista agradável, nos orgulhávamos do nosso lindo ponto turístico, hoje nos passa uma imagem ameaçadora, e muitas vezes tirando nosso sono!

Senhor Bruno, padrasto de Ana, sendo guiado por Delci do Prado, Bombeiro Voluntária do município de Ilhota.

Gansos que existiam na casa da família Sperber.

66


Dia12/02/2009 :: Depoimento de

Andreia de Souza Moradora do Alto Baú.

M

crianças. Depois levamos o carro, e as vezes entrávamos dentro para fugirmos da chuva,mas foi muito difícil porque estávamos em muitas pessoas para um carro só,e ficava muito apertado.Dois amigos muito nos ajudaram,o Fabiano e Adriano Baiher, irmãos, que ficavam na parte de cima da estrada, quando o rio abaixava, os dois corriam para nos ajudar a passarmos em um córrego que mais parecia um rio,estava muito cheio com muita correnteza,por isso precisavam derrubar um pé de eucalipto para que pudéssemos transformar em ponte,o problema foi que o dono não deixara cortar essa árvore,então nosso desespero aumentou,meus filhos e sobrinhos estavam com fome e frio,tínhamos somente um pacote de bolachas e que ainda acabara caindo no rio,meu filho ainda tentou pegar mas foi em vão.Por volta de 21:00 horas,explodiu o gasoduto,e logo depois disso caiu o resto da minha casa,e a casa do meu pai.Naquele momento sabia que não tínhamos mais nada,que realmente estávamos na rua. No dia 24, segunda feira, conseguimos passar para a parte de cima da estrada onde estava o restante do pessoal, ali achávamos que estaríamos salvos, mas nos desesperamos mais ainda quando soubemos das casas onde haviam morrido muitas pessoas,e pessoas feridas procurando por ajuda.No meio de todo aquele desespero,não sei como,acho que só por Deus que nossa amiga Elizabete encontrou um celular com carga e ligou para a central dos bombeiros em Ilhota avisando-os da tragédia,mas custaram a creditar,depois de muitas tentativas vieram nos salvar. As 18h00min horas de segunda feira conseguimos sair daquele pesadelo, eu com meus filhos, Gabriel e Gabriele, os mais novos, saímos primeiro, ficando meu marido e meu filho mais velho, o José Francisco, que saíram mais tarde. Fomos todos para a matriz de Blumenau, mas ainda muito preocupados, pois muitos de nossos familiares permaneciam no Baú, era muito angustiante por não termos comunicação. Na terça feira dia 25, as 17h00min horas conseguimos nos comunicar com esses familiares. Graças a Deus não perdemos ninguém da família, mas perdemos amigos e nossas casas. Hoje estou morando de favor a espera de reconstruir minha vida!

Lucas Gonçalves

eu nome é Andréia de Souza, sou natural de Ilhota, e sempre morei no sou casada com Vildomar de Souza e temos três filhos, José Francisco, Gabriele e Gabriel. Nossa triste história começou no sábado dia 22 de novembro no ano de 2008. O dia amanheceu chovendo muito, aliás, já chovia a mais de três meses consecutivos, mas naquela semana com mais intensidade, nesse mesmo dia, começaram a desmoronar os morros atrás da nossa casa, e destruiu toda a parte da garagem, mas mesmo assim continuamos dentro de casa, com barro até encima da janela da cozinha. Ficamos até meia noite em casa, tivemos que sair porque o barro começara a entrar na cozinha, então fomos para casa do meu pai José Day, que morava ao lado junto com a família da minha irmã Adriana. Ficamos lá até domingo dia 23,levantamos as 05:30 horas e voltamos para nossa casa,então eu fiquei na cozinha enquanto meu marido e meus cunhados tiravam o barro da parte da garagem,até então achávamos que tudo iria parar por ali.De repente eu e meu filho José Francisco,ouvimos um barulho muito forte,era mais uma barreira vindo por cima de nossa casa,só deu tempo para eu e meu filho corrermos e nos jogarmos para fora de casa,meu marido foi arrastado pela lama,se não fosse meu cunhado Marcelo,ele teria morrido.Conseguimos escapar com vida,e a casa não caiu toda de uma vez. Voltamos para casa do meu pai, achando que lá seria mais seguro. De repente ouvimos mais um barulho forte, dessa vez era a cooperativa das costureiras que caia soterrada por uma enorme barreira. Ficávamos cada vez mais assustados. Resolvemos então sair da casa do meu pai, eu e toda minha família, marido, filhos, pai, irmãs, cunhados, sobrinhos e meu cachorro Mengo,fomos para um lugar que também achávamos mais seguro,em um pasto do vizinho.As 14:00 horas do domingo,resolvemos voltar para casa do meu pai,pois estávamos com fome,almoçamos e deitamos um pouco para descansarmos,mas não conseguíamos por conta da preocupação,tínhamos uma caixa d’água que ficava encima do morro,bem próximo da casa,que poderia vir abaixo. Voltamos então para o pasto, ficamos a tarde e a noite chovendo, com

Local onde houve os deslizamentos soterrando a casa da família Souza e outras três.

67


Dia 15/03/2009 :: Depoimento de

Anilto César Gaio (Mineiro)

Morador do Morro Azul no Braço do Baú.

S

ou natural do Paraná, cidade de Dois Vizinhos, moro há 14 anos no Braço do Baú. Lá trabalho com várias coisas, como pintor, na plantação de bananas, entregávamos bananas nas cidades vizinhas, vivíamos bem, tínhamos nosso dinheirinho, vivia do bom e do melhor, não tínhamos dificuldades de nada, porque todos trabalhavam, serviço não faltava para nós. No Morro Azul era um lugar muito bom de morar, morava sozinho, eu e Deus! Lá, nos tínhamos igreja, tínhamos uma agência igual a banco, creche, posto de saúde, aquilo ali para nós era uma riqueza. No dia da enchente, choveu muito, foi três meses de chuva, às vezes dava três dias de sol, tinha que parar com o serviço porque chovia muito. E quando começou desabar tudo, as coisas começaram a complicar para o nosso lado foi na sexta, dia 21, chuva, sábado e domingo também. Domingo encheu tudo, demorou algumas horas começou a baixar, então fomos em um restaurante que tem por ali e começamos a limpar. Por volta das 5 horas voltou a encher, eu falei:’ Gente! Nós vamos ter que sair daqui! Está cada vez enchendo mais, estava sem chinelo, de calção, sem camisa, todo sujo de lama, me deram uma roupa para trocar, tomar um banho, comi um pouquinho porque eu estava fraco, e então de noite começou a estralaceira, por volta de 21:30 horas, não tenho muita certeza porque eu estava tão nervoso, estávamos na casa do Nino Miranda, perto do mercado do Ziloca, começou desabar tudo rapidinho, e nós começamos a retirar o pessoal, se tu ias para o morro, o morro desabava, se tu ias para a água, via gente pedindo socorro ali no Mata Pasto, todo mundo berrando, só que a chuva era muito forte e nós não conseguíamos chegar até eles, a família do Ziloca, eu tirei por uma corda, eu amarrei uma pedra eu e o Gi, filho do Nino Miranda, lancei a corda, tiramos a Jô, a pequena, que eu não sei o nome dela, o Ziloca, e a Benta, nós tiramos eles dali. Onde nós ficamos três dias e três noites, estávamos em 80 pessoas, até arrumar um abrigo para nós que foi na igreja do Braço do Baú. Quando amanheceu o dia, para nós não porque não dormimos, a primeira pessoa que nós achamos morto foi o filho do Zaíro, o mais velho, desceu uns 5 mil metros, então os bombeiros disseram:’Pessoal, nós temos que ir atrás de mais gente! E eu falei para eles:’Vocês não procurem no morro, tem que procurar para as baixadas. E a maioria, a família do Roberto Richartz, nós pegávamos uma corda, como fizemos no Ziloca, então ficou dois ribeirões com a água muito forte, nós colocávamos os corpos em cima de uma escada, mas a chuva era muito forte. E nós continuávamos a procurar sobreviventes, e corpos, tinha os helicópteros por cima, bombeiros com cães, mas tinha ainda muitos corpos soterrados, tinha que cavar devagarzinho. O que foi acontecendo quando achávamos os corpos, nós lavávamos na água que caía da enxurrada no pavilhão, seis pessoas eu enterrei, não enterrei mais porque eu comecei a passar mal, o Padre da Igreja pegava um guardachuva, rezava um pouquinho e nós pegávamos os defuntos e enterrávamos, quando deu o quinto ou sexto eu não me lembro mais porque comecei a perder o sentido das coisas. O caixão nós fazíamos de pinus, na serraria do Hilário Pelz, e às vezes o caixão era muito pequeno, porque nós não sabíamos a vítima que iria se achar, se era uma criança ou uma mulher, um homem, o que era, era enterrado, eu marcava o nome da pessoa em cima, depois mais tarde eles ajeitaram o lugar deles. Nós fazíamos até rápido, era difícil! Porque nós vínhamos todos molhados, mal e mal comíamos alguma coisa para o estômago aguentar a trabalhar, daí chegava alguém e dizia: ’Chegou mais alguém, e eu dizia: Quem é? A Cida, a mulher do Roberto Richartz, diziam que não era ela, acharam que era outra pessoa, e eu conheci só pelas unhas dela, porque ela pintava de vermelho, eu falei:É a Cida!

Mulher do Roberto! Nós a achamos mais ou menos a mais de 500 m de onde ela morreu, porque lá desabou tudo. Nós não sabíamos mais o que fazer! Tu andavas na lama, gente! Nós queríamos se esconder para o morro, o morro desabava, e estralaceira, íamos para a rua, era enchente, era pedaço de pau, era carro, era pedaço de casas, levando tudo! Não podíamos fazer mais nada, o que nós faríamos? Nós nos ajoelhávamos todos, e nós começamos a retirar o pessoal todo rapidinho, mais ou menos 80 pessoas, e deixávamos clarear o dia! O que nós podíamos salvar, salvávamos, nós não podíamos mais sair na rua. E quando clareou o dia, começamos a procurar gente, e conversávamos com estas pessoas, era muito difícil tu conversar com alguém! Tu olhavas para essas pessoas e baixava a cabeça, como o Zaíro, ele perdeu a família toda, o Richartz perdeu todos, quando nós soubemos que no Morro Azul aconteceu tudo aquilo. Quando amanheceu eu fui lá, eu não aguentava de tanto sofrimento, não dormia à noite toda, só na base do café, café, calmante e calmante,e fomos lá procurar mais gente, olhava para um, não sei, olhava para outro,não sei, então devem estar todos soterrados, e fomos achando o pessoal, ali quando acalmou tudo, eu disse;’ Gente! Acho que agora parou, não deve ter mais ninguém! Então me disseram: ‘Tem a Giane, que a casa dela ficava no lado do meu barraco, a casa dela desabou todinha, e morreu a esposa do seu Altino, a Augusta e a filha Giane, eu me dava muito com ela, era bom dia, boa tarde, quando nós chegamos já a tinham achado e a levaram viva para casa dos Alves e lá, chegou de tarde ela morreu. Podia chamar o exército, podia chamar quem fosse, não podia baixar nenhum helicóptero onde ela estava, era difícil, e o que salvaram de gente! Era mesma coisa tu estar no Vietnã, todo mundo explodindo, crianças, mulheres pedindo socorro e tu querer fazer as coisas e tu não conseguir! Eu estou com 44 anos, estou há 14 anos aqui, e até hoje eu nunca vi uma coisa dessas, se tu visses o morro estremecer, o pessoal pedindo socorro, é difícil tu ajudares todo mundo! Teve gente que morreu que não foi por falta de ajuda, porque o exército nos ajudou, os bombeiros de todos os lugares, foi uma coisa assim, como diz o outro: Só Deus salva nós! E foi o que aconteceu! Quando chego ao Baú agora e vou conversar com meus amigos, que eu olho para cara deles, é a mesma coisa de olhar para um deserto, é complicado! Aquele pessoal está todo desanimado, e nós éramos felizes, gente do céu! Nós ganhávamos, nós tínhamos tudo! Minha casa não caiu, mas está em área de risco, eu lá não vou voltar mais, porque eu tenho proposta para trabalhar lá, mas quando eu olho para todos que são meus amigos, porque nós fazíamos festas direto, nós brincávamos, tínhamos nosso divertimento nos finais de semana, tu vais lá agora, olha para aquilo lá... Acabou-se tudo, gente! Então quando terminou essa correria da enchente, esse meu amigo aqui, o Eurico dos Santos, mais conhecido como Gauchinho, somos muitos amigos pena que ele é gremista e eu flamenguista, ele me ajudou muito, quando estávamos no abrigo, eu estava passando tão mal que era como ter dado uma marretada num porco, porque de tanto enterrar gente, todos meus amigos que conviviam comigo, o Gauchinho disse:’Vamos ter que tirar ele daqui! Daí me levaram de ônibus com o pessoal do bombeiro para o postinho de saúde de Ilhota, fiquei uma noite toda, tomei dois litros de soro, ficou um farmacêutico do meu lado, me cuidando a noite toda. Falei depois com o comandante, e ele disse: - Você não pode mais voltar para o Baú! E eu falei:- Eu quero voltar! E ele: - Não!Você não pode, vamos arrumar um lugar para você! Então me colocaram em um abrigo, perto da prefeitura, fiquei lá durante três dias. E eles falavam lá: Nós temos que cuidar desse rapaz,

68


ele faz qualquer serviço, mas com este problema é muito difícil as pessoas lhe darem emprego.Também está tentando se aposentar e não consegue. As pessoas olham para nós de um lado diferente, elas acham porque nós estamos no abrigo, mas nós temos profissão! Vieram várias emissoras de TV aqui, mas eles entrevistam as pessoas, e elas só falam dos problemas delas, mas essa pessoa não fala do resto do pessoal que está ainda no abrigo, outra emissora veio aqui, trouxe uma mulher bonita, é só aquela pessoa, e nós! Quantas pessoas têm aqui ainda?Umas 35, e cada uma delas têm seu problema! Se eu contar só o meu problema, não vai resolver nada! Eu queria ser o último a sair daqui, nem que comesse só pão seco e água, eu queria ver todos eles numa situação boa, na casinha deles, como estão prometendo, é o que eu queria! E que Deus ajudasse todos nós!

porque ele quer voltar para o Baú! E era só helicóptero sobrevoando e pousando, e eu querendo voltar para lá, porque já estava bom. Eles então me disseram que iriam me levar para outro abrigo, lá na Ilhotinha, e diziam que sem me liberar eu não poderia voltar, e se eu voltasse eles me pegariam e trariam de volta. Então, eu tinha que receber ordens deles, era uma área de risco, eu fiquei lá 2 meses e 20 dias, foi muito bom de morar, depois como lá era um colégio e as crianças tinham que estudar, de fato estão estudando, fui o último a sair de lá, daí me trouxeram para cá, no único abrigo existente, do Baú Baixo. Nesse meio tempo arrumei um serviço, fui para o interior de Belo Horizonte, fiquei uns doze dias e voltei para cá novamente. Eu tenho que tomar um rumo para minha vida, mas no dia que saísse daqui gostaria de levar todos comigo, porque olha o sofrimento dessas pessoas aqui, gente! Se eu tivesse condições eu levaria a todos! Aqui é uma tristeza, todos passam, olham para nós, e pensam: está vindo comida, eles têm tudo! Mas não é isso que queremos! Eu queria minha vida normal, trabalhar, ter meu lugarzinho para voltar a morar normalmente! Porque eu tinha tudo! Aqui tu tens que estar mendigando, a gente fuma, não é, tenho o vício de tomar umas coisinhas, mas todo mundo tem o direito de fazer o que gosta, não é? Eu queria, só que eu não tenho esse poder na mão, de ter uma vida melhor, não só eu, todo mundo! O que adianta eu ficar aqui e vendo todos no sofrimento! Eu tenho já uma proposta de trabalho, mas é só para mim, mas eu queria levar esse meu amigo aqui, o Gauchinho, ele perde serviço por causa dessa mão, como eu sou pintor profissional,

Anilto César Gaio, popular Mineiro, e seu amigo Eurico dos Santos, popular Gauchinho, no abrigo da Capela Cristo Rei no Baú Baixo.

69


Dia 20/02/2009 :: Depoimento de

Antônio Laurino Richartz

Morador do Braço do Baú.

Antônio Laurino Richartz, no dia em que chegou no salão paroquial de Ilhota.

vestir, eu já estava com uma camisa parecida com a saia, e saí, daí todo mundo começou a rir, então alegrou um pouco mais a turma. Tinha umas pessoas mais de idade, umas mulheres chorando, daí eu falava para elas: - Não adianta chorar que agora chegou uma mulher nova! Começou então a gozação. Quando chegou de noitinha, chegaram mais roupas para doação no abrigo, fui dar uma olhada e achei um jaleco de médico, então vesti, amarrei um lenço branco na cabeça, ou era um boné branco, não lembro bem agora, (dava risadas novamente), o povo então perguntava: ‘Quem é aquele médico, chegou um médico, chegou um médico! Alguém dizia: é o Laurino, é o Laurino! Daí alegrou todo mundo! Porque lá tinha médicos e enfermeiras, e eu lá no meio deles, e eles falavam: - é o médico da defesa civil!’ O pessoal dava risadas, apesar de tudo foi bem divertido! Tivemos que sair do abrigo porque o morro atrás da Igreja estava desbarrancando, ficamos só 2 dias. Tínhamos que ir todos para Ilhota, então fomos de ônibus, passando pela BR 470. Chegamos lá no salão paroquial, fizemos o cadastro, e depois fomos pegar algumas roupas no salão paroquial. Depois fomos para casa da minha irmã Ica que mora em Ilhota. Quando chegamos lá, a casa já tinha muita gente, e nós estávamos em oito pessoas, então resolvi alugar uma casinha em Itajaí, meu cunhado arrumou para nós. Ficamos lá 40 dias, depois voltamos para o morro Azul, porque para a casa do Braço do Baú não tínhamos acesso ainda. Hoje, a família está toda na casa, mas não para morar, porque tem medo, porque minha sogra, tem 90 anos, a casa dela é do lado da nossa, morava sozinha, o almoço nós levávamos e à noite fazia o cafezinho dela, ela sempre se virou sozinha. Depois da tragédia bateu um desânimo e não faz mais nada sozinha, acho que está com depressão, chora, sempre foi uma mulher forte, e agora está assim. Agora está morando conosco, assim podemos estar sempre cuidando dela.

uando começou tudo estava no Morro Azul trabalhando, eu minha mulher, a Maria Tereza, meu filhos Émersom e Elzângela, meu genro Adelício Schimitz e meu neto Adelício Schimitz Jr.(13) e minha sogra a vó Maria Richartz Fischer, estavam em casa aqui no Braço do Baú. Trabalho com carvão e bananal, e naquele dia, sábado dia 22, fui trabalhar e não consegui mais voltar, fiquei lá até terça-feira, dia 25. Lá tenho um sítio e uma casinha que comprei do genro. Meu serviço é lá, tenho plantação de banana e eucalipto. Não tinha como eu vir para casa, fiquei muito preocupado com a família, e eles com certeza comigo. Na segunda-feira já tinha morrido oito pessoas no Morro Azul e no Alto Braço do Baú então a minha preocupação aumentou, ’Meu Deus! Será que eles estão vivos ou não?’Não tinha notícia, na segunda-feira à noite é que soube que estavam na igreja e estavam todos bem, então fiquei mais aliviado. Terça-feira nos reunimos no meu mano Valmor Vidal Richartz para sermos resgatados, tinha muita gente, os helicópteros começaram a chegar, primeiro foram as mães com crianças, depois os idosos, eu fui na segunda viagem, porque eu era o segundo mais velho (deu risadas). Fomos para o salão da igreja do Braço do Baú, graças a Deus reencontrei toda minha família. No mesmo dia em que cheguei, já tivemos que sair porque lá falaram que o morro do Baú iria cair, embarcamos no ônibus e fomos para o Baú Central. Lá no abrigo tinha muitas pessoas, a maioria desesperada porque alguns ficaram sem suas casas e alguns perderam alguém da família, estava muito triste, um chorava de lá outro de cá. Então quando vi aquelas roupas que tinham vindo para doação, comecei a escolher, escolher, olhei e vi uma saia bem bonita, bem florida, (Sr.Laurino quase não podia falar de tanto que ria) resolvi

70


Dia 23/02/2009 :: Depoimento de

Apolônia Reichert Martins Moradora do Braço do Baú, Rua Teodoro Reichert, popular Mata Pasto.

T

Reichert também caiu na lama, depois disso ele nunca mais prestou, foram os três por lama abaixo. Quando conseguiram sair, colocaram Elizabeth desmaiada no capim, meu irmão também que nem morto, pareciam uns bichos, não se via mais os rostos deles, tiraram as roupas debaixo da goteira e ficaram até quarta-feira sem banho, aquela lama na cabeça, meu Deus! Meu filho, o Edson, e meu genro Armelindo vieram nos buscar, tiraram eu e Osvaldo no colo, um de cada vez, e nós dois doentes, não foi fácil, vinha muita madeira e lama, eles conseguiram passar por um lado que tinha um morrinho, depois saíram as crianças e outras pessoas. Já tinha estourado o muro da casa do meu filho e vinha a lama cada vez com mais força, tudo escuro, chovia demais, eu pensava que era um dilúvio. Depois estourou outra barreira, nisso nós já estávamos no bananal, já tinha muita gente lá em cima. Quando estávamos lá, veio mais um pedaço da barreira, corremos para o outro lado. Quando estávamos bem lá em cima, estourou ali atrás da casa da minha filha Valdete, que é casada com o João, então fomos todos para dentro de um ranchinho, a minha nora só enrolada numa toalha, toda suja de lama, não demorou muito começou a estralar tudo, vinham aquelas pedras imensas do morro que chegavam a soltar faíscas, levantava uma fumaça e um cheiro forte de enxofre, meu Deus! Tinha uma turma que já estavm lá no morro bem em cima, era só gente gritando num desespero. Subimos o morro de novo, quando corremos vinha água e lama já quase no joelho, frio. Era uma hora da madrugada eu e meu velhinho não podíamos mais andar quase, ficamos mais abaixo, os outros subiram, eu falei para ele:- se for para morrer,vamos morrer aqui! Ainda tinha um filho, o Mário, lá de Blumenau que veio aqui passear, e acabou

enho 67 anos, nasci e me criei no Braço do Baú, sou casada há 46 anos com Osvaldo Martins, e nunca vimos uma coisa dessas acontecer aqui. No dia 23 de novembro, domingo eu estava aqui em casa com toda minha família e com vizinhos que correram para cá, porque aqui é mais alto, um total de 31 pessoas. Entre cinco e seis horas da tarde começou a cair aquele morro aqui atrás de casa, mais tarde os filhos e as pessoas que estavam aqui começaram a gritar. Então começou aquela água com lama que descia da barreira com tanta força, que chegou a estourar a porta aqui de trás, tinha uma lavação ali, também foi tudo embora, com tudo que tinha dentro, então nós fomos nos jogando por outra porta da cozinha e saindo na lama. Minha nora, a Elizabeth, foi descer na porta e foi de arrasto naquela lama com pedras, madeiras, não tinha água, era só uma lama bem mole, era uma correnteza de lama, então meu filho, o Aviltom Francisco Martins, que veio na sextafeira com o braço recém-engessado porque havia quebrado, jogouse assim mesmo para salvá-la, que estava só com a ponta da mão de fora, ninguém a via mais, foi um desespero, e nisso veio umas madeiras e prensou as duas pernas dele, quando ele conseguiu sair dali, pegou ela e também foi de arrasto, então o meu irmão Daniel

Osvaldo e Apolônia Reichert

71


ficando porque não pôde mais voltar, ele é bem forte, foi o que mais nos socorreu. Depois olhei no lado da casa da minha filha, tinha um pedaço no chão de brita bem limpo, parecia que tinham lavado,virei aos gritos para eles chamar todos para ficar ali, porque achava que íamos morrer todos, porque não sabíamos para onde correr mais, aquilo lá despencando tudo e vindo tudo para cima de nós. O pessoal que estava lá em cima também desceu, minha prima, a Maria Cândido, tinha machucado a perna, estava sangrando, porque ela ficou trancada numa cerca de arame, a sorte que meus dois filhos a socorreram. Nos acolhemos todos na frente da casa do João, todos gritando, chorando. De repente acalmou mais aquela barulheira. Entramos na casa, era uma e meia da madrugada, todos molhados, embarrados, o que eles tinham de roupa dentro de casa eles usaram, todos magrinhos, e nós todos gordos, é... A dona Maria Cândido, precisou vestir uma calça do meu genro, porque ele é bem grandão, acolhemos a ela e ao marido que já são de idade, colocamos numa caminha, e aquelas 12 crianças, e aquele menino deficiente, coitadinho, eles carregavam ele para lá e para cá no colo, e ele chorava tanto, nós todos gritávamos. Volta e meia a gente falava:’Agora a gente não escapa mais! E eu ainda cismava assim:que leve eu e o meu marido, e deixe essa criançada! Lá na casa fiz chá para todo mundo, água com açúcar, a dona Poia, que é Fischer, não sei como ela se lembrou, trouxe uma caixa de calmante, desse bem fraquinho, para relaxar, deu para todos, porque ali o pessoal gritava tanto, tanto! O Osvaldo estava muito doente. Quando amanheceu ele quis vir para casa e meu filho Mário o levou no colo, a casa estava cheia de lama. Mário pegou uma vassoura e limpou um pouco, porque não tinha água o suficiente para lavar, o restinho que tinha na caixa, Mário lavou ele, e pôs na cama, para dormir um soninho. Ficaram só dois na casa, e nós ficamos lá, ilhados. Saímos então da casa. Para podermos sair dali, amarraram uma corda de um poste ao outro, amarram uma corda na minha cintura e do Osvaldo, e dos outros mais velhos, nós íamos pendurados naquela corda, porque não sabíamos onde era o ribeirão que tinha. Quando chegamos lá na estrada, fomos caminhando para a igreja do Braço do Baú, quando chegamos perto do Olério, estavam tirando o corpo do menino do Zaíro do meio de uns galhos, perto do portão da casa do Olério Fischer. Aquilo abalou a gente. Saímos às seis e meia da manhã e chegamos ao meio-dia, íamos um pedaço pelo morro,um pedaço melo mato, água, lama, não tinha estrada, estava virada em um rio de lama. Meu filho tirava um do atoleiro, levava até embaixo, depois vinha buscar outro, e assim eu e meu marido íamos.Vinha também a dona Ida, uma senhora de idade, que meus filhos atravessaram e a pegaram no colo e a colocaram no Nino Miranda, um vizinho. Nino gritava, chorava e pedia socorro, ele achava que na minha família tinha morrido todos, mas ele não sabia que estávamos em 51. Foi uma noite que jamais vamos esquecer, e eu pedia para Deus não levar ninguém, fui pedindo, até que amanheceu aquele dia, porque não amanhecia mais. Na igreja do Braço do Baú ficamos 2 dias, naquela primeira noite tinha uns corpos ali na igreja, foi muito triste, meu Deus! Foi uma noite de muito sofrimento para todos. E atrás no salão eles fazendo aqueles caixões... Que tristeza! No outro dia diziam que o morro do Baú estava rachado, que ia cair, embarcamos todos no ônibus e fomos para o Baú Central, ali tive que levar meu marido para o hospital, durante a noite ele ficou muito ruim, os bombeiros o levaram, fui um dia visitá-lo no hospital, quando voltei estava aquele alvoroço dentro do ônibus, todo mundo querendo ir embora porque atrás da igreja estava desbarrancando. Mal cheguei e já entrei no ônibus e fomos todos para o abrigo do Baú Baixo, na igreja Cristo Rei. Fiquei lá mais 45 dias, Osvaldo ficou 7 dias no hospital, depois ficou lá comigo

no abrigo.Um filho meu de Itajaí, o Maurici, veio nos visitar, não fomos com ele para lá porque a casa dele é pequena e ele também foi atingido na enchente. Lá tinha muitos voluntários de fora que faziam ginástica conosco, brincadeiras para as crianças, sempre com muitas atividades, sempre tínhamos alguma coisa para fazer. Passamos o Natal e ano novo ali. A missa foi linda, linda, todo mundo chorava.Vários padres passaram por ali, o Padre Alexandre, Otávio, Carlos, Dom Angélico de Blumenau. O natal lá foi muito lindo, mas... Não era para ter sido lá, era para ser em nossas casas como todo ano. Como tinha gente ajudando, muitos voluntários de fora, nós comemos muito bem, tudo muito lindo, tinha árvore de natal na igreja e no abrigo, eu ajudei a cozinhar 45 dias, e naquele dia de natal também. Ganhamos muitos presentes,vinha gente e dizia, eu quero dar um presente para a cozinheira dos policiais, das pessoas que iam nos visitar. Eu nunca vi um natal assim, tinha pessoas lá que no natal só ganhavam uns doces, chocolates, mas nunca viram um natal assim. Depois do Natal, acho que no dia 28 de dezembro, disseram que íamos ter uma surpresa, era a visita da atriz Cléo Pires, trouxeram comida, ela almoçou com todos nós, fez um discurso, todo mundo chorou, ela é muito simpática, trouxe 2 televisões para o abrigo que depois iriam para escola ou para a igreja do Baú Central. Era tão lindo, mas tão triste porque fazíamos aquela corrente de orações, rezávamos e agradecíamos. Sempre às terças-feiras alguns moradores do Baú iam lá fazer uma novena. Um sábado depois do natal eu vim em casa, dei um pulinho aqui, vim limpar um pouquinho, tinha muita lama e não tinha água ainda, depois outro dia compraram mangueira e foram colocar água. No ano novo também, tinha um gaiteiro, seu Juvenal, meu marido estava bom e também tocou violão que ele havia ganhado. Todos cantavam, também, o Jaciro, o Zeca, todos tocaram e cantaram. (deu risadas). Depois de alguns dias, eu e meu filho Edson, fomos para Gaspar, receber minha aposentadoria, e meu filho aquele dinheirinho que o governo liberou do fundo de garantia. Quando chegamos de Gaspar, meu filho me convidou para virmos aqui em casa, e ali ficamos. Depois só fomos lá buscar nossos pertences. Vai dar saudade do abrigo e das pessoas que por lá passaram. Depois que saí de lá, já voltei duas vezes para visitar quem ainda não voltou para casa.

Comentário da autora: No dia 15 de março, eu, Ana Maria Sperber, seu filho Lucas e a nora Darlini, fomos até o Braço do Baú conversar com Dona Apolônia, e ela me deu uma notícia que me entristeceu muito. Contou-me que seu irmão Daniel Reichert, que completou 80 anos no dia 16 de dezembro ainda quando estava no abrigo. Que ele sempre foi um homem muito forte enfrentou tudo durante a enchente, no início no abrigo ele ainda estava contente, depois começou a ficar triste, não se alimentava mais, só queria ficar deitado, estava muito depressivo, depois de tudo que ele passou longe de sua casa e naquele dia da tragédia que caiu e foi levado pela lama, ele não era mais a mesma pessoa, sofreu muito, e no dia 10 de março veio a falecer no hospital.

72


Dia 20/02/2009 :: Depoimento de

Arceu José Zabel Morador do Braço do Baú.

Destruição que a tragédia deixou na estrada próximo a entrada do Parque Botânico, e nos fundos a casa e secretaria do parque, onde o senhor Arceu e família passaram a noite do dia 23 de novembro.

D

ia 21 fui levar meu filho Ubiratan Zabel para Blumenau, e não consegui mais voltar por causa da enchente, então dei a volta por cima, passei pela BR 470, subi por Luís Alves para subir na Santana, quando cheguei ao Alto Baú, não consegui mais passar porque tinha barreira na estrada. Tive que ficar na casa que minha irmã, Idélia Zabel mora, no Parque Botânico Morro do Baú. Lá estava só minha sobrinha Andrea Schimitt e seus filhos, Scheila(20), Márcia(17), Antônio(16) e Wagner(13), e o namorado de Márcia, Luciano Reginei Backmann. Idélia não estava em casa nesse dia, estava viajando. Chovia demais nesse dia. Meus sobrinhos foram tentar tirar alguns pertences em uma casinha verde que ficava ao lado, da Márcia e Scheila, porque a água já estava quase atingindo as janelas. Eu falava para eles saírem de lá porque como são crianças, não entendiam o perigo que estavam correndo. Ficaram até tirar tudo, carne do freezer, roupas e levaram tudo para casa em que estávamos. Corria muita água da cachoeira do parque, eu nunca tinha visto tanta água correr com tanta força, levantava um chafariz de mais ou menos uns 100 metros de altura, a água era bem barrenta. Mas tarde, eu já estava dormindo, o namorado da Márcia me chamou e disse: - Seu Arceu, vem ver a enchente que está lá fora! Na hora levantei e fui lá ver, então já notei que era muita água, é um lugar que não tem como dar enchente, porque é quase em cima dos morros. Na hora já me lembrei do Braço do Baú, onde moro, pensei que com certeza destruiu tudo. Mas na minha casa não tinha ninguém, porque meu filho estava em Blumenau. Fiquei muito preocupado com as pessoas, casas, tudo. Logo depois começamos a receber telefonemas, lá ainda conseguíamos ligações, então já ficamos sabendo dos acontecimentos, das pessoas que morreram do Braço do Baú, Alto Baú. Domingo à tarde, dia 23, Paulinho, um amigo e Dirceu, meu sobrinho, filho de Idélia,vieram do Baú Seco, e improvisaram uma pinguela de

bambu para podermos passar. Para podermos sair do lugar que estávamos, ao lado da casinha verde velha, tinha um rancho que acho que ainda está lá, nós passamos por dentro desse rancho, descemos com uma escada pela janela, passamos por dentro de um riacho, mais na frente outro até que chegamos na estrada do Baú Seco, e dali para frente fomos andando até a casa do Dirceu e Vânia Schimitt, proprietários de uma granja, que infelizmente também caiu. Naquela noite ficamos ali, até segunda-feira de tardinha. Todos acharam melhor ir para a Igreja Nossa Senhora Imaculada da Conceição, no Baú Seco. Achavam que ali corria risco, como já havia caído a granja domingo à tarde e ficava ao lado. Fomos para lá e naquela noite eu dormi na casa do sogro do Dirceu,o Raimundo Schimitt. Só na terça antes de meio dia eu consegui sair dali, fui de helicóptero para Blumenau em um campo, depois para casa de minha irmã Nair e lá fiquei vários dias. Depois que melhorou o acesso das estradas é que consegui vir para o Braço do Baú. A primeira vez vim de carro até na igreja para trazer uns donativos que o padre do Salto do Norte (bairro de Blumenau) mandou para o pessoal daqui. Aqui na minha casa só vim depois de uns 45 dias, estava tudo muito feio para cá. Perguntei para o senhor Arceu se ele estava lá no parque Botânico quando a casinha verde,centenária caiu. Eu não vi cair, eu soube depois. Porque no domingo à tarde quando saímos de lá ela ainda estava lá. Caiu no domingo à noite. Na segundafeira é que ficamos sabendo que ela havia desaparecido. Perguntei ao Sr. Arceu, quem mora com ele na casa, no Braço do Baú. Morava com minha esposa Alair, e dois filhos, Mas no ano passado ela faleceu. Agora um dos filhos, o André Ricardo, mora definitivamente em Blumenau e o outro, o Ubiratan, trabalha aqui no Braço, fica durante a semana comigo, mas nos fins de semana vai para Blumenau.

73


Vista do Morro do Baú.

O Parque Botânico Morro do Baú. Localizado no Alto Baú, o Parque Botânico Morro do Baú é considerado por muitos um verdadeiro “refúgio da natureza”, principalmente para quem busca tranquilidade e contato com o meio ambiente. Abrange uma área de 750 hectares de floresta em boa conservação, sendo “agraciado” com uma belíssima paisagem em meio ao verde da mata. Dirigido pelo Herbário “Barbosa Rodrigues” (Instituição que tem sua sede instalada em Itajaí, SC, fundada em 1961 pelo padre Raulino Reitz). O parque tem por objetivo preservar e desenvolver pesquisas sobre a conservação e manejo de florestas e programar a educação ambiental junto aos visitantes. O Morro do Baú recebeu esse nome devido ao formato que possui. Com altura de 812,46 metros, proporciona aos seus “exploradores” uma trilha de 4.140 que leva até o topo. Estas trilhas são auto guiadas, onde os visitantes são informados sobre altura, distância e tempo. Durante a trilha o visitante também tem o privilégio de conhecer a vegetação, típica de floresta atlântica, como bromélias, orquídeas, palmiteiros, figueiras, canela e guarapuvus, bem como a fauna, representada por beija-flores, gaturamos, saíras, trincaferros, gaviões, tatus, gambás, pacas, macacos-prego e inúmeros outros. Dificilmente o morro não é visto, das duas rodovias que ligam o litoral ao Vale do Itajaí. Sua exuberância e formato o tornam notório, dependendo do ângulo que se observa, percebe-se que ele tem outro pequeno morro acoplado, conhecido popularmente por “filhote”. Junto à sede existe uma área de camping, com espaços reservados com churrasqueiras para uso do visitante. Próximo ao camping localiza-se uma linda cachoeira com uma queda de 62 metros de água cristalina. É realmente um lugar encantador capaz de encher os olhos dos visitantes. Essa área sempre foi bem preservada. Além de toda a beleza da fauna e flora, há outros atrativos como rios e cachoeiras,

Cachoeira do Parque Botânico Morro do Baú. Popular filhote do Morro do Baú.

74


aumentando assim o potencial turístico e ecológico do lugar. Depois da tragédia do dia 23 de novembro, o parque foi destruído, por um grande deslizamento de terra, ao lado da cachoeira que o atingiu parcialmente, destruindo todas as estradas de acesso. É certo que o parque voltará a ter seus cantos e encantos, a natureza e o homem hão de colaborar. Dona Idélia Zabel Schmitt, viúva do sr. José Schmitt, é zeladora e responsável pela sede do parque, morando há mais de 15 anos na casa construída próxima à entrada que dá acesso ao morro. Antes de morar nesta casa, dna. Idélia morou na casa de madeira, a “casinha verde”, ao lado, construída há 103 anos. Ela contou-me que a casinha fazia parte da história do lugar, tendo antes dela já abrigado vários moradores. A família Junkes que a construiu, é constituída pelos primeiros moradores, depois de alguns anos fora vendida para João Schimitt, em seguida para José Miranda, depois para o botânico Padre Raulino Reitz, fundador do Herbário Barbosa Rodrigues.

Sede do parque Botânico Morro do Baú.

Parque Botânico Morro do Baú, depois da tragédia.

Casa centenária.

Padre Carlos Emmenderf ficou na casa como zelador. José Schmitt e Idélia com a família viriam morar ali somente no ano de 1983, onde permaneceram por 8 anos, depois então mudaram para casa nova do Herbário. A filha de Idélia, Andréia Schimitt passou a residir na antiga casa. Atualmente só alguns pertences da filha estavam por lá, sendo tudo destruído com a enchente. Dois meses antes de o Padre Raulino falecer, fez um contrato de cinco anos com um órgão do governo, a EPAGRI, (Empresa de Pesquisa agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina S.A.) para manter o parque. A secretaria passou a ficar sob poder de Ademir Heits, Jurandir de Souza Bernardes, Zilda Helena de Souza Deschamps Bernardes, Dom Vítor, Bispo de Florianópolis e atual presidente. A casa verde, antigamente ficava em um local mais acima do terreno, somente depois foi mudada para o outro lado da rua. Após 103 longos anos de permanência, no dia 23 de novembro de 2008, foi levada pela força das águas.

Mesmo local da foto anterior, onde existia a casa centenária. 75


Dia 14/02/2009 :: Depoimento de

Benta Lurdete Richart

Moradora do Braço do Baú.

N

o sábado à tarde, dia 22, já havia começado a dar enchente por aqui, estava tudo alagado, no nosso mercado não havia entrado água ainda. As pessoas já não conseguiam mais passar por aqui, nem nós conseguíamos sair daqui. No mesmo dia à noite baixou um pouco o nível da água, então fomos dormir. De madrugada acordamos porque a chuva era muito intensa, nisso já chegou água na estrada. Estávamos em quatro pessoas, eu, meu marido Gélásio, que todo mundo por aqui conhece por Ziloca, minha filha Josiane e uma colega dela de Blumenau, a Thaíse. Então eu desci, vi que estava quase entrando água no mercado. Gelásio então começou a colocar tampos de mesa encostados com areia, para a água não entrar, para aguentar mais tempo. Fizemos um cafezinho, eram quatro horas da manhã, Josi falou: - Vamos dormir mais um pouco. Eu peguei no sono, cheguei a sonhar com meu tio Bertoldo, que já é falecido. Ele me dizia que iria acontecer uma desgraça tão grande no Baú, vai ter tanta tristeza, mas sei lá, não dei muita importância. Eram mais ou menos 8 horas da manhã de domingo, dia 23, quando a Jô disse gritando: - Mãe, levanta! Já tem água no mercado! Eu falei: - Não pode ser! Corremos para baixo, realmente já tinha água no mercado, baixou um pouco, resolvi então fazer uma comidinha, para depois começarmos a limpar. Achei que a enchente tinha terminado, que não iria mais encher. Depois de almoçarmos, começamos a limpar aquele lodo e às três horas terminamos. Fomos para rua ver tudo, tinha muita água ali na rua do Mata Pasto e ainda falei para Jô, ‘Meu Deus! Essa gente vai morrer toda, se vier mais água! Porque tinha muitos entulhos, e ninguém conseguia mas sair dali. A Jô disse ‘Não, acho que não vai mais chover! Não pudemos nem passar mais pela estrada, passamos por cima, pelo bananal, pela casa da minha prima Marica do Jorge, Jô e Thaíse foram então lá em casa buscar os rodos grandes e ajudamos a limpar a área de festa da casa dela. O Gelásio começou a nos chamar, falou para deixarmos tudo como estava, não arrumar nada, porque poderia voltar a chover. Subimos e

Vista da frente do mercado da família Richart, no Braço do Baú, durante a enchente.

fomos tomar um cafezinho, dali a pouco foi um terror! Eu disse: - Meu Deus! Está caindo o morro do Baú! Era muito terrível, muito barulho, ninguém sabia que eram pedras rolando. E continuávamos pensando que era o morro do Baú que estava vindo abaixo, e falávamos ‘Meu Deus, o pessoal lá do outro lado... Vai morrer tudo! Quando olhamos para baixo, a água vinha de rolo, vinha lá de trás, de onde caiu a barreira, daí não demos mais conta, Gelásio desceu no mercado, começou a colocar mais tábuas por cima daqueles tampos de mesas e a água foi subindo, subindo... Gelásio me disse para cuidar lá da frente, eu e Thaíse fomos, e água, mais água, vimos a turma do morro gritando, mas não tinha como passar para lá, nem eles para cá. Cheguei lá atrás do mercado e disse: - Olha fecha essa porta, porque lá na frente já está entrando água! dali para frente ninguém segurou mais nada. Resolvemos sair dali, quando passamos pela garagem, quando fomos para o mercado, a porta do mercado fechda, não tínhamos como ir para a casa. Atrás de casa encheu tudo, foi mais ou menos 1 metro e meio de água, no mercado entrou só um pouco, uns 50 cm, porque a água ficou presa por conta da porta fechada. Nunca tínhamos visto uma coisa assim, era só árvores, pedras, aqueles carros boiando, passando, era o fim do mundo! Era um terror! Vi um homem correndo, ia chamá-lo, mas Thaíse disse que não porque ele poderia morrer. Então ele conseguiu ir até a casa de uma senhora. Ficamos no segundo piso, a chuva era tanta,tanta, eu e meu marido na janela dizíamos ‘Meu Deus! Pensávamos que aquela gente lá de cima iria vir tudo de rolo, porque o rio estava transbordando, jamais passou na minha cabeça que iria descer esse monte de barreiras. A uma hora da manhã de segunda-feira fugimos do mercado, arregaçamos a calça e dissemos: - vamos embora daqui! Fomos para casa de Gizelo Miranda. Quando chegou de manhã, que clareou... Meu Deus! Todos ficaram em pânico! Aqueles morros todos caídos, era um desespero! Fomos de trator

Gelásio Richart pregando as tábuas para que a água não entrasse no mercado. 76


para casa da Vó Arani que nos emprestou a casa. Minha saúde piorou muito, fiquei com um trauma que acho que nunca mais vai passar. Cai uma chuvinha, tu nem imaginas! Por exemplo, sábado agora deu uma trovoada, já corremos para nossa casinha em que estamos agora. Ficamos no mercado durante o dia, que também é nossa morada em cima, e à noite voltamos para essa casa. Não fomos para alojamento nenhum, ficamos direto na casa que nos emprestaram, desde a enchente. Na primeira semana ficaram conosco meus vizinhos, Emael e a Chica com dois filhos, na terça-feira de manhã, o helicóptero veio buscar os meus filhos que também ficaram aqui, a Juliana, Darley, Júlio e Patrícia e as netas Manuela e Rayane, e nós permanecemos lá. Depois quando tudo passou, Gelásio, Jô e Julinho começaram limpar o mercado, tentando colocar tudo em ordem novamente. Só reabrimos em janeiro, agora que está começando a melhorar o movimento.

Limpeza do mercado após a enchente.

Perguntei se conhecia as pessoas que haviam morrido. Logo depois de tudo ter acontecido, nos contaram que tinha um menino morto, e eu pensei: Quem será?De onde veio?Então me falaram que era filho do Zaíro Zabel e que tinha morrido toda a família dele. Meu Deus! São todos primos nossos, porque a mãe dele, a Laudelina, era minha prima. E as pessoas que morreram no morro azul, o Roberto, Cida, Betinho, Bárbara,Rodrigo e o Leandro eram meus primos. Todos eram primos. Não acredito ainda que essas pessoas foram embora. Ninguém sabe o porquê disso tudo, se foi o gás, ninguém sabe, só Deus que sabe! Por que, meu Deus? Por que foi toda essa gente embora? (falou-me emocionada demais) E hoje, é meu aniversário, nessa data a Cida todo ano estava aqui comigo, se não tivesse ido, ela estaria aqui comigo, nós éramos muito amigas, era uma amiga com quem eu podia contar em todas as horas, caminhávamos juntas e conversávamos muito mesmo. E hoje minha filha disse: - mãe, vou comprar bolo para comemorar teu aniversário! Eu falei que não queria nada! E ela insistiu - mãe, tu estás aqui com a gente!’ Então eu disse, está bem! Mas é um dia que me traz muitas lembranças tristes. Quando saímos para ver o resultado da tragédia, eu jamais imaginava que nosso Baú estaria assim, acabou tudo, parece que o mundo parou! Nunca imaginei que um dia iria passar por isso tudo!

Destruição na rua após a enchente.

77


Dia 15/03/2009 :: Depoimento de

Ademilson Bucher Júnior

Paramédico Bombeiro da cidade de Brasília DF.

C

hamo-me Ademilson Bucher Júnior, sou Paramédico Bombeiro em Resgate de Rodovias em Goiás, agente da Defesa Civil em Brasília e instrutor de salvamento. Eu, meus amigos Ecledinaldo Fontinele e Gerson Peçanha, ambos sargentos, fomos voluntariamente para Santa Catarina. O que presenciamos em Itajaí e principalmente em Ilhota foi algo que mexeu muito conosco. Sabíamos o que iríamos encontrar, mas não sabíamos a proporção do desastre. Ver aquelas famílias sem o seu lar, tendo que desocupá-lo para evitar mais riscos de morte foi muito triste. O que mais motivou nós três a sair de Brasília para Santa Catarina foi a vontade de ajudar o próximo, não importava a distância ou a dificuldade, para nós o importante era chegar ao alvo. Tivemos problemas com os pedágios, mas tudo saiu bem. Chegamos a Santa Catarina com a missão de ajudar o próximo, não só de salvar vidas, mas de dar um apoio moral, dizer a eles que eles são vencedores, capazes, determinados, para sair daquela situação e começar tudo novamente. Presenciamos cenas fortes de tristeza e no meio de tudo aquilo presenciamos também alguns sorrisos. Saímos de Santa Catarina com a missão cumprida e amigos conquistados. Agradecemos a todos vocês por nos terem recebido!

Bucher, Peçanha e Ecledinaldo.

Brasília, São Paulo, Ilhota e Araquari, todos unidos pela mesma causa.

Foto cedida por Ecledinaldo

Ecledinaldo e o repórter Datena

78


Dia 06/02/2009 :: Depoimento de

Capitão Rodrigo Canci Pierosan Capitão da Brigada Militar do Rio Grande Sul gravidade, mas curiosamente atravessou o rio com o cão preso pela mordida em sua luva. Quando achávamos que nada mais nos surpreenderia naquele dia, tivemos no retorno a Itajaí a triste noticia de que dois colegas nossos, soldados PITHAN e VIERA, bombeiros como nós do Rio Grande do Sul, estavam gravemente feridos por soterramento em outra localidade, quando resgatavam pessoas isoladas, também em área de alto risco. Em seguida, mais noticias, informando que duas pessoas haviam morrido neste incidente. O celular passou a ser o mensageiro das desgraças, a tensão tornou-se insuportável, pois nossos colegas de farda são mais que nossos irmãos, e a viagem de retorno tornou-se impraticável. Para a viatura na BR 101. Não era mais possível continuar. Estranhamente, nossos cães, sempre tão altivos e barulhentos estavam calados, pareciam sentir ou solidarizar-se conosco naquele momento. Quem sabe? Fizemos uma oração de mãos dadas, rogando a Deus ou a qualquer Força em que acreditássemos, que protegessem nossos colegas, que suas vidas fossem poupadas, pois sua força era nossa força, seria impossível prosseguir longe de casa, em meio às condições mais adversas, com tamanha angústia. Como rezar, se você só consegue chorar? Como prosseguir na incerteza, retirar forças e motivar os colegas se está abalado? Não sabemos. Da mesma forma que não se sabe de onde os colegas tiveram forças para não sucumbir e hoje estão bem. Talvez do mesmo local, se é que existe, de onde a cada dia todos nós e os demais colegas tiravam forças para suportar o calor, a fome, o cansaço, o cheiro da morte e a visão da destruição, a falta de notícias boas para aquelas comunidades... Esta força só aparece nestes momentos, e isso alimenta todos os bombeiros, talvez seja esse o combustível que nos fez escolher esta profissão, talvez seja o sorriso das senhoras e crianças de Ilhota, que nos recebiam a cada final de dia, o agradecimento velado, mas sincero de um povo tão querido, em meio a nossa vida.

O

mês era novembro de 2008. E nós éramos sete. Sete bombeiros militares do Rio Grande do Sul: Rodrigo, Poncio, Ewerton, Munhos, Jurandir, Julenir e Aquino. Na verdade éramos dez, pois nos acompanhavam ainda os cachorros Frank, Sara e Ilhota, a qual fora salva alguns dias antes por nossa equipe, em meio ao grande fluxo de veículos na estrada (BR 101) que dava acesso às localidades de Ilhota e Itajaí, daí a explicação para seu nome. Ela foi o primeiro de muitos salvamentos, embora nem todos com finais felizes. Esta cadela, da raça Pit Bull, tornou-se o símbolo de esperança e conquistou a todos em sua volta pelo seu carinho e afetividade, apesar de ser de raça considerada brava. Voltávamos de mais um extenuante dia de serviço no local conhecido como ALTO BAÚ, área de extremo risco, onde um morador que era caminhoneiro havia perdido toda sua família no desastre, e em cujo local ainda não haviam sido realizadas buscas devido ao perigo apresentado pelo terreno. Neste local, apesar do difícil acesso, passamos o dia realizando buscas e em meio aos destroços conseguimos apenas as fotos do morador e sua família, lembrança esta que talvez fosse a única que o mesmo pudesse ter materializada em suas mãos. Este fora um dos dias mais difíceis, pois a comoção era grande, e não havia palavras para descrever a cena de destruição dos locais percorridos, as casas destruídas, animais mortos e restos de vidas ceifadas de um lugar tão bonito e com povo tão trabalhador e afável. Também não havia palavras em nossas bocas no momento da entrega das fotos de pessoas para nós desconhecidas, mas que de uma forma inexplicável já faziam parte de nossas vidas, e dizer que naquele momento era só o que podíamos fazer, enquanto o pai de família as recebia e a dor que sentia era tal que todos os presentes apenas podiam ficar em silêncio. O relato dos bombeiros mais antigos de nosso grupo convergia para a mesma conclusão: em mais de vinte ou mesmo trinta anos de serviço e os mais antigos jamais haviam presenciado desastre de tal magnitude, nem tanta destruição e tristeza junto a famílias de pessoas que simplesmente perderam tudo, inclusive a família. Neste clima desolador regressamos com a equipe e os cães, mas não sem antes retirar 8 cachorros que estavam ilhados em uma propriedade rural, os quais estavam há dias sem comer e já apresentavam sinais de doenças, sendo que um de nossos bombeiros acabou mordido, sem

Brigada Militar do Rio Grande do Sul.

79


Dia 15/03/2009 :: Depoimento de

Incondicional

Cefas Queróis

Bombeiro Voluntário da cidade de Brasília/DF

H

oje faz dez dias desde quando a Defesa Civil de Brasília atendeu ao chamado de Santa Catarina. Uma força-tarefa de proporções jamais vistas antes foi acionada para ajudar na crise e preparar o documento mais importante para o momento de crise: o AVADAN - Relatório de Avaliação de Danos. A partir deste relatório, o Governo Federal autorizará, por M.P. assinada pelo Presidente da República, o custeio de valores necessários às cidades atingidas pelas chuvas de Novembro. Assim como todo o Brasil, Brasília inteira se solidarizou e, nestes dez dias, conseguimos arrecadar, mais de 620 toneladas de donativos, entre água, alimentos de primeira necessidade, kits de higiene pessoal, roupas, cobertores, medicamentos e brinquedos. QUATRO carretas com mais de 20 toneladas cada, encabeçam a primeira leva da comitiva que abastecerá as cidades afetadas. Dez batedores militares em motos, quatro viaturas X-Terra e um Helicóptero, manobram perfeitamente por uma logística de escoamento, cinematográfica. Enquanto aguardam, todos os que estão à beira da Saída Sul de Brasília nos aplaudem. Fazem-no sem saber que os verdadeiros heróis, aqueles que realmente merecem ser aplaudidos, são todos os que doaram esperança, através de sua boa vontade e de acordo com suas condições. A esperança anda sobre 28 eixos, 8 braços, uma caneta que relata e mais de 2 milhões de corações.

... E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, NADA SERIA.

Cefas Queróis em mais uma de suas boas ações: Num certo dia no Alto Baú, Cefas conta: Uma senhora, moradora da região, passava todos os dias pela estrada acima, da qual fora batida a foto. Ela impressionou-se ao contar-me como aquela carcaça de cachorro morto resiste tanto tempo sem ser comida pelos urubus. Eu disse: Como está morto e não tem urubus? Ela respondeu: Não, não tem nenhum, ela (a carcaça) está lá há muito tempo. Eu corri! Peguei os equipamentos. Meu amigo bombeiro Rafael Motta, do C.B.V.U. foi junto. Registrou o óbvio, porém assustador fato: o cão estava vivo. Atolado há pelo menos cinco dias, até a cabeça. Quando eu o resgatei, nem força para firmar o pescoço ele tinha...

... É solitário andar por entre a gente... 80


... É querer estar preso por vontade... nos corações humanos “amizade”

... É servir a quem vence o vencedor ... É ter com quem nos mata lealdade

... nos corações humanos

... Se tão contrário a si, ABSURDAMENTE É O MESMO Amor?

Mas como causar pode, Seu favor 81


Dia 10/02/2009 :: Depoimento de

Cidnei Conink

Patrício Zuccki

Subcomandante dos bombeiros voluntários do município de Ilhota. (um dos 14 herois)

N

o sábado, dia 22 de novembro de 2008 à tarde, fui para o quartel porque chovia demais e precisava ajudar os meus companheiros. Então começaram as ocorrências de alagamento e desmoronamento de terra, nas minas, Ilhotinha. O telefone não parou de tocar a noite toda por motivo das chuvas. Domingo de manhã trabalhamos bastante no bairro Vila Nova e Ilha Bela até a tarde. Depois começaram os telefonemas de pessoas que ficaram encalhadas na rodovia e margem esquerda. Fizemos a mudança do quartel e montamos nossa base na prefeitura e no posto de saúde. Às 3 horas da tarde não tinha como passarmos para Gaspar e Itajaí. À noite veio uma família pedindo para buscar seu parente que estava ilhado no antigo clube Cepel, mas pedimos para ter um pouco de paciência, pois ainda estávamos tirando vítimas das casas com o barco. Foi um pouco cansativo porque tínhamos só uma embarcação no momento, depois essa família retornou porque o rapaz estava sentindo muito frio. Fomos buscá-lo por volta das 22 horas, trabalhamos até 1 hora da manhã de segunda-feira. Segunda-feira, dia 24, na parte de manhã acordamos às 7 horas e começamos a organizar a equipe para dar apoio para pessoal desabrigado, quando o Pedro Paulo recebeu uma ligação informando que no Braço do Baú estava tudo destruído e que havia uma jovem debaixo dos escombros, que eles tinham encontrado uma criança no meio do entulho. Pediram para mandar bombeiros para ir ajudar, com urgência. Começamos a pensar de que forma iríamos para o outro lado, ligamos para o major Di Carlos e ele falou que às 10 horas do mesmo dia estaria em Ilhota para nos levar ao Braço do Baú. Decorridas as horas o helicóptero não apareceu. Ao meio-dia o Vanildo, (morador do Baú) ligou perguntando se já estávamos indo. Concluindo, não sabíamos o que fazer, o Expresso não resolvia, o

Pedro Paulo e eu discutimos porque ele achou que estávamos de braços cruzados e não fazíamos nada, eu disse a ele que não seria dessa forma que iríamos resolver as coisas. Atravessar o rio com a correnteza forte como estava, colocaria os bombeiros em situação de risco. Então ele foi pedir para o prefeito o bote da balsa para que nos auxiliasse na travessia do rio. Conseguimos um barco emprestado com o Ney da Dudalina (Renê Hess de Souza) e voluntários suficientes para nos auxiliar. Foram 8 bombeiros voluntários e 6 voluntários da cidade. Atravessamos o rio às 14:30 da tarde de segunda-feira, passamos pela BR 470 e conseguimos ir de barco até o campo do União no Baú Central. Fomos a pé até a criação de peixe do Evandro, em frente do cemitério, pegamos carona com dois tratores que estavam esperando para condução do pessoal, passamos pela estrada geral do Braço do Baú que estava completamente cheia de água, postes caídos, árvores arrancadas pelo caminho. Quando estávamos no meio do caminho começamos a nos assustar com que estávamos vendo: madeira por todos os lados, árvores arrancadas, uma motocicleta no meio da arrozeira, não imaginava que veria tanta destruição como vi. Chegamos ao posto do seu Nelson Richard e vimos coisas piores, como geladeira, fogão, microondas, máquinas de lavar roupas, carros no meio da vala, bananal caído com a força da correnteza. Pensei que estava no meio de uma guerra, mas não, era uma avalanche de lama que caiu do morro. Chegamos aproximadamente às 16h30min na igreja e daí foi muito triste. Eram pessoas pedindo ajuda, vi quatro pessoas mortas na igreja dentro de caixões improvisados pelo próprio pessoal dali. A técnica de enfermagem Tereza pedindo muitos medicamentos... Mas como? Se os helicópteros não tinham aterrissado ainda! E a notícia mais triste foi quando falaram que a jovem tinha falecido por não ter aguentado de dor, mas a causa foi hemorragia. Seguimos em frente até a casa

82


do Adriano, então veio um morador dali e pediu para buscar uma vítima que tinha machucado o pé e não conseguia andar. Tivemos que nos dividir em dois grupos, um foi resgatar o homem e o outro grupo foi até ao Morro Azul onde tinham mais famílias que estavam isoladas naquele local. Encontramos duas senhoras, mãe e filha que quando nos viram, chamaram-nos de anjos por ter aparecido naquela hora. Então Pedro Paulo foi avisar o helicóptero para buscar as duas senhoras naquele mesmo dia. Já era um pouco tarde, umas 18h30min. Já estava ficando noite. Uma delas ainda comentou que tinha uma casa na frente dela onde estava seu filho, mas desmoronou com o barro. Fizemos no mesmo dia buscas para achar alguns corpos, mas não encontramos nada. A noite veio e fomos convidados para ficar na casa do Adriano, em cima do morro. Ofereceu-nos comida e alojamento para descansarmos durante a noite. Mais difícil foi dormir com tudo aquilo que aconteceu naquela localidade na cabeça. Fiquei acordado durante a noite toda com medo que acontecesse mais alguma desgraça. Às sete horas da manhã apareceu um morador do Alto Braço do Baú que falou para irmos pois havia mais moradores lá precisando de ajuda. Fizemos uma reunião com o grupo e seis da equipe foram até lá em cima pelo bananal, falaram que tinha uma rachadura no morro no meio do bananal e o outro grupo foi para o Morro Azul e o outro foi até a igreja para obter mais informações. Falei com o pai da jovem que morreu. Então eu desabei quando ele começou a contar o que aconteceu, que a Giane, a jovem que morreu, filha dele, pedia para ele que a matasse porque ela não aquentava mais de dores, que lhe desse um tiro para que não sofresse mais! Ele me pediu que encontrássemos o corpo de sua mulher, a dona Augusta, que estava debaixo da casa dele ainda, depois veio outra filha dele e me pediu a mesma coisa, depois chegou outra mais velha e nos pediu isso novamente. Então pegamos alguns moradores que nos ajudaram nas buscas começamos a tirar telhas, paus da casa, reviramos tudo, mas quando sentimos um cheiro forte, um rapaz que estava nos ajudando nos falou que tinha escutado um gemido em outro lugar. Mudamos de lugar, estávamos o tempo todo vendo um cobertor, mas não demos bola porque Sr. Altino nos falou que ela estava a mais ou menos uns dois metros de onde a filha foi soterrada.

O rapaz escutou o gemido de novo, daí olhou debaixo do cobertor e ela estava ali. Tiramos muitos entulhos de cima e a retiramos, passamos por muita dificuldade por conta do cheiro forte. O capitão Coelho sobrevoou o local e pousou no pátio de uma casa, embarcamos o corpo no helicóptero e foi levado até a igreja, tiramos do helicóptero levamos para o cemitério. A filha dela perguntou se era sua mãe e falamos que sim. Ela agradeceu muito. Depois a mesma nos pediu para irmos resgatar seu marido, o sogro e a sogra e vizinhos parentes que estavam no outro lado da parte onde começamos a fazer as buscas. O Capitão Coelho e o Major Di Carlos com o Águia 2 e o helicóptero da Polícia Civil, Pelicano, resgataram as vítimas. Depois eles vieram perguntar onde havia mais vítimas. A nora do seu Nelson, conhecido por Nelson Bananeira, nos pediu para irmos lá na localidade que ela morava e o Capitão Coelho disse para ela ter um pouco de paciência, que ele iria abastecer a aeronave e que depois a prioridade seria aquele local. Mas não precisou porque em 10 minutos eles apareceram com um trator, mas mesmo assim ela nos agradeceu muito por tudo que estávamos fazendo. À tarde pousou uma aeronave com médicos do SAMU, com medicações, alimentação e água. Também na mesma tarde começou a aparecer corpos no Baú Baixo, bem onde deixamos os barcos. O corpo de uma mulher foi encontrado, depois de um homem, e também uma criança. Organizamos a transferência de algumas famílias para outro alojamento no Baú Central, no salão da capela. Depois começou um tumulto porque ouviram falar que o Morro do Baú iria cair, então pedi para o Capitão Coelho sobrevoar, ele pousou e disse que podíamos ficar tranqüilos que não havia risco de cair. Um bombeiro se machucou e voltou para Ilhota de helicóptero com o capitão Coelho. Depois por terra vieram os outros. Eu e Pedro Paulo viemos mais tarde com o helicóptero da polícia civil. Pousamos no campo mais ou menos às 19h30min de terça-feira, dia 25. Estávamos muito cansados e exaustos por não ter dormido direito todos esses dias. No Braço do Baú ficaram os bombeiros voluntários, Marciel e Fábio. Sem mais a relatar, no momento é o que me lembro.

Cidnei Conink e sua missão, na posição de Subcomandante do Bombeiros Voluntários do Município de Ilhota.

83


Dia 26/03/2009 :: Depoimento de

Claiton Carlos da Silva

Bombeiro voluntário do município de Ilhota.

N

o dia em que se deu a catástrofe, eu fiquei quase todos os dias no campo municipal ajudando as vítimas que eram resgatadas vindas do Baú. Dando assistência no que fosse preciso. Na quarta-feira, dia 26 de novembro, fomos para o Braço do Baú, estávamos em três bombeiros voluntários, eu, Thiago Brassanini e Maurício Ferreti e três civis, Clésio Fischer Augusto dos Santos, Luiz e Adriano Vidal. Clésio sabia que lá morava um senhor de idade, o seu Tuti Alves, que não havia sido resgatado e sabia também que ele morava sozinho, no Alto Braço do Baú. É que os helicópteros chegavam para fazer evacuação e como ele morava na rua em frente à igreja Santa Paulina e essa rua ficou isolada, ele disse que via os helicópteros passarem, mas achou que estavam apenas vendo a enchente. Quando chegamos lá no Braço do Baú o pessoal dizia que não iríamos conseguir chegar até o Alto Braço caminhando, mas conseguimos. Chegamos lá por volta de duas horas da tarde, encontramos o senhor Tuti, ele nos dizia que estava bem, que acabara de comer um prato de feijão com arroz, só que não tinha comida para muito tempo. E nós insistimos para ele ir com a gente porque a situação estava desesperadora. Ao redor da casa dele estava tudo tranquilo, não se via nada de anormal. Senhor Tuti então saiu da casa dele e foi conosco olhar como estava a situação do local. Quando ele viu que não tinha mais estradas, nem pontes, que davam acesso à casa dele, resolveu nos acompanhar. Quando passávamos pela igreja ele começou a chorar, dizendo: - Meu Deus! Eu não sabia que tudo estava tão feio! E agora, como vamos embora? Ele nos abraçava e chorava. Eu falei para ele que não tínhamos mais comunicação com nenhuma aeronave, que teríamos que caminhar um bom pedaço, e muito perigoso, com muitos obstáculos, barreiras árvores caídas, coisas assim. Na saída da rua dele, como não havia mais ponte, passamos com água e lama até a cintura, não queríamos que ele se molhasse por ser um senhor de idade e passamos com ele na garupa. No caminho o senhor Tuti nos falava: - Acabou o Baú, acabou o Baú! Naquelas barreiras passávamos com ele na garupa por muito tempo com barro até a canela e outras vezes, muitas vezes cortando os galhos de árvores com facão, para fazer apoio em cima do barro para passarmos

BV Claiton, o repórter Caco Barcellos e o BV Ângelo Ramos. com ele, e também improvisávamos uma maca com madeira para passar com ele. Passávamos por dentro do mato e morros, lama porque estradas quase não havia mais. No caminho tentávamos alegrar seu Tuti contanto piadas, daí ele começou a dar umas risadas. Levamos umas 3 horas, saímos 8 horas da manhã, porque a parte difícil foi na ida, cortavamos os cabos de iluminação e fazíamos apoios para termos onde nos firmar no meio daquelas barreiras, passávamos um cinto por dentro e íamos andando, depois tirávamos o cinto. Para fazermos tudo isso foi bem complicado porque primeiro um de nós tinha que se arriscar levando o cabo para os outros passarem. cortávamos esses cabos de aço de iluminação e fazíamos passarelas, pontes. Então a volta foi mais rápida porque esta parte já estava feita. Andamos mais ou menos uns seis quilômetros. Conseguimos então depois de muito tempo chegar à igreja do Braço do Baú. Na igreja ele teve tratamento meu e da enfermeira Cristina. Depois de ter passado por muitas emoções, até no primeiro momento em que ele viu toda aquela destruição, achamos que iria dar alguma coisa nele, mas depois que tudo passou e que ele foi encontrando moradores, bombeiros, passou todo aquele susto, começou a conversar mais e a alegria dele voltou e nos agradeceu muito. Depois então retornamos para Ilhota, felizes com mais uma missão cumprida. Voltei novamente para o campo municipal, continuando a ajudar as pessoas que por ali passassem.

Trabalho do bombeiro voluntário Claiton Silva no campo municipal de Ilhota, durante todo o período da catástrofe.

84


Dia 04/02/2009 :: Depoimento de

Clarissa Knabben Presidente da ONG VIVA BICHO de Balneário Camboriú.

D

omingo, dia primeiro de fevereiro vai ficar guardado na minha memória para sempre. Foi o dia em que finalmente pudemos ir ao Baú resgatar os animais. A minha agonia começou no dia em que vi a tragédia no jornal Nacional. Aquilo me chocou de uma forma que eu só pensava naquelas pessoas, na agonia de todos ali. Mas pensava também nos animais, afinal centenas de bombeiros e voluntários lutavam incansavelmente para salvar as pessoas... Mas e os animais? Será que alguém estava se preocupando com eles? Sei que diante a tanta tragédia humana, pensar nos animais pode parecer algo sem sentido, mas eles são alminhas providas de sentimentos e assim como as pessoas de lá, ficaram assustados e apavorados! A minha preocupação era que depois dos resgates, não tendo ninguém mais naquela região, como ficariam os animais? Durante dias, semanas fiquei nessa preocupação, procurando informações que viessem de lá. Até que um dia veio a notícia de que um bombeiro voluntário vindo de Brasília estava cuidando dos animais; forçadamente abandonados; daquela região. Meus olhos se encheram de lágrimas de emoção e foi aí que começamos, juntamente com a ONG de Blumenau, a mandar ração e medicamentos para que essa pessoa iluminada, (que além de se preocupar com os humanos lembrou também dos animais), pudesse

Ongs no dia do resgate dos cães. tratar deles! Infelizmente gostaríamos de ter ido bem antes, mas a defesa Civil não permitia, e a falta de estrada dificultava muito também. Mas ficamos todos mais tranquilos quando o pessoal da Ecosul, coordenado pelo nosso querido Halem Guerra esteve lá levando muita ração, escalando montanhas e andando por estradas improvisadas para identificar o número de animais abandonados e machucados. Muitos foram tratados pelos veterinários da equipe e até vacinados. Nesse domingo tão especial pudemos notar como os animais são fieis aos donos, pois a maioria deles não deixou suas casas, mesmo que destruídas estavam lá, aguardando seus donos voltarem, uns sem saberem que eles nunca mais voltariam pois estão mortos. Agora esperamos doar essa turminha simpática, para que cada um deles tenha a oportunidade de ter novamente um lar e um dono que lhes dê carinho e a atenção que eles merecem. Se depender de mim todos vão ser muito bem encaminhados e eu mesma já escolhi o meu, um cachorrinho bem velhinho, que foi encontrado atolado na lama e que foi batizado de Cefas, em homenagem ao seu salvador, que durante semanas abriu estradas, caminhou quilômetros, subiu montanhas para cuidar dos animais ali abandonados. E meus mais sinceros parabéns a todos os bombeiros e voluntários que ajudaram na tragédia do Baú, eles merecem tudo de bom.

Todos os cães eram verificados e caso fosse necessário, medicados.

85


Dia 18/02/2009 :: Depoimento de

Cláudio Moje

Entrada da Tifa do Grahl, onde Cláudio tem sua morada.

Morador do Alto Baú, na Tifa do Grahl.

M

da Guerda, o meu primo Norberto falou: - Não, eu tenho que buscar aipim para as criações. E eu: - deixem tudo, gente! Larguem isso e não a vida, vamos embora, vão para cima, lá em casa,vocês vão morrer se ficarem! E eles:- Como tu sabes? E eu: - Eu tenho certeza, estão vendo essa rachadura? Está infiltrando água, isso vai cair tudo! Então voltei para minha casa à noite, num momento sentimos um tremor na terra, logo em seguida vimos um clarão no céu, e em seguida começaram a descer as barreiras e já fechou tudo. Fiquei muito preocupado que pudesse vir tudo abaixo, saímos de casa e fomos para outro morro, então abri a mata, montei um barraco para pôr toda a família lá dentro, levamos comida, eu não queria ficar onde havia perigo de barreira, eu pensei, se realmente o morro descer nós ficaríamos por cima, para não ficarmos soterrado embaixo. Tínhamos um celular com pouca carga lá, começamos a ligar para os bombeiros, para nos resgatar de helicóptero e eles disseram que tinham muitos resgates, mas era para todos ficarem tranquilos que iriam resgatarnos. Como iríamos ficar tranquilos com barreiras caindo por todo o lado? Ficamos lá o dia inteiro, e nada! À tarde veio uma vizinha, Terezinha, o marido Gionei com uma criança pequena, ele tinha feito uma cirurgia fazia 9 dias, vieram por dentro de barreiras e dizendo que embaixo estava se acabando tudo. Foram para lá porque acharam mais seguro. Ficamos todos naquele barraco, em onze pessoas, ninguém conseguia dormir, nenhum dia, chovia muito. E se só ouvia barreiras caindo por todo o lado, barreiras de 400mts de comprimento. O sogro de Terezinha que estava em Navegantes, conseguimos ligar para ele, como ele conhece o comandante dos bombeiros, ele então pediu para nos tirar de lá. O helicóptero então chegou na terça-feira ao meio-dia, pousou na clareira onde eu tinha derrubado o mato, perto da barraca. Era o pessoal da força aérea do Rio de Janeiro. Descemos no campo do

oro na Tifa do Grahl desde1980. Nesses anos todos nunca vimos acontecer uma tragédia tão grande como aconteceu no ano de 2008. Começou tudo no sábado dia 22 de novembro, nesse dia já havia caído algumas barreiras, mas pequenas. Mas foi no dia 23, domingo, que piorou, as chuvas aumentavam, a minha rua já havia fechado, caíram mais barreiras, mas as maiores foram à noite. Eu estava com minha família em casa, minha esposa Primavera, minha mãe Catarina, meu irmão Evelásio, que é deficiente, e 3 filhos, Leandro (20), Adriana (17), e Geazi (14). Domingo de manhã, lá pelas 9 horas eu fui lá na casa da prima Guerda, ela morava abaixo da minha casa, era uma casa bem antiga e grande, lá morava também meu primo Norberto, o marido de Guerda, minha tia Adelaide, que era irmã do meu pai, meu tio Rofolfo, os filhos Nivaldo, deficiente, Niberto e Nilma, grávida de 7 meses, e o marido de Nilma,o Robson, mas no dia ele não estava porque estava trabalhando em uma banda de música. No caminho que vai da minha casa para a casa dela vi que havia rachaduras, eu desci e fui lá, e pedi para eles saírem de casa, não pedi, implorei para que eles saíssem. Falei assim: - pessoal, saiam da casa, porque vocês vão morrer todos! E eles, disseram que não, que isso não ia acontecer, e eu insisti, está tudo rachado e está chovendo muito, se aqui começar a vazar água vai dar uma barreira e vão morrer todos. E eles, não e não, e meu tio Rodolfo disse: - Eu já tenho 81 anos, desde quando eu tinha 12 anos tem uma rachadura pequena lá por cima do morro e até hoje não caiu. E eu disse: - Não tio, saiam da casa, vão para baixo em um vizinho ou vão lá para casa, tenho lá a casa liberada para vocês! Porque eu tenho uma casa grande lá. O marido

86


Quinha, no Alto Baú. Lá encontrei a prima Guerda, e o filho Niberto, foi a maior alegria, porque eu achava que tinha morrido todo mundo, porque sabia que estavam na casa, eram teimosos e não quiseram sair,eu ainda fui lá na segunda-feira e não se via nada, só barro, mais nada. Perguntei para ela sobre os outros e ela chorando me falou: - Só eu e Niberto escapamos. Lá morreram 5 pessoas, na realidade 6 por que Nilma estava grávida de 7 meses. Lá foram os meus tios Rodolfo e Adelaide, meu primo Norberto, o filho Nivaldo que era deficiente e Nilma. Foi muito triste, ficou só a prima Guerda e o filho Niberto sozinhos. Meu tio Rodolfo para mim era igual a um pai, nós nos criamos ali juntos, eram os primeiros vizinhos, estávamos sempre lá. Meu Deus! Foi muito triste vê-la falando. Depois que estávamos no campo do Quinha eu fui junto com o pessoal do helicóptero para mostrar outras casas onde provavelmente havia pessoas para serem resgatadas. Minha família foi para Ilhota, mais tarde eu fui com meu filho Leandro também para Ilhota, lá descemos no campo no centro e depois fomos para a APAE, onde já estava a família, ficamos por 3 semanas. Nesse meio tempo fui também reconhecer o corpo de Nivaldo em Gaspar na casa mortuária. Depois fomos morar em Luís Alves, na casa de um amigo, o Ademar. Quando eu estava morando em Luís Alves, acharam os outros corpos dos meus parentes que faltavam, mas não fui avisado porque não sabiam onde eu estava. Não fui aos enterros. A mais difícil de ser encontrada foi Nilma, foi a última Depois de um tempo voltei lá para ver como ficou tudo. Lá tinha ranchos que caíram, fornos e um galpão, a minha plantação, 90% eu perdi, tinha plantado 12 mil pés de mangarito, uma espécie de batatas, só me sobrou uma rocinha de aipim. Perdi meus animais também. Mas graças a Deus, minha casa está lá! O que mais me deixa chocado, além da perda de parentes e amigos, é saber que foram os meus parentes que construíram as igrejas. Nem sequer foram velados e nem enterrados no cemitério que eles próprios construíram. O que

mais nós agricultores queremos agora é poder voltar a trabalhar em nossas terras com nossas famílias. Antes de acontecer isso tudo, nunca precisei pedir comida ou qualquer sacolão, porque a pior coisa para um colono é pedir comida, é muito chocante passar o que estamos passando. Que meu querido povo se lembre! “Ao sentar-se à mesa, nas horas das refeições, que todo alimento vem pelas nossas mãos, as mãos de um agricultor!” Eu Cláudio Moje, apenas peço ao lerem tudo isso, que torne a pensar diferente, como pensavam os meus parentes que morreram. E que reflitam sobre toda essa tragédia e deem mais valor à vida,ao próximo e à natureza antes do que qualquer bem material. E nunca pense que se semeares milho colherás feijão. E nunca em nenhum momento se esqueçam de Deus! Pense o bem que o bem virá! DENKE ANS GUTE, DANN KOMMT ES! Perguntei se pretendia voltar para o Baú. Eu só estou esperando fazerem minha rua lá, mais de 500 metros de rua foi embora. Depois quero voltar sim. Mas o sofrimento vai ser muito grande, porque a gente passava sempre lá na casa da Guerda, e agora não tem mais nada, só barro, só lembranças! Estive lá na minha casa, com minha mulher e meu primo Adolfo, umas duas vezes, mas não consegui dormir, chovia muito, muito barulho, dava muito medo. Mas vamos ter que nos acostumar. Só ficamos sabendo depois, que aquele clarão que deu naquela noite e aquele tremor, foi consequência do rompimento do gasoduto. Hoje, vejo todos esses desmoronamentos de terra e as mortes por causa da explosão do gás, porque até ali não havia morrido ninguém, e depois daquilo houve tantas mortes, uma coisa daquela eu nunca vi acontecer antes. Já estava tudo rachado. Sábado de manhã já havia estourado o gás na BR 470, e a outra explosão então foi no domingo à noite no Arraial (bairro de Gaspar), que é próximo ao Alto Baú.

Terreno de Claúdio Moje, onde havia suas plantações. 87


Dia 18/02/2009 :: Depoimento de

Comandante Evandro Vinotti

Comandante do Corpo de Bombeiros de Indaial

B

novembro. Retiramos onze pessoas de suas residências alagadas no bairro da Velha na cidade de Blumenau e as levamos para lugares seguros, graças a uma serie de técnicas e equipamentos de resgate em corredeiras que desenvolvemos no Corpo de Bombeiros por conta do Rio Itajaí-Açu. No dia seguinte, segunda-feira, saímos sedo com um grupo de doze Bombeiros , oito de Indaial e quatro de Campo Belo do Sul, inclusive com seu Comandante Amarildo, com destino a uma localidade chamada Serafim. Era de lá que ouvíamos as solicitações de socorro através das poucas rádios que ainda funcionavam, uma parte fomos de jipe, graças à importante disponibilidade do jipe clube de Indaial, parte fomos de moto graças ao apoio do moto clube Belchior e por fim algumas horas a pé, nosso destino original teve que ser alterado, já no Belchior solicitações de socorro nos informavam de uma senhora que havia ficado soterrada e que foi salva por moradores, estava com as pernas quebradas e urinando sangue. Quando com muita dificuldade chegamos na casa em que esta senhora se encontrava nos deparamos com seu filho com um ferimento considerável na perna, com o patriarca da família deitado ao lado da referida senhora, ele já sem vida, e a senhora consciente orientada e de fato com suspeita de fratura em ambas as pernas. Iniciamos um longo e difícil trabalho de remoção da família, o patriarca para uma comunidade próxima, que providenciaria o funeral, o filho e a matriarca para o Hospital Santa Isabel, tarefa esta que durou o dia inteiro, parte a pé, parte de jipe, parte de caminhão. No início até contatamos o Corpo de Bombeiros de Blumenau solicitando uma aeronave, mas como a aeronave não veio, pois muitas eram as solicitações de socorro, fomos obrigados a removê-

em, tudo começou dia 23 de novembro de 2008. Eu, Cmte Vinotti estava indo com alguns amigos acampar na Argentina quando recebemos uma ligação do Corpo de Bombeiros de Indaial, “Comandante precisamos que o Senhor retorne para Indaial, pois a região esta sendo acometida por uma tragédia, varias regiões já foram atingidas e o problema é gigantesco.” Imediatamente retornamos, só encontramos chuvas na decida da serra geral, fato que se justifica por conta do relevo. Já em Indaial, organizamos nossas equipes, chamamos nossos Bombeiros através de plano de chamada, e começamos a vigília. À noite, por volta das 22:00 horas, começamos receber ligações de pedido de socorro do bairro do Garcia em Blumenau, a informação que tínhamos é que os telefones de emergência de Blumenau não funcionavam mais, 192 e 193, já nossa cidade estava bem, então organizamos uma equipe de resgate com veículos do jipe Clube de Indaial e fomos para Blumenau, com intenção de chegarmos no Garcia, mas não foi possível, tentamos pelo bairro da Velha, mas em determinado ponto da Velha para a rua Antonio Zendron a rua já estava interditada e inclusive os moradores estavam na estrada pois várias casas estavam ameaçando cair. Orientamos para irem para longe em locais seguros, retornamos para um outro caminho mais convencional. Além de estar tudo alagado, assim que desembarcamos dos carros os moradores identificando que éramos Bombeiros, de pronto nos pediram socorro pois muitas pessoas estavam trancadas no segundo piso de suas casas ou no forro. Aí efetivamente iniciava nosso trabalho na catástrofe de

Cmte. Vinotti e sua equipe de Indaial nas buscas de vítimas da catástrofe.

88


la, sob pena da dona Márcia falecer ali, assim como seu marido que não suportou os ferimentos e acabou falecendo ao lado de sua esposa, ambos foram vítimas de um desmoronamento e ficaram parcialmente soterrados por aproximadamente doze horas. Bem, daí em diante trabalhamos dia após dia por dois meses, primeiro no resgate de sobreviventes, depois na busca de pessoas desaparecidas, nossa equipe localizou onze pessoas que faleceram durante a tragédia, nosso quartéis de Bombeiros Voluntários espalhados em Santa Catarina se organizaram e mandaram caminhões de mantimentos, roupas e remédios. Em Indaial, outra frente de trabalho envolvendo Bombeiros e pessoas da comunidade separava essas doações e as distribuía, distribuímos mais de seiscentas ferramentas, como pá de cavar, enxada, pá de juntar, enxadão, isso tudo doado pela empresa Belota de Indaial que fez um trabalho magnífico de ajuda humanitária. Fomos a primeira equipe de Bombeiros equipada e organizada com os mais variados equipamentos de resgate e atendimento pré-hospitalar que chegou por terra na região do Morro do Baú, Revesámo-nos a cada quatro ou cinco dias. A equipe retornava ao Corpo de Bombeiros de Indaial e outra equipe ia para as regiões atingidas. Nosso descanso era assumir o plantão em Indaial. Trabalhamos nestes dois meses no Belchior, Serafim, Baú Seco, Alto Baú, Baú Central, Braço do Baú, Alto Braço do Baú, Blumenau e em Timbó, além é claro, da cidade de Indaial. Concluímos com esta tragédia que por maior que seja nossa impressão de segurança, o meio em que vivemos é muito instável e que temos que estar preparados para responder às tragédias causadas por esta instabilidade, que não estamos preparados para isso, Bombeiros Voluntários, Militares, Polícias, Defesas Civis, Governos, enfim, falta muito ainda para termos o mínimo de organização necessária para fazer frente a este tipo de problema. Concluímos ainda que o projeto, Unidade Arcanjo, (equipe de operações especiais) do Corpo de Bombeiros Voluntários de Santa Catarina é um dos caminhos para melhorarmos nossa capacidade de resposta.

Edson Berri, Adilson Eskesem, José Antonio Stefens, Noêmia Paulo, Rafael Goulart, Silvana Feuser, Jair Rodrigues, Sandra Novack, Cmte. Amarildo Molinari, Elias Mello, Claudir Lopes Linhares, Cristiano da Silva, André Celestino, Cleversom de Oliveira, Evandro Pereira da Silva, Marciano de Oliveira Rosa, João Batista Thomé Furtado, Sebastião Josino Rodrigues, Anildo Mota Lopes, Luciano Anastácio Hoffer, Cristiano Dias e ainda os Bombeiros que não foram diretamente para a frente de trabalho, mas que de alguma forma mantiveram os plantões em nossas unidades para que pudéssemos ir a campo. Em nome de nossos Bombeiros estendo minha homenagem a todas as equipes de resgate que tanto trabalharam nas operações, e em especial aos resgatistas que sofreram graves acidentes, inclusive os que foram soterrados, mas que felizmente sobreviveram. Dedico homenagem especial ao Zairo que tanto tem sofrido com a perda da sua família e em nome do Zairo, estendo minha homenagem a todos que perderam entes queridos e que estão firmes tocando sua vida, dia após dia. Lamento não ter localizado a menina Larissa de doze meses, na busca da qual trabalhamos dias, semanas ao sol escaldante cavando e cavando. Disse um morador do morro do Baú: “Deus sempre perdoa, o Homem às vezes, a natureza nunca.”

É impossível fazer uma descrição pessoal do que vimos, não vejo uma forma de passar para o papel o testemunho de tanta dor, tanto sofrimento, angústia, tristeza. Prefiro o silêncio... Dedico homenagem aos Bombeiros da minha equipe que não mediram esforços para ajudar a quem precisava Subcomandante

89


Dia 21/02/2009 :: Depoimento de

Daniel Santana e Cleonice Santana

Moradores do Alto Baú.

D

onde morávamos e já havia entrado água, e a mais alta de madeira onde era a igreja .Começou a vir muitas madeiras e bater na casa, começando a quebrar. A nossa idéia era de sair dali, mas não era possível, mas tentamos. Tinha muita água na estrada nesse momento. Quando tentamos sair, fomos arrastados pela correnteza e minha esposa dizia: - Vamos morrer! E eu: - Não! Não vamos! Como nós somos missionários, e nos propomos em fazer alguma coisa para Deus, Deus se responsabiliza, e eu dizia: - Não vamos morrer porque temos promessa em nossa vida! A correnteza nos levou aproximadamente por 15 metros, aquela água suja, muitos entulhos vindos em nossa direção, mas nós sempre estávamos de mãos dadas. Cleonice: Atrás da nossa casa tinha uma serraria, então vinham madeiras, toras inteiras, galhos de árvores. Teve um momento que tentamos nos agarrar em um galpão, de repente a água veio tão forte, que destruiu o galpão e ficamos agarrados no portão. Daniel: Prendíamos um pouco a respiração para que não engolíssemos água. E Cleonice dizendo:- Vamos morrer! Naquele momento ela caiu num buraco e começou a perder os sentidos, querendo boiar para se salvar. Então eu apertei forte em sua mão e comecei a orar que não queria perder minha esposa e naquele momento ela voltou a si, quando isso aconteceu, que firmou os pés no chão, eu caí no buraco, daí então foi a vez dela me salvar, a primeira vez eu que a salvei com a graça de Deus puxei-a para cima, e depois ela me puxou e me salvou. Acho que naquela hora Jesus nos deu mais força ainda e conseguimos entrar na casa, na parte da igreja, porque não tinha sido totalmente destruída. Mas a chuva continuava cada vez mais forte, e água subindo e a casa começou a balançar.

aniel: Somos naturais de Guarapuava, estado do Paraná. Viemos no mês de fevereiro de 2008 para Santa Catarina, e no mês de julho para o Alto Baú porque sou missionário há muito tempo. A graça de Deus tocava no meu coração que eu viesse fazer missões para cá. Quando chegamos, fomos morar na casa do senhor Augusto Fauro, onde tinha uma congregação da Assembléia de Deus e fiquei como missionário daquele lugar, visitando o povo, levando o Evangelho, uma assistência na área espiritual, alguma coisa na área social como curso de violão, mas mais na área espiritual. Ali já era um posto de pregação e um ponto de culto, e estávamos com um projeto de pregação lá no Alto Baú, e batalhando para que isso acontecesse. Ficamos cinco meses ali até que tudo acontecesse. A chuva já estava acontecendo por quatro meses aproximadamente, e no sábado, dia 22 de novembro, os morros já estavam muitos molhados e nesse dia à tarde choveu muito forte, como a terra já não conseguia mais absorver tanta água, começou a encher e estourou uma barreira e inundou tudo, só que depois a água se foi, então pensamos nós que nada iria acontecer novamente, isso aconteceu por volta de duas e meia da tarde, mas já ficamos assustados porque nunca tinha acontecido isso. Passou aquela água, deu uma secada. Estávamos eu e minha esposa Cleonice em casa, por volta de meia noite de sábado começou a chover novamente, muito barulho, já estávamos sem energia elétrica, fomos então à rua para ver como estava, o rio estava normal, mas de repente ouvimos outro barulho, mas não víamos nada de estranho na rua, e o barulho por volta de 1 hora da madrugada de domingo, fui olhar, e a água já estava inundando a casa, na frente da casa já estava tudo alagado e levando tudo. A casa era mista, a de alvenaria é mais baixa,

90


que estava conosco nos acionou falando: - Pastor, ore para que não nos aconteça nada, para que essa barreira não venha a estourar. Todos oraram, unimos a fé com todos que ali estavam independendo de religião e graças a Deus, nada aconteceu, Deus nos guardou, Deus nos livrou. Aquelas pessoas que estavam naquela redondeza ali, não tiveram danos na integridade física. Houve perda de bens materiais,mas a vida Deus protegeu. Pedimos também em orações para que pudéssemos sair dali, que viesse algum resgate logo. E na terça-feira às 7horas começaram a pousar os primeiros helicópteros para resgatar o povo. Um pousou ao lado da residência do senhor José Cândido, onde estávamos. Cleonice: Se não tivesse aquele local, não teria nem como o helicóptero pousar, foi o único lugar seguro. “Daniel: Como tinham crianças doentes, pegamos um pano branco e escrevemos: “SOCORRO CRIANÇA DOENTE”. Também pessoas idosas, esse foi um meio para que pudessem vir mais rápido para salvar aquelas crianças. E assim deu resultado. Então saíram primeiro os doentes, os idosos e depois os outros. Por volta das 8 horas não tinha mais ninguém por ali. Nós fomos no helicóptero da polícia ambiental, estávamos em cinco pessoas. Levaram todos nós para o campo do centro de Ilhota, e cada um tomou um rumo, nós não fomos para nenhum abrigo, fomos para casa de uma amiga, Elizabeth, ficamos por alguns dias, e hoje estamos aqui, na igreja do bairro Laranjeiras em Ilhota. Para o Alto Baú não podíamos mais voltar, e aqui estavam precisando de um missionário, porque acontecem períodos de mudanças no setor e aqui havia vaga e o Pastor Presidente, Altair, nos encaminhou para essa igreja, e aqui estamos fazendo obras de Deus! Muito bem acolhidos pelo povo! Queremos ainda voltar para o Alto Baú e concluir todos os projetos que lá pretendíamos fazer! Lá perdemos tudo, mas mesmo assim, se tiver uma possibilidade queremos voltar!

Igreja Assembléia de Deus

91

Marco Gamborgi

Cleonice: Ficamos apavorados, gritando desesperados para os vizinhos, e eles querendo nos salvar e não podendo. Eles moravam mais para frente, e tudo começou ali por casa porque é mais baixo. Daniel: Como nossos vizinhos são moradores antigos, sabiam mais o que poderia acontecer, só que nunca, jamais tinham visto o que aconteceu! Aconteceu semelhante ao ano de 1983, segundo o que o pessoal comenta, mas nunca tinham visto em tamanha proporção. Continuávamos a pedir por socorro, mas não havia possibilidade de socorro e quem entrasse na água era com certeza carregado. Cleonice: A metade da estrada já não havia mais, era só um buraco. Daniel: Como nós somos missionários e temos muita fé, começamos a orar para que aquela água baixasse e a chuva parasse, se isso não acontecesse não teríamos meio de sairmos dali. Continuamos a orar e a clamar. Naquele momento a chuva parou e a água começava a baixar, e foi nessa hora que eu e minha esposa saímos, mesmo assim com água pela cintura. Depois de duas horas aproximadamente voltou a chover e não parou mais, foi aí que aconteceram tantas coisas e nossa casa foi destruída pelas águas. Fomos para casa do senhor João e da senhora Irma Baiher, são nossos amigos, e ali ficamos o resto da madrugada tentando repousar, mas sabíamos que era muito difícil, porque dormir,como? O barulho da água, não parava a chuva, e sabíamos que ali também tinha perigo, então no dia seguinte fomos para uma casa mais no alto, a casa vizinha, do senhor Miro, mas ali tinha um morro atrás da casa e a chuva era cada vez com mais intensidade, e o morro começou a desabar. Então todos nós começamos a orar, pedindo que este morro não viesse em direção a casa e sim desviasse. Tinham mais ou menos 20 pessoas na casa entre adultos e crianças. Pela graça de Deus, não caiu ali, caiu no outro lado, mesmo assim não nos sentimos totalmente seguros ali. No dia seguinte fomos todos para outra casa, do senhor José Cândido, então já estávamos em mais ou menos 60 pessoas. Por ali perto caiu outro morro formando uma barragem, começando a acumular água e prestes a estourar. Se isto acontecesse muitas pessoas iriam ser prejudicadas. Como temos uma amizade muito grande, o pessoal


Dia 13/02/2009 :: Depoimento de

Daniel Manoel da Silva e Iolanda Miranda da Silva

Moradores do Alto Baú. de manhã. Nesse dia ainda ameaçou de cair mais barreira, por conta das chuvas. Levaram-nos para o morro, acima do campo, onde tem plantação de eucalipto, ficamos lá até meio-dia. Então chegou o helicóptero e fomos direto para o hospital em Blumenau. Eu não podia me mexer de tanta dor, machuquei peito e coluna, fizeram raio x e tudo mais que precisava. Depois de um tempo consegui me virar. Ergueram-me e então levantei e andei meio dobrado, sem conseguir me mover. Depois então um amigo, tio da Débora, veio me buscar no hospital, fiquei dois dias lá, depois fui para casa de minha sogra em Gaspar, nesse meio tempo, Iolanda saiu do Hospital, surgiu então essa casa em Gaspar e viemos para cá. Perguntei ao Sr. Daniel sobre os carros que ficaram soterrados. Ficaram soterrados dois caminhões, uma camionete, um pick-up, uma moto e dois tratores de pneu. O caminhão grande, agora é que conseguimos tirar, porque estava enterrado por completo.

Daniel Manoel da Silva e sua esposa Iolanda Miranda da Silva.

Iolanda: Perdemos tudo o que tínhamos, não temos mais nada, está tudo debaixo do barro. Estaríamos ricos se estivéssemos com os netos vivos, o Paulinho de 17 anos, João Pedro de 1 ano e 8 meses, Joana Maria de 7 meses, Maria Tatiana de 7 meses e Nelson, meu cunhado de 61 anos, que era como um filho para nós. Sei que não foi culpa da natureza, sei que foi o gás, se essa bomba não passasse por trás do morro de onde veio a avalanche de terra, as cinco pessoas não teriam morrido. Não matou as 18 pessoas porque estávamos numa casa de dois pisos. Eu nunca quis uma casa alta, de dois pisos, acho que Deus iluminou o Daniel para fazer do jeito que ele queria, de dois pisos, foi ela que nos salvou. Aquele foi o primeiro dia que iríamos dormir na casa nova. Acho que nunca mais vamos ter alegria, porque sempre faltarão eles no meio de nós. Nossa família foi sempre muito unida, e o que mais queremos é esquecer essa data, 23 de novembro de 2008. Nesse dia, domingo, acordamos de manhã com o ribeirão e a cachoeira já transbordando, passando por perto da nossa casa. No caminho já com bastante entulhos, mas não ficamos com medo, porque sempre que chovia, acontecia isso, morávamos há 36 anos naquele local. Como chovia sem parar eu e Daniel começamos então a ficar preocupados com os filhos. Os vizinhos estavam andando por ali, vendo a proporção em que as águas estavam e nos falaram que havia caído uma barreira, e que com isso teria caído um pedaço da casa da nossa vizinha que mora mais atrás, mas não ficamos sabendo nada dela, sempre que chovia acontecia de desbarrancar perto de sua casa. O rancho do vizinho de cima também caiu com a força d’água e também era morro. Lá em casa, porém, era seguro, ela ficava numa várzea, e não tinha morro muito perto e nem mesmo ribeirão, considerávamos o lugar mais seguro do Alto Baú. Alexandre e André, nossos filhos estavam viajando, faziam frete de toras para meu irmão Genesio Miranda, no Braço do Baú, e o neto Paulinho estava no Belchior. Ficaram ilhados por causa das águas e barreiras na estrada, estávamos sem energia, não tínhamos mais telefones e ficamos sem comunicações. Chovia muito forte. Nesse instante chega minha filha Kátia com o marido Calinho e os filhos Luís Antônio e Maria Tatiana muitos assustados com tanta água e uma barreira que havia caído em sua casa, e Luís Antônio estava por perto quando aconteceu, mas graças a Deus ele tinha saído na hora. Eu falei para ficarem todos ali, porque era mais seguro e não tinha morro tão perto.

D

aniel e Iolanda são casados há 38 anos, moraram no Alto Baú desde 1973 e tiveram seis filhos: Alexandre Daniel da Silva, casado com Débora Mensor, pais de João Pedro (1 ano e oito meses ). André Daniel da Silva. Isabel Cristina da Silva. Josimara Sandra Werner, casada com Edgar Werner. Kátia Tatiana da Silva Hostim, casada com Carlos Hostim, pais de Luís Paulo (Paulinho,17 anos), Luís Antônio (11 anos) e Maria Tatiana (7 meses ). Scheila Maria Annater, casada com João Annater, pais de Danyele (Dani, 5 anos ) e Joana Maria (7 meses). Daniel: Há uma semana, Sr. Daniel recebeu a visita de seu irmão, o Frei Pedro, teve a missa de 25 anos de Jubileu. Fizemos um almoço para amigos e parentes. Hoje, ele é o pároco de Santo Amaro. No dia 23, estávamos em dezoito pessoas, todos da família, que seria: meu irmão João Galdino a cunhada Cenilda, meu sobrinho Gustavo, eu, minha mulher, filhos, netos e mais um irmão, o Nelson Galdino, deficiente, que morava há 34 anos conosco, era igual a um filho. Até por sinal na hora que aconteceu tudo ele estava em nosso quarto, na parte superior da casa, onde nos salvamos, porque se estivessem todos na parte de baixo, ficaríamos soterrados porque a casa então teria sentado no fundo. Estávamos mais no alto, e também o que defendeu foi o caminhão caçamba, a barreira o trouxe junto e entrou na parte de baixo da segunda laje e nós ficamos em cima, por isso não desceu tanto. Segurou-nos mais alto, foi o que nos defendeu! Pela estratégia, foi isso. Depois a gente saiu, mas eu fiquei umas duas horas e meia debaixo da laje, então consegui sair sozinho. Saí imóvel, não conseguia me mexer, nem me virar, depois os amigos me colocaram em cima de tábuas e me levaram. Carregar não podiam porque se enterravam na lama, iam me jogando, um, dois três,e já, entende? E aí andavam mais um pedaço. Eu não me aguentava de tanta dor e pedia para me deixar ali mesmo. E foram me levando assim até chegar na casa do Gil (Gilberto Schimitt) que nos acolheu a todos lá. E ali ficamos até segunda-feira

92


Escombros da casa após tragédia.

A Débora, minha nora, esposa do Alexandre também veio com o João Pedro, preocupada com o barranco atrás de sua casa, a Scheila, minha filha com o marido João e as crianças Dani e Joana não mais conseguiram passar para cá, porque o ribeirão já estava cheio, e não tinha mais como passarem. Ela mora a uns 200 metros da nossa casa, ficamos preocupados com o barranco atrás da casa dela. Era mais ou menos 4 horas da tarde, havia parado de chover, o rio havia baixado um pouco, Daniel pegou um trator e uma corda. A família da Kátia, com ajuda de um vizinho conseguiram então passar. O irmão de Daniel morava perto da Scheila, o João Galdino, e chamou toda sua família, a Kica e o Gustavo para também irem lá para nossa casa. Estávamos então na casa em 17 pessoas, estávamos muito preocupados com Alexandre, André e Paulinho, não tínhamos notícias, e já era quase noite. Fomos tratar os porcos, galinhas, cachorros, tirei o leite das vacas, enquanto as filhas e cunhada faziam a janta. Jantamos todos e falei:- Hoje vamos dormir pela primeira vez na casa nova, já temos camas, vamos levar mais alguns colchões para dormirmos todos lá em cima. Graças a Deus chega meu neto Paulinho, filho da Kátia, assustado, todo molhado, disse que tinha vindo a pé porque havia muitas barreiras na estrada. Foi uma alegria quando o vimos e nos abraçamos! Agora só faltam meus dois filhos de que não temos notícias. Paulinho então troca a roupa, janta e sobe conosco. Estávamos felizes por ser o primeiro dia em que dormiríamos na casa nova, e parecia que

tínhamos que subir ligeiro. Subimos, arrumamos as camas, sempre à luz de velas. Falei para todos: - Vamos todos rezar mais um rosário para parar essas chuvas, estava muito escuro, quando estávamos quase acabando de rezar, um clarão e um barulho estranho, olhamos para fora, meu Deus! O que está acontecendo, parece que ficou dia! Mesmo assim acabamos de rezar, mas todos muitos assustados. O Daniel falou: - O que é isso? Então ele olha as horas e diz:- são só 9 horas, deve ter estourado o gás! Ficamos mais preocupados ainda, andávamos de um lado para o outro, cada vez mais ruídos que não sabíamos explicar. Nelson, João Pedro, e Maria Tatiana estavam dormindo, então eu falei:- Vamos cada um para o seu quarto tentar dormir, deve ser o barulho da água. Mas estava muito estranho, assim fizemos, nem chegamos a deitar, deveria ser nove e meia, um barulho, mais forte ainda, olhamos pela janela uma avalanche de terra muito grande estava vindo lá de longe em direção à nossa casa, já atingindo a altura dos fios de energia, trazendo tudo, três casas que eram acima da nossa, árvores, o galpão de......, o alambique, o rancho dos animais, as garagens com os carros, caminhão, tratores, não deu tempo nem de dar 3 passos, Daniel e meus filhos gritaram: - Meu Deus! É o fim do mundo! Quando a Kátia percebeu o que estava acontecendo, pegou Maria Tatiana no seu colo, e abraçou bem forte e sentou na cama, não tinha como a filha sair de seus braços, mas quando se deu conta já estava presa nos escombros sem a filha, e ouvia todos gritando por socorro. E então veio tudo abaixo de repente. Os gemidos e os gritos dos meus netos, Luís Antônio, Dani e o Paulinho pedindo socorro. O Nelson, João Pedro, Joana e Maria Tatiana não escutávamos nada, que desespero, todos trancados nos escombros, muita lama e água, que terror! O João, meu genro, Débora e a Dani saíram sozinhos ,acharam o Paulinho pedindo socorro, tentaram tirar a parede que estava por cima dele, mas foi em vão, não conseguiram, nesse meio tempo meu cunhado João Galdino e minha cunhada Cenilda,(Kica), e meu sobrinho Gustavo conseguiram sair também, meu cunhado não podia ajudar, estava com muita dor, tinha quebrado a clavícula, e minha cunhada a costela. Nisso meu genro João conseguiu tirar

Daniel e seu caminhão retirado dos escombros. 93


Carros retirados dos escombros.

repente conseguiram tirar meu braço que estava trancado junto à barriga, estava todo roxo e inchado, e os três tentando de todo o jeito, então o Sidney foi buscar uma alavanca de ferro, para tentar destrancar minhas pernas, porque não conseguia mexer para lado algum. E eu só rezando com muita fé. E eles faziam ligeiro, apavorados porque a cada momento podia descer outra barreira. E eu estava com tanta dor que não tinha mais medo de nada. E eles perguntavam: - Dona Landa, suas pernas não mexeram nada? Respondi que não. E eu só rezando, de repente, senti que consegui mexer com a perna, e eles tentavam puxar, e eles tentavam, cada vez mais apavorados querendo me salvar e ao mesmo tempo podiam morrer todos soterrados ali. Tentavam de todo o jeito e nada. De repente, parece que foi um milagre, senti que minhas pernas não estavam mais trancadas, puxei e consegui sair, estava toda molhada e suja de lama, eles falavam: - A senhora consegue, sai andando de gatinhas. E fui desse jeito por cima dos escombros, com as pernas sangrando por estarem muito machucadas. Quando consegui sair, os três me ajudaram e já estava Gil e mais alguns vizinhos com tábuas para um caminho por cima da lama. Todos apavorados querendo sair dali e gritando para que viessem mais pessoas para ajudarem a me carregar, porque era muito difícil, iam se enterrando na lama e dificultando cada vez mais, veio então mais um homem, não foi fácil. Quando chegaram comigo na casa do meu filho Alexandre, que fica em um morrinho ao lado da minha, escutamos um barulhão, veio outra barreira, só por Deus que não matou todos aqueles que me socorriam. Então começaram a gritar me carregando e diziam: - Saiam de dentro da casa, corram para o morro. A casa do Gil fica abaixo da minha e eu só pensava:- Meu Deus! Se a barreira

a Kátia, e foram ajudar a tirar o Paulinho, estava muito pesado, porque por cima tinha uma parede. Nesse meio tempo, Débora e Kátia foram pedir socorro, por cima daquela lama se enterravam, foram com muitas dificuldades, tentavam pedir ajuda para salvar o Paulinho que estava com muita dor. Meu sobrinho Gustavo achou Isabel, Scheila e Joana deitadas com uma parede por cima delas,ele tentou tirar a Isabel e ela falava:- Estou ficando sem ar! João estava tentando tirar Paulinho que era um rapaz forte, viu que não tinha mais jeito, foi ajudar a Isabel e a Scheila. João então pega Joana, sua filhinha e faz uma respiração nela, e viu que não adiantava mais. Ele então tira Scheila e Isabel, Isabel então tenta ajudar Paulinho, e ele falava:- Bel,não estou aguentando mais! E Isabel dizia a ele:- vou gritar por socorro! Assim ela fez, chamou, chamou por socorro, mas já era tarde, como havia muita lama, demoraram a chegar, a Isabel ficou mais perto dele e ele não falava mais, ela ficou desesperada vendo tudo aquilo, a Joana morta, Paulinho ainda trancado, eu e o Daniel trancados, ela falava: - Vocês estão bem? Calma, vou atrás de socorro! Ela e Scheila foram por dentro da lama até chegarem na casa do Gil (Gilberto Schimdt) e da Alzira. O Salviano, Sidney, Juliano e Fabiano chegaram e o Paulinho tinha acabado de morrer. Foram carregando Luís Antônio em cima de tábuas, ele estava com muita dor.O Fabiano ficou ajudando o Calinho. O Daniel também conseguiu sair. Vieram mais alguns vizinhos, alguns tinham medo de arriscar a vida, mas teve muitos herois que nos ajudaram a sair daquele terror. Carregaram o Calinho e o Daniel em cima de tábuas, não tinha como andar de tanta lama, e iam levando todos para casa do Gil, que acolheu a todos lá. E eu ainda trancada, pensei: meu Deus! Tenho que esperar a morte aqui! Eles não vão dar conta de me tirar daqui! Eram pedaços de laje muito grandes e pesados, não dava para eu me mexer, era água, barro até no peito, só conseguia mexer um braço. Meu genro João tentou me tirar, mas não conseguiu, nisso chega o Fabiano e o Sidney, e falavam: - vamos tentar tirar dona Iolanda! E eu dizia: - Se isso acontecer, será um milagre de Deus! Fabiano me falava: - Pois é dona Landa, a senhora não acredita em Deus?

Única foto da casa da família ainda em construção.

Eu sei que a senhora reza bastante e tem bastante fé, a senhora é uma vizinha que todos gostam. Acho que Deus não vai deixar a senhora aqui! Então comecei a pedir graças ao divino Jesus e à Nossa Senhora Aparecida, que sempre roguei por ela, e ela sempre me atendeu com ajuda de Deus. E eles tentando quebrar e serrar, nada adiantava. De

94


chegar lá, o Daniel, Calinho, Luís Antônio vão morrer, porque eles não vão conseguir correr, mas vimos que a barreira foi só até a minha casa, soterrou mais uma vez. Eles continuaram a me carregar para casa do Gil, Alzira, esposa de Gil, acolheu toda nossa família e vizinhos, eu andando passando por dentro da lama e água. Chegando lá trocaram minha roupa e me vestiram uma da dona Inês, esposa do seu Laudelino Schimitt. Imediatamente enfaixaram meu pé, a dor era tanta que quase desmaiava. A dona Leonida, filha Silene e mais uma vizinha cuidavam de todos, com medo que dormíssemos e não acordássemos mais, porque não se sabia da gravidade dos ferimentos de cada pessoa. Amanheceu, todos continuavam apavorados com aquilo tudo, começaram então a dizer: temos que sair daqui, porque se vierem mais barreiras, poderão chegar até aqui, temos que ir para o outro lado do morro. Era um morro que tinha eucaliptos plantados, acima do campo na frente da casa do Gil, a maioria não sabia o que fazer. Meu Deus, eu dizia, temos que pedir socorro, a Débora então fala que acha que na facção da Rita tem um celular desligado, se ligarmos com certeza terá bateria ainda. A chave da facção ficava no Gil, a Beth que estava nos ajudando e confortando muito, falou: - Vocês me deem números de celular que a família aceita ligações a cobrar, a Isabel deu o número da Raquel. Ela desesperada ligando e falando, que pelo amor de Deus que mandassem helicópteros para socorrer toda essa gente,feridos e mortos. Foi ligando para Ilhota, parentes da Beth. A Débora para seus parentes, a Isabel para o namorado que morava em Blumenau, mas ninguém acreditava que tinha acontecido essa tragédia tão grande na minha casa no Alto Baú, diziam: - Não pode ser! A casa do Daniel

Barreira que soterrou a casa da família.

Escombros da casa após tragédia.

95


não tem barranco, nem água perto! Mas quando ouviram realmente sobre as mortes e o desespero dos parentes, começaram a se apavorar, pedindo para que a defesa civil socorresse o Alto Baú. Quando Débora saiu para pedir socorro, sem o filho, eu com muita dor disse: - Meu Deus o João Pedro está morto, mas no momento parece que a gente não assunta mais nada, não sabe de nada. Quando o João tirou a Kátia, escutei ele dizer: - Meu anjo está com Deus! Vou ver se acho alguém para salvar o Paulinho! Fiquei em dúvida da Joana, mas quando chegaram comigo na casa do Gil, escutei um bafafá e já fiquei sabendo também. O Nelson, irmão de Daniel, era igual a um filho para nós e momento que tudo aconteceu, ele estava dormindo no nosso quarto, quando comecei a ouvir Daniel, e eu com muita dor comecei a chamar por Nelson, mas ele não respondia mais. Quando o Daniel conseguiu sair de baixo dos escombros, ele me perguntou pelo Nelson, eu falei que não adiantava mais, porque ele já estava com Deus. Do Paulinho também já sabia porque escutei o Fabiano falar para o João assim: - Quando formos tirar dona Iolanda, vamos tirar o Paulinho de lá! João então fala: - Não adianta mais, o Paulinho morreu! Nem imaginavam que eu iria ouvir, falaram sem querer naquela hora do sufoco de me tirar dos escombros. E os corpos lá ficaram. Não conseguiram tirar porque veio outra avalanche logo depois que eu saí, e tinham medo de voltar lá. Todos que morreram ficaram, menos a Joana, eles a trouxeram para casa do Gil.

esperando, o médico que estava junto falou que eu teria que ir antes que o Luís Antônio, porque menos machucado, foi tudo muito rápido. Levaram-me e ao Daniel para o hospital e lá chegando, queriam amputar meu pé, mas o médico disse: - Não! Vamos tentar salvar a perna dela! Perguntei se sabiam de todas as mortes. Iolanda: Eu sabia. Daniel: Não de todas, porque naquela hora ali, não quiseram contar, queriam me poupar de mais sofrimentos. Eu perguntei por eles, quem tinha ficado quem tinha saído, e então alguém me falou, não lembro quem, tinha muita gente perto. Perguntei quando resgataram os corpos, e sobre os sepultamentos. Daniel: O Paulinho e o João Pedro uns 4 dias após, a Maria Tatiana foi encontrada após 20 dias, e o Nelson foi 21 dias após. A casa arrebentou e o barro deve ter levado os corpos, porque foram encontrados a uns seis metros de onde era possível de estarem. O João e o Xande ajudaram os bombeiros a procurar os corpos. Iolanda: Eu só participei dos dois últimos sepultamentos, do Nelson e da Tatiana, porque estava no hospital, fiquei internada durante 10 dias. Daniel: Eu participei de todos, foram sepultados no Jardim Parque da Saudade.

Daniel: Nós estávamos deitados debaixo de uma barraca que o pessoal havia feito em cima do morro e percebi quando um helicóptero sobrevoava por ali, mas não pousou, o pessoal começou a acenar, pedindo socorro. Então o segundo helicóptero desceu, por volta do meio-dia. Foram primeiro os feridos. Iolanda: Eu fui deitada na maca, toda amarrada, porque tinham medo de que eu tivesse machucado a coluna, o Daniel também. Quando chegamos a Blumenau, já tinha uma ambulância nos

Perguntei ao casal se algum dia pretendiam voltar para o Alto Baú. Iolanda: Eu não quero mais, porque o que tínhamos, não temos mais. E o que vamos lembrar lá, de todas as cinco mortes, acho muito triste. Daniel: Eu gosto da minha terra, que é o lugar da gente, mas por enquanto não vamos morar lá não, quem sabe um dia.

Luís Paulo Hostim, o Paulinho - Netos-(17), com sua irmã Maria Tatiana Hostim (7 meses), vítimas da tragédia. 96


Perguntei para Sr. Daniel sobre o dinheiro que achara em um casaco doado. Foi num domingo depois da tragédia, dois sobrinhos meus de Blumenau, a Bianca e o Eugênio vieram trazer uma doação de roupas. Ela tem um namorado que mora em Concórdia. Quando a futura sogra de Bianca soube da tragédia e da nossa situação, mandou essa doação especialmente para nossa família. Estávamos ainda na casa da minha sogra, e começamos a classificar o que servia para nós e o que não servia mandávamos para algum abrigo. E tinha esse tal casaco feminino muito chique e bonito, que até íamos mandar para o abrigo, porque para quem estava flagelado não iria usar um casaco desse, então a minha neta e a sobrinha que estavam lá no momento, foram vestir, brincar com o casaco e quando colocaram um braço, a mão trancou dentro da manga e caiu dois fardinhos de dez mil reais. Na hora levei um susto, tem alguma coisa errada, algum engano, porque se fosse uma doação teriam entregue em mãos. Na hora liguei para Eugênio para ver a procedência desse casaco. Ele me falou que tinha sido a sogra da Bianca que mandou, veio lá de Concórdia. Então ele falou que ia ligar para lá e que depois daria um retorno. Ela mandou dizer que esse casaco estava enrolado dentro de um edredom, que de fato estava, e mandou dizer que mil reais seria de gratificação. Então Eugênio devolveu para a dona que eu não a conheço! Devolvi porque o dinheiro não me pertencia e minha doutrina sempre foi essa.

Joana Maria Annater - Neta (7 meses) vítima da tragédia.

João Pedro da Silva –Neto (1 ano e 8 meses), João Pedro gostava muito de imitar o avô Daniel fumando cachimbo, vítima da tragédia.

Nelson Galdino da Silva (61), Irmão de Daniel -vítima da tragédia. 97


Dia 13/02/2009 :: Depoimento de

Débora Mensor

Casada com Alexandre Daniel da Silva, pais de João Pedro, morto na tragédia. Moradores do Alto Baú.

Casa de Alexandre e Débora.

J

á estava chovendo há vários dias, só que no dia 22, sábado, que deu mais medo, porque não parava de chover forte e estávamos sem energia. Eu estava em casa com o João Pedro (1 ano e 8 meses), meu marido, o Alexandre estava trabalhando, ele é motorista de caminhão. E naquele dia não conseguiu mais passar. No sábado à noite ainda ficamos em casa, eu e João Pedro. Domingo de manhã, olhei lá para baixo na casa de meus sogros (Daniel e Iolanda) e tinha um pedacinho do barranco que já havia corrido, tinha muita lama na frente da casa dele, e quando a chuva engrossava já não dava mais de passar na estrada, até já tinha formado um riozinho, e eu com o menino no colo, não passava mais por ali. E quando a água baixou no domingo, deu para atravessar. Fui só para dar uma olhada para ver como é que estava. Lá ficamos sabendo da casa da Deonilda que havia caído um pedaço. Kátia estava lá com a família porque atrás da casa dela já havia caído uma pequena barreira. Todos começaram a ficar assustados, porque estava acontecendo coisas que não eram comuns. Resolvemos então ficar todos na casa dos meus sogros, porque achávamos que era um lugar mais seguro e não teria chance de acontecer nada, não tinha barranco tão perto e a casa era de dois pisos, mais alta. Na minha casa todos tinham medo porque atrás tinha um morro bem alto e que poderia descer. Ficamos lá o domingo todo, à noite jantamos uma sopa. O Paulinho chegou, jantou e subimos então para o andar de cima. Então estávamos rezando o terço, quando estávamos quase acabando de rezar o rosário, vimos um clarão, e todos foram para as janelas olhar, mas não paramos de rezar, só que distraiu um pouco todos nós, depois cada um procurou uma janela para ver o que era o clarão. Depois ficou um barulho igual a uma turbina, como um ronco, que ninguém conseguia distinguir o que

Avalanche que soterrou a casa de Daniel e Iolanda, ao lado, no morrinho, a casa de Alexandre e Débora.

98


era esse barulho. Depois fomos para os quartos e na hora eu dizia: - Meu Deus! O que está acontecendo! Estávamos em dezoito pessoas. De tarde eu havia brigado com João Pedro, porque ele fugiu para a lama e perto da noite eu sentei com ele em uma cadeira e ele segurou o meu rosto com as duas mãozinhas e me beijou várias vezes rindo, parecia uma despedida, pois foram os últimos beijos que ganhei do meu filhinho. Eu estava deitada com ele no colchão no chão no mesmo quarto que estavam meus tios, Kica e o marido João e meu primo Gustavo. João Pedro tinha ficado com o rosário na mão, eu não me lembro de ter tirado dele. Ele já estava dormindo de ladinho e bico na boca, e eu olhava para o barranco da minha casa achando que ele ia cair. Com o clarão dava para ver quase tudo na rua. Então escutamos um alvoroço, a Scheila, a Isa e o João falavam todos ao mesmo tempo, e só entendíamos que estavam apavorados. A Kica, o marido e o filho Gustavo saíram do quarto e eu deixei meu menino dormindo, fui para a sala também, quando senti a casa tremer ,tentei voltar para o quarto, mas não passei pelos três abraçados na porta. De repente veio tudo abaixo. Depois deu um minuto de silêncio, em seguida todos começaram a gritar, eu só pensava no meu filho que eu tinha deixado sozinho. Fiquei com medo de chamar João Pedro, e de não escutar nada, parecia que eu escutava ele chorar. Estavam todos gritando e chorando, pedindo socorro. A Danyele, minha sobrinha, estava perto de mim, só tinha um pedacinho de laje no pé dela, então ela ficou se mexendo e eu ajudei a empurrar um pouco e a laje caiu para o lado. Depois ela mesma conseguiu sair sozinha e depois sumiu, tinha um buraco acima dela e ela saiu por ali. Eu via um monte de pés ali, que eu não sabia de quem era, e eu achei que tinha furado o pulmão, fiquei meio de bruços, com o piso da casa me pressionando para cima, e a parte de cima da laje pressionando para baixo, apertando o peito, e uma perna presa por uma viga, e a sensação que tinha é que havia quebrado a costela e perfurado o pulmão. Então fiquei com medo de que iria ficar sem ar, mas quando se perfura um pulmão é instantâneo morrer, passou-se alguns segundos e pensei: ‘Se eu não morri até agora é porque não é minha hora!’ Comecei a tentar me mexer, estava com a perna trancada por cima de uma viga, e não conseguia respirar, e todo mundo gritando, não enxergava nada debaixo dos escombros, só aquela escuridão ,tinha a sensação que João Pedro estava chorando, mas tinha tanta gente gritando junto, tinha até gatos na casa, e podia ser que os gatos miavam desesperados e eu podia estar me confundindo. Comecei a me mexer e aquele pedaço de laje que tinha embaixo de mim caiu, me abaixei um pouco e saí de baixo, indo de joelho, saí pelo mesmo lugar que a Dani havia saído. Mas a dor era tanta, tanta, parecia que tinha quebrado todos os ossos das costelas, do peito. O desespero, tentei ir em volta de onde era a casa, e tinha ficado um pedacinho da varanda, dei uns passos assim naquele pedaço e já dei de cara com Paulinho, ele pedia socorro, para tirá-lo dali, que não iria aguentar mais, ainda tentei com a mão empurrar um pouquinho daquele pedaço de laje, mas era em vão, porque com a dor que eu estava e o jeito que ele estava trancado.

Então João pediu para eu ajudá-lo a tirar o Paulinho e eu dizia: - João, não consigo, estou toda quebrada, não consigo fazer força! Ele dizia: - Então vai chamar alguém! Para baixo dava de ver uma luz que o pessoal tinha ligado na bateria do caminhão, lá na serraria do Gil. E eu pensava: ‘Vou sair e deixar o menino aqui sem saber se ele está morto ou não!’ Naquela hora eu tive que ser forte! Não sei como, mas tive a certeza de que ele não aguentou, foi uma lambada muito forte, e da calçada eu o teria escutado chorando se ele estivesse vivo. Tentei ir ao lugar que ele estava, mas não dava de escutar nada. Então pensei: Não posso fazer nada pelo meu filho, mas ainda tem gente viva aqui!’ Joguei-me na lama, deu uma sensação de que não ia parar mais de afundar, descia, descia, quando parei de descer estava até o peito de lama. Eu achava que a casa estava no lugar dela, achei que tinha caído no mesmo lugar, fui indo naquela lama, tinha hora que dava para andar, hora que não, teve horas que precisei ir de joelho, senão me enterrava, tinha muitos galhos de árvores no meio do caminho. Depois passei por dentro da água onde se formou um riozinho, em frente da minha casa. Olhei lá do morrinho onde fica minha casa e vi os escombros, vi que a casa estava muito longe, deu a sensação de que ela na hora deu uma giradinha, mas não imaginava que tivesse sido jogada tão longe. Então fui andando no gramado da minha casa e ia gritando, acho que o grito não saía mais, porque tinha tanta dor que acho que não tinha mais força para gritar. Então já vieram o Juliano e o Fabiano ao meu encontro, porque eles devem ter escutado o barulhão que deu quando a casa caiu. Falei que o João Pedro tinha morrido e que Paulinho estava lá quase morrendo também, falei: - Vocês têm que ir, têm que fazer alguma coisa! Ficaram com medo, temiam pela vida, e como iriam se enfiar naquela lama? E também não acreditavam que tinha alguém com vida, tentaram me segurar ali, eu queria voltar! Levaram-me para dentro da casa do Gil, e os homens lá ficaram com medo, eu cheguei a implorar para alguns homens, pedi pelo amor de Deus para que ajudassem. Fiquei com a sensação assim, de ter saído de lá, deixei de ajudar, e com medo que morresse mais gente por minha culpa. Porque na hora eu não conseguia fazer nada. O João conseguiu tirar minha cunhada Kátia, nesse meio tempo em que saí, ela chegou lá na casa de Gil também. E quando todos viram que o Gil colocou todos para ajudar, levaram lanternas e alavancas. Ficou igual a um louco lá, levou um monte de gente para lá. Começaram então a tirar as pessoas, e a noite não acabava mais, volta e meia eles gritavam e saíam correndo para o morrinho da minha casa porque podia vir outra barreira. Teve um momento que Gil chegou só de cueca, chegou a perder a calça na lama e implorando para que mais homens viessem ajudar. E eu pensava neles todos lá, naqueles que tinham ficado, se estavam mortos ou não, pensava nas crianças, no meu filho João Pedro, na hora eu tinha a certeza de que ele havia morrido porque era muito frágil, e que não tinha aguentado, na hora eu tinha essa força de achar que ele ,não

João Pedro, filho de Alexandre e Débora, vítima da tragédia.

99


aguentou! Por outro lado, depois que passa aquela força de momento... ‘Será que não aguentou? Será que não está lá sem ar? Será que não está passando dor?’ Começa dar uma angústia na gente, e cada vez que vinham com alguém da casa, ferido, eu perguntava para o Juliano, para o Fabiano ou o Gil, se não o tinham encontrado, se não o tinham visto, o Juliano só abaixava a cabeça e balançava. E eu não sabia se ele tinha visto e não queria me dizer, ou não tinha visto mesmo. Então não amanhecia mais, aquela noite foi uma tortura, parecia um pesadelo que não terminava mais, gente gemendo de dor, chorando em todos os lados, de vez em quando dava uns estouros, ficávamos assustados porque caíam barreiras por ali. Todos com medo que caísse mais barreiras, querendo subir os morros de madrugada. Teve uma hora que deu um grande estouro, correu todo mundo, e Luís Antônio ficou na cozinha, então o Juliano desesperado, pegou-o no colo e começou a carregar, não sabíamos se ele tinha alguma fratura, o importante era salvar a vida. Foi uma agonia até amanhecer, a Beth encontrou um telefone da facção com bateria e começamos a ligar para parentes, liguei para minha tia e pedi ajuda. Perto do meio-dia, o helicóptero chegou, mas antes passaram dois e não pousaram. Quando estava indo de helicóptero, eles passaram por cima dos escombros e eu olhei para baixo e pensei: ‘Eu estou indo e deixando meu filho aqui debaixo, e não sei quando vou vê-lo de novo’(chorava muito), tinha que deixar ele ali, passar de helicóptero de cima e saber que nunca mais iria ver meu menino, tinha que ter consciência que era um adeus, que nunca mais iria vê-lo! Não sabia nem se seria encontrado para podermos sepultar. Levaram-me para o hospital, junto veio meu sogro, deitado porque tinham suspeitas de alguma fratura na coluna. O Calinho e dona Iolanda também foram para o mesmo hospital. E eu quebrei a costela. Quando fui liberada, liguei para minha tia, ela já estava sabendo e foi me buscar para a casa dela. O Xande havia chegado segunda-feira à tarde, passando pelo mato, saíram às 7 da manhã e chegaram lá só à tarde e já haviam saído todos, só estava o João, marido da Scheila e outras pessoas do Baú. João então contou o que havia acontecido para ele e o André, meu cunhado. Por volta das dez da noite ele chega na casa da minha tia. Abraçou-me e disse: - Apesar de tudo, eu estou aliviado, porque achava que não iria ver mais ninguém! Nenhum dos dois esperava encontrar alguém com vida, depois do que viram, depois de tanta destruição! Nem o Xande,nem o André.

Corpo de João Pedro, no dia do reconhecimento. Perguntei se gostaria de voltar a morar no Alto Baú, já que sua casa não fora atingida. Eu não vou dizer que nunca vou voltar, eu não posso falar nunca. Mas por um bom tempo não. Eu tenho muitas lembranças boas da casa, mas se eu olhar pela janela eu vou dar de cara com aquilo tudo. Sem falar do medo, todos os lugares possuem riscos, só que já vivemos um situação dessa lá, só quem passou é que sabe! Quando estamos aqui, nesse lugar que é aparentemente seguro, dá uma trovoada, ou chove dois dias, já ficamos tensos e impacientes. Imagina se estivéssemos lá, porque não tem uma estrada em que dê para confiar, um telefone, lá tudo é muito difícil. Acho que para lá eu não volto mais! Perguntei sobre o resgate do corpo de João Pedro. Foi numa quarta-feira após a tragédia, à tarde, eu não fui para reconhecer o corpo, o Xande foi. Quando a casa desabou, tive a impressão dele ter chorado, mas não, porque na hora que foram reconhecer o corpo, parecia que ele estava dormindo, foi encontrado ainda com o bico na boca. Quando ele dormia, ele ficava de lado, mas logo ele se virava para cima, colocava uma perna por cima da outra e as mãozinhas para cima. Encontraram ele nessa posição. NOSSO ANJO FOI LEVADO POR DEUS, DORMINDO, SEM SOFRER!

Reconhecimento do corpo.

100


Dia 09/03/2009 :: Depoimento de

Delci do Prado Bombeiro Voluntária do município de Ilhota.

E

ra tarde de sexta-feira, 21/11/08, fomos até o quartel eu e meu marido, para marcar o plantão de final de semana, que sempre marcamos com antecedência. Ao chegarmos lá fomos informados de que todos os bombeiros estavam em alerta e convocados, pois a situação e a possibilidade de enchente era grande. Foi quando começaram a tocar os telefones, pessoas desesperadas dizendo de uma casa que tinha caído no rio, postes de energia e outras casas com risco, porque estavam caindo barreiras, margens do rio, isso continuou a tarde toda. No domingo de manhã meu marido saiu para o quartel, pois seu plantão começava no domingo às 08 horas. Quando foi 08h45min ele estava de volta em nossa casa junto com mais dois colegas, foi quando me pediu que eu arrumasse tudo que pudesse para sairmos da nossa casa, que seriamos afetados pela enchente. Depois de deixarmos nossa residência, com ajuda de familiares e amigos começou meu trabalho. Debaixo de chuva avisar todos os vizinhos para saírem de suas casas em locais mais baixos, que tirassem o que pudessem para não perderem nada com a enchente. No domingo, 23/11 à noite, depois de muito trabalho, muitas ruas e casas alagadas, recolhi-me na casa de minha sogra para descansar, foi quando chegou meu marido nos dando a notícia de que teria acontecido algo de muito grave do Baú. Na manhã de segunda-feira fomos todos convocados pelo nosso comandante, porque a notícia era de uma grande catástrofe no Baú. Foi quando dividimos grupos para missões diferentes. Alguns iriam para o Baú e outros ficariam na margem direita. Após receber minha missão de ficar na margem direita meu trabalho continuou e fui designada para ficar no campo onde estavam pousando as aeronaves e na guarnição da ambulância como socorrista. Começou chegar alimentos, água, roupas e outros materiais. Com a ajuda de voluntários nós descarregamos helicópteros, com garra, força e dedicação. Foi na tarde de quarta-feira, quando me senti muito forte, com amor, dedicação e satisfação de ver o primeiro helicóptero carregando pessoas vivas, mesmo que apavoradas, desesperadas, crianças, idosos, adultos, alguns machucados, outros bem, foi quando tive a certeza

Bombeiros Voluntários de Ilhota, Delci do Prado e Adriana Conink, durante os resgates das vítimas da tragédia da região do Baú. de que nada em minha vida é por acaso. Depois de vários dias de trabalho carregando mantimentos, acolhendo pessoas, socorrendo vidas, desabrigada de minha própria casa, renovei minhas forças com cada pessoa que ajudei, nesse dia foram resgatados aproximadamente 140 sobreviventes do Baú. Quero aqui deixar uma mensagem a todos os sobreviventes do Baú, para as pessoas que perderam seus familiares, aos desabrigados, que busquem forças para continuar e que não desanimem porque a vida continua. “Eu vou tentar seguir sempre diante de barreiras, obstáculos da vida, acreditar que sou capaz de me levantar outra vez. Mais, eu vou tentar seguir sempre e saber ao menos que eu tentei, e vou tentar mais uma vez.”

Delci do Prado e outros voluntários resgatando as doações para as vítimas das enchentes e tragédia na região do Baú.

101


Dia 01/02/2009 :: Depoimento de

Doracy Bruns

Moradora do Alto Baú.

N

uma pessoa fosse ali, ah, a água levaria embora! Não tinha como se salvar ali dentro. Pensava que era o nosso fim, meu e do menino, o nosso fim! Mas depois, no outro dia quando vieram nos resgatar, na terçafeira vieram com os helicópteros. Quando chegávamos nos campos, era aquela alegria, porque estávamos salvos, porém, alegria com tristeza, porque só ouvíamos: _ Aquele lá morreu, aquele lá foi a casa. Meu Deus, “ta louco”. Achávamos que nada tinha acontecido ali, no fim aconteceu... Lá que fomos saber o que estava acontecendo ao nosso redor. Os helicópteros pegavam tantas pessoas... Traziam-nas aqui para o campo direto, depois já eram levadas para os abrigos. Estávamos todos sujos de barro, porque passamos por dentro de pântano. Eles diziam que a gente podia levar até cinco quilos de coisas de cada um, (pertences). Fazia, anos, anos, anos! Que eu não conversava mais com uma cunhada (Iracema), mais de 20 anos. Meu outro filho mais velho ainda era vivo e naquele dia ela estava sem água, sem mais nada, naquele dia ela pediu para mim água para tomar, e aí meu filho foi buscar um balde de água e demos um pouco para ela tomar.

os dias 22 e 23 começou a chover bastante, já estávamos meio ilhados, foi domingo à noite, era... Eu não sei bem o dia, foi isso. Vimos a água aumentando, aumentando... Quando anoiteceu estávamos ilhados, só eu e meu filho (Eduardo). Então nós lemos muitos trechos da Bíblia, depois nos abraçamos e de repente vimos aquele clarão ali, nisso a água veio para perto da minha casa, aí nos abraçamos e eu disse: _ Se é para eles nos acharem, vão nos achar juntos, não vamos nos separar. Eu disse para ele. Aí deu aquele barulho, logo olhamos e a água estava descendo. Então permanecia aquele clarão que vimos, que todo mundo acha que não foi o gás, mas eu não digo nada. Também, toda entrevista que eu fiz lá embaixo, quando estávamos abrigados na APAE, eles cortaram, não pode falar, não pode, falou do gás, eles tiram. Eu saí falando na televisão e tudo! Eu também acho, até os padres acham isso. Dizem que alguns anos atrás já aconteceu isso, mas eu já estou com 53 anos e nunca vi isso, foi a primeira vez. (Continuando o relato) Aí caiu a ponte, caiu meu muro, quando caiu a ponte veio toda a sujeira, tudo contra meu muro, aí estourou e veio água para minha casa, muita força de água, “ta louco!” Se

Residência de Doracy Bruns.

102


Perguntei se gostaria de voltar (Chorando) Eu, por mim... Hoje, já! Eu tenho minha vida toda lá, 30 anos de casada lá, lá dentro! Eu tenho minha vaquinha, uma já morreu, tenho uma lá quase morrendo, estão vivendo assim pelo mundo, de vez em quando eles vão lá dar uma ração para ela, e o leite ninguém tira mais, tinha também meus cachorros, parece que agora só tem mais um, não sei! Estou com vontade de ir para lá porque o prefeito disse que vão fazer a ponte, e energia, urgente. Eu quero voltar para lá. Pela minha idade, começar tudo de novo, não é fácil, e o Eduardo também quer voltar!

Lagoas cheias de peixes, um pesque pague.

Ponte que caiu depois da tragédia

Meu relato após o depoimento de Doracy Bruns. O sr. José Jacob fez um trabalho simples, porém muito importante para aquelas pessoas. Com esta maravilhosa idéia, solucionou muitas situações entre os moradores, como privacidade e desconforto, entre outros, proporcionando a cada um pelo menos um cantinho como sendo suas próprias casas.

No dia sete de fevereiro, alguns dias depois de entrevistar Doracy, resolvi ir para o Braço do Baú, com intuito de tomar alguns depoimentos. Fui em companhia de Luiz Baldez Júnior (voluntário de Presidente Prudente-SP) e Maitê (voluntária da Cruz Vermelha de Florianópolis SC) Chegando na Capela “Cristo Rei”, fomos ao alojamento que fica ao lado. Lá, para minha surpresa, encontramos dona Doracy Bruns e sr. Raul Roden, eles já teriam cedido entrevista quando estavam ainda no colégio de Ilhotinha. Tiveram que sair por justa causa: início do ano letivo. E todos os desabrigados automaticamente eram levados para outros abrigos. Naquele dia, dona Doracy estava mais feliz. Ela me contava que ganhou uma casinha “bem bacana”, construída por José Jacob, popular Zeca. Estavam muito contentes por ele ter tomado esta iniciativa e resolvido este problema. Tentou dar mais conforto e privacidade às famílias, até que encontrassem um novo rumo para suas vidas. E ela me dizia sorrindo: _ Vamos lá, quero te mostrar! Foi quando entendi que essas “casinhas” tratavam-se de repartições construídas dentro do próprio alojamento, o salão da igreja. Havia repartições (quartos) maiores para famílias e menores para pessoas que estavam sozinhas.

Doracy Bruns 103


Dia 02/03/2009 :: Depoimento de

Edinilson José Carvalho (Passarinho)

Patrício Zuccki

Morador do município de Ilhota. (um dos 14 herois)

Edinilson José Carvalho, no Alto Baú, dia em que procuravam vítimas fatais.

E

u fiz um curso de Bombeiro Comunitário em Gaspar, com os Bombeiros de Blumenau. Enquanto aguardava que abrisse o Quartel em Gaspar, trabalhava junto com os militares como Bombeiro Comunitário, trabalhei durante dois anos, enquanto trabalhava em uma empresa de Gaspar. Quando saí deste emprego, comecei a trabalhar em outra empresa aqui de Ilhota e não tive mais tempo para trabalhar no quartel de Gaspar. Quando iniciou o Corpo de Bombeiros Voluntários aqui em Ilhota, vieram me convidar para participar. Então fiz mais um curso com a primeira turma e na época cheguei a ser subcomandante; depois parei de frequentar o quartel por razões particulares. Na época da tragédia, nós estávamos ajudando o pessoal aqui do centro que estava alojado no colégio do bairro Ilhotinha e no salão paroquial do centro, então o Ney (Rene Hess de Souza), do sítio Tio Duda, falou para Frei Márcio da igreja Matriz São Pio X Ilhota que tinha alguns alimentos para doar em seu sítio, só que para buscá-los teria que passar por dentro das águas porque as estradas já estavam alagadas. Então eu, Pedro Paulo, Patrício, Leandro e Júlio, junto com o Ney, fomos de caçamba da prefeitura até seu sítio pegar os alimentos para o pessoal de Ilhota que já estava com suas casas alagadas. No momento não sabíamos nada do Baú. Lá Pedro Paulo recebeu uma ligação e ficamos sabendo por alto da situação no Braço do Baú. Fomos então até o sítio do Ney, pegamos os alimentos, deixamos um pouco no salão paroquial e um pouco para o abrigo do colégio da

Ilhotinha. Quando estávamos lá chegaram mais notícias dando conta de que no Baú a situação era bem crítica, que havia desmoronado uma casa, pessoas estavam desaparecidas e havia vítimas fatais. Então falei para dois amigos, Júlio e o Leandro, que se tivesse como irmos para lá seria bom, mas não sabíamos como fazer para nos locomover até aquele local. Então o Ney nos ofereceu um barco com motor, perguntou se eu sabia pilotar, disse que sim. Eu, Patrício, Júlio e Leandro, que somos civis, decidimos ir para lá com o barco que Ney havia nos emprestado, com ou sem bombeiros. O Pedro Paulo nos falou que se liberasse ele iria junto conosco para ver como estava a situação. Até realizaram uma reunião na câmara, com o prefeito Ademar e o pessoal dos Bombeiros, decidindo se e como organizariam um grupo para ir até lá. Fomos então em quatorze pessoas, 13 homens e 1 mulher, civis e bombeiros Voluntários, nos barcos que Patrício e eu pilotamos, e os outros passaram no bote da balsa. Do outro lado do rio, colocamos sete em cada barco e fomos tocando até onde deu, até o Baú Central, nisso o prefeito já tinha entrado em contato com o pessoal do Baú para vir alguém buscar e todos pensaram que viria uma camionete ou um jipe, e vieram dois tratores, porque outro carro não passava. Onze deles foram na frente. Eu, Patrício e Leandro fomos depois porque fomos ainda guardar os barcos. Fomos de trator com o senhor Osmar Prebianca, que ainda nos falou que estava tudo bem, e que o pior estava lá dentro, “mas o bom ali já estava ruim!”. Quando chegamos ao Braço do Baú, já havia corpos

104


Marco Gamborgi

sendo velados e estava chegando mais um corpo de uma moça. E ali ao lado mesmo, um pessoal com uma moto serra fazendo os caixões. Naquele momento não tinha mais energia, estava um caos. Lá nos dividimos em duas turmas, uma foi socorrer o pessoal que estava nas casas ilhados, porque o ribeirão mudou o curso, nessas casas tinha então gente em cadeiras de roda, idosos, crianças. Outra turma subiu mais adiante, onde havia os escombros da casa daquela moça que havia ficado soterrada por muitas horas e que encontramos indo para a igreja. Passamos por ali e fomos em direção ao Morro Azul, lá um senhor nos pediu que fôssemos a uma casa onde havia duas senhoras de idade que moravam sozinhas, Doana Maria Zabel Richart e Alzira Richart, mãe e filha, ninguém tinha mais contato com elas desde domingo. Antes de chegar nessa casa, existia uma cachoeira que virou rio, e havia uma ponte, mas a água a levou, e na frente duas casas que foram totalmente soterradas, nas quais morreram seis pessoas. Não tínhamos como passar, porque o volume de água da cachoeira era muito grande. Conseguimos com um popular uma moto serra, para cortarmos um eucalipto, para improvisarmos uma ponte, o eucalipto teria que cair certo para ficar uma ponte, cortamos dois e não deu certo, porque quando caíam na cachoeira eles quebravam, depois cortaram um bem grande e caiu certinho onde era a ponte, passamos então por cima desse eucalipto, e chegamos até a casa. Elas estavam bem, só que ao lado da casa passava uma só cachoeira, com a chuva ela se dividiu em duas, uma de cada lado da casa, assim ficaram ilhadas desde sábado dia 22 até segunda-feira, dia 24 de tardinha. Quando chegamos à porta, a filha se ajoelhou e pediu para que a gente as tirasse dali e nós falamos que iríamos tirar, e elas perguntavam como? Não tínhamos contato nenhum com helicóptero, mas falamos para elas que já tínhamos contato com o pessoal do helicóptero e que eles viriam buscá-las, mas era só para amenizar a situação, tentando assim acalmá-las. E elas diziam pelo amor de Deus! E nós dizíamos que se acaso eles não viessem, e como estava anoitecendo, nós iríamos ficar ali com elas, e que no outro dia com certeza sairiam. E elas insistiam falando: - Tirem-nos daqui! Por favor! Estavam desesperadas. E então eu voltei e fiz sinal para o Pedro Paulo para ver se ele conseguia chamar um helicóptero, nisso o helicóptero voltou e passou bem rasante por ali, deve ter visto a movimentação de bombeiros, Pedro Paulo então começou a acenar mostrando a direção que estávamos. Ao lado da casa delas tinha uma roça e quebramos os aipins da roça para fazer um campo de pouso e quando ele sobrevoou por ali, fiz sinal para que ele pousasse. Quando eu fui chamar as duas, a mãe abriu a porta e me disse: - Meus parentes morreram todos ali nas casas que caíram!’

Bombeiros Voluntários embarcando na aeronave que os levaria para o Alto Baú.

Marco Gamborgi

E eu dizia: - Não, certamente eles saíram... E ela: - Está vendo ali, tinham duas casas, eles moravam todos ali. E eu:- Não! Eles devem ter saído! E ela insistia: - Ontem a noite ainda tinha luzes acesas, acho que morreram todos. Só que eu já sabia de toda verdade, todos os seis haviam morrido. Elas foram retiradas e colocadas no helicóptero e já falei com o piloto que tinha outras pessoas da nossa equipe que haviam ido mais para cima ver se encontravam mais pessoas, se pudesse voltar para resgatar esse pessoal aí para cima seria bom. Falaram que estavam ficando sem teto por já estar escurecendo, e sem combustível, se não desse para voltar naquele dia, retornariam na manhã do dia seguinte com certeza. Subimos mais o morro e fomos até a última casa, lá então havia umas 35 pessoas. O helicóptero ainda voltou e consegui pegar mais um senhor de idade, uma moça grávida e uma criança ainda na segundafeira à noite, avisando que o helicóptero não retornaria mais naquele. Ficamos em dúvida, se iríamos ficar com aquele pessoal ou voltar, porque a nossa ordem era de voltarmos para nos reunir na casa do Adriano Kremer, um morador que nos deu abrigo, que valeu muito para nós lá. Queríamos ficar, mas como havíamos combinado com o resto do pessoal e esse pessoal que iria ficar ali tinha alimentos e água, então achamos que ali estava seguro. Resolvemos voltar para a casa do Adriano, lá ele nos acolheu, dando-nos a janta, fritando peixe, ainda saiu com o trator buscando colchões. Tentamos secar nossas roupas e ele nos deu outras roupas para que pudéssemos dormir, porque estávamos desprevenidos, pensávamos que seria uma coisa e foi completamente diferente. Nessa casa havia mais 3 famílias, inclusive uma senhora que tinha perdido sua irmã. Quando já estávamos deitados esse pessoal começou a fazer uma oração, eu ouvi e chamei o Patrício, descemos e nos juntamos a eles e também rezamos. A noite não choveu muito, ouvíamos muito barulho e nos assustávamos. Por volta das 2h30min. da manhã escutamos um estalo, alguma coisa havia batido no telhado, uma pedra ou

Bombeiros Voluntários reunidos para coordenadas em busca dos corpos soterrados no Alto Baú. 105


coisa assim, daí todos os 14 diziam: “ O que foi isso? O que foi isso?” Perguntávamos um ao outro, estávamos também sem luz, aquele barulho da cachoeira, quando estávamos novamente tentando dormir, disparou um alarme de um carro, parecia uma cena de guerra, levantamos de novo, pegamos a lanterna para ver onde era, nisso começou a piscar outra lanterna do outro lado e começou a se aproximar sabíamos que alguém estava vindo em nossa direção, era um rapaz que estava vindo pelo mato, desde Luís Alves, andou 12 km, e já conhecia bem a região, veio porque sabia que tinha uns conhecidos que moravam perto da igreja Santa Paulina, umas 8 famílias, e que o único acesso era ali perto da igreja, e que já tinha ido na igreja e lá lhe falaram que não tinha ninguém dessa comunidade ali. Ele não sabia que estávamos em uma equipe de bombeiros, chegou ali por acaso, nos viu ali e falou. Pensamos sobre o que iríamos fazer, já estava quase amanhecendo, falei então para o sub comandante Cidnei Conink para fazermos uma equipe para irmos até lá, porque o rapaz falou que dava para passar pelo mato para chegar nessa comunidade, que daria 1h15min de caminhada, e sugeri que a outra turma ficasse para ver o que teriam que fazer pela manhã. Então eu, Júlio, Leandro, Patrício e esse rapaz que estava de guia, fomos. Esse rapaz de Luís Alves tinha um celular, e tinha um ponto mais para cima do morro onde iríamos passar que tinha área. Subimos então, só que o caminho que era para percorrermos em 1h15min, levamos muito mais tempo, estava tudo desbarrancando, tinha lugares que tínhamos que contornar por baixo das barreiras, dentro de cachoeiras, valas, por isso demoramos para chegar até lá. E o celular só em um momento deu sinal, depois sumiu e não conseguimos mais, quando estamos quase chegando na localidade, vinham duas pessoas que moravam lá, e eram pessoas dessa localidade que o rapaz de Luís Alves procurava, então explicaram que ficaram sem acesso, e nos informaram que todas as famílias de lá estavam bem, só que isoladas, e estavam indo para o Braço do Baú por aquela picada para ir buscar alimentos. Então se estava tudo bem com todos lá, resolvemos voltar. Chegamos novamente na casa do Adriano, lá chegou uma moça desesperada, chorando, dizendo que estava dando na TV que o morro do Baú iria cair, então olhamos para cima do morro, onde tínhamos passado

Marco Gamborgi

para ir naquela localidade horas antes, não no morro do Baú, outro morro onde tinha uma plantação de banana, tinha uma fenda de 250 metros de altura e deveria ter uns 50 cm de largura, essa parte do morro tinha rachado, e a água estava entrando, estava bem perigoso, e naquele momento estavam passando umas 20 pessoas e nós falamos: ‘aonde irão aquelas pessoas?’ Nisso tinha um rapaz que comentou que eram pessoas da família lá do Alto Braço, e que estavam vindo ali, só para dar uma olhada para ver a situação do local, e que iriam voltar para o Alto Braço e nós falamos:- Mas está perigoso, isso de uma hora para outra pode desabar, e agora? Então alguns foram até a metade do morro e gritaram com eles, avisando do perigo que corriam, para descerem bem rápido e ficarem ali conosco para poderem ser resgatados. E uma moça gritou: - Não podemos porque meus pais e meu irmão estão vindo atrás, são idosos e não vão conseguir descer esse morro, nós vamos voltar! De repente seus pais aparecem lá em cima, todos choravam muito. Depois deu tudo certo, eles desceram e em seguida Júlio e um morador voltaram e conseguiram que o casal e o rapaz descessem. Quando o povo todo dali soube da notícia da TV e que viram o morro ali daquele jeito, foram todos para rua com sacolas de roupas e o que mais podiam carregar, em cima de tobatas, saindo com medo, nós também ficamos com medo e falamos: - Meu Deus! E agora? Começaram a aparecer aeronaves, veio uma, duas, três, quatro, daí uma pousou ali, a do Comandante Coelho e do Capitão Ramires, e falaram para nós que a ordem que eles tinham, era para evacuar toda a área, independente da situação em que estivesse a casa. Começamos então a tirar esse pessoal dali, íamos às casas, explicávamos a situação, fazíamos sinal para a aeronave, e iam resgatando essas pessoas. E a ordem era de poder levar só uma bolsa de colo. Havia duas senhoras que não queriam sair, com elas tinha um menino e duas meninas, foi uma cena bem interessante, eu, Patrício e Leandro fomos lá tentar convencer as duas senhoras a saírem, comecei a conversar com o menino, disse para eles pegarem alguma coisa que quisessem levar junto, coloquei-o no meu colo, o Leandro pegou a menina menor no colo também e a maior veio andando e falou para a irmã mais nova:- Ô, mana! Esqueci de pegar aquele tamanquinho! Não faz mal, né? E então a menorzinha que estava no colo tirou o

Bombeiros à procura de corpos soterrados no Alto Baú. 106


bico da boca e falou assim: - Não, não, deixa, ainda bem que estamos vivas! Então na terça-feira de tardinha fomos os últimos a sair de lá, a pé até a igreja do Braço, lá pegamos uma carona com um trator até a igreja do Baú Central. Ali fomos descobrir que na noite da tragédia, a casa daquelas crianças caiu, então entendemos o porquê da menina ter falado aquilo, que ainda bem que estavam vivas. Então a família nos contou que durante a noite o pai delas chegou em casa de noitinha e uma pedra rolou e bateu na casa, ele então com medo pegou a família e saiu de casa porque via que estava muito perigoso. Quando se afastaram por 40 metros da casa, veio uma barreira e cobriu toda a casa. A casa em que elas estavam na terça-feira era de vizinhos. Teve um senhor que queria levar um boizinho no helicóptero, dizia: - Ô, será que não dá mesmo para levar meu boizinho? O que eu vou fazer? Vai ficar aqui, vai morrer! Ao que o pessoal respondia: - Não tem como, vamos levar o senhor, e infelizmente o animal terá que ficar! Foi muito engraçado, mas deu pena, porque sabe como é esse pessoal do interior. Teve uma cena muito triste, um moço, que pediu várias vezes para mim, se não dava para irmos lá onde caiu sua casa, porque já havia encontrado seu filho mais velho, e que a esposa e o filho caçula não haviam sido encontrados, eu queria achá-los, e dizia: - Será que vocês não poderiam ir até lá? Porque eu já tentei e não consigo chegar até lá! E eu escuto o cachorrinho dele latindo, ele pode nos ajudar! Ele então nos explicava o local, mas não tínhamos como chegar até lá, teria que ter aeronave e lugar para pousar, expliquei-lhe isso e ele: - É eu sei, um amigo meu já tentou ir pelo mato e não conseguiu. Depois de um tempo ele voltava e nos dizia: - Será que não dá mesmo para irmos até lá, queria buscar minha esposa e meu filhinho! Ele estava em estado de choque, muito desesperado, vindo várias vezes nos perguntar a mesma coisa. Isso foi muito chocante, a gente fica em uma situação totalmente impotente, o que poderíamos fazer numa situação daquela? Tínhamos que confortá-lo, mas como? Uma pessoa que perde a família toda? Na hora Patrício não conseguiu se controlar e começou a chorar, e no momento eu o puxei para trás de uma casa lhe falei: - Cara tem que aguentar, não chora! Sei que é difícil nesse momento! Como estávamos representando os bombeiros, todos ali apostavam em nós, se eles vissem que nós estávamos desesperados, imagina como iriam ficar! Em muitas vezes ficamos em estado de choque! Então disse para ele aguentar, ele enxugou o rosto e se recompôs. De vez em quando me lembro dessa cena, daquele momento, foi muito triste. Porque se tivéssemos equipamento e tempo, seria bem diferente, mas com a ordem de evacuar todos dali, ficava difícil mesmo, porque foi complicado dizer que não, e a situação dele numa hora daquela, queria ter seu filho e esposa para poder fazer um enterro decente. No final da tarde de terça-feira, todas as pessoas já haviam sido retiradas, em áreas de risco ou não, havia quatro aeronaves retirando todas as pessoas. Nós indo às casas, orientando as pessoas, e as levávamos até onde estavam essas aeronaves, mas teve muita gente Marco Gamborgi

que não quis sair, por exemplo, o próprio Adriano que nos acolheu, foi o último a sair da casa, ainda chorou muito. Ele, um rapaz novo, uma boa casa, futuro todo pela frente e ter que abandonar tudo, sair só com um pouco de roupa, e ele só falava: - Tanto que lutei para ter isso que tenho, e ter que deixar tudo para trás! E nós: - Vamos, temos que sair daqui! Então ele foi. E naquele dia à noitinha colocamos nosso bote em cima de um trator, e fomos até o Baú Baixo, então colocamos o bote na água, fomos até na Barra, que fica a uns 6 quilômetros dali para devolver o bote ao Ney. Alguns bombeiros e civis do nosso grupo ainda ficaram no Braço do Baú. Na quarta-feira, dia 26, Patrício e Leandro que são jipeiros e eu, que conhecemos toda a região do Baú, fomos convidados pelo pessoal de fora que veio ajudar, e que não conhecia a região, fomos então como guias para toda a região do Baú, Alto Braço, Baú Seco e Alto Baú, acompanhando as equipes de resgates. Neste dia fomos até o local onde morreram cinco pessoas, no Alto Baú. Lá havia muitos bombeiros voluntários, pessoal da Guarda Nacional, Brigada Militar, bombeiros de Indaial e de outros locais, com ajuda de cães farejadores, então acharam o menino João Pedro, de um ano e oito meses, estava com o bico na boca ainda. Também foi encontrado o Paulinho, um rapaz de 17 anos. Foi encontrado também um book da Isabel, tia de Paulinho, por Caco Barcellos e outros bombeiros que ali estavam. Também no Alto Baú ajudamos a retirar uma senhora de uma casa, que se chamava Judite, estava numa cadeira de rodas e não tem uma das pernas, ajudamos então a colocá-la na aeronave. Fomos também para o Baú Seco, mas chegando lá já haviam resgatado todos os corpos, lá morreram seis pessoas de uma só família. Na quinta-feira, dia 27, o pessoal que estava alojado no Braço do Baú, no ginásio de esportes, queria vir para o abrigo do Baú Baixo, fomos então eu, Pedro Paulo e Leandro com o ônibus da prefeitura. Lá já estava o pessoal da Polícia Ambiental, e não queriam deixar nós irmos para o Braço do Baú, diziam que lá era área de risco eminente e que era responsabilidade deles, então o Leandro falou com o comandante dizendo: O pessoal que está lá nesse abrigo, fomos nós que colocamos todos na segundafeira, nós já trabalhamos lá. Ele então nos falou para deixar o ônibus ali e irmos com eles, porque lá já tinha um ônibus. Fomos então no Jipe com eles e voltamos com o pessoal com o outro ônibus. Nesse ônibus tinha uma senhora bem de idade, notei que estava passando mal, fui falar com ela e me falou que não podia andar de ônibus porque sua pressão baixava e me disse: - Meu Deus, né moço! Um lugar desses que meus netos vinham para cá, gostavam tanto! Um lugar tão lindo, e agora está assim! E eu falava para ela: - Mas isso tudo vai voltar a ficar como era! E ela: - Não, aquilo ali não volta mais, nunca mais será aquele lugar tão lindo que era, e eu ainda deixei galinhas, patos, meus porquinhos, bezerros, essas criações ficaram tudo lá! E eu: - Quando a senhora voltar para casa, a senhora consegue de volta! E ela me respondeu assim: - Mas só que amanhã, tudo quer comer, a gente quer comer, e os bichinhos também querem comer, e quem vai dar comida para eles? Ela naquela situação, saindo de lá, preocupada com quem iria tratar os seus animais amanhã. É... Tem certas horas que a gente tem que aguentar para não chorar!

Dona Judite sendo resgatada.

107


Dia 05/03/2009 :: Depoimento de

Egon Budag

Morador do Alto Baú.

Morada de Egon Budag, no Alto Baú.

E

se elevou tanto, o volume de água estava mais baixo. É bem diferente quando é de dia, você vê o que acontece, à noite não, você não enxerga, uma lanterninha não é nada, é muito esquisito, por causa do barulho você só tem visão limitada, é um desafio interessante. No domingo à noite o Rafael ficou de plantão, enquanto nós descansávamos. À meianoite nos revezamos. Naquele dia foi o maior estrago, porque lá em casa, como o rio estava mais largo, ele perdia a velocidade e as pedras vinham rolando até lá. Eu não conseguia entender, porque quando vinha aquela água passando, parecia que no meio o rio parecia mais alto, não tinha muita lógica para mim, mas depois quando baixou, percebemos que todas as pedras do Baú pararam lá em casa, por isso que a água passou por cima das propriedades. Segunda-feira não sabíamos que íamos fazer, estávamos isolados, não conseguíamos ir para nenhum lado. Ficamos sabendo que na vizinhança havia morrido gente e ficamos parados. À tarde conseguimos contato com o pessoal de fora, de Blumenau, vendo a possibilidade de um helicóptero para retirar o pessoal de lá, mas nada foi possível, contatos, nada, era uma confusão só. Mas olhamos assim, vendo tudo cheio de areia e lama, e pensamos, depois retiramos com máquinas e a vida continua. Na terça-feira de manhã, nosso pessoal precisava ir trabalhar, eu particularmente não, porque temos essa folga, então ficaram todos preparados com mochilas, menos eu é claro! Com um lençol sinalizando e também acenando com bandeiras improvisadas, na esperança de sermos localizados, até que um helicóptero conseguiu nos identificar, e então nos informaram via telefone que na próxima viagem viriam nos buscar. Vinha outro e sobrevoava, não era esse. Veio então um helicóptero grande do exército, sobrevoou baixo, e duvidei de que ele pudesse pousar, porque era muito grande, e realmente não pousou, foi pousar no campo de futebol lá do Quinha, desceu lá e eu saí

u moro no Alto Baú, e não iria sair de lá por nada. Naquele fim de semana de novembro, estávamos em casa, eu, minha esposa Joelma, meu filho Rafael e sua esposa Cristiane. O rio do Alto Baú que dá vida a este pequeno paraíso passa ao lado da minha casa, construída prevendo três vezes sua largura, e no sábado, dia 22, choveu demais e o rio subiu como nunca tinha subido, mas ficou longe ainda para atingir as casas, então meu filho falou: - Olha, será que não vai atingir as casas? Ao que respondi: - Só se acabar o mundo! Saímos um pouco para ver o que aconteceu na vizinhança e tudo mais, a estrada já estava interrompida, não podíamos mais sair para nenhum dos lados, com pequenos problemas. Estávamos sem luz desde sábado de manhã, e à noite, por volta das 9 horas, falei para todos irem dormir que eu ficaria de plantão, porque chovia muito. Eram 11 horas, eu estava descansando, e comecei a escutar um barulho muito forte, aquele movimento de água, pedras rolando, então eu saí naquela escuridão, com uma lanterna, vi que a água estava vindo com tudo, corri e acordei todos. Quando eu retornei, próximo à casa do Rafael, já começou a passar água em cima e num instante, só deu tempo para soltar os cachorros e correr para o abrigo mais seguro. Os cavalos não conseguimos soltar, os gatos também ficaram nas casas. Naquela noite ficamos em alerta, a nossa preocupação era em relação aos animais. Quanto à casa, não tínhamos preocupação. Para mim, sábado foi o dia em que mais choveu, embora domingo à noite o estrago tenha sido maior. O leito do rio já estava assoreado. Domingo de manhã entrou água nas casas, monte de galhos, troncos no pátio, mas tudo bem, não estava muito preocupado. A chuva continuou forte, só que o rio não

108


que estavam esperando o fim do mundo, e quando o fim do mundo chegou, não sabiam o que fazer com isso! Foi até engraçado! Eu cansei de jogar carne para os cachorros, cada dia o que eu fazia? Eu tirava só uma camada de cima e ia jogando. Assim todos os cachorros não passaram fome... Eu de lá falava por telefone na base da bateria, e as alimentava com o carro, enquanto tivesse combustível. Deixava o carro acelerado carregando as baterias, e então falava com o Almir e a Cíntia (secretaria da agricultura em Ilhota) e ficava meio desconfiado, se eles não iam me dedar, porque ninguém podia ficar lá, e eles sabiam que eu estava lá. Eu estava reclamando para eles:- Olha! Manda ração, porque sabia que uma hora tudo iria acabar, e eu reclamando. Minha esposa comprou bastante ração, na possibilidade de alguém levar, com milhões de helicópteros passando por lá, mas não veio ninguém, aliás não levavam porque não queriam que eu ficasse lá. Mas eu só pensava nos animais, não era para mim! Lá em casa tinha uma cachorrinha, a Pretinha, que era muito grudada em mim, só que era meio cega, e onde eu andava ela sempre estava atrás, quando eu estava cinco metros longe, ela já não me enxergava mais, então ela ia só pelo cheiro, e na quarta-feira chegaram os cavalos e acho que ela se assustou, e se mandou, e continuei fazendo minhas tarefas da obra da casa nova. Estava já cansado e senti falta dessa cachorra, pensei que ela estava em algum lugar, corri lá para baixo e quando estava no meio do pasto, escutei um ganido dela. Fui naquela direção e ela estava no chafariz se afogando, porque a água vinha do rio, e por conta da barragem estava um pouco baixo, quando ela caiu lá dentro não conseguiu mais sair, porque não alcançava mais. Quando eu cheguei lá só estava o focinho de fora, era o último respiro que tinha dado e ainda consegui pegar, parecia coisa de cinema, se eu não tivesse corrido lá de cima, não iria saber onde ela estava e não teria mais chance. Levei-a para cima, na casa que estava construindo e onde estava acampado, ela ficou naquele cantinho desde quarta-feira até sábado, até ser resgatada, dormiu no canto e não saiu mais. Foi uma dessas cachorras que eu levei, porque era umas das cachorras da região e não tinha como sobreviver sozinha por conta da cegueira. Tanto que no dia em que a TV veio aqui me entrevistar, a cachorra caiu de novo no chafariz! Essa cachorra era tão feia quando apareceu aqui, parecia um monstrinho, então a levamos a um veterinário, ele a operou porque tinha uns calombos nas costas e depois de uma geral até que ficou engraçadinha. Na quinta-feira, a cada cinco minutos passava um helicóptero, eu sempre tomando cuidado para que não me vissem, e também aprendi que havia três tipos de helicópteros, o grande do Exército, esse não representava perigo, porque não estavam atrás de ninguém, só iam sob missão de buscar pessoas já sabendo dos lugares. O azul que era da Polícia Federal, esses entregavam mantimentos, mas o da polícia Militar era o perigoso, e me escondia desses. À noite apareceram quinze bombeiros voluntários de Navegantes, vieram a pé, pararam lá, e me disseram que vieram para o Alto Baú para ajudar a resgatar os corpos. Vieram até o pescoço de lama, porque tiveram que passar barreiras com cordas, foi muito difícil, dei alojamento para eles na casa que estou construindo, tinha muita comida, fizemos até um churrasco. Na sextafeira de manhã fui mostrar para eles onde tinham caído as barreiras, o local onde as pessoas morreram. Continuei depois indo a cada propriedade, tratar os cachorros, as vacas, galinhas, tudo, só não tirava leite das vacas, isso era muito complicado, eu estava preocupado com as vacas, porque estavam com as tetas grandes, mas aí eu não sabia o que fazer. Sexta-feira após o almoço veio a ordem de abandono, tinha que sair do Baú, parece que veio uma notícia da Epagri que iria cair muita água, um absurdo. Eu já na quinta-feira tinha falado com dona Ivete Dalpiaz, de Pomerode, que é vidente Por aqui todos a conhecem, ela faz curas pela visão que tem, através de um copo d’água, ela trabalha já há muitos anos e para mim ela nunca errou. Como minha esposa, que estava em tratamento com ela por ter sido mordida por uma aranha. Ela então contou para minha esposa que no sábado ela havia ligado para uma

correndo. Um soldado saiu do helicóptero e perguntou: - Alguém vai embarcar? Estava cheio de gente lá, e todos acenaram que não iriam embarcar, exatamente porque até então não havia uma ordem para tal procedimento. Então eu gritei: - Eu! Aqui, aqui! Até que Rafael, Joelma e Cristiana chegaram, e conseguiram embarcar e foram para Blumenau. Os primeiros a embarcar neste ponto do Alto Baú. Não fui porque pensei: “Alguém tem que ficar, não posso deixar isso aqui abandonado, temos responsabilidade para com os animais, o mundo não acabou! Então não houve um comando de retirada, nós que queríamos sair, mas por questões profissionais, alguém deveria ficar e como eu era o mais velho, a turma teve que me respeitar. Mas logo em seguida veio ordem para que todos fossem retirados de lá, vieram outros helicópteros, e com eles também alguns profissionais da imprensa! Havia muita gente ali no campo para ser resgatada, e eu fiquei ali conversando com as pessoas, tentando auxiliar de alguma forma. Todos estavam bem apavorados. E falei para eles: - Eu vou ficar aqui! E foi engraçado que meus vizinhos me falavam: - Vai lá na minha casa e solta meu cachorro! Vai lá na minha casa e solta meu porco!, e eu dizia: - Por que vocês não vão? Pois é logo ali! E eles: - Eu não posso porque já tenho que embarcar! Eles estavam paralisados, faltava-lhes reação. Então me deram chaves de suas casas, outro dizia que sua casa estava aberta. Teve um morador que pediu para eu soltar o gato que ficou preso num quarto, eu então fui lá, entrei na casa, levei um baita susto quando me deparei com aquele porco gigante na sala (dava risadas). Não foi muito fácil para o porco sair daquela casa. Acho que tenho dificuldades em manipular esse tipo de animal! A dificuldade também em relação aos porcos eram os chiqueiros que não tinham portas e por isso era preciso desmanchá-los, para retirar os porcos de lá. Nenhum soldado me abordou sobre a questão de eu ir embora, porque todos teriam que ir embora. Perguntavam-me: - e você? Eu sempre respondia que era voluntário, na realidade era mesmo! Na quintafeira à tarde o movimento estava mais tranquilo, todos haviam sido resgatados. Quando tudo estava mais sossegado, voltei para casa, para cuidar dos meus cachorrinhos e tudo mais, meus cavalos estavam todos presos e eu os tratava, era complicado porque cavalo não é diferente de cachorro, eles comem muito, tinha que ir buscar o trato, e o trato estava todo revirado. Tinha ainda um pouco de ração para os cães, mas isso era problema, pois os freezers estavam cheios de carne, e os moradores antes de saírem me diziam: - Esvazie os freezers! Em todas as casas os freezers eram cheios demais. E tinha lá um total de sete, todos cheios de carne! Quanto mais numa região que sempre estava faltando energia. Parecia

109


pessoa em Blumenau, responsável pela prefeitura, avisando que iria vir muita água, que era para se preparar, acho que não acreditaram e nada foi feito e no domingo essa pessoa retornou para dona Ivete pedindo desculpas. Eu escutava no rádio que Blumenau estava com tantos e tantos metros, por causa das cabeceiras, então eles descartaram qualquer chance de dar uma enchente. Então na quinta-feira falei com ela e perguntei: - Como é que a senhora vê essa questão da água e não me fala? E ela: - Olha eu estou acostumada com isso, vi muita água, mas não sabia definir e como o Alto Baú é lá em cima, pensei que nunca iria chegar água lá! Não estava na minha cabeça essa questão da água dessa forma! Na sexta-feira ainda, como a chuva continuava, eu novamente falei com ela, e ela me disse: - Vai cair muita chuva, mas não tem perigo, podes ficar aí, Deus está com você! Os bombeiros já haviam retornado por causa da ordem de evacuação total, então pensei que todos já tivessem ido embora, aí vejo mais uma turma de bombeiros descendo no morro e me perguntaram:- Cadê o outro pessoal? Eu falei: - Foram embora! E eles ficaram muitos chateados, e falaram: - Achamos um corpo lá em cima, e agora? Que faremos? Todos os equipamentos a outra turma tinha levado embora, então providenciei cordas, moto serra, e levamos morro acima, mas estava muito complicado, debaixo de chuva, tiveram que cortar as pernas das pessoas, porque não tinha como retirá-las, eles fizeram mágica! Para começar, eu não enxergava nada, eles falavam assim: - Ali está o corpo! E eu: - Onde? Não estou vendo! Havia muitos troncos, era uma pirambeira, tinha mais ou menos dois metros de troncos, e o corpo estava lá embaixo preso, eles não tinham tempo para nada, porque sabe lá quando alguém poderia subir ali de novo! E os animais poderiam comer aqueles corpos! Até depois a Polícia queria processar os bombeiros, mas esse pessoal veio a pé, arriscou-se muito correndo para cima e para baixo, puxando cordas, e depois ainda tinham que chamar um helicóptero para levar o corpo, foi um sufoco. Depois de tudo isso, voltei para casa e fui soltar meus cavalos para tratá-los. Queria atravessar o rio com eles, porque onde estavam corriam risco, daí eu amarrei uma corda no parachoque do meu fusca velho, e me amarrei na corda e atravessei o rio para ver se tinha perigo para os cavalos. Fui até a cintura com água e pensei: se eu consegui atravessar, eles também conseguem! Soltei um por um, alguns foram facilmente sozinhos, mas dois deles voltavam, não queriam ir, foi aquela canseira. Depois enrolei a corda, coloquei em cima da pedra e quando eu olho assim, estava descendo um helicóptero, mas sabe o que eu pensei?Lá vem minha ração! O Almir mandou minha ração! (riu muito). Então peguei minha câmera de filmar e ainda filmei o helicóptero descendo, mas quando saiu o soldado... O cara tinha mais de 2 metros e eu todo feliz, pensando lá vem minha ração, perguntava: - Cadê minha ração?’ E ele: - O senhor tem que sair daqui! – Sim, eu disse e minha ração? (rindo muito) Eu sou voluntário! Não posso sair, estou com os bombeiros! O soldado respondeu: - Mas eles também terão que sair, e o senhor também tem que sair, vamos sair, vamos sair! Como vou embarcar com essa roupa suja? Porque tinha atravessado o rio e eu dizia: - Eu não posso sair daqui assim! Estava só tentando despistá-lo. Na hora eu disse, meu fusca está aqui. E ele: Deixe-o aí! E eu: Você não disse que ia chover? Como que vou deixar ele aí? Então faz o seguinte, disse ele: - Passa por ali então, não tão perto do helicóptero, depois nós vamos embarcar! E eu: está bem! Eu então dei a volta e fui até lá em cima da casa nova, deixei o fusca lá e pensei, agora vou lá com os bombeiros, mas quando eu olho, lá vinha o soldado novamente, então eu disse:- Está bom! Meu senhor, eu sei que está preocupado comigo, pela minha vida, mas sei o que estou fazendo, não tenho medo, tenho consciência e fui preparado para isso, eu já estava esperando por isso tudo, essa é minha vida, não posso sair daqui, tenho que cuidar de todos os animais que estão aqui, o senhor não tem noção de quantos animais tem aqui, e se eu não ficar aqui eles irão morrer e a vida deles vale muito mais que a minha, nessa altura eu não estou nem aí! E ele: - Então você se responsabiliza? E eu: - Imagina! Dei um abraço nele, feliz da vida! E depois ele foi embora.

jornal Gazeta do Povo, de Curitiba.

O meu problema depois foi que não consegui mais andar, na hora daquela correria, nem mais lembrei de usar meias e quando passava por dentro da água só de botas, elas se enchem de areia, causando feridas nos pés, umas dez em cada pé. Entrei então no fusca que estava com um fedor do sangue das carnes que eu carregava quando as tirava dos freezers e fui até o campo. Quando cheguei lá os bombeiros estavam esperando o helicóptero do exército para resgatar aquele corpo. Então fiquei lá com eles e nos despedimos. Esses bombeiros de Navegantes realmente foram muito positivos, naqueles momentos fomos como irmãos, um ajudando ao outro, foram muito legais mesmo. E fiquei, entrei no meu fusca e, quando olho para cima, vi mais um helicóptero, imagina. Se eles veem um fusca lá embaixo andando, sem que ninguém mais possa permanecer lá... Então me escondi embaixo de uma árvore, o helicóptero deu umas voltas, e quando eu vi que ele estava de costas, sem visão, entrei na minha rua que é cheia de árvores e deixei o fusca por ali mesmo. Fiquei parado, já era quase noite. Estava muito exausto, porque lá na subida da Tifa do Grahl, onde fui com os bombeiros, foi muito cansativo, tinha que passar por riachos, ainda com chuva, e aquela sensação que estava no ar do perigo, não foi muito simples não. O dia de sábado amanheceu lindo, poucos helicópteros, porque com aquela ordem de todos saírem, só a cada meia hora passava um e quando os escutava, dava tempo de esconder. Fui tratar os bichos, as galinhas dos vizinhos, cachorros... todos. Eu estava nas nuvens ali sozinho, estava tão calmo! Resolvi até fazer um agrado para os cachorros, dava-lhes carne crua, eles deveriam estar enjoando, trouxe então umas cochas de frango e coloquei para assar, enquanto isso, por volta de uma hora da tarde aconteceu um baita estrondo, daí os cachorros saíram latindo e eu correndo atrás para ver o que era. Olho e vejo o morro atrás de casa começando a descer e pensei: “o que faço agora?” Continuei olhando e de repente cai mais um pedacinho ali, outro lá, iquei só observando. Na dúvida, liguei para dona Ivete e ela disse: - Olha! Estou vendo que está ficando feio, o morro começou a ceder! Então eu dizia para ela: - Dona Ivete, não dá para me esconder na casa de um vizinho! Eu sabia que minha casa é segura, porque tem muito concreto, mas que ir para um lugar onde o morro não fosse atingir. E ela dizia que não era seguro ficar. E eu insistia: - E se eu

110


subir o morro pelo lado contrário? Onde tinha plantação de eucaliptos, porque sabia que lá era firme. Ela me aconselhou a sair. Pensei: poxa vida! Todos contra mim! Às duas horas eu liguei para Joelma e lhe disse: - Olha, fala para o Almir conseguir um helicóptero, mas no fim da tarde, porque até lá quero ver se eu consigo salvar o que precisa. Foram as duas piores horas da minha vida, eu não sabia o que fazer, cada casa que estava pendente ainda, soltar as galinhas que estavam presas, algumas vacas que não queriam sair do curral, daí joguei rações por todo o lugar, fui derramando tudo, mas passou tão rápido aquelas duas horas! Peguei os cachorrinhos pequenos da rua e mais a Pretinha, uma menor da nossa casa que era meio pamonha, tínhamos uma gaiola grande de transporte de animais, coloquei-os lá dentro e aos poucos fui levando. Voltei para casa para fazer mais uma revisão, porque na hora a gente não tem muita cabeça para ver o que falta e o que não falta. Às quatro e quinze o helicóptero estava ali. Saiu então um camarada muito simpático, aliás, todos os soldados nesses dias todos foram muito prestativos. Eu sentia uma energia tão forte, quando aquele pessoal lá no campo foi resgatado, tinha hora assim que tinha até três helicópteros, e todos que vinham traziam muita energia. Teve uma hora que eu levantei os braços em silêncio e agradeci por esta ajuda, porque eu sabia que nós iríamos nos encontrar. Nós, ainda nessa situação, tínhamos tudo, todo o Brasil estava nos ajudando ali, e essa ajuda veio, essa energia, tudo veio logo, não só os helicópteros, mas ajuda de Deus estava ali. Sabe, quando a aflição do ser humano chega no auge, então a ajuda de Deus está mais próxima, e é nessa hora que se sente isso em cada pessoa. Então, saiu aquele soldado do helicóptero e disse: - O senhor que é o Egon? Eu disse: - É...! Agora só sobrou eu, que alternativa que tenho! E ele: - Vamos embarcar! Eu disse: - Só que eu tenho esses meus amigos aqui! Referindo-me aos cachorros e ele respondeu que não poderiam ir. - Mas como não podem? Então eu não vou! Porque eu já estava louco para ficar mesmo, era um motivo para eu ficar! E ele então me falou: Eu vou lá perguntar para o comandante Artur. E saiu correndo. De lá eu vi um sinal de positivo e aí me emocionei, foi um alívio para mim. Tentamos então pôr aquela gaiola, e não cabia, empurra pra cá, pra lá, e nada, o helicóptero era muito pequeno, então o comandante disse para colocarmos atrás, num compartimento que estava cheio de equipamentos de salvamento, mal coube a gaiola com os 4 cachorros, a Pretinha, Lola,

Sorriso e Fofinha, todos sujos e eu também. O comandante Artur Costa é de Curitiba, ele foi uma pessoa muito especial, conversou bastante comigo. Pousamos em Ilhota, minha esposa já me esperava, de lá fui para a prefeitura conversar com Almir e o prefeito e também sua irmã, a Marisa, estavam todos ali me esperando ansiosos. Apresentaram-me para o Comandante geral aqui de Ilhota, o Major César, e ele disse: - Ah! É você que faltava? - É, era eu, infelizmente tive que sair, não deu para ficar! E me disse: - Eu mandei o melhor homem da minha guarnição porque sabia que você tinha um pedido especial. Eu fiquei muito feliz, porque senti que ele realmente foi muito especial. No sábado fomos para Blumenau, à noite eu não consegui dormir. Eu escutava as vacas, eu via as vacas na minha frente, a noite toda, os cachorros, gatos, tudo assim berrando para mim, a noite toda, não consegui dormir nada. E eu ainda prometi para a sua irmã, que eu viria ajudá-los aqui em Ilhota no domingo, mas não consegui, fiquei descansando. Domingo à noite a história se repetiu, não consegui dormir, e na segunda-feira queria ir para o Alto Baú, mas antes indaguei a Ivete e ela falou que antes de quarta-feira não aconselhava a ir. Perguntei o porquê do acontecimento todo, e ela me disse que a camada de barro em cima das rochas é muito fina e não tinha mais onde a água ir, e que a explosão do gás teve sim, interferência. O gás, interferência? Não foi só o gás! Realmente quase todo morador do Baú sentiu a terra tremer naquela noite. Na quarta-feira então voltei para o Alto Baú, fui com o Artur Grahl, meu vizinho que estava muito preocupado, sabe por que? Eu tinha deixado minhas araras sem comida e os passarinhos do vizinho também, mas quando cheguei lá, aconteceu que eu tinha uma cadela que incomodava demais, e para fazer minhas tarefas eu a havia prendido no viveiro com as araras, e o que ela fez? Ela tombou um tambor que tinha comida dentro, inclusive bolachas, sementes de girassol, comida natural das araras, então todos tinham comida e havia água corrente. Então passaram bem. Os cavalos estavam bem. Tinha um freezer que não havia conseguido esvaziar, então estava tudo podre, nojento. Na semana seguinte fui levando outros cachorros pelo mato, por uma trilha em direção a Blumenau, meu filho entrou por cima também e me ajudou a carregar, inclusive uma cachorra prenha, estava para criar, não sei de quem era, essa me deu trabalho, um dia muito quente, íamos um pouco pela estrada onde possível e pelo mato, mas eu carreguei aquela cachorra nas costas, a barriga dela estava enorme, mas coitada,50% ela conseguiu andar, e outros 50% eu carregava. E meu filho com uma cadela Pastor Alemão, que era dele e mais uma cachorra. Depois desse dia eu voltava e entrava várias vezes, com mais cachorros pequenos, e levava comigo um estilingue para defesa, porque quando ando com esses cachorros pequenos, os grandes atacam, daí eu tenho que defendê-los, primeiro com ameaças, se não resolver tenho que usar o estilingue. Ficávamos assim, entrando e saindo, deixávamos o carro naqueles parques aquáticos, e íamos a pé por um bom trecho. Até que abriram as estradas. Temos muito que agradecer ao senhor Ivo Mette, se não fosse ele para colocar aquele seu trator no mato e fazer aquela picada para as pessoas passarem, assim o pessoal pôde tirar seus carros, se não fosse por ele ainda não teríamos luz lá em cima. Porque ouviase que tinha que esperar pelos geólogos, que tinham muita experiência, para abrirem as estradas, enquanto isso ele estava trabalhando por conta própria, e sem promessas de receber. E até hoje ele está trabalhando lá. Primeiro ele abriu uma picada, um acesso bem complicado e depois então eles começaram a melhorar, passaram uma estrada mais por baixo, bem larga, daí já colocaram tratores, e ele sempre como cabeça para orientá-los. Se ele não tivesse se disposto, não ia sair, porque ninguém tinha dinheiro para pagar uma máquina dessa o tempo todo na estrada. Temos que pensar nele como uma peça chave para o nosso conforto. E hoje, já tem luz por aquela estrada, muita gente ajudou, mas com a iniciativa dele.

Dia em que Egon Budag foi resgatado com seus cães. 111


Dia 02/03/2009 :: Depoimento de

Elizabete Burin

Moradora do município de Ilhota.

Voluntários da ONG Visão Mundial na limpeza de uma casa atingida pela enchente no Alto Baú.

E

u comecei como voluntária da prefeitura, durante a enchente que atingiu todo o nosso vale. No dia 10 de dezembro, eu e mais duas amigas estávamos indo ao refeitório do salão paroquial. Encontramos com algumas pessoas dessa ONG, Ranieri Pontes, de São Paulo, que é o diretor, o pastor Roberto Chenk, de Palhoça(SC), era quem estava coordenando as ações de Ilhota, e que vieram para o município por conta da tragédia, então Paulo Vilmar Batista, o Expresso, nos apresentou Ranieri que me perguntou sobre meu trabalho. Respondi que trabalhava com vendas, então no dia 11 de dezembro Ranieri me chamou e me contratou para trabalhar na Visão Mundial, que é uma ONG, trazendo benefícios ao próximo, e esse trabalho que está sendo feito aqui é o primeiro nessa dimensão, porque o foco deles é crianças pobres, favelas. Estão desde o início da enchente ainda aqui, mas sempre renovando o grupo de voluntários, que vêm de todo o Brasil. Então Ranieri me perguntou se conhecia bem o município e região rural do Baú, e falei que só o município, que o Baú eu não conhecia porque morava há pouco tempo aqui, e me perguntou se eu estava disposta a conhecer e respondi que sim. Fui contratada para receber os voluntários, levá-los nos lugares, orientá-los, eu que ajeito os alojamentos, questão de alimentação, logística, buscar e levar informações. A ONG alugou uma sala e temos um escritório, no centro de Ilhota, lá fica nossa central. Tudo

é programado, quando os voluntários ligam ou quando recebemos email, ficamos sabendo o número de pessoas que vamos receber, aviso ao Pastor Roberto, e nós programamos. Quando chegam, damos a cada um sua tarefa, eu então os oriento. Vêm muitos profissionais de todas as áreas, muitos vêm para trabalhos específicos em sua área, mas vêm dispostos a fazer o que for necessário. Vêm advogados, psicólogos, e também muitos estudantes universitários. Fazem todo tipo de trabalho para ajudar as pessoas que foram atingidas pelas cheias, como limpeza de casas, psicólogos dando apoio para as pessoas através de conversas. Recebemos doações, temos um mantenedor dos Estados Unidos, Walmart, que nos dá o sustento aqui para comprarmos móveis, maquinários para abrir as estradas do Baú, reformas de casas, e semana que vem vamos adquirir uma máquina para desobstruir os terrenos das casas que estão liberadas para morar. Com isso, consequentemente as pessoas vêm nos procurar, então eu vou nas residências com o pedreiro e avaliamos. Teve uma voluntária que veio de São Paulo, que viu uma reportagem de um rapaz que perdeu algumas pessoas da família, e isso a impulsionou a vir para Ilhota. Ela veio com vontade de ver essa pessoa, então ficou trabalhando nos abrigos, fazendo o que precisasse. Um dia durante o almoço no Braço do Baú, ela estava sentada ao lado de um rapaz,

112


e ela começou então a falar sobre esse rapaz que viu na TV, e que gostaria muito de conhecê-lo. Coincidentemente esse rapaz lhe disse que era seu melhor amigo, e falou que se ela a quisesse a levaria para conhecê-lo em sua casa. Então ela aceitou o convite e foram. Chegando lá, ela deu um abraço muito forte nele, e ela chorando falou que só aquele abraço valeu a vinda dela para Ilhota. Quando esta senhora me contou, ela chorava muito, e me falou que gostou muito de tê-lo conhecido, que realizou o que tanto queria. Dentre tantas histórias, essa marcou bastante. É esse o objetivo da Visão Mundial no nosso município, ajudar as pessoas que tanto sofreram durante esta tragédia, tentando levar melhor conforto, atenção e em especial muito amor para o próximo! Queria expressar o tamanho da minha gratidão a Deus por ser eu a pessoa escolhida para estar exercendo este trabalho. De todo o coração agradecer a todos os voluntários que por aqui passaram, pois com tudo o que aconteceu, com vocês eu cresci muito. Quando vocês, meus laranjinhas, diziam que eu era os pés e os olhos de vocês, me sentia honrada, mas podem ter absoluta certeza que cada um de vocês é e será minha eterna inspiração. Deixar suas casas, suas famílias para se dedicar às pessoas estranhas e torná-las muito próximas de cada um de vocês, isso fez de mim seus pés e seus olhos para sempre. Posso dizer que amo a cada um em Cristo Jesus.

Todos os pertences retirados da casa de propriedade de Maurici e Terezinha transformados em entulhos, lixo.

Voluntários da ONG Visão Mundial.

113


Dia 09/02/2009 :: Depoimento de

Emersom Miguel Amorim e Dayse Gonçalves

Moradores do Alto Baú.

E

mersom: Para nós tudo começou do dia vinte de novembro, uma quinta-feira. Na sexta-feira já não consegui ir trabalhar devido à água na estrada. Daí para frente foi só desgraça. Temos um restaurante, inaugurado há poucos dias da tragédia. Temos também uma truticultura próxima ao parque botânico Morro do Baú. No sábado, estava em casa com minha esposa Dayse, grávida de três meses, meu pai (Carlito Amorim), minha mãe (Adélia Amorim) e meu avô, Albino. Passamos o dia inteiro tentando salvar os peixes. Truta é um peixe que, vinte minutos fora d’água, morre. Tínhamos seis mil unidades, o equivalente a cinco mil quilos, e também perdemos tudo o que havia no restaurante. O nosso maior medo foi no sábado à noite, quando Dayse foi verificar a peneira das folhas na lagoa, por volta de nove horas da noite, fez a limpeza e voltou para casa. Perguntei a ela se o rio estava alto ou baixo, respondeu que estava baixo, que faltava um pouco para transbordar e fiquei preocupado. Acordamos minha mãe para continuar cuidando da peneira e depois de quinze minutos, a água estava entrando no chão da cozinha do restaurante. Dayse: Eu puxava a água do chão com o rodo, achando que era água da chuva, e não era. Emersom: Abrimos a porta e vimos que era o rio que já havia transbordado, entrando em casa. Só deu tempo para pegarmos algumas roupas, erguer algumas cadeiras e outras coisas. Estava muito escuro, estávamos sem energia, não se via nada pela frente. Fomos então para casa de meu pai, que é mais para cima do morro. Meus pais estavam na nossa casa porque ajudam a cuidar dos peixes. Fomos dormir lá. Só que dormir, como? Ele me perguntou se algum dia eu havia visto numa cancha de bocha, aquelas bolas pesadas rolando. Era a mesma coisa, como se tivesse jogando uma bola atrás da outra, era assim o barulho das pedras no rio,

pedras enormes. Nós tínhamos uma cachoeirinha e ali as pedras vinham rápido demais, fazia um barulho fora do comum, que chegava a tremer o chão. Naquele dia não dormimos nada, nada! Desde sexta-feira à noite, até na terça-feira quando saímos, não dormi e praticamente comemos só na segunda-feira de manhã. Não tínhamos fome. Então vimos que perdemos tudo, peixes e tudo mais. Passamos a noite em claro. No outro dia de manhã, no domingo, eu queria ir lá na casa ver o que tinha acontecido, ver se a água não tinha levado tudo embora, mas não tive coragem. Da casa da minha mãe até a minha, dava uns cem metros, só que tinha um ressalto através do qual não dava para ver minha casa. Depois de um bom tempo eu e Dayse criamos coragem e fomos, constatando que lá ainda tudo estvava de pé! Só os peixes, todos mortos. Domingo à noite, dia vinte e três, estava chovendo o dia todo, com intensidade média. A partir das seis horas começou a aumentar a chuva. E lá pelas oito da noite as pedras do rio começaram a rolar novamente, com maior intensidade. Dayse: Eu e Emerson na cama tentando dormir estávamos aflitos, abraçávamo-nos e eu chorava muito, só pensávamos o pior, porque o barulho das pedras era forte demais. Emersom: Então resolvemos ir para o quarto de meus pais, e deitamos com eles, ficamos nós quatro na mesma cama. Depois de um tempo, minha mãe, virada para janela, viu um clarão e pensou que era a luz do poste, porque era uma luz idêntica, luz amarela, e era o gás que estava explodindo. Devido ao barulho das pedras rolando no rio, a gente não ouvia o barulho da explosão. Olhava para o clarão e era dia, olhava para o outro lado e era noite. Ouvimos relatos de pessoas de que iria acabar o mundo, nós também, não vou dizer que não pensei nisso também, mas era assim... A gente não sabia o que pensar numa hora daquelas. Pensávamos que era helicóptero caindo, posto de gasolina explodindo,

Casa e restaurante de Emersom M. Amorim e Dayse Gonçalves.

114


pensamos mil coisas. Após tudo isso, tentamos dormir novamente, mas não conseguimos. Na segunda-feira de manhã, já não chovia mais, olhamos para rua e vimos uma barreira caída bem em frente da casa, e passamos o dia assim, naquela agonia. Fomos tentar sair do nosso lugar, pedir ajuda, estávamos ilhados, a correnteza do rio era muito forte. O rio tinha aumentado em largura cinco vezes. Fomos então a uma casa que meus pais moravam antes, vimos a destruição, igual ou maior que a nossa. Não conseguimos ajuda, então resolvemos ir a outro vizinho, o Adriano Bruns e lá a destruição também foi muito grande. Conversamos sobre o que tínhamos perdido, ele também. Depois do meio-dia, começamos ver uma movimentação de helicópteros. Pedi para dois amigos nos ajudarem a tirar todos os peixes do tanque, havia cinco mil quilos de peixes para retirar. Lá chegando, depararam-se com aquela situação toda, dei para eles um vinte quilos de peixe, porque não tinha energia elétrica e acabaria estragando, também alguma coisa de congelado do restaurante e voltamos para casa. Naquela noite, conseguimos dormir bem. Na terça-feira, dia vinte e cinco, por volta de dez horas da manhã, voltamos à casa do Adriano, e ele falou que tinha atravessado os morros por dentro do mato e ficou sabendo da tragédia que ocorreu na casa do senhor Daniel, na Tifa do Grahl também, contou sobre quantas pessoas mortas e aquilo mexeu muito comigo. Voltei para casa decidido a ir embora do local, porque está todo mundo indo embora do Baú, não vai ficar ninguém aqui’. Deram uma dica para nós, para esticarmos um pano, sinalizando para o helicóptero descer. Começamos então a agitar o pano lá de cima do restaurante e as outras pessoas da família ficaram na casa, porque estavam cuidando do meu avô, já com oitenta e seis anos e não podia se locomover. Às sete e meia da noite, peguei a lanterna para acenar porque não descia nenhum helicóptero. Passavam direto, nenhum parava. Depois de um tempo o helicóptero deu umas três voltas até poder pousar no estacionamento do restaurante. E o piloto falou assim: - Só podem ir duas pessoas. Estávamos em cinco e falei que só em dois nós não iríamos. Ele falou: - Então vou dar um jeito. Fomos os cinco. Nunca havia voado de helicóptero, foi uma experiência... Não hesitamos em nenhum momento em subir. Vendo aquela destruição toda ali, tivemos uma noção maior, uma visão melhor do grau da tragédia. Levaram-nos até Navegantes e no caminho, vendo parte de Ilhota debaixo da água, não sabíamos o que era rio, o que era arrozeira, estrada, não sabíamos o quê era o quê! Era só água! Água por sobre tudo. Então pensei o seguinte: “Só o que me faltava agora era sair do Baú, onde estávamos bem, apesar de tudo. Tínhamos comida, água, só não energia elétrica, e morrer em Navegantes, afogado! Mas graças a Deus chegamos bem. De lá fomos para um abrigo, lá estavam quinhentas pessoas, da parte de Navegantes. Uma comissão de pessoas nos atendeu muito bem, tomamos banho, comemos. Até então, como lá tinha energia, a primeira coisa que fizemos foi carregar os celulares, para

Tanques onde criam as trutas. poder avisar a família que estava em Blumenau: os pais de Dayse, meus tios. Lá eles deviam estar muitos aflitos. Quando consegui ligar o telefone, a partir da hora que começou a carregar, começaram as ligações. Ligoume um conhecido de Lages, na hora chorei muito porque não havia falado com ninguém, e ninguém sabia se estávamos, ou onde estávamos. Contei tudo o que se passou conosco. Quando ele desligou, imediatamente ligamos para os pais dela, o senhor Nelson Bereta. Depois foi só alegria! Vimos que estávamos todos vivos, todos bem, conversávamos com todos ali. Fomos dormir ou tentar dormir mais uma vez, não conseguimos porque no nosso espaço havia umas quinze pessoas. Amanhecendo fomos para o aeroporto, para irmos a Blumenau. Só que cada vez que íamos entrar no helicóptero, saía uma missão para resgate. Então duas vezes, quase pisando dentro do helicóptero, vinham comunicações pelo rádio, uma foi para Luiz Alves, outra para Ilhota. Uma das ligações dava conta de que o pessoal estava em cima de um telhado pedindo para serem resgatado. Depois conseguimos ir e chegamos a Blumenau às seis horas da tarde. Fomos para a casa da família. Graças a Deus estamos vivos! Em dezembro, voltamos pela primeira vez para ver nossa casa no Alto Baú e fomos com mais cinco pessoas da família. Nesse dia me deparei com todos os acontecimentos, a nossa casa inteira, só que o nosso terreno ficou todo desfigurado, a geografia mudou por completo. Depois de trinta dias voltamos lá, abriram uma estrada improvisada, fomos com um jipe, trouxemos alguma coisa, roupas e alguns pertences. Perguntei sobre a volta para a casa. Emersom: Vou tentar reconstruir, com mais vontade ainda do que antes, pode ter certeza disso. Nós estávamos apenas cinquenta dias com o restaurante aberto, abrimos nosso empreendimento no dia vinte e três de setembro.

Pedras que rolaram na noite do dia 23 de novembro, durante a tragédia. 115


Depoimento de

Fausto Candido Neto

Morador de Baurú SP.

Fausto Candido Neto

A foto que não tirei...!

S

aí de Bauru às 23:00h, para encontrar alguns amigos da minha igreja, que estavam servindo como voluntários em Santa Catarina, tirando lama de casas que sofreram inundações, nos morros e na periferia da cidade. Preparei, no dia anterior, o meu jipe, uma Rural 1973 4x4, munindo-a com toda a sorte de ferramentas, materiais e equipamentos off-road passíveis de serem utilizados numa situação de calamidade pública, como eu imaginava que seria e que também acompanhava por notícias dos jornais. Entre as lágrimas de Rebeca, minha filha de 13 anos, de minha esposa Regina e das minhas próprias, e já antevendo a saudade que sentiríamos nessa semana que eu planejara passar fora, demos as mãos e oramos a DEUS, entregando-LHE a minha viagem e pedindo que nos guardasse aos três durante esse tempo separado. Afastando a minha cadelinha Polenta, que se apoiava no estribo do jipe e que, com o seu olhar, me pedia pra também ir junto, parti rumo a Ilhota-SC, para uma viagem de oito horas e meia, parando só para abastecer, por longos 830 Km. Durante a viagem, refletia sobre o que fazer para ajudar numa situação de catástrofe como a que eu iria encontrar, e senti-me muito inseguro, pois eu não conseguia me enquadrar em nenhuma projeção de trabalho que pudesse executar com eficiência, perícia e funcionalidade, fazendo valer de verdade, minha ida para lá, justificando-a. Viajei me lembrando da reportagem na televisão de um tal Juliano que tinha perdido a sua família toda no desmoronamento e que ainda procurava pelo corpo desaparecido de sua filhinha de poucos meses, que ele insistia em encontrar. E, compartilhando da dor desse pai,

segui, pela noite adentro, pedindo a DEUS que me colocasse aonde ELE bem quisesse e me desse para fazer o que ELE bem decidisse por mim... Então, o meu coração sossegou quando me lembrei da frase bíblica ”SENHOR, eis-me aqui, envia-me a mim!” Cheguei a Ilhota às 07:30h e, por informações, fui parar em frente ao escritório da ONG de ajuda humanitária, a Visão Mundial, onde também acabava de chegar a pessoa que se tornaria, para mim, a mais importante dos próximos 35 dias que eu passaria como voluntário em Ilhota, a Beth, que coordenava quase todo esse trabalho voluntário que chegava à cidade e já me recebeu designando-me tarefas, antes mesmo de me encontrar com os meus compatriotas de Bauru. Mal me dei conta, já tinha descarregado colchões e carregado dois caminhões de roupas, depois de ensacá-las, varrido e arrumado um outro galpão de roupas e sapatos, despedido-me dos meus irmãos de Bauru e já estava na estrada, de novo, viajando mais 800 Km, de jipe, um dia depois da minha chegada, prestando serviço de assistência social junto à Prefeitura, chegando à fronteira do Rio Grande do Sul. Quando voltamos, após inúmeros trabalhos de triagem de alimentos e roupas, transporte de pessoal e de víveres para os desabrigados e também para locais de difícil acesso, limpeza de novos galpões para receberem as doações que chegavam de todo o Brasil, fui absorvido pela Defesa Civil, por causa do meu jipe, para transporte de pessoal, comida, água, remédios, equipamentos, combustível, etc., para a região do Alto Baú, epicentro de toda a catástrofe do desmoronamento e onde a única maneira de acesso era com um veículo 4x4.. Enfrentamos, nesse tempo, muito barro pesado, muitas trilhas quase intransponíveis, que eram os desvios feitos para avançarmos com

116


equipamento e material para confeccionarmos uma nova estrada de acesso. Trabalhamos muito duro, muitas vezes lutando contra o desânimo que nos acometia quando a chuva de algumas horas destruía o trabalho árduo de muitos dias... Algumas vezes fugíamos para algum canto para esconder uns dos outros alguma lágrima que denotasse a nossa frustração. Mas aos poucos, tivemos a satisfação de ver, vitoriosos, os desvios dos cursos de água concluídos, os perigosos atalhos de acesso sendo substituídos pela definitiva progressão da nossa linda estrada, que ia se consolidando ao ser coberta pelo macadame de alta qualidade, dos manilhões sendo implantados, da rede de energia chegando e da água retornando aos encanamentos das casas que não foram condenadas. Finalmente, a vida voltava a emergir e tomar conta do Baú. Coisa boa. Todos os dias me via irmanado e fazendo parte de um valoroso exército de bravos soldados, uma legião de Paulos, Malicos, Anas, Zés, Odes, Neusas, Marcílios, Roses, Dáis, Céfas, Ivos, Narcisos, Pingos, Nenês, Albanos, Alemães, Vânios, Antonios, Gilbertos, Abelhas, Clésios, Pepas, Tonys, Lucas, Andersons, Joões, Emersons, Cidneis, Leões, Ratões, Negas, Isauras, Andréias, Déboras, Mauricys, Julianos, Brunos, Wandos, Almires, Negos, Claudinhos, Eduardinhos, Raquéis, Fernandos, Fernandas, Joéis, Galegos, Lauras, Lécos, Maristelas, Enilsons, Eduardões, Henrys, Marcões, Silenes, Marílias, Mauros, Juniores, Maitês, Pastores Robertos, Marias-José, Jaíres, Betos, Rafaéis, Nicks, Marlons e Beths, dentre tantos outros guerreiros de fibra e de qualidade superior que não me lembro mais o nome, mas que lutavam por uma bandeira só, unidos, visando uma conquista em comum, a reconstrução de Ilhota e Alto Baú... Quer transportando comida e combustível morro acima no meio da lama com o jipe, ou servindo de guia aos geólogos e aos engenheiros civis, ou removendo os peixes de lagoas avariadas, ou fazendo triagem dos desabrigados, ou fazendo fossas, ou levando cestas-básicas periódicas para famílias afetadas pelas enchentes, ou retirando lama da casa do Mauricy, ou levando bananas aos cães mais famintos dos lugares mais altos, ou recolhendo esses cães que foram deixados para trás, levando-os para baixo, para a adoção (inclusive trouxe para Bauru comigo a Catarina, cadelinha que adotei), ou procurando o corpo da filhinha do Juliano pela última vez... Dessa forma, apesar de ser o menor desses soldados dali, e com certeza o menos graduado em fibra, eu me senti muito mais próximo de DEUS, fazendo aquilo que ELE havia me determinado, da melhor forma que me era possível... Isso foi por demais de forte na minha vida... Pude ser portador de um pouco dessa luz de CRISTO, e testemunhar um pouco mais do amor que JESUS tem por todas essas preciosas vidas, por esse admirável povo Ilhotense. DEUS me deu, por um instante, a dádiva de enxergar a todos através do SEU olhar generoso e cuidadoso, e assim, passei a amá-los como meus verdadeiros irmãos, e me senti também filho dessa terra que foi tão hospitaleira e amorosa comigo. Procurei registrar, com a minha câmera em alta definição, todo o desastre em todos os locais possíveis, as pessoas, os trabalhos, as trilhas, os avanços e todos os momentos de derrotas e de vitórias da nossa meta, que consistia, basicamente, em refazer a estrada de acesso, com toda a estrutura de prevenção das chuvas que ainda estavam por vir, e a restauração da rede de energia elétrica. Foi daí que a minha previsão de ficar por lá por uma semana veio abaixo, pois o meu coração ardeu de tal forma que não consegui ir-me embora antes de ver o projeto da estrada concluído... Fiquei por quase 5 semanas, rodando cerca de 2.300 Km por ali com a minha Rural, entre Ilhota e Alto Baú. Procurava tirar essas fotos com o devido cuidado, respeito e delicadeza, para, em momento nenhum, não correr o risco de constranger as pessoas ali do meu convívio com a aparência de sensacionalismo acerca do sofrimento pelo qual passavam. O claro objetivo era o de mostrar a importância do trabalho voluntário em situações como aquela. Como

dizem, “uma imagem vale por um milhão de palavras”... Esforcei-me então, para não deixar passar nada sem o devido registro. E sempre que podia, enviava as fotos com todo o desenvolvimento do nosso trabalho para os meus amigos de Bauru... Foram horas de lan-house, compartilhando com eles todos os momentos de exaustão, suor, lágrimas, mas também das muitas conquistas e vitórias. E foram muitos os meus pedidos de oração para o cessar das chuvas que tanto impediam os nossos avanços. O fruto direto desse registro foi que, logo após a minha partida, na semana do feriado de carnaval, foram deslocadas para o trabalho voluntário mais 36 pessoas que se reuniram para servir novamente na cidade, coordenados por meu amigo Enilson, com quem eu trabalhara logo que cheguei, apoiados por outras duas ONGs, a SOS Global e a AME, que se juntando à Visão Mundial, compuseram, junto com a Defesa Civil e a Prefeitura, o admirável movimento “União por Ilhota”. Cuidei para não deixar escapar nada aos meus cliques, debaixo de sol ou chuva, ou noite, porém, a foto que me escapou, que perdi, e que certamente seria considerada a mais artística, a mais bonita, e a mais importante e marcante de todas para mim, representativa de toda a minha passagem por ali naquela circunstância, essa fotografia eu não consegui registrar com a minha câmera. Vou explicar... No meu último dia no morro, enquanto levava um pessoal da Cruz Vermelha pra um tour pelos altos, visando a avaliação local para o envio de recursos e de pessoal, aproveitei para despedir-me dos meus amigos locais dali, os moradores, os operadores de máquinas, os voluntários e até de alguns curiosos que passaram a circular por lá devido à estrada estar, praticamente, concluída. A foto que perdi foi na hora de despedir-me do meu amigo Zé, que, nesse final de tarde, ainda trabalhava, incansável, com a sua motosserra. Ao aproximar-me dele, o meu olhar penetrou no fundo dos seus olhos sofridos e cansados... Eu pretendia dizer-lhe como me sentia grato, depois daquele tempo servindo ali com a sua gente... Queria dizer-lhe que eu ia embora dali, o mesmo homem de 49 anos, porém absurdamente mais experiente, mais ousado, mais forte e mais humilde... Mudado num ser humano muito melhor e mais sensível, transformado pelo privilégio de ter conhecido, convivido e aprendido tanto mais da vida com pessoas de genuíno valor, de grande caráter e de fibra como ele, como esse seu povo lutador... Mas as minhas palavras não saíram... Nem as dele, que, certamente, também expressariam algum gentil agradecimento pela minha pequena contribuição... As nossas lágrimas tomaram o lugar das palavras e o nosso abraço sincero falou por nós, em alto e bom som, tudo o que pretendíamos expressar um ao outro naquele momento de extrema sinceridade e de total exposição dos nossos corações, carregados de um amor que tomava conta de nós, o amor de JESUS. Diante daquele olhar molhado do Zé, entendi bem melhor, então, o quanto tinha valido a pena passar por todo o risco, todo o cansaço, todo o desânimo, toda a saudade da minha família, toda a dor da exaustão, todo o medo, toda a tristeza de presenciar tantos sofrimentos causados por aquela terrível tragédia sobre aquele povo tão especial daquele lugar e percebi, assim, a magnitude e a importância de ter feito parte daquele momento importante da história de Ilhota. “O olhar molhado do meu amigo Zé”... Essa foto eu bati com o coração... Guardarei essa inesquecível imagem, expondo-a num porta-retratos bem especial, num lugar de destaque na galeria da minha alma, para sempre. Toda a minha gratidão e toda a honra, e toda a glória a DEUS, o SENHOR DOS EXÉRCITOS. Fausto Candido Neto, músico gospel, engenheiro-agrônomo, cidadão ilhotense de coração.

117


Depoimento de

Fernando DeVito

Secretário Executivo da CDL e Voluntário S.O.S do município de Ilhota. ue Deus abençoe todas as pessoas que prontamente ajudaram e ainda ajudam a passarmos por este momento tão triste e difícil. Noites sem dormir, trabalho incessante, sem horário para começar e muito menos para terminar. Mas se alguém fosse questionado sobre estar cansado, imediatamente responderia que NÃO. Pois a solidariedade e a sensação de ser útil e fazer a diferença nas vidas de muitas pessoas, fala mais alto. Deus com toda a certeza olha por todos, seja de perto ou de longe, rico ou pobre, vítima ou não, o importante ACONTECEU. Praticamos o maior de todos os mandamentos que nosso Pai nos deixou: “amar ao próximo, como a ti mesmo”

118


Dia 03/03/2009 :: Depoimento de

Francisco Domingos

Morador do município de Ilhota.

S

ou motorista da ambulância da saúde do município de Ilhota, e conhecido como Chico Caroço. No dia 23 de novembro, domingo, acordamos e nossa casa estava quase sendo inundada pelas águas da enchente. Então eu, minha esposa Sandra de Cássia Pereira e meu filho José Domingos Neto, o Netinho, começamos imediatamente a erguer o que podíamos. Depois ajudamos a socorrer as casas de nossos parentes e amigos vizinhos, um ajudando ao outro. Mais tarde quando terminamos, fomos para casa do meu irmão Pedro Paulo Domingos, conhecido por Pedro Caroço, que felizmente não foi atingido e em sua casa já estavam alguns parentes. Domingo à noite o município estava completamente alagado, e quando a água começou a baixar, na terça-feira, fiquei de plantão no posto de saúde, como motorista para tentar ajudar as pessoas necessitadas. Fquei durante noites e dias à disposição. Durante o dia ficava no posto de saúde e à noite no salão paroquial para ajudar na cozinha, lavar louça, porque no outro dia de manhã teria que estar tudo pronto para o pessoal usar novamente, tudo que fosse possível e necessário estava à disposição. Quando chegava alguém machucado dos resgates de helicóptero, estava ali para ajudar a socorrer, encaminhávamos para as ambulâncias ou ao posto de saúde. Chegavam muitas doações vindas de todo o país, cujo povo sensibilizado com a tragédia nos enviava todo o tipo de doação. Mandavam para a defesa civil e eles através dos helicópteros levavam para as cidades mais necessitadas, Ilhota, Luiz Alves, Gaspar, Itajaí, Blumenau e outras. Do ginásio dos esportes as doações eram distribuídas para os abrigos conforme a necessidade Temos que agradecer em nome de todos os munícipes a cada cidadão que contribuiu, enviando para o nosso município essas doações de muita serventia para aquelas pessoas que no momento estavam tão necessitadas. Nenhuma pessoa poderá dizer: Eu não ganhei nada! Se não ganhou é porque não procurou, porque todos foram bem atendidos e receberam aquilo que estava ao nosso alcance. Essa catástrofe foi uma das maiores de todos os tempos da nossa história. Isso ninguém sabe, mas pode ter acontecido igual há mais de cem anos e poderá acontecer no futuro. Acho que o único culpado disso tudo é o ser humano, o homem! Deus deu a inteligência para o homem, mas na maioria das vezes ele a usa para o

Helicóptero da Força Aérea trazendo alimentos doados pelo país solidário pela catástrofe que nos atingiu e voluntários ajudando no descarregamento.

mal e não para o bem, e isso muitas vezes acontece para que o ser humano passe a refletir um pouco mais e passe a pensar mais em Deus! Porque na maioria das vezes as pessoas só pensam em Deus, na hora do socorro. A gente pede muito e agradece pouco! À noite, quando vamos dormir é nossa obrigação agradecer a Deus por mais um dia maravilhoso, e a grande maioria não agradece, só pedimos. Eu faço a seguinte comparação: quem de nós faz uma festa, um banquete, e convida um mendigo para sentar-se à mesa? Nenhum! Garanto que as pessoas convidadas vão se retirar da mesa, ou vão achar que estamos loucos! E quem nos garante que com aquele mendigo, Deus não está ali presente com ele! As pessoas às vezes dizem: eu sou uma pessoa boa, eu ajudo! Mas quantas vezes você perdeu uma noite de sono para atender uma pessoa, ou quantas vezes você deu um prato de comida para alguém necessitado? O ser humano por si só é egoísta. Se estivermos bem, com casa boa, carro bom, dinheiro no bolso, esquecemos aquele coitado que não tem o que comer. Na verdade, nós não perdemos nada, entrou água na casa, molharam os móveis, isso não é nada! E aqueles que perderam suas casas, perderam seus familiares, ficaram sem nada! E ter que começar tudo da estaca zero, e para isso eles terão que ter muita força porque Deus não coloca peso em tuas costas que tu não possas carregar. Tudo o que acontece na nossa vida é porque tinha que acontecer, nós nos apegamos muito aos bens materiais, meu carro, minha casa, e esquecem as famílias, exemplo de pai, filho, irmão, que não se falavam e tiveram que ficar alojados nas mesmas casas e alojamentos, um dependendo do outro. Deus faz com que as coisas aconteçam para que o ser humano reflita e seja mais humilde, mais humano e mais caridoso, e a caridade é no dia-a-dia, acordar de manhã dar um bom dia para seu vizinho, um aperto de mão, é gratificante para quem recebe, para quem dá. Um sorriso vale muito mais que uma caixa de remédio. E nada, nada nesta vida acontece por acaso, tudo o que você tem que passar, não adianta pôr em outra porta, tudo acontece porque tem que acontecer! Deus não castiga ninguém, ele apenas faz você refletir assim, dando mais valor à vida!

Um dos voluntários, Francisco Domingos, popular Chico Caroço.

119


Dia 03/03/2009 :: Depoimento de

Fredemar Arndt e Marilze Arndt

Moradores do Alto Baú.

F

redemar: Bem, nossa vida foi sempre no Alto Baú e agora com isso tudo que aconteceu fomos obrigadas a sair. Morava lá há 50 anos, faço parte da diretoria da Igreja Luterana Apóstolo Paulo, há 11anos, antes eu trabalhava para igreja, sempre fomos membros da

igreja. Fui duas vezes presidente, e duas vezes vice e fiscal. O Vice Presidente: Odemar Duwe, a 1ª Secretaria: Kátia Regina Bohr, a 2ª Secretaria: Regiane Duwe, o 1º Tesoureiro: Hélcio Schill 2ª Tesoureira: Karla Rosiméri Bohr Conselho Fiscal: Marcos Hentchen, Veraldo Neumann, Suplentes: Neuza Duwe, Valfrid Kupas, Leonida Harbs. O pastor é Sigfrid Baade, autoridade da comunidade, mora em Blumenau e faz parte de 3 igrejas, Fortaleza Alta, Fortaleza Baixa e Alto Baú. A Igreja não foi destruída, mas dos galpões ficou só uma parte, que é o salão, e a parte da cozinha. O bar onde fazíamos as festas também foi destruído, nada existe mais. Tinha também mais um galpão que seria uma casa de retiro, ainda não pronta, com quartos, banheiros e alguns móveis. O que mais nos deixou tristes foi o cemitério. Sobraram poucos túmulos inteiros, o restante foi destruído por um deslizamento de terra cobrindo 70% do cemitério, acho que deve ter ficado apenas oito

Igreja Luterana Apóstolo Paulo, há alguns anos atrás.

Lucas Gonçalves

Igreja Luterana Apóstolo Paulo, depois da tragédia.

120


túmulos. Essa semana eu estive em Ilhota, falei com Paulo Drun da defesa civil, para tentarmos solucionar a questão do cemitério, porque já foram lá para limpar, mas Paulo diz que não dá para colocar uma máquina PC, de repente pode pegar lá embaixo e túmulos e ossos poderão se misturar. O que ele sugeriu, é fazermos uma reunião com a comunidade da igreja, e a idéia seria a seguinte: tirar as madeiras de cima, rebaixar o excesso do barro, fazer cerca nova e fazer um memorial com os nomes de todas as pessoas que ali estavam enterradas. Assim as famílias teriam onde fazer suas homenagens, rezando e colocando suas flores. Semana que vem vamos decidir esse problema e também da ponte e caminho que foram completamente destruídos. A primeira igreja Luterana Apóstolo Paulo foi fundada no ano de1922, era de madeira, e esta atual foi construída no dia 16 de maio de 1965, com sua construção concluída mais ou menos dois anos depois, segundo relatos de Etalvin Reichert (falecido), avô de Karla Bohr. E a instalação do atual cemitério foi no ano de 1932.

Igreja Luterana Apóstolo Paulo, depois da tragédia.

Cemitério da Igreja Luterana Apóstolo Paulo, depois da tragédia.

121


Minha casa, minha família. Semana passada eu, minha esposa Marelize, minhas filhas Marilze e Maiara fomos para o Alto Baú. Mas um dia antes, a Mayara que tem apenas nove anos, disse: - Mãe, eu tenho que ir junto?Porque ela está com trauma daquele lugar, tanto medo, mesmo assim fomos. Minha esposa e Marilze foram trabalhar numa casa, e eu e Mayara ficamos em nossa casa. Convidei-a para ir ver nossa lagoa que ainda está lá, passamos o pasto, fomos dar uma pescada. Ela olhava e dizia: - Pai! Vamos embora! – Está bem, vamos embora! Fomos então ver uns pés de banana que eu tinha plantado, e depois voltamos para casa. Ela então: - Que horas tem pai? – Nove e meia. Ela não se afastava de mim em nenhum momento, queria ir buscar um cacho de banana, ela não quis que eu fosse. Era por volta de 11 horas, fiz um almoço para nós. Mayara olhou para mim e disse: - Nós vamos voltar a morar para cá? E eu: Não sei! E ela: - Pai nós estamos tão bem em Blumenau, vamos ficar por lá? Então perguntei, mas tu não queres mais voltar para cá? Não, não quero mais voltar, disse ela. Tem tanto medo que olha para os morros e para o rio direto e diz que não quer mais voltar porque está muito feio. Porque tudo aconteceu assim: no sábado, dia 22, quando estávamos todos em casa, eu, minha esposa, minhas filhas, Maiara e Marilze, e o namorado Ismar da outra filha, a Marli, estava viajando. À noite fomos dormir, sem luz. Era quase meia-noite e me levantei, porque dormir mesmo foi difícil, tinha muito barulho. Eu peguei a lanterna vi que vinha muita água descendo do morro, minha esposa também levantou e perguntando o que havia, também espantou-se com o nível da água. Então peguei a lanterna e fui olhar atrás, no canto do morro para ver se a água não estava dando a volta na frente da nossa casa, mas ainda não estava chegando e entrei em casa. Quando saí de novo a água já estava passando na frente de casa. Pedi para minha esposa chamar todos. Pegamos algumas coisas, colocamos dentro do carro e

levamos tudo para o caminho, mais acima, próximo a um barranco. Não estávamos com medo do morro, só olhávamos para água. Se o morro descesse, morreríamos todos os cinco. E caiu na nossa frente e atrás de nós, e onde nós ficamos nada aconteceu, ficamos dentro do carro até 5 horas da manhã, sem dormir, não tinha como dormir. De manhã fomos para casa, deitei um pouco, mas não tinha como dormir, uma hora a água subia, outra hora baixava, então resolvemos ir para casa do vizinho, o Malique, e ficamos também na casa do Amiltom, o Miti, irmão do Malique, até de tarde. Depois fomos para dona Maria Sperber. Marilze: À tarde não parava de chover, a chuva era muito forte, a água chegava até perto da casa da dona Maria e começou o desespero de todas as famílias que estavam lá, e a nossa casa estava mais perto do rio. Naquela confusão todo mundo decidiu ir para casa da vizinha que era próxima ao pé do morro, porque nós só nos preocupávamos com o rio, isso era domingo à noite, dia 23. Fredemar: quando estávamos lá na casa da dona Maria, chegou nosso vizinho, o Elemar Ullman, convidando para ir para sua casa e me disse: - a minha casa não está pronta, tem janelas, só não tem portas, mas a gente corta umas tábuas. Só que a gente estava tão sem saber o que fazer, muito atordoados, que quando deitei, para mim tanto fazia se acabasse tudo por ali e só me lembro de ter dito a minha mulher: - Amanhã não vamos ter mais casa, não vamos ter mais nada. Deitei na cama e me apaguei. De manhã me acordei, chovendo, e nisso a Marilze bateu na porta e disse: - Pai, o Ismar foi lá em casa e ela está lá, não aconteceu nada!’ Marilze: Eu também falei para o Ismar: - Amanhã estaremos sem casa, sem nada! E fui dormir porque não aguentava mais, o cansaço tomou conta da gente. Vi tudo destruído, mas fiquei aliviada porque a nossa casa estava lá. Mesmo assim continuamos preocupados, porque a chuva continuava.

Família Arndt na mudança do Alto Baú para Blumenau. 122


Sr. Fredemar Arndt dirigindo a tobata com toda sua mudança.

tomamos banho, e Fabrícia esposa de João confortava a gente, dizendo para minha mãe: - Calma que seu marido vem amanhã! Ofereceram-nos telefone, então eu liguei para meu cunhado,que já quis nos buscar e falei para deixar para outro dia, porque a estrada estava perigosa, e ele quis falar com a dona da casa. Depois de uma hora já estavam ali buscando a gente. Fredemar: O que nos deixou mais aliviados, é que ficaram seis bombeiros conosco, mais umas 20 pessoas durante aquela noite. Fomos para o rancho que era um bar do campo, e por volta da meia-noite, eu e mais alguns vizinhos fomos dormir naquela casa que passamos a noite anterior, nossa cama ainda estava lá. De manhã arrumamos a trouxa e fomos para o campo, o primeiro helicóptero que veio era da Polícia Militar de São Paulo, neste, fomos eu e meu vizinho Elemar. Na quartafeira chegamos no campo em Ilhota. Marilze: Cedo já estávamos ali para buscar meu pai e ele já estava nos esperando. Fredemar: Fomos para casa do meu cunhado, o Mário Siebert, ficamos até janeiro e agora estamos morando no bairro Escola Agrícola, em Blumenau. O Mário que nos cedeu uma casa. Se depender da minha mulher, ela não volta mais para o Alto Baú, nunca mais, ela ficou com muito medo, a Mayara, nem pensar. Não se aproveita mais o terreno, nos dois lados, morros, e onde temos a casa era o único lugar que poderia construir até mais uma casa. Só que agora por baixo, a água levou todo o terreno, agora no momento o que vamos fazer? Marilze: pretendia construir minha casa lá e agora tenho que sair de lá! É complicado!

E não sabíamos o que tinha acontecido com outras casas, porque estávamos isolados. Fredemar: Não tínhamos contato com o pessoal nem de baixo, nem de cima. Os telefones sem cargas. Marilze: Sabíamos que a casa do Rodrigo, filho do Malique tinha caído, que é perto da nossa. Nós ficamos com muito medo, e esperávamos acontecer alguma coisa que não sabíamos o quê! Talvez até o tempo melhorar para ir para casa. Na terça-feira ao meio-dia, começou a passar helicópteros, pousavam no campo que é bem pertinho, então começou o desespero, foi para mim uma das piores horas, porque olhei para meus pais, e discutíamos; o que a gente faz? Abandonamos tudo e vamos embora? Era muito complicado, naquela hora não tínhamos noção. Ismar foi até o nosso vizinho de baixo, o Egon Budag e colocou a carregar o celular num gerador de energia. De lá eu liguei para minha irmã Marli, que estava em Blumenau e ela pediu desesperadamente para que saíssemos dali, porque os morros estavam descendo todos, porque ela acompanhava tudo pela TV e rádio. Também pedi notícias de outras pessoas, parentes das pessoas que estavam comigo. Então todos resolveram sair de lá também. Cada pessoa só podia levar pouca coisa e eu levei meu “filho” que se chama Bady, que é um cachorro, linguicinha. No sábado ele ficou comigo dentro do carro, e também outro que é da minha irmã. A todos os lugares que eu fui, eles iam junto. E eu não sairia de lá sem meu cachorro. Coloquei-o dentro da bolsa, um casaco por cima e a minha mãe pegou o da minha irmã que é um “pinscher”, colocou também numa sacola com uma toalha por cima, dando impressão de que estava carregando apenas uma toalha. Fredemar: Antes disso, o chefe dos bombeiros que estava lá, disse: - Acho que eles não vão aceitar animais, e a Marilze falou: - Mas eu quero levar meu cachorro! Depois ele veio e disse: - Pegue-os, coloquem na bolsa e cubram para não serem vistos. Marilze: Nós sabíamos que não podia. Mas... Não iria sem eles. Já estava anoitecendo e o pessoal do helicóptero gritou: - Mais cinco pessoas! E eu falei: - Nós estamos em cinco. Então entrou minha mãe, minha irmã, meu namorado, também os cachorros. Então olhei para trás e não vi meu pai. Ninguém queria se separar, mas infelizmente foi assim. O nosso trauma é de ter acontecido tudo aquilo e ainda irmos sem meu pai. Chegamos à noite em Ilhota, desesperados, e meu namorado tentando me acalmar, porque todos falavam que tinha como ir de Ilhota para Blumenau, mas não tinha acesso, então bateu um desespero. Nisso aparece uma pessoa que eu chamo de Anjo, João Luiz Cordeiro Neto e nos disse, vem, fica na nossa casa. Já eram 9 horas da noite, então fomos. Chegando lá ele nos mostrou onde iríamos ficar. Jantamos ali no abrigo do salão paroquial, enquanto isso eles arrumaram camas para nós,

Comentei com a família sobre uma foto que fiz no Alto Baú em um domingo de dezembro. Havia uma moça que estava em cima de um trator daqueles e deu um sorriso tão simpático, transmitiu ser uma pessoa muito querida e nesse depoimento descobri que a Marilze estava naquele trator atrás dessa moça, a Elaine, esposa de um dos donos dos tratores, que buscaram os pertences da família Arndt. Marilze: o que eu posso te dizer, é que para mim foi muito triste. Quando estávamos passando na frente da casa do Gilberto Schmitt vimos uma mulher batendo fotos, como eu gosto de fazer os outros rirem, então disse para ela: - hoje que eu estou toda desarrumada, não vá tirar fotos! Foi o único momento de descontração, foi o único momento em que eu ri porque estava muito triste com tudo o que eu vi no Alto Baú. E pensei que nunca veria estas fotos.

Caravana da mudança da família Arndt. 123


Dia 26/03/2009 :: Depoimento de

Frei Márcio Ribeiro Machado

Frei da Igreja Matriz São Pio X do município de Ilhota.

N

ós aqui na igreja começamos a nos envolver com toda esta tragédia desde o início, quando vimos que as pessoas estavam precisando de ajuda. Automaticamente abrimos o salão paroquial, as salas, a nossa igreja e começamos atender as pessoas na medida e da forma que podíamos. Improvisando, sem os recursos necessários, mas com o coração aberto e com muita vontade de atendê-los e ajudá-los. Nosso salão é precário e simples, não tínhamos comida. E eu lembro que naquele dia fomos no mercado da cidade e pedimos ajuda, e graças a Deus, que bom que recebemos doações de alimentos por parte dos mercados da nossa região, para aqueles dois ou três dias emergenciais. Depois efetuamos um contato com a prefeitura que também forneceu mais alimentos e logo na sequência vieram doações de toda a parte do país. Chegando caminhões de roupas, alimentos, remédios e isso foi suprindo a falta que nós tínhamos de material. O voluntariado foi bastante expressivo aqui em Ilhota, o povo aqui é muito solidário e nesse momento foram mais solidários ainda. Os membros da nossa igreja, os fiéis participaram muito, faziam todo o tipo de trabalho desde um curativo, separar roupas, na cozinha fazendo as refeições, e paralelamente nós continuamos nossas atividades religiosas, com nossas orações, celebrações, com os cultos e rezando para o povo e os convidando para se aproximarem mais de Deus diante de tudo aquilo que estava acontecendo e que Deus providenciasse uma solução imediata para os problemas que estavam vivendo.

Igreja Matriz São Pio X.

Hilda Zuccki, voluntária fazendo as refeições. 124


Voluntários que participaram nos trabalhos durante a tragédia: Bernardo e Linei Minuzzi, Greizy Zuccki, Noely Curioletti, Rita Deschamps, Tália Zuccki, Marisa Terezinha Pereira, Ednamar Bittencourt de Lara e Isaura Ferreti.

é muito triste ver a condição humana chegar nesse estado. Por outro lado, vemos que no nosso lado de cá fomos privilegiados, porque ainda estamos em berços esplêndidosse comparado à situação que eles passaram, nossas famílias estão íntegras ainda se mantêm, é uma situação diferente e ao mesmo tempo triste. Então ver aquelas pessoas chegando e como elas chegaram, isso entristece bastante. Nesta situação que mobilizou toda a sociedade, víamos muitos gestos bonitos, muita solidariedade, mas víamos também muito egoísmo, teve pessoas que não se mexeram, viam que suas casas estavam seguras e a família estava bem, então nada faziam. Teve gente que durante a tragédia ficou de braços cruzados, isso não é comigo! Não tenho nada a ver com isso! Eu estou bem, muito obrigado, não entrou água na minha casa, não molhou meu pé, a minha água ainda não acabou. Enquanto outras pessoas abriam suas casas, e falavam assim: ’O quanto couber, podem entrar! E enquanto tiver comida na minha dispensa, podem comer!’ E tiveram outros que não, isso é o ser humano! O lado bom, solidário, anjo e o lado negro, ruim e perverso.

Perguntei para Frei Márcio, se com tudo que aconteceu o povo teria se unido mais. Sem dúvida! Naquele momento se uniu. Mas quando tudo se acalmou cada um voltou à sua vida, e tudo ficou aparentemente resolvido. Os desabrigados estão tendo dificuldades ainda hoje, dia 26 de março, e esperam uma solução, um encaminhamento dos órgãos competentes, órgãos públicos, o governo municipal, estadual e federal. Perguntei sobre os alojamentos desses voluntários que vinham de outras cidades e de outros estados. Os voluntários que vieram de outras cidades vizinhas de Ilhota e da região do médio vale, e também voluntários de outros estados e de instituições internacionais, ONGs, grande parte deles ficaram hospedados em uma casa antiga que temos aqui. Até mesmo pessoas de outras religiões que vieram para cá foram acolhidas gentilmente por nós. Houve pessoas que ficaram durante três meses, Júnior, Paulista foi um deles, e o Moacir, um catarinense foi o último a sair. Ficamos de novembro a fevereiro com pessoas voluntárias alojadas nas dependências da igreja.

Pedi para Frei Márcio que deixasse uma mensagem para todas estas pessoas que tanto sofreram nesta tragédia.

Pedi para ele falar de algum momento marcante. Teve momentos muitos tristes. É triste ver pessoas que conhecemos, sabemos de onde elas são, conhecendo a família, seu trabalho, ver que eles estavam num ritmo ascendente em todos os sentidos, ver esse pessoal chegar sem nada, sem casa, sem um, sem dois, sem três, sem quatro membros da família, sujos, famintos, meio que perdidos,

Para este povo que sofreu essa tragédia: Confiança em Deus e esperança de um futuro melhor. E para o povo que ajudou, quem fez a sua parte: Solidariedade e o amor vencem o ódio, vencem as divisões e superam as diferenças.

125


Dia 21/02/2009 :: Depoimento de

Gracía Cardino Zabel e sua filha Sílvia Zabel

Moradores do Alto Braço do Baú.

N

aquele fim de semana estávamos todos em casa, eu, minha esposa Benvinda, minha filha Sílvia e o filho Matheus de 13 anos. Maurício, também meu filho, tinha sua casa ao lado, mas no dia estava em minha casa com a família,Tânia sua esposa e Emily sua filha

de 4 anos. Eu sempre dizia para os filhos que dia que entrasse água na frente da minha casa, aqui em cima, o Baú iria se acabar todo. E naquele domingo a 1 hora da manhã, nós vimos a água pela primeira vez aqui em cima, depois baixou um pouco e às 11 horas entrou água pela segunda vez e à noite novamente. À noite Maurício me falou: - Pai, vamos sair, vamos para casa do tio Moni! Que lá é mais alto! Do Monaquias Saturnino, meu irmão deficiente. E eu não quis sair, ele insistiu: - Olha pai! O pai sempre dizia que o dia que botasse água aqui em cima o Baú iria se acabar e nós estamos vendo a água aqui em cima pela terceira vez! E eu ainda fui meio grosseiro com ele ao aceitar sair. Nós então saímos, não demorou dez minutos escureceu. Se nós não saíssemos naquela hora, não sairíamos mais, teríamos todos ficado na mesma tragédia, porque depois que escureceu não tinha mais como sairmos. Ficamos na casa do meu irmão Monaquias, que ficava a uns 60 metros da minha. Depois de meia hora que estávamos ali, sentimos um estouro assim como se fosse um tronco de árvore caindo dentro de um rio e com isso começou a estalar tudo, quebrar tudo. O Maurício disse assim: - Pai, vamos correr para o morro, aí estão vindo casas, esta vindo tudo que tem direito! E eu disse para ele: - Não, ninguém vai sair, tem muita chuva, tem a menina e tem o Moni, não podemos sair para o morro, vamos amanhecer todos mortos do frio, depois voltar como? E com isso não saímos. Durou uma hora aquela barulheira de barreiras, casas caindo, árvores, depois começou a estourar pedras, rolar mais pedras, e eu ainda me perguntei de onde estão vindo tantas pedras nesse ribeirão? A casa em que estávamos tremia e assim foi até meia-noite. Então nós ficamos mais tranquilos, parou tudo, mas continuou a chuva. E quando estava clareando, às cinco e meia da manhã de segunda-feira, a Silvia saiu e foi dar uma olhada para cima de onde morávamos. Sílvia: eu cheguei ao lado da caixa d’água do tio Moni e olhei, não vi mais nenhuma casa e fiquei pasma! Parei! Só via aquele buraco limpo. Daí virei para trás e disse: - Pai, não tem mais nada, nem casa de Zaíro, nem casa de Tia Lida, nada! Então o pai perguntou pela nossa casa e respondi: - A nossa pai? A nossa não sobrou nem o telhado para contar história! Vem ver onde parou o rancho! Aqui em cima do pasto do tio Moni, a bezerra está aqui!’ Gracía: As vacas morreram todas, só sobrou a bezerrinha de três meses, não sei como é que o bichinho escapou, porque ela estava amarrada entre a vaca e a novilha na estrebaria. Essas se foram e a bezerra se escapou, parando em cima do morro. Tinha umas cabritas das quais tirava leite para minha neta Emily, que era alérgica a outros leites e não sobrou nenhuma viva. Sílvia: Era mais ou menos 8 horas da manhã de segunda-feira, Matheus, Maurício e Tânia inventaram de ir para lá onde caíram as casas para vasculhar, para ver se achavam comida para Émile, para nós ainda tinha, e se dava para salvar alguma coisa.

Casa de Monaquias Saturnino Zabel, irmão deficiente de Gracía Cardino Zabel, onde ficaram na noite em que suas casas caíram. Eu disse então para o pai: - Eu vou atrás, porque além de não terem mais roupa para vestir, está chovendo, muita lama, deve ter os vidros da casa quebrados, pisos, podem se cortar. Gracía: Como Émile era alérgica, tinha que ser só o leite de cabra, a comida era separada. Como as cabras morreram, sabíamos que tinha ainda leite no frezzer antes da casa cair, então eles foram ver se achavam o leite ainda. Sílvia: Pela graça de Deus! Achamos! Meu irmão abriu meu frezzer e achou, abrimos o congelador da geladeira, achamos carne para fazer no dia. Achamos também arroz, mesmo sujo lavamos, porque estava embalado ainda. Perguntei se os animais serviam só para o próprio consumo ou dependiam deles para sobreviver. Gracía: Não era só para nosso próprio consumo, sou aposentado, eu não me considerava rico e sim um pobre folgado, porque se eu botar na ponta do lápis, eu era o mais rico lá de cima e não considerava o que tinha, nunca tive orgulho do que eu possuía, e hoje estou pobre na migalha! (Deu risadas) Sílvia: Quando estávamos ali, vi Mário, o irmão do Marciano, então falei. Está acontecendo alguma coisa ali em cima, ali a coisa foi feia! Meu irmão Maurício perguntou, mas como tinha muito barulho da cachoeira ele não ouvia, então minha cunhada Tânia gritou e perguntou: - E eles correram para onde? E ele respondeu: - Aqui só sobraram dois! Mas quase não se entendia nada. Na hora eu sentei no chão, olhei para meu irmão, veio na minha cabeça que quem tinha sobrevivido era a Giovana (irmã de Zaíro, esposa de Marciano) e a menina, a Larissa de quatro anos, na hora eu pensei. E ficou assim, sem saber quem tinha morrido, depois de duas horas é

Monaquias Saturnino Zabel.

126


que fomos descobrir, o Vanildo vereador, chegou lá e disse para mim e meu irmão que o corpo do Marques, o filho mais velho de Zaíro, já tinha sido encontrado, daí o Clemente, vizinho gritou para nós que quem tinha sobrevivido era Marciano e a Giovana, mas não sabe por quanto tempo, porque estão todos arrebentados. E agora, fazer o que? Era muita agonia de esperar o socorro. Era mais ou menos cinco e meia quando os bombeiros chegaram para resgatar os dois. Então fui falar com uma pessoa que estava junto, não tanto por nós, mas pelo tio, porque é deficiente e a Emily, ele olhou para mim e disse: - Minha senhora! Procure um lugar seguro para passar a noite! Eu olhei para ele, e tambem fui bem grossa com ele e falei: - Então o senhor me mostra esse lugar seguro! Então ele falou: - Eu vou pegar vocês e vou colocar ali no outro lado, no meio da estrada! Respondi que daria no mesmo nos deixar aqui ou nos levar para lá, porque o que vamos fazer com barreiras vindo de todos os lados? O que vou fazer com uma pessoa deficiente? Então outra pessoa falou: - Nós temos que arrumar um lugar para eles! E o outro respondeu que realmente nós não podíamos passar passar a noite ali! Um morador falou: - Onde vocês me pegaram, lá em cima na capela Santa Paulina, é seguro. Um deles bateu nas minhas costas e disse: - Dona Sílvia, não se preocupe, assim que nós socorrermos as duas últimas vítimas, Giovana e Marciano, o primeiro lugar é de vocês. Eram seis e meia quando eles chegaram novamente e fomos para a Capela Santa Paulina, só passamos a noite e ficamos até terça-feira. Às 2 horas da tarde chegaram quatro pessoas querendo levar todos para o Braço do Baú, para igreja Nossa senhora da Glória, porque diziam que o morro do Baú estava caindo. Eu falei então para um deles: - Vocês querem botar o pessoal do Baú tudo dentro da igreja do Braço para na hora em que o morro descer, soterrar todo mundo e não precisar fazer sepultura para ninguém! E ele: - Não minha senhora, não é bem assim! Então falei com o pai, sem energia, tirarnos daqui para levar para outro abrigo, aí não! Mesmo assim fomos para o abrigo do Baú Central, lembrei então dos avós do Matheus que moram ali, o seu Bube (Antônio José Deschamps) e dona Cacilda. Falei para o pai que iria levar o Matheus para casa da avó dele, ou à casa da Maria de Lourdes, minha ex-cunhada. Cheguei com ele no seu Bube, e ele não nos deixou mais sair de lá. Mandou chamar a família toda e ficamos lá até dia 5 de janeiro. Com a graça de Deus, mesmo eles sendo meus ex-sogros foram pessoas maravilhosas, deram muita atenção para todos nós. Fomos muito bem recebidos. Depois fomos para casa do Tio Arceu no Braço do Baú, ele tem uma casa de dois pisos e nos cedeu a parte de baixo para morarmos.

Barreira que matou 6 pessoas, soterrando 4 casas.

O que restou da casa de Gracía após a tragédia. Perguntei para Sr. Gracía, sobre o carro que vi coberto com um plástico quando cheguei na casa em que estão abrigados agora. No dia em que nossas casas caíram, meu carro estava na garagem da casa de Maurício, então a laje e o telhado caiu em cima e arrastou uns 30 metros e soterrou, água, lama e a casa em cima. Ficou 60 dias lá, depois é que foi tirado junto com a moto do Maurício.(deu risadas). Perguntei se pensavam em reconstruir lá novamente. Gracía: No mesmo chão não tem condições, mas logo acima, já preparei dois terrenos, um para mim e outro para o Maurício. A partir da hora que for liberada a ponte para nós passarmos para o outro lado, vamos primeiro morar na casa do meu irmão Moni, aquela casa na qual que ficamos durante a enchente, até construir nossas casas. Por enquanto vamos ficando aqui na casa do meu irmão Arceu no Braço do Baú. E sobre ajuda, se vier eu agradeço e se não vier é porque não mereço!

Gracía Cardino Zabel e sua esposa Benvinda Ruon Zabel em seu carro tirado dos escombros. 127


Dia 19/02/2009 :: Depoimento de

Guerda Harbes Karl

e Gizela Carl

Moradora do Alto Baú, da Tifa do Grahl

Moradora de Blumenau.

G

uerda: Eu morava na Tifa do Grahl, no Alto Baú, há 53 anos. Morava com toda minha família, meu marido Norberto Karl, meus filhos, Nivaldo(27), Niberto(22), e Nilma(17) e meus pais Rodolfo Harbes(81) e Adelaide Harbes(81).

De tarde eu e meu marido fomos lá em cima no caminho, abrimos um valo e quase não veio mais água lá para baixo. Depois nós tratamos as vacas, tiramos leite e à noite, eu e meu marido juntos ainda falamos: - Na outra semana nós vamos sair daqui, vamos fazer uma casa lá na frente onde estão os fornos, porque toda água que vem do morro sempre vem aqui para baixo. Meu pai também concordou. À noite então, depois de ter tirado o leite, coloquei meus queijos nas panelas, meu freezer estava cheio de queijos, nós vivíamos da renda da venda de leite e queijos, tínhamos 4 vacas, eu e meu marido que tirávamos o leite das vacas. Quando já estava dentro de casa, meu marido chamou o filho e falou: - Niberto, tu vais ali no rancho que está entrando água e tira a ração dali. O filho foi para lá, depois voltou para dentro de casa e eu perguntei a ele aonde estava o pai. Respondeu que estava lá fora se lavando, mas que já ia entrar. Fui com ele para dentro do quarto, dei roupa seca para ele outra vez, depois ele fez a janta, minha mãe e meu pai estavam sentados num sofá na cozinha, minha mãe tinha uma ferida no pé, coitada! Ela estava internada uns 15 dias antes. Falei para irmos comer e meu filho Niberto falou:- Eu vou lá no meu quarto me deitar que já estou estressado com essa chuva, vou me deitar um pouquinho e quando a janta estiver na mesa, daí vocês me chamam. A Nilma, minha filha que estava grávida de sete meses, já estava na cama, ela comeu pão e foi dormir. Seu marido Robson não estava porque não pôde mais passar por falta de acesso. Tratei o Nivaldo que era o deficiente, depois ele queria ir para o quarto dele,eu disse: - Nivaldo, fica aqui, a mãe te trata aqui, não tem luz. Era só velas na cozinha, ele sentou no lado do meu marido e tratei ele, porque sempre tratava ele a colher, e ficou lá sentado. Meu marido perguntou: - Eu posso botar a janta na mesa? Ou queres botar o Nivaldo na cama primeiro? Fui colocar o Nivaldo na cama, estava sem luz, então peguei uma lanterninha e fui lá no quarto do

No dia 22 de novembro, sábado das 11 horas em diante só choveu sem parar mais, noite e dia. Domingo, dia 23, também choveu o dia todinho. Cláudio Moje, meu vizinho que mora mais atrás da minha casa, veio ali e falou para nós que tínhamos que sair dali, que nossa casa poderia ser arrastada. Então meu pai e meu marido foram lá em cima ver as barreiras e disseram: - Para casa não vai, se for, vai para o outro lado. ’

Local onde havia a casa da família Karl, depois da tragédia.

128


Dia da primeira eucaristia de Nilma, com avós Rodolfo e Adelaide. não sentíamos aquele tremor e ficamos lá dentro daquela casa. E eu sempre pedindo para eles irem buscar a Nilma, buscar a Nilma, então me colocaram na cama, eu coloquei o travesseiro por cima da cabeça, eu não podia chorar, não podia falar, eu não podia nada. Mais tarde fomos lá no seu Alfredo Siebert, ele tem a serraria, de repente me deu uma coisa ruim, me deram calmante, eu não sei como eu ainda fiquei com vida depois daquilo tudo lá acontecer, meu Deus do céu! Eu já disse que não posso contar para ninguém o que eu passei na minha vida, daquilo que aconteceu, perdi 6 pessoas da família. Ficamos até terça-feira, dia 25 no Alfredo, de lá nos levaram de helicóptero para Ilhota, mas eu ruim, ruim, dor de cabeça, e eu disse para meu filho Niberto: - Se tu não arranjar um lugar para eu me jogar essa noite, eu não passo de amanhã. Daí os bombeiros nos levaram para a casa de uma mulher atrás da igreja dos Crentes, tomamos banho, tudo. Então eu falei: - Ficar aqui com tanta gente eu não posso ficar. Veio uma parente do Arildo Schantz e disse: - Viemos buscar vocês para irem para Blumenau. Chegou lá tinha muita gente, um tem que dormir lá, outro pra lá, falei então para o Valfrido: - Tu não nos levas lá na Gisela?(prima de Guerda), porque lá podíamos nos deitar e descansar um pouquinho, e o Niberto dizia: - Mãe! Isso agora já é uma hora da madrugada. Mas mesmo assim fomos. Chegando na casa da Gisela eu deitei na cama. Gizela: Nilma era minha afilhada, sou madrinha de batismo e madrinha do casamento civil e religioso, como eu tenho um salão

Niberto carregar a lanterninha para deixar no lado da cama. Eu estava lá dentro e Niberto me falou: - Mãe, já que a mãe está com a lanterninha, eu tenho um dinheiro ali embaixo, vou botar na minha carteira e quero guardar, se acaso a gente tiver que sair aqui da casa. E naquele momento eu me virei para sair na porta do quarto dele, ele disse: - Mãe, escuta, agora isso está vindo por cima da casa! Não deu nem dois segundos, eu e ele já estávamos no chão e fazia um barulho assim “vrummm”, a casa caiu todinha, não escutei mais ninguém, só a Nilma ainda disse: - Mano! Mano! O que é isso? Ele disse: - Nilma, o que bateu em ti? E ela: - Eu estou aqui embaixo de uma árvore! E eu perguntava: - Dá para te socorrer daqui? E ela dizia: - Daqui não dá, porque aqui tem uma parede no meio. E eu respondi: - Nós estamos indo para lá. Eu queria abrir a porta da frente, mas não deu mais, nós levantamos do chão, eu e ele empurramos a janela fora, e pulamos, passamos por baixo, com muita lama, eu só vi porque tinha aquele clarão vermelho aquela noite, então eu vi a pontinha do sofá, vi a pontinha da geladeira, mais nada eu vi, nenhuma tábua, nada, só via um monte de barro. Tentando salvar a Nilma eu dizia: - Nilma, onde tu estás filha? E ela: - Estou aqui mãe! E eu dizia: - Dá a tua mãozinha! E o Niberto disse para mim que ia buscar um facão para cortar as árvores fora e demorou, demorou, e não veio. Eu tinha a Nilma na mão, lembro da aliança na mão e agora eu sempre sinto a mão dela quente na minha mão! Veio então aquele barro atrás de mim e me empurrou e já nem vi mais aqueles galhos de árvores que estavam por cima de Nilma, os fios de luz estavam todos por cima dela, e eu falava: - Nilma, querida! O que te dói? E ela: - Minhas pernas estão ficando moles e sinto alguma coisa na cabeça! E eu: - Nilma, não chora! E ela: Ui mãe, mas tu choras! E eu dizia: Não chores porque se chorares a Gabi também chora! Ela já havia colocado nome no bebê que tinha no ventre de Gabriela. De repente a mão dela arrancou-se da minha e nisso o Niberto dizia: - Mãe, mãe tu estás aonde? E eu escutava de longe, parecia que me apertava aqui assim no peito e não conseguia responder, daí eu estava bem embaixo daquela lama, aqueles escombros da casa. Eu só escutava ele dizer: - Agora eu não tenho mais mãe! Daí eu consegui sair e ele viu aquela lanterninha na mão, que em nenhum momento eu larguei. Ele então desceu um barranco e me puxou, então nós fomos até o vizinho de baixo, Hainz Harbes que é músico, aí meu Deus, veio aquele clarão e eles me seguraram, e eu só dizia: - Vão lá buscar a Nilma, a Nilma está viva ainda! E eles diziam: - Não! Não adianta mais, aquilo já veio tudo lá de cima, não adianta mais ir para lá! Eu mesmo vi o barro todo vir por cima dela quando saí de lá, mais um barulho, um barulho, aquele ronco, aquele estouro, aquele clarão! O Hainz disse: - Meu Deus! Eu acho que é o fim do mundo! Jesus está vindo à Terra! Nós sentamos na casa dele e a casa chacoalhava, o Hainz dizia: - Vamos embora daqui, vamos até embaixo, na casa do Artur Grahl, ou para cima do muro porque agora é o fim de nós todos! Fomos para casa do Artur e como a casa era de madeira

Nilma no dia de seu casamento com sua amiga e testemunha Elaine Bollmann, homenagem para sua madrinha Gisela. 129


de beleza, eu a arrumei no dia do casamento, que foi no dia 30 de agosto, eu arrumei o vestido, ela estava linda naquele dia. Na quarta-feira, dia 20, eu ainda liguei para ela perguntando como ela estava e ela respondeu que estava bem. Disse ela: - Vocês já sabem o que eu vou ganhar? Eu disse que não sabia, embora já soubesse, mas queria deixar que ela contasse. E ela: - É uma menina, o nome dela é Gabi ,ela está bem e já está com três quilos! E eu perguntei se estava tudo bem, e ela só dizia aham, aham, não sei porque, ela só me disse ainda: - A única coisa que eu posso te dizer, é que o dia mais feliz da minha vida, foi o dia do meu casamento! Foi só isso que ela ainda me falou. No dia do casamento eu me senti tão orgulhosa, eu a preparei no meu salão, deixei que ela escolhesse o vestido que quizesse, tudo isso me contentou. Esse telefonema dela me confortou, eu levo isso como uma lembrança boa, eu me sinto bem satisfeita, no dia do casamento, a cerimônia foi na igreja Luterana do Alto Baú e a festa em um parque aquático, era muito frio naquele dia, mas tudo foi muito lindo! Numa noite dessas sonhei com ela e no sonho ela me perguntou se a mãe estava bem,e se estava chorando muito, e pediu que ela não chorasse mais, porque ela(Nilma)estava ali cuidando de todos e que estava muito feliz! Foi a única vez que sonhei com ela. Foi uma coisa boa, no sonho ela estava rindo, bem feliz! Guerda: Todo dia, todo dia, diziam que iam achar os corpos, tocava o telefone, e eu já dizia: ‘Será que acharam?’ Isso sempre batia nos nervos da gente, meu Deus! A gente tremia, tremia. No sexto dia acharam Nivaldo, o filho deficiente, o mais velho, no meio de umas

árvores bem para baixo de onde era a casa. Gizela: Quando eu e Niberto fomos a Gaspar na casa mortuária, que era provisória, Niberto passou mal, falou gritando: - Esse não é meu irmão! E eu dizia:- É sim! Cheguei lá eu disse: - Mas o corpo dele está tão curto? Porque ele era um homem alto. Por que ele está assim? Então eles disseram que quando resgataram tiveram que cortar as duas pernas porque estavam presas em árvores. Quando a casa estourou, acho foi jogado para fora, porque ele morreu asficciado. No IML, estava eu e Niberto. O Niberto afastou-se para longe, ele não queria ver mais nada, passou mal, me abraçou com muita força e eu dizia para ele: - Respira fundo, Niberto! Depois de alguns dias acharam as pernas, e daí em um domingo à noite, eu, Niberto e o primo Aguemar fomos ao IML para reconhecer, então Niberto falou que o irmão já havia sido reconhecido, ninguém queria mais ver aquilo, íamos passar mal. Fomos no cemitério Luterano da Fortaleza Alta, eu e Niberto, enterrar as pernas. Nós, o coveiro e a perita, que levou as pernas, participou, para ser feito uma coisa bem correta. Já tinha túmulo pronto, só foi aberto e colocou-se as pernas em um caixão e depois lacrado. O corpo dele está embaixo e as pernas em cima, separadas do corpo. Isso foi uma coisa bem desagradável. Para pôr as pernas no mesmo caixão com o corpo, só com o juiz. Mas tivemos tanta sorte naquele dia, já eram 8 horas da noite, e tinha um igreja de Crentes perto e eles estavam cantando uns cantos tão bonitos, que nos confortou. Os outros corpos então foram achados dia 19 de dezembro, os pais e o marido de Guerda. Quando aconteceu tudo os pais dela estavam sentados na cozinha um do lado do outro, e foram encontrados numa posição muito triste, muito feia, estavam muito quebrados, porque a casa caiu em cima da cabeça, como eles estavam sentados, isso socou eles para baixo, então quebraram a cabeça. O marido dela estava sentado em uma cadeira embaixo da escada. Todos os três foram encontrados no dia 19 de dezembro.

Nivaldo Karl.

Norberto e Guerda na eucaristia de sua filha Nilma.

130


No dia 22 de dezembro acharam a Nilma, foi a última a morrer e a última a acharem. Levaram para o IML para reconhecimento do corpo. Fomos eu, Robson e Niberto, lá o atendimento foi muito bom. Ela estava 29 dias embaixo do barro, acho que deu hemorragia, porque o cabelo dela tinha caído todo, duas unhas de uma mão e da outra três. Peguei ela assim na mão, virei-a, estava toda mole, mas não tinha cheiro. Ela estava perfeita. Foi tudo muito rápido. Não deixaram o marido de Nilma ver, e Niberto, o irmão não quis ver, Guerda não quis vir porque não podia ver isso. Falei para o perito do IML se ele poderia me dar um par de luvas, ele olhou para mim e disse: - Para que a senhora quer? E eu disse: - Eu queria abrir a barriga dela para ver o neném! - A senhora não pode fazer isso! E eu disse que queria porque eu vi todo mundo, então queria ver o neném também. E ele: Não! Vamos deixar o neném com a mãe! Ele não foi grosso comigo, nada, só me falou que não poderia fazer o que eu estava lhe pedindo. Eu queria abrir por curiosidade, porque eu vi tudo, então isso para mim era importante, se eles deixassem, eu iria fazer, porque os ossos dela estavam todos moles, mas não tinha cheiro algum. Como deu hemorragia, de repente ela pode ter entrado em trabalho de parto, alguma coisa. Ela estava branquinha, branquinha, e o rosto um pouquinho machucado. Ela morreu dentro da cama dela, ela tinha um vidro de óleo de amêndoas na mão e o vidrinho estava na mão, e está lá ainda, acho que ela não sofreu na morte, mas a neném a gente não sabe. De repente Gisela me fala bem baixinho para que dona Guerda não lhe ouvisse. Depois de um tempo, eu fui lá onde tudo aconteceu, um dia sozinha, afundei três vezes na lama, sou muito curiosa, queria procurar alguma coisa dela, então achei umas roupas dela, roupinhas do bebê, enxoval, tapetes. Foi muito arriscado, eu sei, porque um senhor da defesa civil de São Paulo que ajudou no resgate, me falou que onde eles estavam procurando o corpo, a casa afundou, e que às vezes tinha tábuas com barro em cima e ali tinha uma profundidade de até 3 metros. Sei que era muito perigoso, mas a curiosidade era demais, a saudade era demais, aquilo me confortava, mas doía muito e acho que Deus me deu muita força. Isso para mim é uma faculdade da vida! Eu fui a todos os enterros e a Guerda também, estão todos enterrados aqui em Blumenau, um ao lado do outro. Foi forte! Primeiro Nivaldo, depois os três juntos pai, mãe e marido, depois a Nilma com o bebê. Não sei como Deus dá tanta força para gente! Guerda: Isso é muito pesado para mim, quando vieram os dois carros da funerária, primeiro veio um na frente com minha mãe e meu pai. O segundo, com o meu marido. (dona Guerda se emociona muito e no momento todos nós choramos, é muito triste mesmo) Todos os caixões tinham o nome em cima e meu filho Niberto disse: Meu Deus mãe! Eu então não consegui mais ficar em pé quando vi ser colocado o caixão lá dentro com o nome Norberto em cima. De noite Niberto chora, toda noite. Graças a Deus que ele arrumou um emprego antes do natal, começou a trabalhar, é bom se ocupar em alguma coisa, assim pelo menos em uma boa parte do dia esquece um pouco de tudo que ele passou. Meu Deus! Se não fosse a Gisela nos dar abrigo, todos os telefonemas que ela fez para nós, IML, com essas coisas tudo, como que eu iria fazer sozinha isso tudo? Numa hora dessa eu não tinha condições. Gisela: Eu tinha muitos conhecimentos, então quando eles chegaram aqui eu disse: - Nada aqui me pertence, o que é meu é dela, o que é dela é meu! Quero que se sintam como donos da casa, se não for assim, não dá certo. Eles precisavam de muita atenção, muito apoio, carinho, de muita conversa, e graças a Deus deu tudo certo. Porque ela é muito forte! Eu não falo nada, deixo-os à vontade. Meu avô foi uns dos primeiros moradores do Baú o Artur Grahl, tinha na época dois moradores e ele foi o terceiro, ainda não tinha estradas.

Gisela e Lino na eucaristia de sua afilhada Nilma. Quando eu tinha sete anos, o meu avô falava para mim e uma prima, que o Baú um dia iria se acabar, esses morros vão descer tudo um dia! E isso tudo caiu na minha mente, então na terça-feira, dia 18 de novembro antes de acontecer a tragédia no Baú, O pastor Sigfrid Baade me disse que estava precisando de ajuda e disse: - Mas o que está acontecendo? Contei para ele que estava com um pressentimento que no Baú iria acontecer alguma coisa, contei a história do meu avô, ele olhou para mim e disse: - O ser humano pensa e Deus guia! Isso é uma coisa muito forte. Depois dos acontecimentos, ele me disse que tudo o que eu havia falado, bateu certo. E com meu marido Lino também aconteceu coisas estranhas, ele entregava bebida de caminhonete, às vezes dava uma coisa na cabeça dele que não sabe explicar, ele via coisas que pareciam do outro mundo, ele tinha que parar a caminhonete, esperava passar para depois seguir viagem. E eu sabia que Guerda e Niberto iriam ficar aqui em casa, sabia que nós é que tínhamos que ficar com eles. E o pastor falou para mim: Não foi tua escolha, foi uma escolha de Deus, eles precisavam de um canto para se sentirem à vontade. O pastor me deu muita atenção, me ouviu bastante tempo. A esposa

131


dele me falou que eles não revelam quando alguém os chama para alguma coisa, ele só conversou depois do acontecimento, dizendo que: O que Gisela falou para mim na terça-feira se tornou tudo realidade. Eu não só falei para ele, como para minhas clientes no salão de beleza em que trabalho, também, sábado, dia 22 de manhã, ainda falei com uma família lá do bairro da Velha, já estava com esse pressentimento há dias.

Perguntei para dona Guerda, se pretendia um dia sair dali, ter sua própria casa. Ganhei um terreno lá no bairro Fidélis, segunda-feira vão começar a construção da casa, gostei muito do lugar, vou morar com um filho. Perguntei para ela sobre os documentos que eu pedi para entregar a ela. Na hora que recebi aquela sacola que você mandou, achava que não tinha nada de importante, que eram apenas papéis velhos, quase joguei fora. Existia ali uma caderneta de poupança minha, que se você não tivesse trazido, as enxurradas teriam levado com certeza. Foi muito bom! No dia 19 de março convidei minha mãe para ir até Blumenau comigo, pois queria falar com Gisela e dona Guerda sobre os depoimentos finais do livro. Chegando lá, tive uma surpresa, dona Guerda e Niberto haviam se mudado para a casa nova no Bairro Fifélis. Fiquei muito feliz por eles já estarem morando em sua nova casa e então pedi para o senhor Lino me levar até lá para eu conversar com dona Guerda. Infelizmente ela não estava em casa, só uma moça chamada Janaína que nos falou que ela havia saído com Niberto.Voltamos para a casa de Lino, no caminho ele nos mostrou um lindo cartão que Niberto e Guerda o deram no dia de seu aniversário, achei muito bacana a gratidão de Niberto e dona Guerda, agradecendo os meses que ficaram hospedados em sua casa.

Nova casa da família Karl.

Cartão que Niberto e Guerda dedicaram para senhor Lino no dia de seu aniversário.

132


Meu relato após o depoimento de Guerda Harbes Karl. No dia em que estive pela primeira vez na Tifa do Grahl, local onde havia a casa da família Karl. A primeira vez que estive no Alto Baú, em dezembro, fui até a Tifa do Grahl onde morava dona Guerda. Fui com um grupo de bombeiros voluntários de Ilhota e Pomerode, lá encontramos outros bombeiros de outras cidades. Lá encontramos com outro grupo que foi com o propósito de encontrar as pernas de Nivaldo, o filho deficiente de dona Guerda, morto em consequência da tragédia de 23 de novembro. Foram cortadas alguns dias antes por outros bombeiros por estarem presas em árvores, impedindo a retirada do corpo. Achei aquilo muito estranho, inaceitável, pensei. Mas quem sou eu para julgar se foi uma atitude correta ou não! Só sei que fiquei muito mal em ouvir aquilo, pensei muito na família naquele momento. Nesse dia então não as encontraram. Foram encontradas outro dia por outro grupo. Fiquei completamente pasma quando vi o local onde um dia existia uma casa, uma casa que com certeza, pelo que ouvi de dona Guerda, era de uma grande família feliz, com muitos sonhos, o de construir uma nova casa, de ouvir o choro da netinha Gabi e de poder fazê-la dormir em seus braços. Esses sonhos infelizmente foram estupidamente por água abaixo, e a grande família feliz da Tifa do Grahl composta por seis pessoas se transformou numa família de duas pessoas, Guerda e Niberto, duas pessoas tristes, inconformadas e com muitas saudades dos entes queridos. Do marido, pai, mãe, filho, filha e neta e do pai, avô, avó, irmão, irmã e sobrinha! Caminhando por lá, passamos por muitas dificuldades, o acesso era muito perigoso e difícil, tudo estava virado em barro, pedras e troncos de árvores. Não se via mais nenhum vestígio da casa, apenas pertences da família, como brinquedos, roupas, calçados, tudo que pertencia à casa. De repente deparo com alguns bombeiros de Pomerode olhando uns documentos, cheguei ao lado, observei que na carteira havia 5 dólares dobradinhos e uma identidade. Vi que o proprietário era um homem, Rodolfo Harbes, nascido no dia 7 de março de 1927, completaria 82 anos. Até então não sabia quem era, porque não conhecia a família antes, mas depois fiquei sabendo que era o pai de dona Guerda, junto havia outros documentos e pertences, como carteira de trabalho, óculos e relógio. Pensei: se deixar tudo isso no local, provavelmente as águas das chuvas levarão, optei por levar comigo e tentar localizar dona Guerda, para então entregar tais pertences. Nem conhecia dona Guerda

O que restou da casa da família Karl.

e nem sabia também se ela quereria aquilo de volta, talvez só lhe trouxesse tristes recordações, ou de repente a faria feliz, com uma boa lembrança do pai. Assim fiz, chegando em casa coloquei tudo para secar, depois guardei. Comentei com minha irmã Marisa, que me aconselhou a entregar na delegacia. Discordei e falei que eu preferia entregar em mãos. Certo dia fui em uma farmácia aqui na minha cidade, e comentei com a atendente sobre o que havia acontecido, na hora ela me falou que dona Guerda era cliente, que estava em Blumenau e até me passou o telefone. Fiquei muito feliz, liguei imediatamente, dona Guerda me atendeu muito bem e pediu que eu deixasse na Secretaria de Agricultura, ou na Assistência Social, mas na realidade eu queria muito conhecer dona Guerda, queria entregar nas mãos dela, na época nem imaginava que algum dia iria publicar um livro. Não levei os documentos ao lugar que ela pediu, mas liguei avisando e pedi para que o dia que ela viesse ali que me avisasse, para eu poder lhe conhecer. Nesse meio tempo continuei indo para o Baú, queria fotografar tudo e ver tudo o que havia acontecido por lá. Num certo dia dona Guerda esteve em nossa loja me procurando para pegar os documentos, mas naquele exato dia estava no Baú, quando cheguei e recebi a notícia, não acreditei. Com isso resolvi deixar no lugar que ela pediu, deixei com Almir César Paul, secretário de Agricultura e Meio Ambiente. E assim foi, mais alguns dias estava no Baú e ela... Adivinha aonde? Na casa de meus pais! Tomando um cafezinho, com minha irmã, mãe e pai. Quando cheguei novamente recebi a notícia que ela esteve por ali, pensei: ‘todos conhecem dona Guerda e eu não!’ Só que depois a coisa muda um pouco, ela agora não queria só pegar os documentos, ela também queria me conhecer e agradecer por ter encontrado aquelas coisas, e que junto havia uma caderneta de poupança dela. Fiquei mais feliz ainda em pensar que estava com receio de lhe entregar por conta de lembranças... Mas minha intuição ajudou dona Guerda. Depois de muito tempo então resolvi fazer o livro, liguei para ela e marquei para pegar seu depoimento, começou tudo de novo, cada vez que ela vinha para Ilhota... Eu no Baú, agora com mais frequência, porque além das fotos, os depoimentos. Numa manhã resolvi ligar para ela novamente e me disse que poderia ir naquele mesmo dia à noite, eu fui. Nossa, a recepção foi muito boa, lá estava ela, dona Guerda, Gisela Carl, sua prima, e o marido Lino Carl, o filho Niberto estava no trabalho ainda, nos abraçamos, agora sim ela estava ali ao meu lado. Que pessoas simpáticas! Ficamos quase 3 horas tomando o depoimento e conversando muito.

Documentos encontrados de Rodolfo Harbes, pai de Guerda Harbes Karl. 133


Dia 25/02/2009 :: Depoimento de

Isabel Cristina da Silva

Moradora do Alto Baú.

S

ábado, dia 22, para mim estava um dia normal, nada de estranho. Começou tudo mesmo foi no domingo de manhã, chovia bastante, em alguns lugares já havia caído algumas pequenas barreiras, mas coisa mínima, tinha um pouco de água na frente de casa, mas tudo normal. À tarde chegou minha irmã Kátia com a família lá em casa, porque havia caído uma pequena barreira atrás da casa dela, então começamos a ficar preocupados. Então o Xande (Alexandre) e o André, meus irmãos estavam trancados no Braço do Baú, não podiam chegar em casa. Queríamos que todos viessem para nossa casa que achávamos mais seguro, reunimos então num total de 18 pessoas, todos parentes. Por volta de 9 horas da noite chegou o Paulinho,(Luís Paulo Hostim) de 17 anos, meu sobrinho, filho da Kátia, que havia ido para o Belchior (bairro de Gaspar) domingo depois do meio-dia com amigos e voltaram andando pelos morros, porque não tinha mais como voltarem pela estrada, já estava tudo inundado. Paulinho jantou, trocou de roupa e minha mãe decidiu que todos subissem para dormir. Estávamos sem energia já há 2 dias. Era o primeiro dia que estávamos na casa nova, e o primeiro dia em que íamos dormir nela. Essa casa sempre foi o sonho dos meus pais (Daniel e Iolanda), a casa velha ficou atrás, não desmanchamos e a nova foi construída na frente. Minha mãe comprou umas coisas para decorá-la, estava toda feliz. Na parte de cima da casa já estava com quase todos os móveis novos, cortinas, a pintura pronta e embaixo faltava algumas coisas. Parece assim, que meu pai construiu aquela casa para salvar a família, porque se estivéssemos na casa velha, que era só de um piso, teríamos morrido todos, a lama teria tomado conta. Então naquele dia fomos dormir em cima, no segundo piso, porque se viesse enchente estaríamos protegidos. Nos reunimos e começamos a rezar o rosário, no meio do rosário deu a explosão do gasoduto, ficamos com medo, ninguém imaginava que aquelas barreiras iriam descer

todas, houve um certo momento em que falei para minha irmã Scheila: - Meu Deus, Scheila! Estou sentindo a casa vibrar! E ela: - Ai, guria, é coisa da tua cabeça! Porque o chão era piso, estávamos todos sentados na hora da oração, mas só eu estava descalça. É uma coisa que eu estava com medo, eu senti aquilo, não sabia se era meu medo ou era real. Então ela falou, vamos todos dormir e cada um foi para seu quarto, eu não conseguia dormir porque estava com muito medo. Nesse quarto em que eu estava, também estavam a Scheila, o marido(João), Dani(4) e Joana (7 meses) filhas de Scheila e João. Deitada escutei aquele barulhão e no que levantei, vejo tudo pela janela, já me vi morta, aquela imensidão de lama derrubando tudo, eu via porque tinha o clarão do gás que ajudou a ver. A terra já estava muito molhada, claro que com aquela explosão, agora eu sei que quando tremeu já estava descendo tudo, não tinha como sobreviver com aquela altura de lama na minha frente. Vi aquela árvores caindo, vi aquela lama toda vindo na altura da fiação elétrica, pedi para todos se levantarem, olhei novamente na janela e vi o caminhão do meu pai vindo em direção da casa e a avalanche vindo atrás. Não tinha como sobrevivermos. Foi no momento que eu fiquei paralisada, olhando aquilo, eu então vi a Joana deitadinha, na hora disse: - Meu anjo! Deitei tentando protejê-la, para não cair nada sobre ela, veio a Scheila e deitou conosco. Na hora que deitamos, a casa foi indo, deslocou-se acho que uns 20 metros, senti então tudo se quebrando. Na hora já senti a primeira lambada nas minhas costas ficando prensada, não conseguia me mexer, fiquei numa posição de bruço, minha cabeça parecia que estava se rachando, era muita dor, porque era muito peso. Eu chorava de dor, quando eu abri meu olho, comecei a pensar:’ Meu Deus! Não morri ainda, vou ficar aqui sofrendo! Então comecei a escutar todos pedirem por socorro e gritavam: - Ai que dor! Ai meu Deus! Era aquela agonia, ouvindo meus pais ali pedindo ajuda e eu ali na mesma situação, não conseguindo me mexer. Eu sentia que Joana estava do meu lado, mas não conseguia mexer nada, mexia só

Isabel Cristina da Silva.

134


Marco Gamborgi

meu vizinho chegou desesperado dizendo que tinha uma avalanche se formando no local onde tinha caído nossa casa. Estava uma represa, foi um momento em que todo mundo resolveu subir o morro na frente da casa em que estávamos. Como que os feridos iriam se locomover, tinha que ter muita gente para carregá-los morro acima, muitos amigos ajudaram, era muito liso o morro, lembro como se fosse hoje, eu desesperada, chorando, escutando aquele barulhão, e não sabia de onde vinha, se era morro caindo. Eu chorava pedindo a cada um para levá-los para cima, os vizinhos ajudaram, era muito desesperador, gente doente, com febre, minha mãe com machucado no rosto. Ficamos a manhã toda debaixo daquela chuva, eu dava água na boca de cada um dos feridos. Achávamos que a ajuda não ia chegar, que íamos morrer todos ali. Depois do meio-dia chegou o primeiro helicóptero e resgatou-nos. Fomos todos para o hospital e depois que saímos, cada um foi para um lugar, uns para Gaspar, outros para Blumenau, foram se dividindo. Quando eu estava no hospital, não sabia onde estavam meus pais, pois fui levada para um e meus pais para outro, foram muitos desencontros, os parentes não sabiam onde estávamos, tiveram que procurar em todos os hospitais até nos encontrarem.

O dia em que o book foi encontrado dois dedos. Entrou muito pó de tijolo no nariz, na boca e não conseguia mas respirar, foi a hora em que eu comecei a ficar sufocada, sem ar. Nesse momento ouvia Paulinho pedindo ajuda que não aguentava mais. Ouço Joana dando o último suspiro, ela não aguentou. Scheila estava perto de mim, eu falava que não ia aguentar mais. Eu gritava, gritava, mas ninguém me achava. Como eu não enxergava nada, não tinha noção de como estavam as outras pessoas.De repente eu começo escutar meu tio João e gritei: - Me ajuda, que eu estou sem ar! Nisso meu primo veio e encostou a mão no meu pé, eu dizia: - Pelo amor de Deus! Me ajuda! Ele tentou cavar para ver se conseguia me tirar, e eu dizia: - Por favor, tire isso da minha cabeça! Só que era muito pesado e ele não conseguia, daí Scheila grita para ele buscar o João, ou alguém com força. Ele foi e trouxe o João, mas não conseguiu, pensei que ia ficar ali embaixo e ele me disse: - Tens que dar o máximo de ti e tentar te arrastar para sair de baixo. Foi onde ele ergueu um pouquinho os escombros e eu me arrastei, graças a Deus consegui sair. Quando minhas mãos ficaram livres eu tentei fazer respiração na Joana para ver se tinha algum sinal de vida, só que já era tarde, ela já tinha ido. Achamos um buraco e saímos por ali, no meio de todos aqueles entulhos. No que saí, encontrei o Paulinho, ainda estava vivo, eu e João tentamos retirá-lo, só que eu estava com a parte do corpo muito machucada e não conseguia quase me mexer, consegui colocar a mão nele falei: - Paulinho, a gente vai te tirar daí! Ele ainda falou comigo, foi a última frase: - Isa, eu não vou aguentar! Na hora que ele falou isso, fechou os olhos e morreu na minha frente! Foi onde me bateu o desespero, não sabia se ele tinha desmaiado ou morrido, então comecei a gritar, gritar, nisso já estavam ali Juliano, Fabiano, Sidney e o Salviano, ainda viram quando ele pendeu a cabeça e fechou os olhos. Eu ouvi também o pai e a mãe, só que não sabia onde estavam, e minha mãe só dizia: - Minha filha, sai daí! Querendo o meu bem, e eu não imaginava em que lugar da casa eles estavam, e meu pai dizia: - Eu estou bem, estou bem!’ Eu queria ver todo mundo vivo, e sabia que dois já tinham morrido ali na minha frente. Os vizinhos conseguiram tirar o Calinho, o pai, a mãe, todos carregados sobre tábuas, aquela lama toda. No momento que acabaram de tirar minha mãe, veio outra barreira, ela foi tirada na hora certa. Para a gente sair de casa enterrávamos até a cintura na lama. Ajudei a Scheila a ir para casa do Gil, estava muito abalada com a morte da Joana. Foi uma noite de sofrimento, choro, todo mundo desesperado. O Calinho quase morrendo, o pai, a mãe, Luís Antônio, todos ali machucados, cuidamos deles a noite toda, não deixando ninguém dormir, porque não sabíamos o que tinha de ferimentos internos, foi uma noite angustiante, sem ajuda, sem energia. No que amanheceu, conseguiram achar um celular e pedimos ajuda, ligando para os familiares. No momento que acabamos de pedir ajuda,

Perguntei a Isabel sobre o book encontrado nos escombros e sobre sua carreira como modelo.

Marco Gamborgi

Eu tinha feito o book em Blumenau, trabalhava em toda região, e depois que aconteceu isso tudo, passou-se uma ou duas semanas, minha mãe estava ainda no hospital e ligou para mim dizendo: - Minha filha, estava assistindo TV, e passou sobre alguém que achou o seu book. E eu disse: - Meu book, como? Pois se ele estava na casa velha, que ficou toda soterrada, por ser mais baixa. Eu só acreditei quando entrei no site, e vi mesmo que era meu book, que foi encontrado pelo repórter Caco Barcellos e por bombeiros, que identificaram o book e entraram em contato com minha agência. Estava bem destruído, mas dava para ver bem as fotos, ele conseguiu ler meu nome que estava bem borrado. Depois disso tudo, começaram os contatos, pessoal de São Paulo, programa de lá para tentar conseguir outro book. Acabei indo para São Paulo, me agenciei e graças a Deus, surgiram muitos trabalhos, acabei fazendo uma revista, programas de TV, eu sempre quis entrar nessa carreira, mas a minha intenção agora é dar o máximo de mim para ajudar minha família. Sei que é difícil eu estar lá e não poder estar aqui dando apoio, mas sempre que posso eu venho.

O repórter Caco Barcellos no Alto Baú, no dia em que achou o book de Isabel. 135


Igor Arahon Schwingel

SUB-Comandante Regional dos Bombeiros da Cidade de Arabutã/SC.

Marco Gamborgi

Dia 25/02/2009 :: Depoimento de

O

que mais nos abalou foi quando uma criança de aproximadamente cinco anos veio perguntar: Tio, onde esta minha mãe? A tristeza no olhar daquela criança conseguiu nos tocar e suplantar até a tristeza das mortes,foi aquilo que manteve nossa equipe unida, aguerrida! Por sorte aquela criança ficou por ali conosco e mais tarde sua mãe a localizou vindo dos Baús, foi emocionante ver este reencontro!

Igor e outros Bombeiros voluntários em reunião, no Alto Baú, organizando as buscas por vítimas fatais.

Igor (a esquerda na foto) atuando em resgates no Campo Municipal de Ilhota.

136


Dia 15/03/2009 :: Depoimento de

Ivete Kath Hentchen e Judite Kath Hentchen

Moradoras do Alto Baú.

I

vete: Meu nome é Ivete kath Hentchen, casada com Marcos Hentchen há 14 anos, sou natural do Alto Baú, moro há 37 anos aqui. Dona Judite, minha sogra de 80 anos, completa 81 dia 5 de Julho,f oi casada com Antônio Hentche e viveram 50 anos .juntos, até que no ano de 1993, faleceu. Ela morava em sua casa que fica em frente à nossa desde há dois anos, dia em que infelizmente teve que amputar uma das pernas por motivo de doença, então veio morar comigo e Marcos. Porque uma senhora da idade dela, com a perna amputada não poderíamos deixar só. Há vinte e cinco anos, dona Judite acolheu Sr Ervino Riediger, que está com 78 anos, em sua casa, porque não tinha onde ficar, ele continuou morando na casa depois que ela foi morar com o filho. No dia da tragédia, estávamos todos em minha casa, quando a água da enchente foi por cima da estrada, havia muitos vizinhos ali na frente, na casa antiga e no rancho ao lado, vizinhos que saíram de suas casas procurando lugares mais seguros para se protegerem, porque já estava caindo muitas barreiras, e eles ficaram apavorados e nos chamavam para o outro lado. Levantamos a dona Judite na cadeira de rodas e atravessamos a estrada já com muita água na sua antiga casa. Eu só sei que era tanta chuva naquele dia, lama, que parecia o fim do mundo, todo mundo começou ficar apavorado, todos os vizinhos que ali estavam queriam ir para outro lado. Dona Judite sempre dizia: - Aqui nada vai acontecer, a minha casa não vai cair, e nem a tua casa vai cair! E eu sempre perguntava para ela por que ela tinha aquele pensamento, e ela me respondia: - Porque eu tenho fé em Deus! Eu posso ir embora daqui para Blumenau, só que no dia que eu voltar aqui, a minha casa vai estar em pé, e não vai ter acontecido nada com ela! E no dia 27 de novembro, quinta-feira, os bombeiros vieram nos retirar, fomos praticamente os últimos moradores a sair daqui. Eu, Marcos, dona Judite, o senhor Ervino e os dois vizinhos que trabalham com reciclados, Nilton Moretti e o senhor Pascoal. E os bombeiros diziam para dona Judite: - Nós viemos para tirar a senhora daqui! E ela: - Sim! Vocês até podem me levar, mas eu não faço gosto de ir! E eles: - Mas a vó não pode ficar, porque fechou as ruas, a senhora depois não vai ter como sair! E ela: - Mas eu não quero sair! E os bombeiros insistiam, dizendo que os morros estavam caídos. E ela também insistia dizendo: - Mas aqui não vai acontecer nada! Eu garanto para vocês que não vai acontecer nada! E eles: - Mas por que a senhora está dizendo isso, Dona Judite? E ela: - Porque eu tenho fé em Deus e se eu não tivesse fé em Deus eu não estaria mais aqui com vocês! E a fé dela é grande, você vê no estado que ela está! Os bombeiros então nos ajudaram a todos a sair dali, erguemos dona Judite em sua cadeira, e a cobriram, porque no momento chovia muito. Fomos resgatados por helicóptero e nos levaram para Blumenau. Ficamos na casa de uma sobrinha dela, a Marili Guetsner. Somente no dia 7 de fevereiro retornamos para nossa casa, e ela ficou muito feliz, lá onde estávamos ela estava sempre doente, só chorava querendo vir para o Alto Baú, ela não estava acostumada com muito barulho, e aqui é muito tranqüilo, e o senhor Ervino quando chegou já correu pelas roças, começou a limpar em redor da casa. Você sabe como é se sentir em casa! Perguntou para dona Judite: - O que estás sentindo depois que tu veio de Blumenau?’ Dona Judite: - Melhor! Alegre! Lá fora não é comigo! Ivete: Ela tinha muita esperança, e dona Judite falou em alemão ESPERANÇA! Dona Judite: HOFFNUNG! Nesse momento pedi para que Ivete perguntasse algo sobre o dia

Dona Judite Hentchen.

Marco Gamborgi

Na manhã do dia 27 de novembro, Marcos Hentchen, dando ok para que os bombeiros buscassem a família.

137


Marco Gamborgi

da tragédia, Ivete então se aproximou dela e falou bem alto em seu ouvido, porque ela está quase sem audição: ‘Escuta aqui! Por que que naquele dia quando aconteceu isso aqui tu não querias sair daqui?’ Dona Judite: Porque eu gostava daqui, gostava da minha casa!’ Ivete perguntou: E tu tinhas fé que não ia cair? Dona Judite: - Tinha! Eu disse para a dona Natalícia, olha, a minha casa é velha, mas ela não vai cair!’ Ivete: - Viu como ela tem fé? Dona Judite: - Não caiu! Não aconteceu nada! Ivete: Pergunta para ela: - Tu estás feliz de estar aqui? Dona Judite: - Estou! Minha casa está inteira! Ivete: Fala para ela: - Escuta! Um moço me falou que quer reformar tua casa, tu deixas? Dona Judite: - Depende né! Dinheiro né! Ivete: Ele não vai cobrar, tu vais deixar ele pintar tua casa? E deixar mais bonita que já é? Dona Judite: - Vou! (ela sorriu e todas nós rimos também) Ivete: Quantos anos tu moraste naquela casa? Dona Judite: - Eu morei mais de 60 anos. Perguntei para Ivete qual foi o primeiro morador da casa. Ivete: - Essa casa era do antigo patrão do marido dela. E ela então pergunta para dona Judite o nome do primeiro dono da casa, que a construiu. Dona Judite: - Era o Olavo Schlemper. Se tu souberes tudo que esta mulher passou em sua vida, ela cuidou por 23 anos do marido no fundo de uma cama, tinha 10 vacas de leite e cuidava de tudo sozinha. Tudo que dona Judite passou daria para você escrever mais um livro!

Marco Gamborgi

Dona Judite sendo resgatada pelos bombeiros.

Marco Gamborgi

Marco Gamborgi

Senhor Ervino, no momento em que era resgatado pelos bombeiros voluntários

Marcos e Ivete, quando eram resgatados pelos bombeiros voluntários Neilon Vincenzi, da cidade de Jaraguá do Sul, e Luiz A. Lizzi, da cidade de Ipumirim.

Sr.Ervino, na casa onde mora há 25 anos, casa da dona Judite. Casa da Dona Judite.

Marco Gamborgi

Vizinhos Nilton e Pascoal, sendo regatados pelos bombeiros.

138


Dia 09/03/2009 :: Depoimento de

Jean Carlos Benassi

Bombeiro voluntário do município de Ilhota. (um dos 14 herois)

B

om, tudo começou antes do dia 23 de novembro. A cada dia que passava, a aflição aumentava, não parava de chover e tudo começou a alagar, então no sábado, dia 22/11 eu consegui vir até o centro, tendo muita água na estrada, mas graças a Deus consegui passar, então não voltei mais para casa e acabei ficando no corpo de bombeiros. Quando chegou a tarde o telefone não parava de tocar, várias pessoas pedindo informações sobre o que poderia acontecer nas próximas horas, porque em muitas casas estava entrando água, então começamos a pedir para as pessoas tirarem ou levantarem os móveis e procurassem um lugar seguro. Quando chegou a noite fomos fazer rondas pelo bairro da Vila Nova para fazer a retirada de pessoas que estavam isoladas. Fomos com o barco e a água chegava à cintura. Após passar uma noite de muita aflição, no domingo pela manhã, a cada hora que passava o rio subia cada vez mais, então tivemos que tirar e levantar os pertences que temos nos bombeiros e seguimos para o posto de saúde. Como eu não tinha como voltar para casa, fiquei na casa de minha prima, tomei um banho e fui dormir. Mal sabia que aquele dia 23 de novembro seria marcado pela maior tragédia do Brasil. Na segunda-feira, por volta das 07h30min o telefone toca. Eram familiares de pessoas que moravam no Baú, pedindo informação sobre os familiares de lá, porque segundo informações havia acontecido uma grande tragédia, mas eu não imaginava o que teria acontecido, então tomei café e fui até a minha loja limpá-la, que havia sido tomada pela água. Acabei de limpar e segui para o quartel, então fiquei sabendo que estavam montando duas equipes de busca e salvamento para o Baú, ficou bem claro que sabíamos o dia em que iríamos mas não sabíamos o dia em que iríamos voltar, mesmo assim eu dei meu nome, logo em seguida arrumamos nossas coisas para irmos ao Baú. Por volta das 14:30 partimos, atravessamos o rio ItajaíAçu com um bote e pegamos os dois barquinhos e seguimos em frente. Nesse momento pedia a Deus que olhasse por nós, seguimos até a BR 470, depois atravessamos os barcos e continuamos até chegar ao Baú Central, onde começamos a caminhar a pé, até que encontramos dois homens com trator tentando abrir a estrada. Pedimos que nos levassem até o Braço do Baú, embarcamos nos tratores e seguimos em frente. Durante o trajeto começou a passar um filme em minha cabeça. O que será que vou ver lá? Quanto mais a gente andava, mais cenas fortes a gente via, quando chegamos à Capela do Braço do Baú havia alguns corpos sendo velados, eu estava muito aflito e não tive coragem de ir ver os corpos. Quando chegamos em frente ao mercado Richart, vinham quatros pessoas trazendo um corpo, mal eu sabia que era de uma conhecida minha, a Giane. Nesse momento me segurei para não chorar, dali em frente seguimos a pé até que chegamos a um lugar que não tínhamos acesso, então pegamos uma motosserra emprestada e foram derrubados três eucaliptos para fazer uma ponte. Chegando naquela casa havia duas senhoras isoladas e uma delas disse que logo na frente era a casa de sua filha, mas agora não a vejo, mas mal ela sabia que infelizmente o pior tinha acontecido. Então foi limpa uma área para o helicóptero pousar e resgatar as duas senhoras. Nesse momento encerravam-se as buscas. Fomos para um abrigo, uma casa de dois pisos cuja parte de cima o dono da casa cedeu para ficarmos, estávamos muitos cansados, com fome e sedentos. Então o dono da casa arrumou três colchões para tentarmos descansar, mas nós estávamos em 14 pessoas e ficou muito apertado, mas deitamos um pouco e por volta da 00h30min escutamos um barulho muito forte. Era uma barreira que havia caído próxima de onde estávamos. Por volta das 04h30min, uma buzina começou a disparar durante

Jean Benasi, Bombeiro Voluntário ajudando a levar os alimentos doados para depois serem conduzidos aos abrigos.

quase uma hora e ninguém sabia onde era, nesse momento parecia uma sirene de guerra. Quando amanheceu o dia tomamos um café e prosseguimos com nossos trabalhos. O grupo foi divido em dois e o nosso grupo foi fazer o resgate do corpo de uma senhora que estava soterrada (mãe de Giane), chegando lá começamos a procurar o corpo e ninguém conseguia achar, porque era muita terra, então havia um rapaz do meu lado, morador do Baú, ele disse ter escutado um suspiro a seu lado. Quando ele falou eu me arrepiei e fiquei muito assustado porque não escutei nada, mas começamos a remexer e encontramos o corpo dela ali mesmo. Depois de um tempo conseguimos retirá-la dali e a colocamos em uma maca e levamos até um terreno baldio. Para nossa sorte havia um helicóptero sobrevoando a área. Pousou e levou o corpo para a igreja. Nesse momento recebemos a notícia de que havia um açude que poderia romper a qualquer momento e causar destruição ainda maior, então nesse momento recebemos ordens para seguir até a igreja, que era um local mais seguro. Quando voltávamos pela lateral do rio quase que um bombeiro foi levado pela água. Então fizemos uma corrente e o retiramos. Chegamos até a casa em que havíamos ficado à noite e começamos a ajudar as pessoas a embarcarem no helicóptero para serem levadas até a igreja do Braço do Baú e depois foi nossa vez. Chegando lá começamos a procurar medicamentos num posto de saúde, eu e o bombeiro Ede. Pegamos alguns medicamentos e material para curativos, como também mesa de maca e montamos na igreja um consultório para tratar das pessoas. Como havia uma enfermeira, comecei ajudá-la a fazer curativos etc... Mas algo que mexeu muito comigo foi quando uma mãe estava desesperada atrás de sua filhinha de 2 aninhos, que ela não sabia se estava bem. Talvez ela não suportasse mais uma perda, já que havia perdido sua mãe, sua irmã e mais uma tia, mas graças a Deus depois de algumas horas ela encontrou a filha, para alegria de todos. Então esperei quando o helicóptero fosse embora para poder voltar para casa e quando cheguei no centro de Ilhota eu não me aguentei e comecei a chorar, pois eu nunca tinha visto algo tão desastroso. Experiência única!

139


Dia 24/01/2009 :: Depoimento de

João Alves

Morador do Morro Azul, Braço do Baú.

N

o dia 22 de novembro, sábado, vim do trabalho e fiquei na casa de meus pais, choveu muito e alagou tudo, não podíamos mais sair dali, ainda fomos no mercado ao meio-dia, mas já pegando água, depois não passou mais ninguém, começou a enchente. Nesse mesmo dia à noite entrou água na casa, ouvimos pelo rádio que em Blumenau, Gaspar, Itajaí e outras cidades estavam em alerta, e que todos deviam se preparar porque domingo iria chover mais ainda. Ninguém acreditou muito, então por isso a água de domingo, dia 23, pegou vários moradores de surpresa, a noite tava tudo cheio. Meus pais estavam na casa do meu cunhado, e a água já estava ao redor. Não puderam mais sair. Fomos tentar dormir um pouco a uma e quinze da manhã. Olívio, nosso vizinho e sobrinho do Sr. Altino Richart chamou-nos dizendo que a casa do tio havia caído, que Giane estava presa em escombros e que a tia Augusta achava que já estava morta, porque não se a ouvia mais, que só o tio havia escapado com vida. Fomos eu, meus irmãos Cleber e Sidnei e meu sobrinho Lucinei correndo para ajudar. Chegando lá, Giane estava trancada da cintura para baixo, ela nos pedia para ajudar, então meu irmão foi chamar meus sobrinhos, Rodrigo e Roberto, mas já não conseguiram passar. Meu irmão voltou dizendo que havia caído uma barreira muito grande, que não dava mais para ver a casa de ninguém, e se atingiu mesmo a casa de meus sobrinhos, acho que não sobrou ninguém vivo! Falei para ele: - Vamos esperar amanhecer, porque não tem como passar por ali. Voltamos para casa do Sr. Altino, estava muito difícil, ela só pedia para tirar ela dali, às vezes ela pedia para cortar suas pernas, queria sair viva. O pai conta que na hora que aconteceu tudo, deu um estouro lá em cima, ela estava no quarto, ele diz que se levantou, nem sabe o que falou para ela e nisso já caiu tudo. Ela ficou por baixo do colchão na cama, ela não ficou reta. A gente tinha uma lanterna, mas muito fraca, a gente não tinha como mexer em nada, porque tudo por ali podia cair por cima dela, e ainda chovendo, escuro... Onde ela estava não chovia porque ficou um pedaço de forro da casa. Certa hora meu irmão que estava na casa do vizinho, veio aos gritos, dizendo que havia mais um deslizamento de barreira em nossa direção. Saímos correndo por cima dos escombros, ainda caí na estrada. Mas graças a Deus a barreira passou pelo lado, levamos um grande susto! Voltamos para tentar tirar Giane e ela pedia para que não a deixassem ali e falei:- eu não vou te deixar! E o pai dela sempre ali junto. Tinha que ficar quase que de cabeça para baixo, para mexer no entulhos, porque podia vir tudo abaixo, tinha muito barro também. Tentamos fazer um buraco por cima das pernas dela e fomos indo. Chegou uma certa hora que não havia mais o que fazer, estava muito escuro, então chamei meu sobrinho e falei: - Temos que sair daqui! Vamos parar um pouco, deixar clarear o dia. Falei para o Sr. Altino: - Temos que parar um pouco, está chovendo demais, não sei nem onde nem como vou mexer nisto aqui Vamos esperar clarear o dia e depois voltamos. Ele concordou, pedindo que voltássemos ao clarear do dia. O Sr. Altino não largou dela em nenhum momento, até a hora em que correu aquela barreira, mas ele não saiu, ficou com ela. Na hora que saímos, ele a abraçou fortemente e disse: - O pai fica aqui contigo, se for para morrer, morreremos nós dois, não vou te deixar sozinha! Continuou abraçado. Quando estávamos indo embora, vimos um clarão no céu e logo escureceu. Estava quase clareando o dia, saí para fora, meu irmão Sidney e o genro do Sr. Altino, correram até a casa do Roberto e do Rodrigo. Quando ia para a casa da Giane, escutei os gritos dos dois e perguntei ao meu irmão o que tinha acontecido. Desesperado me abraçou, chorando e falou: - João, pelo amor de Deus! A casa de nossos sobrinhos não está mais lá, sumiu tudo, é só barro lá,

não dá para ver mais nada de casa. Corremos até lá, meu outro irmão Cleber também foi junto. Ao chegarmos fui até o meio do local e falei para meu irmão: - Corra e veja se eles escaparam para cima, se eles conseguiram sair antes. Então parei, olhei para aquilo tudo e pensei comigo... Vou lá tentar salvar a Giane, porque aqui não vai ter mais ninguém vivo! Voltei à casa dela para retirá-la de lá e meu irmão chega e me diz: - João, eles não foram para cima! Já sabia que ali não poderia escapar ninguém com vida. Continuei tentando retirar a Giane. Tinha um colchão grosso por cima dela e muitos escombros. Comecei a cortar o colchão com uma faca, mas não podia me mexer muito, porque havia uma coluna que segurava os escombros e conforme os movimentos, poderia cair sobre a cabeça dela. Tive que ficar de cabeça para baixo nesta operação. Pedi aos meus amigos que me segurassem pelo cós da minha calça, avisando que a qualquer sinal de desmoronamento me puxassem de volta. Já não aguentava mais tanta dor nas pontas dos dedos, porque eram muitos escombros de alvenaria, tinha que quebrá-los com um pé de cabra. E ela falava: - Estou ficando cada vez mais fraca. Perguntei para Giane: - Tu sentes algum que tens algum ferimento? Ela respondia que não sentia mais as pernas, mas aqui no meio, disse apontando para a altura da cintura, tem alguma coisa que está me cortando pelo meio! Ela era bem magrinha! Então vi uma tábua com 1,5cm de espessura. Era uma tampa de um móvel ou coisa assim, bem fininha, posicionada bem ao lado de sua costela. Falei:- Giane, tu não estás cortada, a tábua está bem para dentro! Limpei bem aquele ponto, mandei buscar uma motosserra, segurei bem a tábua e cortei. Durante o corte havia momentos em que ela achava que eu a estava cortando também, mas eu falei: - não, podes ficar tranquila! Quando consegui puxar a tábua cortada, ela falou: - Meu Deus, João, que alívio! Eram umas sete e meia e chegaram mais dois vizinhos a quem pedi ajuda. Um não teve coragem, o outro, o Cristiano meteu-se lá comigo, ficamos um tempão tentando retirar a Giane. Para quem olhasse, assim, parecia ser fácil, mas... Se pudesse entrar por cima... Mas a gente tinha que fazer aquela toca ali para conseguir destrancar uma das pernas, mas a outra ficou mais complicado. Enquanto isso Giane ia piorando. Conseguimos retirá-la mais ou menos às dez horas e a levamos para casa de meu irmão Sidney. Então na hora comecei a ouvir o radinho a pilha, preocupado com meu filho, Anderson, que estava no Alto Baú, em um morro bem alto. Pensava comigo: “meu Deus, se aqui já aconteceu isso tudo, imagina lá!” De repente, saiu a notícia de que no Braço do Baú havia muitas pessoas mortas e feridas, então falou do Alto Baú... Fiquei muito apreensivo, falou da casa do Sr.Daniel, onde morreram 5 pessoas, que havia muita gente ferida, que estão também resgatando de helicóptero, continuei escutando, daqui a pouco alguém do Braço do Baú liga para a rádio de Gaspar e pede helicóptero para resgatar os mortos, não se referindo a pessoas feridas. Fiquei muito preocupado porque Giane precisava de ajuda, passei então por dentro da água para tentar avisar alguém, por telefone, email. Eu gritava para o outro lado, eles lá não entendiam direito, pedia que ligassem para avisar havia feridos no lado de cá! Tentei atravessar, mas a correnteza era forte demais. Voltei,c hamei meu irmão Sidnei, meu sobrinho Lucinei e Claudinei, cunhado da Giane, eu disse: - Vou amarrar uma corda na minha cintura e vocês me segurem bem, porque se essa água me levar... Segurem bem a corda! Disseram que eu estava louco, arriscar a vida, que deveria pensar no meu filho. Falei: - arrisquei minha vida tirando ela dos escombros porque quase ninguém teve coragem de se meter lá, a noite toda... Eu tive coragem, agora ninguém vai deixar ela morrer! Passamos eu e o cunhado dela, gritamos com o pessoal do outro lado, disseram que já haviam pedido ajuda, ficamos em um pátio cheio de

140


areia trazida pela água, que já havia baixado um pouco. Falei: - aqui vai dar para o helicóptero pousar, fizemos sinal para ele pousar e ficamos ali esperando. De repente começaram a gritar lá de casa, daí eu disse: - Acho que ela piorou! Saímos correndo, chegando lá ela estava se passando, lá estava seu pai, a irmã gêmea, a Gisele. Ela estava com a voz bem fraca, e lhe falei: - Tens que ter força, tu conseguiste até agora, tu vais conseguir sair daqui! Ela disse: - Não, eu estou acabada, já não tem mais volta! Daí ela foi se apagando, como se fosse uma luz se apagando pouco a pouco, a respiração às vezes parava, fazia aquele esforço, e às 14.30 horas, ela se foi de uma vez! Foi muito triste para a família ver aquela cena! Giane tinha um problema sério de saúde, que pode ter sido a causa de sua morte naquela situação. Ela tinha as plaquetas sanguíneas muito baixas, ela não poderia ter nenhum ferimento, se acontecesse algum dia um ferimento, teria que ser levada imediatamente para o hospital! E ali ela perdeu três dedos de um pé e o outro foi todo cortado, chegou a tirar um pedaço, ficou só a parte de baixo. O resgate chegou bem mais tarde, por volta de 16:30 horas, infelizmente ela não conseguiu esperar! Na minha rua, teve oito mortes: Rodrigo Bachmann-(26) meu sobrinho Bárbara Cristina Richartz-(23) esposa do Rodrigo Leandro Marildo Bachmann-(5) filho do casal Antônio Roberto Richartz-(48) pai de Bárbara Aparecida Richartz-(45) mãe de Bárbara José Roberto Richartz-(21) irmão de Bárbara Giane Richartz-(27) prima de Bárbara Augusta Richartz-(59) mãe de Giane

João Alves fala um pouco de sua vida: Eu passei por um mau pedaço na minha vida com a separação conjugal. Era ficar longe de meu filho. Minha intenção não era casar tão cedo. Conheci Elissandra Marques(Ale) dia 19 de outubro, lá na igreja Nossa Senhora Aparecida no Alto Baú, numa festa. Ela veio me convidar várias vezes para dançar, eu nunca a tinha visto e perguntei-lhe de onde era, ela respondeu que era do Paraná, da cidade de Imbituva. Depois de mais de um mês, nos reencontramos no alojamento onde estava meu filho, durante a tragédia. Quando ela me viu, veio correndo e me abraçou, quase quebrou meu pescoço... Pedi para minha ex-mulher, a Tina (Patriocínia) para trazer meu filho comigo, para o alojamento aqui de Ilhota, ela deixou. Nós ficamos na casa de minha irmã Sônia, em Gaspar, com Ali e mais um pessoal, inclusive minha ex-mulher. Vieram para o bairro Santa Terezinha em Gaspar. No outro dia, peguei meu filho e levei para sua mãe vêlo, e ver o pessoal, muitos amigos, porque já havia morado lá. Decidi ficar no abrigo com meu filho, porque perto da casa de minha irmã havia uma barreira e fiquei com medo de dormir lá. Encontrei Ali novamente e viemos juntos para o abrigo de Ilhota. Descobri que Ali é amiga da minha ex-mulher e está também no mesmo abrigo! Dia de natal, apresentei Ali para meus pais, então lá estava meu sobrinho, o Neto, gosto muito dele, sempre saíamos juntos para festas e como, ele é muito engraçado falou: - Tio João, o tio vai casar? Falei: - Olha, fiz um contrato no cartório por 6 meses, enquanto a gente estiver desabrigado, depois veremos como vai ficar... Se der para renovar o contrato... Ou cada um para o seu lado... Falei rindo! Saindo daqui, volto para o Braço do Baú, onde morava e onde trabalho... E ela... Acho que ela quer ir junto, porque não fica mais longe de mim!

João Alves e Elissandra Marques.

141


Dia 21/02/2009 :: Depoimento de

Jorge Paulo Cândido e Célia Petri Cândido

Moradores do Braço do Baú, rua Teodoro Richartz, popular Mata Pasto.

5 4

1 3 2

2

Vista parcial das casas da Rua Teodoro Richartz, antes da tragédia.

J

orge: No domingo dia 23, por volta de 9 horas da manhã, eu, minha esposa Célia e meu filho Marlon (14)), estávamos tentando salvar as madeiras do meu Beneficiamento (São Jorge) Estávamos tentando fazer buracos na madeira para a água passar pelo meio das tábuas empilhadas. A água estava pressionando porque trazia consigo muitos entulhos e podia cair tudo. Houve um momento em que ouvi dois gritos, Célia e Marlon (14) estavam sendo puxados pela correnteza. Na hora em que aconteceu isso, estava ali também a Ângela, minha irmã, meu cunhado Chico e meu primo Lúcio, e me ajudaram a salvar os dois. A correnteza estava muito forte, mas graças a Deus conseguiram sair. A água baixava e subia, chovia e parava e assim foi. Fomos então para dentro de casa, ninguém comeu mais, começamos a ficarmos preocupados. Dali a pouco eu olhei na janela e vi Ângela e Chico limpando a calçada e me perguntava por que estão fazendo isso? Cheguei lá tinha entrado água na casa e fui ajudá-los. Chamei a Célia e meu filho Marlon, ficamos lá da uma até as cinco horas da tarde, tirando só o lodo maior da casa deles. Quando estávamos acabando, perguntei para Ângela: - Tu vais dormir aqui?’ ela disse - Não, vou para casa da mãe. Falei para ela que iria fazer uma prancha de madeira para colocar no ribeirão para que pudessem passar. Depois vou em casa levantar umas coisinhas, depois eu volto e vamos dormir todos na mãe. Ângela tem um filho, o Ivan. Coloquei-o nas costas, e também passaram na prancha, os filhos Leonardo e Carla e foram todos para o outro lado. Antes o Marlon e eu tínhamos visto uns paus trancados atrás de casa e ele me dizia: - Pai, nós não vamos ficar aqui, vamos

1

Casa de Jorge.

São Jorge Beneficiamento de Madeiras, onde Jorge trabalhava. 2

Casa de Mário Lúcio (primo de Jorge). Caiu na quinta feira depois da mudança. 3

Casa de Chico (cunhado) e Ângela (irmã).Caiu na noite do dia 23. 4

5

142

Casa de Alfredo (pai de Jorge).


subir que eu tenho medo! Levantamos tudo, depois eu é que fiquei com medo! Colocamos a prancha no ribeirão de volta e passamos para o outro lado e fomos para casa dos meus pais. Estávamos em 11 pessoas na casa, meus pais Alfredo e Maria, eu, Célia, meus filhos, Maicon e Marlon, minha irmã Ângela, seu marido Chico e seus três filhos, Ivan, Carla e Leonardo. Depois de uma hora e meia nós olhamos para a casa do Chico, onde havia uma garagem com um carro e duas motos, estourou tudo, desceu também a varanda e veio tudo abaixo, olhei para baixo e vi meu beneficiamento de madeiras desabando, o caminhão, minha pick-up, meus maquinários, ficou tudo soterrado. Nisso, num piscar de olhos a casa do Chico veio abaixo. Chico e a família viram tudo acontecer, porque a casa dos meus pais ficava ao lado. Foi tudo muito rápido, parecia um brinquedo se desmontando. No que desabou a casa do Chico, veio uma galhada de pau e pegou a varanda da casa em que estávamos e estremeceu tudo! Eu disse: - Corram que vai derrubar a casa! Nós saímos pela frente, demos a volta por trás, quando estávamos passando por ali, veio outra galhada de pau e graças a Deus a casa aguentou. Chegou ali minha mãe caiu, meus filhos já estavam na frente, nisso a Célia, que estava segurando no braço da mãe, cai de joelhos. Meu pai tentou ajudar e não estavam conseguindo, estavam atolando os três, e aquilo tudo descendo... Minha mãe então disse: - Deixa a mãe e vai! Célia: Eu vi meu menino voltar e pensei: ‘Ele vai morrer!’ Jorge: Caiu um galho de pau e fechou nossa saída, a lama caindo na cabeça, nós então corremos, e eu chamava a turma da rua dos Martins, que é uma rua do lado, para ir conosco para cima, no que eles viram que a barreira estava vindo, o Edson Martins veio e ajudou a tirar minha mãe de lá. Quando saímos dali, um pedaço de pau veio de encontro à casa do Edson, quebrando todo o muro e onde tinha facção, desabou tudo, a casa não caiu. Saímos dali, descemos um barranco na casa de outro vizinho, o Márcio Martins, lá já tinha bastante gente, veio outra barreira caiu dentro da lagoa do pai, veio peixe e água por cima de nós, e a tranqueira ficou dentro da lagoa. Saímos então daquela casa e corremos mais para cima, para casa do outro vizinho o João Vinotti, nisso eu olhei as casinhas de abelha do pai, vinha a água e as caixas de abelha rolando para cima de nós, então eu disse: - Corram para cima que agora vai estourar tudo! Correu todo mundo para cima do bananal, aquilo estava clareando tudo porque as árvores caíam e ficava tudo aberto. Mas aquelas tranqueiras ficaram lá em cima, porque se estourasse ali, mataria todos nós, porque eram troncos de árvores imensos, em grande quantidade enorme que vinham junto com a barreira. Já estávamos em cinquenta pessoas, havia até um bebê de 6 meses e pessoas de 80 anos. Quando estávamos lá no bananal, corria uma barreira de um lado e outra do outro, água, pedra, pau, era muito barulho, subimos mais ainda, e começava a descer mais barreira, daí descíamos novamente. Imagina! 50 pessoas correndo para cima e para baixo, eu com minha mãe pelo braço, ela vinha escorregando, caindo e chorando, as crianças todas gritando, tudo escuro, chovia tanto que quase não conseguíamos respirar de tanta água, sem enxergar nada, era um filme de terror. Descemos e subimos várias vezes, até as nove e meia da noite. Por fim um grupo ficou embaixo, o outro ficou em cima. Cada um teve sua opinião. Eu disse para o pai e mãe: - Vamos nos abraçar, toda a família e seja o que Deus quiser! E vamos esperar no meio do bananal. Arrancamos umas folhas de bananeira para forrar o chão e colocamos outras por cima, colocamos as crianças, o pai e a mãe no meio, eu e os outros ficamos por fora e nos abraçamos no maior desespero. Célia: Nós batíamos queixo de tanto frio! Chovia tanto que chegava a doer onde a chuva batia. Jorge: E assim nós passamos. Eram dez e meia e deu uma acalmada na chuva, então me deu uma coragem e decidi dar uma olhada para ver o que estava acontecendo. Desci sozinho, lá embaixo estava o outro grupo, mas passei por trás para que ninguém me visse, para não

Barreira que destruiu duas casas, do Francisco Zimermann e do Jair Kretz, soterrando outras até as janelas.

Local onde havia a casa do Francisco Zimermann.

Jorge mostrando o lugar onde as tranqueiras e entulhos impediam da lama descer. 143


assustá-los. Fui até o ranchinho das abelhas do pai, olhei para baixo e vi aquele clarão, quando as árvores vieram abaixo. Então senti que não vinha mais barreira para o nosso lado, busquei toda a família e fomos todos para a casa do João Vinotti, um vizinho que mora mais acima de todos. Não só nós, mas todas as cinqüenta pessoas foram também, todos molhados e com frio e João deu roupas para todos vestirem, e também pegamos roupas na casa do Márcio Martins e fomos agasalhando todo mundo. De vez em quando durante a noite ainda dava uns barulhões, dessas barreiras que ainda estavam descendo e todos ficavam tensos e corriam para a rua, ninguém conseguia dormir Quando dava uma paradinha na chuva era um alívio para nós e quando batia a chuva de novo era um pesadelo. E assim fomos passando a noite. Ficamos todos até as 6 horas da manhã, ninguém acreditava que estava todo mundo vivo. Da nossa rua todos sobreviveram, porque nós corremos para o lado certo sem saber, nós arriscamos, mas acertamos! Todos então foram saindo da casa do João e vendo o que tinha acontecido, a tragédia que ocorreu na rua. Depois acharam um rapaz morto, filho do Zaíro, morador do Alto Braço. Uns dizem que se tivesse acontecido isso tudo durante o dia não teria tanta morte, outros não. Acho que pelo tamanho da tragédia ainda morreu pouca gente. Eu acredito que o que aconteceu conosco foi na hora exata, porque se fosse de dia teríamos morrido. Naquela hora que estávamos juntos tentando salvar as madeiras, se viesse uma barreira, ninguém estaria esperando, seríamos pegos de surpresa, e se fosse à tarde, seríamos pegos dentro de casa. Salvamo-nos de duas barreiras, uma de domingo para segunda, e também daquela que veio ao contrário, que derrubou as casas depois. Célia: Quando estávamos lá em cima naquela noite eu dizia que iriam achar muita gente morta, por tudo que estávamos vivendo. Nós escapamos por sorte. Se tivéssemos ficado na casa do Chico, também teríamos morrido. Jorge: A água ali não foi represando, simplesmente vieram ondas de 3 metros de altura, de água, lama e pedras, pegou por cima da casa e ela sumiu. Na minha casa só caiu o muro e ficou a metade aterrada, acabou com todo jardim. Arrebentou a porta de trás e entrou muito barro. E o meu beneficiamento então... Fiquei sem nada. Trabalhamos ali um bom tempo tentando tirar meu pick-up, os maquinários do

O que restou do pick-up de Jorge.

Casa da família Cândido, antes e depois da tragédia.

144


Marco Gamborgi

beneficiamento de madeira, mas quando veio a barreira que derrubou as casas, levou tudo para muito longe, não dá para aproveitar mais nada, está tudo retorcido, e o maquinário não tem mais conserto. Célia: Para trabalharmos agora não temos mais nada. Jorge: Na madeireira ajuntei um pouco de madeira e lavei o pouco que sobrou, perdi 95% da madeireira. A madeira foi toda de água abaixo, tem pedaços de forro espalhado por todo o caminho lá para baixo. Trabalhamos cinco anos para adquirir e tudo foi embora simplesmente numa noite! Célia: Esse ano que a gente iria conseguir melhorar um pouco, pretendia arrumar a casa, comprar uma empilhadeira para facilitar nosso trabalho. Jorge: Depois de tudo que aconteceu naquela noite, fomos então para o abrigo da igreja do Braço do Baú. Todos ficaram com medo de ficar ali, fomos de ônibus para o Baú Central, de lá para o Baú Baixo e lá ficamos até dia 15 de dezembro, depois voltamos novamente para o abrigo do Braço do Baú até a véspera de Natal, então um vizinho, o Renato Werner da padaria nos cedeu a casa por 10 dias. Nesses dias ele iria para praia com a família. Depois de 10 dias viemos para essa casa em que estamos até agora, da minha irmã Célia, Bernadete Petri, porque ela foi para casa que era da mãe, ela não veio para cá porque tem medo. Porque qualquer chuva que dá, já entra água. Meus pais estão em uma casa que conhecidos cederam no Baú Central e minha irmã Ângela que perdeu sua casa está em outra casa ao lado com sua família. Estão tentando arrumar a casa dos meus pais, da qual só caiu a varanda e depois que liberarem o acesso e energia, meus pais voltam e vão construir novamente onde está o ranchinho que meu pai tinha com abelhas produzindo mel. Perguntei ao casal se pretendiam voltar para casa. Jorge: Estamos à espera da liberação para fazer a entrada da nossa casa, para depois instalarem energia. Mas meu beneficiamento de madeira, não tem mais jeito. Eu até consegui uma máquina que estava parada, estou trabalhando, tentando arrumar um fundo para comprar uma máquina e tentar montar um ranchinho para começar tudo de novo, não no mesmo lugar, porque a cachoeira ficou muito perto agora, vamos ver ainda o local, estão estudando para ver se isso mais para frente acontece.

Marco Gamborgi

Limpeza na casa do pai de Jorge, Sr. Alfredo Cândido, depois tragédia.

145


Dia 26/03/2009 :: Depoimento de

Jornas Rodrigo Maciel

Bombeiro Voluntário do município de Ilhota. (um dos 14 herois)

S

ou natural de Chopinzinho, estado do Paraná, e há 22 anos moro no município de Ilhota, e participo da Corporação do Corpo de Bombeiros há dois anos. Fomos em quatorze pessoas para o Braço do Baú, a primeira equipe de salvamento a chegar lá, entre bombeiros e civis. Eu já queria ir na hora que passaram a ocorrência, pedi para o Expresso (Paulo Vilmar Batista - comandante administrativo), falei que eu e mais umas quatro pessoas poderíamos ir com um barco, mas ele falou para ter calma! Primeiro iria passar a ocorrência para o águia, e ver qual atitude iria tomar. Depois de uma reunião com o prefeito, decidiu-se por irmos de barco, porque também como não conseguiu com que algum helicóptero viesse porque eram muitas as ocorrências em várias outras cidades, então às duas horas da tarde ele falou que teríamos que ir de barco mesmo. Pegamos então o nosso barco do quartel, mais um barco cedido por de um civil, o Ney da fazenda Tio Duda. Fomos então em dois barcos. O nosso objetivo era ajudar os moradores que lá pediam por ajuda. Chegamos e o que vimos era muito pior do que pensávamos, muito desesperador Nesse dia não sabíamos aonde iríamos dormir, onde iríamos comer, e se íamos dormir na verdade. No primeiro dia foi muito complicado. Graças a Deus um senhor nos ofereceu sua casa, onde fomos muito bem recebidos. No outro dia de manhã já começaram as solicitações, ocorrências, avisando-nos que tinha muita gente machucada, muitas pessoas insistindo bastante na procura de corpos, só que eu falei: - Vamos primeiro salvar os vivos! Vamos nos organizar primeiro para resgatar essas pessoas. Eu sabia que para as famílias era muito importante procurar os corpos, eu falava que iríamos procurar, que podiam ter certeza disso, para ficarem tranquilos, que iria chegar outra equipe para procurá-los. Sempre falava para todos que estavam comigo, e alguns civis que estavam querendo ir à procura de corpos: - Se quiserem procurar corpos, vocês vão, só não vou me arriscar agora! Ele então falou que iria se cuidar. E ainda falei para eles, que se achassem algum corpo, deveriam me comunicar que eu daria um jeito de buscá-lo e que não era para mexer no corpo. Meu amigo BV Clederson Siqueira falou para mim: - Maciel, eu vou junto! E falei para ele: - Pelo amor de Deus! Te cuida, vê como está a situação! Não vá bancar o heroi, porque não existe heroi morto! E no decorrer dos dias eu conversava muito com o pessoal. Em dado momento, alguém chegou avisando que um morador foi juntar uma bomba de veneno, e olhou para o lado viu o corpo de dona Laudelina, então fomos buscá-la. Chegando lá, já havia alguns parentes. O corpo dela já estava em estado de putrefação, muito inchado, com a pele bem escura e já com muito odor. Eu não costumava colocar os corpos à exposição das pessoas, e ali naquele momento havia muitas pessoas, todos queriam ver, dizendo que era da família. Sempre pedíamos para alguém da família fazer o reconhecimento do corpo. Às vezes o corpo estava tão machucado, que o reconheciam por alguma cicatriz ou coisa assim. Então eu fazia uma ficha e anotava tudo, pessoa com o nome tal, reconhecida pelo parente tal. Então falei para alguém pegar um caixão e colocar em cima de um caminhão, para levarmos o corpo, e para ir alguém na frente para avisar o filho de dona Laudelina, o Zaíro e seus irmãos, que estávamos indo direto para o cemitério para enterrá-la.Um dos filhos falou que tinha uma promessa para cumprir à mãe, e que pelo amor de Deus, nem que fosse por cinco minutos, que a deixasse dentro da igreja com os filhos. Falei então para o pessoal: - Vamos respeitar, vamos respeitar a dor da

família! Colocamos dois cavaletes, o caixão, e o padre fez uma oração. Eu mesmo nunca tinha participado de uma missa católica, foi a primeira vez na minha vida, porque sou de outra religião, evangélica. E nessa primeira vez, eu abracei o irmão de Zaíro, e, no entanto a promessa que ele tinha, era de colocar um rosário na mão da mãe, parece-me que esta promessa foi feita por uma outra parente que também havia morrido, ele então colocou o rosário de madeira nas mãos dela, depois ele me deu um abraço e disse: Muito obrigado!’ Eu perguntei se em algum momento ele chorou. Para ser sincero, só chorei uma vez! No dia em que o comandante Leão foi me buscar para voltar para Ilhota, porque todos aqueles que vieram comigo já tinham ido embora, mas eu quis ficar, mesmo cansado quis ficar por mais alguns dias, não queria deixar todo aquele povo ali. Diante das pessoas eu não podia chorar, emocionava-me muito com tudo, mas me contive muitas vezes, porque tinha que passar segurança, e os moradores confiavam muito em nós, bombeiros. Às vezes eu me pegava sozinho, baixava a cabeça e pensava: Meu Deus!O que é isso? Em cerca de dez minutos, levamos o corpo de dona Laudelina para o cemitério.

Jornas Rodrigo Maciel.

146


Depois foram aparecendo outros corpos que estavam próximos ao de dona Laudelina, o Rodrigo, o Betinho, estavam todos numa arrozeira, alguns trancados em cerca, próximos uns dos outros 300 metros. Só faltava então a mulher do Zaíro e o filho. Que naqueles dias não foram encontrados. No dia em que tivemos que evacuar todas as pessoas do Braço do Baú, uma senhora me perguntou: - Quando isso tudo vai acabar? E eu: Olha! O que está acontecendo eu não sei ainda, pode ser da água, pode ser o que muitos de vocês estão falando que é a explosão do gasoduto, pode ser tantas outras coisas que eu não posso citar aqui para vocês! E a mesma mulher me falou assim: - E quando isso vai acabar? E eu: - Pode ser daqui a pouco, pode ser hoje à tarde, de repente essa tarde eu posso ir embora, mas eu não sei quando vou embora, pode acabar hoje, pode acabar amanhã, pode acabar daqui a um mês, três meses, até um ano! Eu falei para aquela senhora, e daí ela baixou a cabeça e sentou em um canto, depois eu fui lá e sentei ao seu lado e comecei a conversar, tentando tranqüilizá-la. O que eu vi acontecer com aquelas pessoas, acho que nunca mais verei na vida, meu Deus! Era uma situação muito mais surpreendente que eu esperava encontrar na verdade. Fomos até o Baú Central para ver como estava a situação das pessoas no abrigo, se faltava alguma coisa, para fazer o pedido por helicóptero. Nisso quando voltamos, vinham pessoas com mudanças, com caminhonetes cheias, eu falei: - Meu Deus! O que está acontecendo?

Parei uma caminhonete e perguntei: - O que está acontecendo para lá? E eles responderam: - Está caindo tudo, e estamos saindo, não vamos ficar aqui, caiu uma barreira lá no Mata Pasto! Fomos então para aquele local, nós e a guarnição da PM, o Major Francisco, o sargento Jofer e dois soldados, policiais da Secretaria do Estado. Um deles falou assim para mim: - Seu Maciel, o que você acha? E eu: - Com esses entulhos pode se formar um dique realmente, e o rio pode tomar outro leito. Eles então concordaram e mandaram evacuar a área. Lembro-me que entrei em contato com o comandante Leão em Ilhota, avisando sobre a evacuação, e pedi que mandasse um ônibus logo que pudesse, porque estaríamos retirando todos dali. Depois sentei na frente da igreja, escutei barreiras caindo lá no Mata Pasto. Ali próximo havia dois ônibus de uma empresa, que conduziram a maior parte das pessoas. No ginásio de esportes havia algumas pessoas sabendo de toda a situação, mas não queriam sair. Nisso chega o Expresso com o micro-ônibus da prefeitura, fomos lá, insistimos para o pessoal sair, tivemos que nos desdobrar para tirá-los de lá. Teve um senhor que falou assim para mim: - Não vai acontecer nada! E eu: - É, talvez não aconteça, talvez vocês amanheçam e me agradeçam por eu ter salvado suas vidas, mas talvez amanheça e amanhã vocês me chamam de mentiroso! Eu ainda prefiro que me chamem de mentiroso amanhã! Daí as mulheres desses senhores e as crianças já estavam todas chorando, elas queriam sair dali e eles não! Ficou aquela confusão! O Padre Alexandre com a voz bem serena falou: - Meu filho! O que você está fazendo? Isso é pressão psicológica! E eu: - Pressão psicológica, padre? Está caindo tudo lá atrás! Vamos garantir a vida dessas pessoas! E ele: - Eu tenho fé em Deus que não vai acontecer nada! E eu: - Eu também tenho fé em Deus! Tomara Deus que não aconteça nada! Mas eu estou saindo daqui, e se vocês quiserem vir comigo, daqui a pouco estarão chegando mais dois ônibus, e se não quiserem ir agora, sinto muito! Eu não passarei a noite com vocês, vou me retirar. E eles: - Vamos esperar mais um pouco, quando os outros ônibus vierem nós vamos ver o que faremos. Foi muito trabalhosa essa retirada do pessoal, mas graças a Deus retiramos quase todos, exceto o Padre e mais alguns. Eu sempre achei melhor prevenir do que remediar. Fomos todos para o abrigo do Baú Baixo. O Expresso insistia para eu ir embora, e falou para mim que minha família estava preocupada e que ele não sabia mais o que falar para minha mãe. E eu falei: - Diz para ela que eu estou bem! E que é para ficarem tranquilos que eu voltarei! Porque antes de eu ir para o Braço do Baú, havia deixado eles bem, na verdade nós perdemos tudo de dentro de nossa casa, agora que começamos a reconstruir. Falei para o Expresso que aquelas pessoas ainda poderiam precisar de mim. Dormi ali. No outro dia encontrei com o Zeca Jacob, coordenador do abrigo do Baú Baixo, e lhe falei: - Estão todos aí, vê o que consegues arrumar, camas e tudo mais, porque a moradia desse pessoal é aqui! E o Zeca me falou: Está tudo sendo providenciado. Junto com a guarnição da PM fomos até o Mata Pasto para ver como estava por lá. Graças a Deus o rio tomou outro leito, não aconteceu o pior que prevíramos, mas mesmo assim caíram casas, e algumas foram soterradas até a metade. Como o abrigo do Baú Baixo estava muito cheio e o maior perigo já havia passado, resolvemos então levar de volta algumas pessoas ao abrigo do Braço do Baú. Só que imediatamente veio a contra ordem de que estavam em todos em zona vermelha, e aí começou aquela” muvuca”. Mas para nós ali, estava tranquilo, pois estava liberado o Braço, e aí falei, pronto! Ninguém sabe de mais nada! Então realmente as pessoas foram retiradas e levadas para Ilhota, divididas em vários abrigos. “Quando eu cheguei ao Baú, para mim, parecia um sonho de 10, 20, 30, 50 anos, tudo indo por água abaixo! Na verdade o que eu passei com aquelas pessoas eu nunca vou esquecer!”

147


Dia 13/02/2009 :: Depoimento de

José Altino Richartz e sua filha Karina Richartz

Ele morador do Morro Azul, no Braço do Baú. Atualmente está morando no Baú Baixo. Ela moradora de Gaspar.

E

uma figueira grande que era da minha terra, vindo para cima de nós. Desceu uns 300 metros de barreira, quebrando o telhado e estourando tudo. E naquele momento só ouvi minha mulher dar um grito e... Olhei para cima de casa meio atordoado, vi uma luz acessa e pensei... Luz acessa a essa hora? Perguntei quem era, e alguém respondeu ‘Sou eu.’ E eu perguntei ‘Mas quem?’ Sou eu, pai, a Giane, estou trancada, me tira daqui! Giane sempre dormia com o celular na cabeceira da cama para ver as horas, acho que justamente naquela hora, ela só se virou e pegou o celular, aquela luz que eu via era do aparelho. Passando por cima de tudo, cheguei perto dela, joguei o celular para o lado, e vi que tinha arrastado a cama e que estava tudo enrolado, caco de tijolo era demais por cima. Então gritei para o meu sobrinho Olívio, genro de minha irmã, que estava ao redor da casa. Havia muita água por volta da casa deles, ele então me respondeu que ia no Roberto pedir socorro, pedir ajuda. Roberto era meu irmão. Ele andou uns 50 metros para cima, tinha uma curva e eucaliptos, lá não viu mais nada... As duas casas grandes tinham caído, lá morreram seis pessoas. Meu irmão Antônio Roberto(48), minha cunhada Aparecida(45), meu sobrinho José Roberto(20), minha sobrinha Bárbara(23) com o marido Rodrigo(26) e o filho Leandro(5). Naquela madrugada estava chovendo muito. Onde Giane estava havia umas telhas que nos defendiam um pouquinho da chuva. Mas mesmo assim amanhecemos todos encharcados. Depois, ainda na madrugada chegaram umas quatro pessoas, meu genro, mais outros vizinhos, os filhos do seu Chico Alves. Mas não tinha o que fazer para ajudar Giane. Foram buscar uma motosserra para tirar uma madeira que ficara trancada na altura da cintura dela, conseguiram tirar com muito custo, tinham medo, aquele barulho, muitos paus por cima que podiam cair a qualquer momento. Ela foi arrastada por uns 8 metros e que a levou para cima foi essa madeira que era da prateleira onde ela tinha seus porta-retratos, gostava muito de fotografias, era muito vaidosa, ela sempre caprichava em tudo, gostava muito de se arrumar, dizia que não queria casar e que queria ficar conosco sempre. Depois eles correram para casa da minha irmã, porque não tinha mais o que fazer naquele momento, pois chovia muito e estávamos sem energia. Giane conversava comigo. Giane: Pai, vai me deixar sozinha aqui?’ Sr.Altino: Não, o pai vai ficar!’ Quando ela viu que eu estava desesperado... Giane: Pai, a mãe morreu, não é? Sr.Altino: Morreu, filha. Giane: Eu vou ficar para cuidar do pai. E quando a dor era demais ela ficava desesperada... Giane: Me mata pai, me mata! Ela me abraçava... Giane: Pai me perdoa se eu fiz alguma coisa de errado, perdoa, perdoa. Me corta daqui para baixo, me corta as pernas pai! Vivendo assim daqui para cima está bom!’ Não amanhecia mais, o tempo parece que não passava. Tinha deixado uma vasilhinha com água, mas logo acabou e uma velinha que logo apagou, porque chovia muito. Ela pedia água, então ela chupava minha blusa de pijama. E eu só saí dali quando conseguiram tirá-la de onde estava. Amanheceu o dia e chegaram algumas pessoas para continuar

Marco Gamborgi

stava chovendo desde meados de julho. Na sexta-feira dia 21 de novembro, já estava tudo cheio, não deu para ir trabalhar, porque trabalho na lavoura, ultimamente com outras pessoas, através de tratadas ou empreitadas. Sou aposentado e ganho um pequeno salário. No dia 23 de novembro, domingo, estava em casa com minha esposa Augusta(59) e minha filha Giane(27), chovia muito, não dava para sair de casa, o ribeirão já estava cheio. Naquela noite havia muito barulho, não sabíamos de onde vinha. Aconteceu tudo na minha casa à meia-noite e quinze do dia 24. Fui deitar eram 10 horas da noite, não tínhamos mais energia. À meia-noite levantei, olhei para o rio e vi que tinha dado uma baixada boa. Quando eu voltei para o quarto, deitei-me e de repente escuto um estouro muito forte, só coloquei a mão sobre a cama, olhei para cima e vi que o forro partiu, e vi descendo aquilo tudo, vi uma árvore,

José Altino Richartz. 148


tentando tirá-la de lá. Giane estava meio para baixo, tinha uma viga de concreto em cima, e havia muito perigo, risco de cair de uma hora para outra, e tinha barro, pedras por cima. Tinham que trabalhar de cabeça para baixo, com as mãos, rasgando o colchão com facão, a coberta, madeira, era a grade da cama, muitos escombros havia por cima e ao redor dela. Por volta das 10 horas do dia 24, conseguimos tirá-la. E ela ainda olhou para todos e agradeceu. Ela nunca parou de falar, falava todo momento. Nós a levamos para casa do Sidnei, filho do Sr.Chico Alves. Qualquer barulho que ela ouvia, ela estava tão atenta que dizia: Pai, vamos, está chegando o helicóptero! O pessoal subiu para os morros para tentar ligar, porque ali quase não dava área e os celulares dificilmente funcionavam. Depois do meio-dia passou um helicóptero, mas bem alto. Quando eram duas e meia ela disse para mim: - Pai, o helicóptero vem? E eu lhe dizia que sim! Vem sim! E ela: - Pai, agora é tarde, eu não aguento mais! Ela estava muito machucada nas pernas, tudo arrebentado, tudo roxo. Ela levou uma pancada na testa e quando colocou a mão e viu que estava sujo de sangue, assustou-se. Reclamava muito de dores na bexiga, porque aquela tábua a espremeu. O corpo de Giane foi amarrado em uma escada, os vizinhos então passaram o ribeirão, colocaram em cima de um trator e levaram para a igreja do Braço do Baú. O helicóptero chegou às quinze para cinco, muito tarde. Naquela noite o corpo da Giane ficou na igreja, e no outro dia foi sepultado por volta das 10 horas. E minha mulher ficou lá, soterrada. No dia 25 os bombeiros com alguns da família foram lá tentar achar o corpo. A Giane estava mais por cima, e minha esposa ficou mais embaixo. Porque a parede desceu, caiu em cima dela, ela morreu

Escombros da casa da família Richartz.

Barreira que atingiu a casa da família Richartz

149


na hora, só escutei um grito. A cabeça estava bem machucada, o próprio pé da cama que era alto, estava quebrado em cima da cabeça. Na hora parecia que ela tinha saído, porque o estouro foi muito grande, achava que ela ainda tinha gritado - Ai meu Deus! Mas disseram que a encontraram como costumava dormir, de lado. Foi tudo muito rápido, a minha sorte é que eu estava acordado e escapei porque aquela parede não caiu onde eu estava. Pegaram e envolveram o corpo de minha esposa com a própria coberta que estava na nossa cama no dia, e levaram para o helicóptero e depois para a igreja Nossa Senhora da Glória no Braço do Baú. Logo depois para o cemitério. E eu não a vi mais, não me deixaram vê-la, não deixaram ninguém ver. Nesse momento a filha mais nova do Sr. Altino, Karina fala. Meu pai e minhas irmãs, Tatiana e Gizeli que era gêmea com Giane, estavam esperando o corpo da nossa mãe na igreja, mas mas os bombeiros não deixaram vê-la, minhas irmãs reconheceram pela coberta na qual estava enrolada, era com a que ela dormia. Só permitiram que meu tio Adolfo visse, para o reconhecimento do corpo. Tinham acabado de enterrar minha irmã, chega o corpo da minha mãe, então enterraram juntas. A mãe foi direto para o cemitério e o corpo de Giane ainda passou a noite na igreja. Já fizemos a sepultura. Sr. Altino fala: É... E Karina escapou da morte! Perguntei para Karina sobre o que seu pai havia comentado. Eu sempre morei com meus pais e minha irmã, eu e Giane trabalhávamos juntas, íamos de moto todos os dias, durante três anos. Uma semana antes de acontecer tudo, fui morar em Gaspar. Ainda quando eu saí da casa, meu pai lamentou minha saída. Só Deus é que sabe, se era o meu dia, de repente não iria acontecer nada! No dia da tragédia eu esperava a família para almoçar comigo em Gaspar, no sábado de manhã ainda consegui fazer uma ligação para minha mãe, ela estava na casa da minha irmã Tatiana fazendo pastel e me disse que não os esperasse para o almoço, porque chovia demais e não iriam conseguir passar. Quando foi sábado aa tarde já não consegui mais ligar. A minha preocupação era de que eles estivessem preocupados comigo, porque nunca passou pela minha cabeça acontecer uma coisa assim aqui no Baú, lógico que eu me preocupava com eles, mas não tanto. Depois o padrasto do meu namorado me contou o que tinha acontecido. Perguntou se eu estava preparada, porque a notícia que vinha de lá não era boa. Mas eu não acreditava, dizia, não aconteceu nada, só água como das outras vezes. Então eu queria entrar em contato com alguém e não conseguia. Primeiro fiquei sabendo que minha mãe havia morrido e minha irmã, a Tatiana. Fomos procurar alguém da família, estava desesperada, no abrigo Santa Terezinha em Gaspar, em Blumenau, fui no IML, diziam que o pai estava bem, mas muito machucado, e eu não sabia aonde ia. Até me animei quando cheguei no IML, tinha um senhor que me disse que todos que morreram teriam que passar por ali, mas como no Baú aconteceu tudo aquilo, não tinham nem como irem para Blumenau, então achei que todos estavam vivos, não imaginava que não teriam acesso. Na terça-feira de manhã, dia 25, meu patrão, Dr.Ricardo Szanzerla, de Gaspar ligou para Sr.Nelson Richarts, aqui para o Braço do Baú, e ele o informou de tudo. Ele me chamou e me falou toda a realidade, nisso consegui falar com meu cunhado, e ele realmente confirmou as mortes. Também contou que na casa da tia Cida morreram seis pessoas. Queria vir para cá e não tinha como chegar até aqui. Só na terça-feira à tarde que consegui chegar aqui, estavam todos na casa da minha tia. É, eu nem vi minha irmã e minha mãe! Foi tudo muito triste, muito sofrimento!

Augusta Richartz.

Giane Richartz. Fotos cedidas por José Altino Richartz

150


A minha visita Em umas das idas para o Baú, acompanhada dos meus pais Marcos e Nilva, conheci dona Maria Zabel Richart, mãe de Antônio Roberto Richart que morreu soterrado com sua família, a esposa Aparecida, os filhos José Roberto (Betinho), Bárbara, o neto Leandro e o genro Rodrigo. Neste mesmo dia perdeu também sua nora Augusta, que era casada com seu filho José Altino, e a neta Giane, também vítimas de um deslizamento de terra no Morro Azul, em frente à casa de Nida. Quem nos levou à sua casa foi a filha Vanilda (Nida). Dona Maria tem 82 anos e desde então mora no Braço do Baú, Morro Azul, viúva do senhor José Emílio há 28 anos. Atualmente moram ela e a filha Alzira, na casa que fica ao lado de onde as casas foram soterradas, da varanda de sua casa é o cenário que elas veem todos os dias. Eu fiquei imaginando o sofrimento desta mãe e dessa família, que expectativa de vida dona Maria terá nesta idade? No dia da catástrofe, mãe e filha ficaram isoladas, e foram salvas pelos bombeiros e civis de Ilhota. Naquele dia dona Maria perguntava pelo filho e família, e o pessoal que foi resgatá-las, sabendo que todos tinham morrido, diziam que eles estavam bem, que tinham saído antes de tudo ter acontecido, para amenizar a situação, porque elas estavam desesperadas, sem acesso e completamente sem notícias.

Maria Zabel Richart e sua filha Alzira Richart.

Fotos cedidas por Maria Zabel Richart

José Roberto Richart (Betinho).

Aparecida Doci Richart. 151

Antônio Roberto Richart.


Dia 12/02/2009 :: Depoimento de

José Henrique Zuchi

Bombeiro volúntário da cidade de Apiúna - SC.

N

o dia 26/12/2008, junto com mais quatro companheiros de farda, e acima de tudo grandes amigos, traçamos o objetivo de irmos à cidade de Ilhota para auxiliar na minimização das desgraças que lá persistiam em acontecer. Antes e durante toda a viagem íamos imaginando o que poderia estar acontecendo lá. Já tínhamos visto noticiários, fotos, vídeos, reportagens e tudo mais sobre o “tal” Morro do Baú. No mesmo dia, mais à noite tivemos o prazer de ficar alojados no Corpo de Bombeiros Voluntários de Ilhota. Naquela noite junto com o Ademar (irmão de farda e grande amigo) ficamos de plantão, pois faltavam plantonistas Ilhotenses. No outro dia de manhã cedo, partimos à “luta”, o combinado era que o que tivesse para se fazer, faríamos com seriedade e dedicação, pois acima de tudo estávamos representando um grupo de pessoas que são diferenciadas, que têm o dom de ajudar o próximo, o espírito do voluntariado. Eram 7 horas da manhã quando saímos com as tarefas já delineadas para cumprir, nossa missão era de abrir estradas e gerar passagens para os moradores que lá ainda se encontravam isolados. Com o auxílio de um tobata recuperado em meio aos escombros fomos à busca dos nossos objetivos. Ali começava uma batalha contra o cansaço, contra os obstáculos que tínhamos pela frente... Na primeira etapa pela manhã, o trabalho foi muito produtivo, paramos para o almoço, com o fogão improvisado com gravetos e uma caneca para ferver a água. Descansamos aproximadamente 45min e voltamos para o trabalho. Ao fim do dia quando tínhamos a certeza de que parte da nossa missão estava cumprida voltamos de cabeça erguida ao alojamento, também improvisado. Fomos obrigados a percorrer 5km para tomar banho em uma casa abandonada, feito isso

José Henrique Zuchi em sua missão no Baú. partimos para algumas horas de descanço, em meio a pernilongos e calor. Posso dizer que a sensação de poder estar ajudando ao próximo e ao mesmo tempo ver toda aquela destruição deixou-me muito impressionado. Impressionou-me também a força de vontade de algumas pessoas, a coragem, a determinação e principalmente a fé de que vão reconquistar tudo o que ali perderam. Posso dizer que nada do que se vê em fotos, vídeos pode ser comparado ao que se vê ao vivo, é impressionante a capacidade de destruição que a natureza impõe sobre o ser humano. Nesses 3 dias em que convivi em meio à desgraça, posso com certeza bater no peito e dizer com orgulho, que eu SOU BRASILEIRO E NÃO DESISTO NUNCA, SOU CATARINENSE E NÃO DESISTO NUNCA, SOU BOMBEIRO VOLUNTÁRIO E NÃO DESISTO NUNCA!

Fogão improvisado.

152


Dia 19/02/2009 :: Depoimento de

Joziane Bollmann

Moradora do Alto Baú.

S

ábado, dia 22 de novembro choveu bastante, o dia todo chuva, chuva e mais chuva. À tarde deu uma aliviada e eu e meu pai (Mário Bollmann) resolvemos ir a pé até perto da igreja protestante, ver a ponte que já estava caindo. Na hora comentamos de brincadeira, que iria dar uma enchente. Temos um caminhão com o qual Flávio trabalha, faz viagens, e esse caminhão tinha ficado no Belchior, não tinha mais acesso para o Alto Baú, ficou em um posto, e lá é um lugar que chega água. Meu marido (Flávio de Azevedo) e um amigo, o Luís Antônio, filho do Carlos e Kátia Hostim, foram de moto por trilha, tentando chegar ao Belchior para retirar o caminhão de lá. Mas infelizmente chegaram só até um parque aquático, porque tinha caído uma barreira, então voltaram, já estava tarde, e combinaram de ir no outro dia bem cedo, tentando passar por outra trilha. À noite, tomamos banho, jantamos, depois fomos brincar com nossa filha Natália (4). Mais tarde fomos dormir. Era 1 hora da manhã e a vizinha da mãe, a Elise, foi até a cooperativa para ver como estava a situação, porque ela que cuidava de lá, ela estava de carro e iluminou a frente da cooperativa. Já estávamos sem energia elétrica, o rio estava abraçando a cooperativa, então chamei o Flávio, acendemos velas e fomos olhar atrás de casa. Fizemos um furo no muro para esgotar a água da chuva que estava muito forte, tiramos a cachorrinha Belinha, da Natália, da lavação e colocamos na nossa facção que ficava dentro da nossa garagem. Costurávamos malha. E soltamos o outro cão, o Sude, um pastor alemão que estava no canil, numa caisnha que a água poderia levar e o deixamos dentro do nosso cercado. No outro dia, Flávio levantou bem cedo, fez café e ficou esperando

Casa de Flávio e Joziane, e ao lado a CCAB (Cooperativa das Costureiras do Alto Baú), antes da tragédia.

Casa e cooperativa, após a tragédia.

153


abriu a janela, eu subi e vi o compressor da facção que tínhamos nos fundos da casa boiando, o nosso carro vindo de arrasto. A casinha da Natália era perto da lavação e com o impacto ela voou e atravessou todo o jardim e arrancou um vão de alumínio da cerca, deixando um buraco. Na hora o tio Ademir estava do outro lado do muro, muito nervoso porque viu que estávamos dentro de casa ainda. Ele gritava querendo dizer alguma coisa e a voz não saía, fazia sinal para que eu olhasse para trás de casa, sinalizava que eu saísse dali correndo com a Natália. Eu ia jogá-la para ele por cima de um muro de mais ou menos 1,60 m de altura. Só pensava em tirá-la dali, o Flávio e eu depois daríamos um jeito. Na hora em que a ergui, meu tio se afastou, não ficou para pegá-la, saiu correndo para frente e mostro-me para mim aquele muro aberto, onde a casinha havia batido, que estava no meu lado e eu não via. Quando atravessamos pelo buraco do muro, veio a segunda barreira, era água e muita lama, saímos todos correndo e fomos para casa do vizinho, o José Day que nos chamou para lá. Ficamos uns minutinhos lá, e olho para estrada e vejo o pai (Mário Bollmann) e a mãe (Veronita Bollmann) e minha irmã Janaína descendo, para irem lá em casa. Eles não tinham nos visto na casa do José Day porque estavam nervosos, assustados, só pensavam nos tirar de dentro de casa. Saí correndo para encontrá-los e trazê-los de volta. Vi cair três barreiras, e a última lembrança que tenho quando saímos da casa do Day e fomos para casa do pai, é da água entrando pela janela da cozinha e saindo pela janela do meio, por onde nós pulamos. Depois toda a vizinhança foi para a casa do meu pai, só que ali tínhamos medo de que a parte do morro que ficou pudesse descer de uma hora para outra. Se tal acontecesse iria atingir todas as casas da vizinhança. Fomos então todos para a casa da dona Judite Hentchen, só que ali estava ficando apertado. Fomos para o rancho das vacas e passamos o domingo todo lá. Meu pai foi em casa e buscou o carro, várias pessoas fizeram isso, e os colocavam no pasto, ao lado

Carro da família. o Luís Antônio. Deitou-se em outro quarto enquanto ele não vinha e levantei meio sonolenta para ver se ele já havia saído, sem noção de hora, chequei no quarto e disse: - Tu não vai? Ele disse: - O Luís Antônio ainda não chegou. Fui até o banheiro, e me chamou atenção na frente de casa um bueiro transbordando fortemente. Então eu olhei para a porta de vidro da sala, olhei de novo o bueiro, e quando olho para trás da cooperativa (CCAB Cooperativa das costureiras do Alto Baú), os pinos e eucalipto da plantação do meu pai desciam, todos em pé, só gritei com Flávio, ele não sabia se eu estava dentro ou fora da casa, ele correu em direção à cozinha e quando chegou, a pia, o armário de cima vieram abaixo, ele então voltou correndo pelo corredor, eu já estava em cima da cama de pé com Natália no colo, na hora ela estava dormindo, eu só a peguei por baixo do braço e joguei-a por cima do ombro, ela grudou na minha roupa e gritava tanto, tanto, e quando Flávio entrou no quarto, ele abriu a cortina eu olhei para o chão, a água no quarto já estava na altura do colchão e minha filha dizia: Mãe, meu ursinho? Porque na noite anterior estávamos brincando com ele. Na hora a água empurrou-o para debaixo da cama, e ela gritava: Meu ursinho! Meu ursinho! Ainda fala direto nesse ursinho. Flávio

Casa após tragédia.

154


do rancho. Durante o dia tentávamos atravessar um riozinho que era de nada em cima do pasto, mas que estava cm muita correnteza. Na outra margem havia um rapaz que não deixou cortar uma árvore para servir de ponte para 27 pessoas. Chegou a tirar o facão e a serra da mão de uma mulher que queria cortar a árvore. A gente estava em grande risco ali, caso o morro decesse, morreríamos. Depois o Fabiano Baiher e mais alguns que chegaram no outro lado, foram na serraria, pegaram um eucalipto com a empilhadeira e conseguiram colocá-lo como passagem sobre o rio, mas estava chovendo muito naquela hora, então voltamos para os carros. Havia uns oito carros, todas as famílias ficavam dentro deles. Amarraram um cabo por cima do eucalipto, o que facilitava o equilíbrio na passagem. Enquanto o Flávio foi do rio até o carro nos chamar, a água já estava com mais meio metro acima e a correnteza era tão forte que não tinha como atravessar as crianças, os idosos e os feridos. Decidimos voltar para o carro e seja o que Deus quiser! O medo era tanto, porque era escuro, escuro, não víamos nada na frente dos olhos. Lá por volta das 9 horas da noite estávamos fazendo uma oração quando explodiu o gás (Gasoduto) pensamos: ‘É o fim do mundo ou um sinal de Deus de que tudo vai acabar bem!’ Na hora não sabíamos que era o gás, não tínhamos nem idéia. Tempo depois, alguém escutou no rádio que havia explodido o gás. Ficamos meio assim, porque próximo de lá temos parentes, irmão da mãe e amigos. Para nós a claridade do gás foi uma bênção, no escuro não víamos nada ao nosso redor, estávamos de costas para o morro que veio sobre minha casa e de frente para o morro atrás da casa da dona Judite, que descia para o lado da estrada. Como iríamos saber se era seguro ou não? Durante a noite dava uma barulheira, de repente a água do rio parava, dava para atravessar, mesmo que abrir e fechar uma torneira. Dali a pouco de novo aquele barulhão e a água voltava a correr. Acho que quando descia a barreira, represava o rio e quando estourava a água vinha com toda a força. Quando dava aquele barulhão, as pessoas saíam dos carros e corriam todas para onde era mais alto. Eu já estava tão desanimada que corria pra cá,

Quarto da casa após tragédia. corria pra lá, tudo que fazíamos não dava certo, por fim eu fiz uma oração, pedindo a Deus que se fosse para morrer, eu queria morrer antes e não ver minha filha agonizando! Na segunda-feira de manhã não chovia mais tão fortemente e aquele riozinho baixou. Assim que amanheceu o dia saímos dos carros, os homens foram na casa da dona Judite e pegaram uma madeira para podermos atravessar o rio que já estava bem rasinho. Quando chegamos na estrada, encontramos um homem que disse tudo que tinha acontecido, das casas que caíram, das mortes, ficamos meio assim, achávamos que estava mentindo. Como que uma casa igual a do seu Daniel iria cair? Inclusive queríamos atravessar domingo para ir para lá, para a casa do Calinho, que também caiu, será que não é a mão do Homem lá de cima? Na hora, quando dá tudo errado a gente não entende. Olha que tentamos atravessar e nada dava certo e lá morreram5. Será que essas 27 pessoas, lógico que iriam se dividir entre a casa do Gil, do seu Daniel, Aníbal, Calinho. O pai e seu Daniel são bem amigos, poderia ter morrido mais gente. Fomos então para casa do Gil, todos que estavam na casa do seu

155


Árvores imensas que desceram com as barreiras. Daniel estavam lá. Seu Daniel, dona Iolanda estavam atrás da casa do Gil, deitados nos colchões de um jeito que não dava para reconhecer, machucados e sujos de barro. Não quis ver a filhinha da Scheila, que estava em um quarto já morta. Coloquei-me no lugar da mãe e não tive coragem. Cumprimentamos Gil, conversamos um pouco, depois ele atravessou o campo da frente da casa e subiu o morro. Pouco depois ele voltou e disse: - Gente! Vamos sair daqui porque isso está uma bomba! A casa do seu Daniel transformou-se numa represa, a água estava entrando e se aquilo estourasse levaria tudo que houvesse pela frente, inclusive as pessoas. Os homens já haviam subido o morro e lá não havia água vertendo e achamos seguro. Subimos e ficamos na barraca que os rapazes haviam feito, alguém conseguiu pedir resgate, mas não sabíamos realmente se viriam. Para subir com os feridos, pegaram uma escada com um colchão em cima e os deitavam por cima, como se fosse um tipo de maca. Iam levando um por um até a metade do morro, deixavam ali, depois buscavam outro. Depois pegavam de novo e levavam até em cima na barraca. Levaram também comida e um fogareiro. Depois de um tempo, chegou o primeiro helicóptero. Então o pessoal foi descendo para o campo para ser resgatado. Cada helicóptero que vinha, trazia um bombeiro que ficava com a gente. De repente começou a estalaceira, e caiu mais uma barreira, desta feita dentro da represa onde ficava a casa do seu Daniel. Ao invés de um bombeiro pegar algum ferido que já estava ali embaixo para ser resgatado e levar para cima, não pegou ninguém e saiu correndo para cima do morro. Os próprios rapazes, moradores dali é que carregaram de volta os feridos e crianças. O Luís Antônio gritava tanto de dores, estava muito machucado por dentro, na hora só o pegaram e jogaram nas costas para subir o morro. Só que esse bombeiro que subiu ligeiro, foi tentar pedir ajuda porque lá acho que pegava área de rádio, então avisou que ali era local de prioridade, que a situação era crítica. Depois de passar o medo e susto com a barreira, viu realmente que era área de risco.

Depois disso então começaram a chegar os helicópteros maiores, eu e Natália saímos com mais quinze pessoas. Meus pais, Janaína e Flávio, saíram em outro. Estava com muita dor nos meus braços porque Natália não ficava no colo de mais ninguém e também não ficava no chão. Na hora de entrar no helicóptero, um bombeiro veio pegar a Natália do meu colo e eu falei: - Sozinha ela não vai! Ou ela ia comigo ou não! Não sei se fiz certo ou errado, ela não ia nem com o pai, imagina com outras pessoas. Uma amiga minha estava com a filha de 3 anos no colo, o desespero foi tanto que ela chegou com a criança na porta do helicóptero que já estava cheio, pegou a filha e jogou no colo da irmã e deu as costas. Ficou desesperada porque naquele helicóptero estavam o pai, irmã e os sobrinhos. Aquilo me cortou o coração. O medo era muito grande, as pessoas queriam é sair dali o quanto antes, tinham medo que de repente descessem mais barreiras. Quando saímos a Natália foi em pé entre as minhas pernas, com as mãozinhas no ouvido, com medo do barulho. Fomos então para Blumenau, recebemos leite e agasalhos para passarmos a noite. Chegavam pessoas com carros particulares e levavam os desabrigados para a Igreja Matriz e nós ficamos lá, não veio mai ninguém conhecido, pensei que iríamos passar a noite por ali. Mais tarde fomos de ônibus para a matriz de Blumenau e lá encontramos o Flávio, os meus pais e Janaína que já estavam dentro do ônibus para vir para Gaspar. Nós optamos também em ir para Gaspar porque o Flávio tem parentes.Chegando lá ligou para a cunhada avisando tudo que tinha acontecido, porque eles se preocupavam com a outra parte da família que mora no Baú Central, achavam que nós estávamos em segurança, porque o que poderia acontecer para nós? Na verdade o pesadelo foi lá no Alto Baú e não no Baú Central. Fomos para o abrigo na igreja do bairro Santa Terezinha, depois de 15 minutos chega meu cunhado, o Jair, casado com a Ida Maria, para nos buscar. Quando vi o Jair, nossa! Alegria de ver um rosto conhecido depois de tudo que passamos, foi muito bom! Estava já abrigando outra cunhada, a Mariza, que fora atingida

156


pela enchente em Gaspar. Apareceu outra cunhada, a Verônica e nos levou para sua casa também em Gaspar. Nesse meio tempo eu e Flávio queríamos ir lá ver nossa casa no Alto Baú, meus pais, Janaína e Natália, ficaram no Belchior na casa do meu tio Celso, e nós dois fomos até nossa casa. Chegando lá reencontramos Belinha e Sude, nossos cães. Lá onde tinha as máquinas de costura, era tudo fechado em volta com madeira e a Belinha estava lá dentro. Foi o primeiro a ser atingido, onde caíram árvores e a água levou 2 overlocks e a Belinha ficou! Agora me explica como? Depois de 21 dias? E ainda sem ter o que comer? Então pegamos o carro do pai, recém-comprado com apenas três dias de uso, agora cheio de roupas molhadas e muito barro dentro. Quando chegamos de volta ao Belchior com o carro do pai e os dois cachorros, meu pai chorou. Depois de uns dias deixamos Sude, o pastor alemão lá no Baú Central com minha cunhada, a Nelsi. No dia em que o deixamos lá meu pai chorou de novo, porque muito apegado a ele. Meu pai diz que Deus fez as coisas tão certinhas, porque a Belinha para Natália é tudo, ela levanta de manhã com aquele cabelão daquele jeito, primeira coisa: Belinha! Belinha! É muito engraçado. Nós passamos trabalho com ela, gritava muito durante a noite, tinha pesadelos, depois com a volta da Belinha ela se acalmou bastante, para ela o mais importante era a cachorra. Até hoje eu não consigo entender como essa cachorra ficou, porque a força da água era tanta que chegou a levar duas máquinas de costura. Acho que ela ficou dentro de uma churrasqueira que tem lá. Com o nível da água subindo ela conseguiu entrar na churrasqueira e lá ficou. Essa cachorra só vivia dentro de casa, sempre limpinha, nunca foi de pegar bichinhos na rua, agora não, agora ela não pode ver uma borboleta,

Local onde as famílias ficaram dentro dos carros. ou bicho de luz ela sai doida atrás, acho então que nesses 21 dias ela sobreviveu comendo insetos. E o Sude, como é maior e forte, pode ter ido com a água, mas ter se segurado em alguma coisa e voltado, porque o Flávio o viu em cima da casinha da Natália, no meio da água, quando saímos de lá. Ele tentou pegar o cão, mas a correnteza estava muito forte e acabou desistindo. Depois alugamos uma casa, mas era muito pequena, queríamos poder continuar nossa facção, todos da minha família costuravam lá no Alto Baú. Nessa casa estamos eu, meus pais e minha irmã Janaína. Meus pais e minha irmã estão morando juntos, não é vantagem pagar dois aluguéis. Estamos sempre juntos, aonde um vai o outro vai também, não tem mais essa de minha família e família do pai. Aqui tem espaço para a facção, espaço para Natália brincar, e ao lado uma creche para ela passar as tardes, está gostando muito. Graças a Deus estamos todos costurando novamente! Perguntei a ela se gostaria de voltar para o Alto Baú. Dá medo, medo, medo. Agora eu te digo que não, eu não posso dizer daqui para frente, está tudo muito recente ainda. Faz três semanas que meus pais estiveram lá, porque onde moravam está tudo bem, a casa não foi atingida, foram lá para limpar o jardim, a casa e demoraram para voltar. Começou a chover e só aquela chuva e a demora do pai e da mãe, voltou toda aquela aflição, aquela agonia. E se voltarmos para lá, não tem escola nem creche para a Natália. A nossa casa lá não tem mais jeito, a defesa civil já nos avisou, e também queriam voltar o leito do rio para o lugar dele, mas também não deixaram, agora está passando bem rente à cooperativa, não está mais no lugar dele, se mudarem como antes, pode descer o resto do morro. Meus pais não querem voltar porque sempre estávamos juntos e trabalhávamos juntos. Aquela casa por enquanto ficará só para passarmos fins de semana. Não queremos nos separar. E nessa casa temos contrato de um ano. Um ano sei que vamos ficar aqui, depois... Não sei! Queremos comprar uma casa no Belchior, cada um tem seu lugar e aqui não é nosso lugar! No dia 18 de março estive conversando com Josiane, e neste dia ela estava feliz, pois conseguira fechar negócio, comprando uma casa no Belchior!

Natália e Belinha. 157


Dia 20/03/2009 :: Depoimento de

Josimar Cunha

Bombeiro voluntário de Ilhota. (um dos 14 herois)

Ângelo Ramos, Carlos José Machado Dias, Patrício Zuccki, Josimar Cunha, Fabiano Ramos e Adriana Conink.

S

ou bombeiro há três anos, uma das melhores coisas que fiz em minha vida foi ter feito o curso de bombeiro voluntário. É uma coisa que dinheiro nenhum paga, é um obrigado, um abraço, um aperto de mão, são gestos que estão em nosso coração. Novembro começou a chover direto e veio a acontecer uma enchente, coisa que eu nunca vi na minha vida. Sexta-feira nós do quartel começamos a retirar pessoas da Vila Nova, ficamos até as 5 horas da manhã, eu não aguentava mais, dormi por 2 horas e já voltei à luta. Sábado retiramos o pessoal da Ilha Bela e à noite passamos no posto de saúde. No domingo tivemos uma reunião para mandar uma equipe para o Baú, porque lá a coisa estava mais feia. Foram 14 bombeiros e saímos de barco até o Baú Central, de lá pegamos carona de trator até a Igreja do Braço do Baú, a busca começou, fizemos duas equipes para ver se tinha alguém nas casas destruídas. A equipe em que eu estava subiu o morro para

ir para Madre Paulina, no caminho muitos obstáculos. Tinha uma cachoeira com uma correnteza muito forte, foi derrubado um eucalipto para a travessia. Ao chegarmos do outro lado fomos a uma casa que tinha duas senhoras desesperadas e quando falei que elas iam sair, ficaram felizes da vida. E com ajuda de um helicóptero da polícia civil, removeram-nas dali e seguimos mais para cima, chegando à outra casa em que estavam 15 pessoas. Já anoitecia e o helicóptero retirou só 3 deles. O restante ficou na casa até o dia seguinte e nós nos alojamos numa casa muito boa, que nos acolheu como se fôssemos da família, fomos muito bem tratados. Uma coisa que eu nunca tinha visto na minha vida, parecia filme, os corpos chegavam num trator e faziam caixões de madeira e já os enterravam. Coisa que eu antes só via em filme e nós passamos de verdade. Passei duas semanas de muito trabalho e na última semana eu fiquei no apoio da enfermagem e domingo um helicóptero me trouxe de volta para casa.

158


Dia 15/01/2009 :: Depoimento de

Juliano Baiher

Morador do Alto Baú

Na noite de 23 de novembro, domingo, eu e alguns amigos estávamos na casa de Gilberto Schimitt, mais conhecido por Gil. De repente ouvimos um estouro, a terra tremeu, parece que passou uma onda por baixo dela. Começou a cair barrancos, houve mais um barulho... Em seguida outro... A casa do sr. Daniel (vizinho do Gil) havia caído, veio tudo abaixo. Pensamos que era o fim do mundo, era o clarão do gás. Então pelo cheiro, tínhamos certeza que era o gasoduto que tinha explodido. Débora, nora do sr. Daniel, veio correndo, pedindo socorro, dizia que Paulinho (Luís Paulo Hostim), um neto, também estava trancado, quase morto e pedindo socorro. Pensamos que estavam todos mortos quando vimos aquilo tudo destruído, achamos que não adiantava mais ir”. Eu, Fabiano e mais alguns amigos decidimos ir para lá. A primeira pessoa que vi foi meu amigo Paulinho, estava preso entre lajes, quase morto... Gelado... Levantei a cabeça dele e ela caiu outra vez, aí então ele morreu ali mesmo. Fabiano me chamou e disse: _ Vamos ajudar os outros porque Paulinho não tem mais jeito! Fomos tirar o Calinho (Carlos Hostim), pai do Paulinho, que estava também preso entre pedaços de laje, com um braço para fora. Estava consciente e dizia: _ Me ajudem a sair daqui! Começamos a tirar os pedaços de laje ao redor, pedi para ele segurar em meu pescoço, para que pudesse puxar. Ele começou a gritar de dor na perna. Eu e Fabiano deitamos e sobre nossas pernas fomos puxando ele para não machucar as costas, evitando mais ferimentos, só assim ele viu que tinha quebrado o joelho... Fizemos de uma mesa uma maca improvisada e em cima dela colocamos Calinho. Levamos para casa de Alexandre, filho do sr. Daniel, que ficava em um lugar mais alto. No caminho virei o pé, achei que era só uma fratura leve, continuei na ‘correria’ e depois de duas semanas descobri que tinha quebrado. Em seguida fomos buscar Luís Antônio, filho de Calinho, ele já havia saído dos escombros, e estava com a costela fraturada. Colocamos ele em cima de uma tampa de caixa d’água e levamos até a casa de Alexandre, em seguida para a casa de Gil, o mesmo que havíamos feito com o Calinho. A dor do meu pé era tanta que parei, ficamos lá consolando eles, ninguém podia deixá-los dormir pois, podiam desmaiar. Estavam lá Kátia Hostim (esposa de Calinho), a qual já sabia que seus dois filhos tinham morrido (Paulinho (17), e Maria Tatiana, de 7 meses), a Débora e outros. Isabel (filha do sr.Daniel) que estava trancada também e foi ajudada pelo primo, o Gustavo. Scheila, irmã de Isabel, que conseguiu sair com vida, infelizmente sua filhinha Joana (7 meses) morreu. Meu irmão e amigos continuaram a procurar, faltava ainda o sr. Daniel e dona Iolanda, que ainda estavam presos. Estes foram os mais difíceis de retirar. Conseguiram tirar o sr. Daniel mas demoraram muito, muito. Voltaram para buscar dona Iolanda, ela estava presa com a perna dobrada, no meio de escombros, ferro, concreto... Meu irmão falou que não tinham mais esperança de retirá-la de lá, então ela começou a rezar, rezar... E do nada, ela saiu praticamente sozinha, posso dizer que foi um milagre! Veio um pedaço do joelho, e quando ela colocou o pé no chão, estava todo cortado. Em seguida a levaram para casa de Alexandre, e quando eles estavam chegando com dona Iolanda na casa, veio outra avalanche... Se nós tivéssemos ficado ali... Foi por segundos... Lá ficaram só as pessoas que já estavam mortas, Paulinho (17) e a irmã Maria Tatiana (7 meses), João Pedro (1 ano e 8 meses) os netos do sr. Daniel e sr. Nelson (61)”.

“Ficamos a noite toda cuidando dos feridos, limpando, fazendo curativo... Era aproximadamente meio-dia quando pousou o primeiro helicóptero da PM, só cabia uma pessoa, mas não queriam levar ninguém pois estavam apenas fazendo ronda para mapeamento, para depois virem os outros resgates. Daí pedimos para levar um dos feridos, responderam: _ Tragam o mais ferido! Trouxemos Carlos e o levaram. Depois outros (helicópteros) levaram os outros feridos”. “Segunda-feira à tarde, dia 24, Alexandre e seu irmão André (filhos do sr. Daniel) chegaram. Conseguiram passar por dentro da mata, durante o acontecimento eles estavam em viagem a São Paulo. Meu irmão deu a notícia do falecimento do filho João Pedro e dos outros parentes, pensem... Como ele ficou... Meu Deus... Muita tristeza!”. “Começaram a chegar os ‘super puma’, helicópteros maiores, levavam 44 pessoas por vez. Todo mundo foi para Blumenau. No mesmo dia fomos para Gaspar e ficamos num abrigo durante duas semanas, depois fomos todos transferidos para Ilhota com o ônibus da prefeitura, agora estamos aqui... Vamos ver o que acontece. Não quero mais voltar para o Baú, traz muitas lembranças pesadas... Foi o lugar onde perdi meus amigos...”

Juliano Baiher, andando com dificuldade dias após o acontecido. 159


Dia 20/01/2009 :: Depoimento de

Juliano Schwambach

Morador do Alto Baú. “Choveu muito nos dias 22 e 23 de novembro. Naquele domingo estávamos ilhados, não havia travessia. Estava normal, só a chuva que estava muito forte. Eram quatro horas da tarde quando comecei a ficar preocupado. Tinha muitos morros acima, a neném já estava assustada. As pedras rolavam lá na grota, pedras enormes, fazia muito barulho. De sábado para domingo já havia caído dois postes na minha rua, não passava pela minha cabeça que estava acontecendo uma coisa dessas, se não saíssemos pelo mato... Preocupado, só acalmava minha mulher Marinéia. Ela falava: _ será que não vai chegar água aqui na nossa casa? Respondi: _ está louca! Nunca vai chegar água aqui, o perigo é o morro ali. Não queria deixá-la preocupada. Ela deitou a menina e por volta de seis, seis e meia, a fez dormir. Daí falei: _ deixa ela dormir conosco hoje, ela dormiu o inverno todo com nós. Na hora que fui me deitar, minha mulher já estava deitada, deitei ao lado, ela disse: _ não vai me dar um beijo? Ela não dormia sem um beijo nela e na menina. Sempre antes de dormir ia assistir TV e quando ia dormir me esquecia e ela me cobrava: não vai dar um beijo? Fazia me levantar e ir lá no “bercinho” e dar um beijinho na menina. Queria tentar dormir para não ver o que ia acontecer, tinha muito barulho. Quando me deitei escutei que estalou, assim, igual o quebrar de uma árvore seca. Assim que escutei isso, foi numa pancada só. Pensei: não é que veio a barreira mesmo? Fomos jogados uns 30 metros para frente. Caímos, não sei como aconteceu isso. Nossa casa era de laje, sem cair nada em cima de nós, sem me machucar, só uns arranhões. Quando chegou lá em baixo consegui pegar a menina viva, muita assustada. O que me dói é isso, pois vi que minha esposa não conseguia se locomover, então fui tentar arrancá-la, da cintura para baixo não dava de ver, estava soterrada por lama e entulho, não consegui mexer com ela. Falava comigo ainda, dizia: _ me puxa, me puxa! Vamos tentar sair! Ela estava em estado de choque, eu falava: _ calma, calma! E ela parecia estar apavorada. Meu Deus! Eu pensei, pelo menos tenho que tentar salvar minha filha! Quando pensei nisso foi tarde, encheu de barro e a água não conseguiu mais passar. Formou uma represa e a hora que estourou veio um mar de água com muita, muita força. Quando levou tudo daquele jeito, consegui andar com a menina me equilibrando uns 20 metros, aí veio um entulho e caiu em cima de nós. Foi ali que perdi a menina. Não soube mais o que fazer, fiquei sem ação. Depois, consegui sair mais embaixo, no lado do barranco e fui na casa do tio da minha mulher, fui pedir socorro. Depois saímos de lá porque também estava descendo o barranco. Ficamos com medo e fomos para casa, um pouco mais para baixo, na casa da filha do Sr. Ferreti, a Eliane. Naquela rua estavam todos apavorados, a gente escutava cair lá, cair aqui. Fiquei ali com o pessoal a noite toda. Amanheceu, não tinha noção do estrago que deu no Baú, desci para ver se encontrava o corpo da Larissa. Depois subi, e à tarde fomos resgatados por um helicóptero, indo para Blumenau. Passaram quatro dias e meus cunhados retornaram lá. Depois de 5 a 6 dias também retornei. Fui lá onde estava meu carro, abri para pegar meus documentos, consegui tirar meu carro, mas deu perda total. Depois a força nacional foi lá e nos levou para Blumenau, de lá viemos para Gaspar e de Gaspar para Ilhota. Não fiquei em abrigo, fiquei em casa de parentes. Agora alugamos uma casa.

Depois que parou de chover, fui quase todos os dias para o Baú procurar os corpos da esposa Marinéia e de minha filha Larissa. Doze dias depois foi encontrado o corpo da esposa, a uns 800 metros de onde ficava a casa, não por bombeiros mas pelo primo da minha esposa, Chico Martendal, e pelo cunhado dele, o Beto (Roberto Pereira) que passaram lá e viram o corpo. Tinham certeza que era ela, porque naquela rua era só ela de vítima. Ligaram para mim e eu fui lá para reconhecer o corpo no IML de Blumenau, eu e meu cunhado, irmão dela (Ademir Martendal). Achei que ele foi muito forte, ele ainda me perguntou se eu era forte. Ela estava irreconhecível, na hora que vi a blusinha dela pensei: era ela! O enterro foi no Braço do Baú, porque eu sou de lá, e o acesso era mais fácil. Agora tem a menina, se a encontrasse era mais um peso que sairia. Quando vou lá não tenho forças, não me sinto bem, fico mal, mal. Quando estou por lá sempre encontro alguma coisa, roupinha da menina, encontrei o carrinho que tinha comprado fazia 20 dias, era uma cadeirinha de carro toda “rosinha”, fico encontrando coisas. Tudo que encontro deixo lá, não trago. O que trouxe foi uma trancinha que fiz com o cabelo de Marinéia, que soltou do couro cabeludo e já estava em decomposição. Fiz uma trança bem bonitinha, coloquei em um rosário, está em casa comigo, não sei se vou ficar, não sei o que vou fazer. Mas lá no Baú ainda existe bastante cabelo dela, perto de onde foi encontrado o corpo. Ela tinha um cabelão comprido, não acharam porque estava mais afastado do corpo. No começo não sabia o que fazer com aquilo, mas vou buscar e pôr no túmulo dela. Para mim não é fácil, até eu gosto de ir para lá sozinho, para desabafar um pouco, pois se houver duas pessoas eu fico trancado, então quando vou sozinho quero desabafar e começam a correr lágrimas... Estou morando com meu sogro até me ajeitar, é provisório. Vou seguir minha vida, não vou ficar dependente. Sempre vivi minha vida. Marinéia era a única filha mulher, tem mais 3 irmãos. Era a mais apegada, tinha 23 anos. Fui o primeiro namorado dela e nossa primeira filhinha completaria 1 aninho no dia 16 de dezembro e eu fiz aniversário dia 14, íamos comemorar juntos.... Juliano vivia no bairro Alto Baú com sua esposa Marinéia e sua filha Larissa. Atualmente reside com a família de sua falecida esposa em uma casa alugada no centro de Ilhota.

Marinéia com Larissa

160


Juliano no local onde foi encontrado o corpo de sua esposa Marinéia.

Meu relato no dia em que fomos para o Alto Baú com Juliano Scwambach resgatar os cabelos de sua esposa Marinéia.

Juliano recolhendo os cabelos de sua esposa Marinéia.

No dia trinta e um de janeiro, um sábado de calor intenso, convidei minha querida companheira de tantas jornadas por este Baú afora, porque queria fazer alguns registros. Resolvi passar antes na casa da família Martendal, como o caso da busca da Larissa não havia sido solucionado, pensei que de repente alguém gostaria de ir para lá conosco. Juliano, o pai de Larissa nos acompanhou, queria ir até o local onde há alguns dias haviam encontrado o corpo de sua esposa Marinéia, para resgatar o cabelo que por lá ficara. Ele nos contou que ela tinha muito cabelo, e bem comprido, e que ela tinha a mania de prendê- los e sempre pedia a ela para soltá-los, achava-a muito linda de cabelos soltos. Depois de um longo trecho por estrada meio precária ainda, chegamos. Mostrou o lugar onde estava o cabelo. Adriana lhe ofereceu luvas, colocou-as e fomos acompanhando. Lá, ele muito triste mostrou onde haviam encontrado o corpo, também nos falou que no dia do resgate a aliança caiu do dedo e um amigo enterrou por ali mesmo. E mais ao lado estava o cabelo todo, que caíra quando o corpo foi retirado. Ele pegou uma sacola plástica, e lentamente com muito cuidado foi recolhendo. Nesse exato momento eu e Adriana ficamos muito comovidas. Nunca pensávamos em ver uma cena tão triste.

161


Colocamos no portamalas do meu carro. Depois fomos até o local em que algumas semanas atrás teriam encontrado raízes de uma planta, achando ser o cabelo de sua filha Larissa, isso nunca me saiu da cabeça. Chegando lá no local, fiquei decepcionada. Por conta das fortes chuvas de verão, a paisagem lá se transformara. Os entulhos pedras, árvores, lá estavam, mas tudo estava diferente. Mostrei mesmo assim exatamente onde encontrara o suposto cabelo, vasculhamos lá um pouco,e nada. Juliano pretendia chamar os bombeiros para retornarem às buscas. Juliano então pediu para o levarmos até o local onde existia um dia sua casa, o local do deslizamento. Ficava a mais ou menos uns oitocentos metros de onde estávamos. Fomos, mas logo em frente tivemos que ir caminhando, não havia mais acesso. Juliano ia na frente caminhando triste e olhando tudo aquilo, o local onde passou muitos dias felizes com a família. Mostrou-nos a cadeirinha de cor rosa, que comprara há pouco tempo. Disse ele que a menina pouco usou, acho que apenas uma vez. Mostrou-nos o lugar onde perdeu Larissa dos braços. Mais na frente achou um tapete, todo feito de retalhos, bem bonito, disse também que Marinéia adorava esse tipo de coisa. Depois depara-se com uma blusinha vermelha de Marinéia, lavou-a e mostrou para nós dizendo que ela gostava muito, depois deixou por ali mesmo, mais adiante uma calça jeans e assim foi... Lembranças e mais lembranças tristes. Ele nos passava uma tristeza tão grande... Só que não chorava. Já havia me contado em seu depoimento que gostava de ir naquele local sozinho, só assim ele podia chorar. Ele mesmo nos disse que não sabe como ele tem tantas forças para ter resistido a isso tudo, só por Deus mesmo!

Juliano observa o local onde existia sua casa.

Momento em que Juliano acha uma blusinha da esposa Marinéia, mas deixa no local.

Juliano nos mostrando a cadeirinha de sua filha Larissa.

Juliano nos mostrando o local onde perdeu sua filha dos braços. 162


Dia 01/02/2009 :: Depoimento de

Júlio Bruns

Morador do Alto Baú. Atualmente está abrigado com a esposa e filho na casa dos sogros, no Belchior Alto.

Estava acontecendo várias coisas, parece que avisando para gente não ir para o Baú, porque foi o seguinte, dia vinte e um, na sexta-feira, eu não tinha dinheiro suficiente para tirar o carro da oficina, parecia um aviso, eu tirei o último dinheiro que tinha no banco, para poder tirar o carro, paguei, então fui à casa da minha sogra dormir. Minha esposa (Sandra Caglione) chega à noite do trabalho, lá por onze horas. Trabalha na mesma empresa que eu, em Blumenau. De manhã fui trabalhar de ônibus, aí quando voltei, esperei dar o horário da minha esposa sair do trabalho. Sábado ela saiu a uma hora da tarde para o Alto Baú e nosso filhinho (Caio Rafael 8 meses) ficou na casa dos meus sogros no Belchior Alto. Quando chegou num certo trecho o carro começou a pifar, estava acabando a gasolina. Foi por perto de um parque aquático, voltei com o carro pifando até o posto e lá colocamos cinco reais de gasolina, só o que tinha. Fomos pro Baú na reserva mesmo. Chegou num certo trecho tinha uma pequena barreira no caminho, passei com o fusca por cima da barreira. E quando conseguimos chegar lá no Baú, próximo de um rio tinha uma camionete parada, pondo correntes nos pneus para passar por cima de outra barreira que era maior. Ficou mais ou menos meia hora ali. Isso que foi o atraso para nós não conseguirmos voltar depois. Ali nesse rio a água cobriu o capô do carro quando tentamos voltar, então a camionete passou e abriu caminho, com isso eu fui também até uma ponte, deixamos o carro ali e passamos na ponte a pé (que esta desabou à noite). Bem próximo da casa da minha mãe, a água batia no tornozelo quando nós fomos na minha casa, e em questão de minutos, que pegamos as roupas para voltar, a água já batia acima dos joelhos, então minha mãe disse: Vocês não vão para lá, fiquem aqui comigo. Daí nós dissemos, não, nós vamos porque o meu filhinho está lá. Quando voltamos pela ponte onde estava o carro, quase fomos carregados pela água, que batia embaixo do motor. Pegamos o carro e viemos para o Belchior, quando chegamos ali no trecho perto daquele rio onde estava a caminhonete estava parada antes, novamente a água cobria a estrada. Tentamos atravessar... A água não estava muito alta. Mas quando nós entramos veio água sobre o capô, até no parabrisas, deixei o carro acelerado,

porque se morrer dentro da água... Já era. Vi que a água iria carregar tudo embora, engatei a ré ligeirinho e voltei. Então deixei meu carro na primeira casa, subindo o morro, era a casa do meu padrinho de crisma, o Malique (Amarildo Sperber) que pediu que ficássemos ali. O Malique dizia: - Fiquem aqui, amanhã vai estar tudo bem, é só uma enchente, amanhã vocês pegam o carro e vão lá pra casa do teu sogro! Eu falei: - Obrigado, mas nós vamos hoje mesmo! Então falei pra minha esposa: - Nós vamos assim mesmo! Deixamos as roupas que havíamos pegado lá em casa., deixamos os calçados que tínhamos nos pés, tudo dentro do carro. Quando chegamos naquele rio que o carro não passou, a água já estava no pescoço, e quando nós colocamos o pé na água para tentarmos passar, veio um tronco de árvore, eu e ela não atravessamos. Aquele senhor e senhora que moravam ali numa casa de madeira, eles me falaram: Não, não atravessem, subam o morro, porque vocês não vão conseguir passar! Estavam vindo muitas árvores. Eu e minha esposa querendo vir pro Belchior a qualquer custo, subimos uma picada que tinha para voltar à estrada. Fomos por cima do morro e conseguimos passar. Chegando lá na casa de nossas colegas, as irmãs Kátia e Carla, falaram para nós não irmos. Ficamos conversando um tempinho, e elas pediam para nós ficarmos ali, que davam roupa seca e que no dia seguinte iríamos embora. Falamos: Não, a gente vai por causa do nosso filho, ele deve estar com saudade! Viemos passando em cima de barreira, até tentamos atravessar um rio que era fundo e para poder atravessá-lo, achei uma corda amarrada em uma árvore, alguém devia ter deixado por ali, então eu amarrei debaixo do braço da minha esposa, amarrei a corda na árvore e ela se jogou na água. Quando a água jogou-a para a beirada, agarrei-a do outro lado, porque ela não sabia nadar. Primeiro eu me joguei e consegui segurar nas árvores e ela foi depois. Fiz isso para ela não ir de água abaixo. Esse local é ali perto onde é o postinho de saúde. Aquele era um córrego, uma valeta que virou um rio. Continuamos indo. Um pouco antes que a gente chegasse num local no morro da fumaça, veio de um pasto a água carregando toras de eucaliptos, dava uns quinhentos metros de onde a gente

Júlio e Sandra com o filho, Caio Rafael. 163


estava andando. No que a gente foi tentar atravessar isso ali, a gente se afundava na água e na lama até acima do joelho. O pessoal que estava na beirada olhando dizia para nós passarmos por cima do pasto e nós fomos. Mais para cima onde caiu uma barreira, havia árvores, muitos galhos, não tinha como passar, eu ia quebrando os galhos mais finos e ela vinha atrás de mim. Conseguimos passar pelas árvores e chegamos em outra barreira, ela afundou a perna dela, olhei e estava pálida, pois estava desde as nove da manhã sem comer, e eram quase três horas da tarde, então eu disse: - Sandra,vamos! Esse barro aqui está mole, daqui a pouco vem tudo abaixo! E tudo com eucalipto em cima. Conseguimos sair de lá. Todo mundo dizia que éramos loucos, andando na chuva. E ela passando mal, eu insistia para que ela prosseguisse. De repente ela levantava e quem passava mal era eu, cansaço, chuva e lama, todos sujos. Lá no Alto Baú ainda, encontramos uma senhora, a dona Deonilda,(que morreu soterrada). Há um precipício logo após a casa dela e tinha uma rua na frente, bem do lado da casa, e a rua estava rachada e ela estava de sombrinha olhando para baixo, porque a chuva era tão forte que até doía a cabeça. Ainda falei para minha esposa: - Vamos ligeiro porque daqui a pouco essa rua vai desabar! No que nós passamos, vem umas curvas assim, direita, esquerda, o vizinho de cima disse que nos viu passando e no que nós sumimos atrás da curva, a casa da dona Deonilda desabou com ela lá dentro. Deu-me um desespero pelo que o vizinho de cima falou, o irmão dela, que quando nós passamos logo caiu a casa. Outros disseram que estavam saindo de dentro de casa, pegaram sacola com remédios, estavam andando e ela sentou para descansar, aí veio a barreira e a levou. A casa dela foi umas das primeiras a cair. Viemos passando por cima de barreiras, tentamos atravessar um rio, mas era fundo e não conseguimos. Eu não sabia que ia cair tudo, desabar os morros e ficar sem estrada, sem nada. Só por causa da enchente. Falei para minha esposa, o rio vai cavar na cabeceira, não vai mais ter como a gente passar. Eu pensei assim: vamos para lá, lá

está meu menino na casa do sogro, a gente fica lá até tudo se acalmar. Quando chegamos lá, sete e meia da noite, quando estávamos quase chegando, meu sogro e minha cunhada diziam: - Olha lá, olha lá! O Júlio e a Sandra vindo! Porque ele achavam que nós havíamos ficado. Abraçamos toda a família e principalmente nosso bebê, que não aguentávamos de tanta saudade! Na casa dos meus sogros não tinha energia, fomos dormir exaustos. Mais tarde nos assustamos com um forte estrondo. Um barulho que parecia alguma coisa entrando em curto-circuito. Nós fomos até a rede elétrica, pensamos que ali tinha caído umas torres de alta tensão, que estava dando curto-circuito no chão. Por causa da chuva e eletricidade. A gente só via o clarão amarelão no céu logo acima do morro. Só no outro dia ficamos sabendo que foi o gasoduto que explodiu em Gaspar na sexta-feira e no sábado para domingo no Belchior. Pessoal na Itoupava (bairro de Blumenau) também viu, dava de ver a chama assim para cima. Eu chorava muito pela minha mãe, Doracy e meus irmãos que estavam lá no Alto Baú. Ficaram todos por lá só eu e minha esposa que viemos... Eu chorava tanto, meu Deus! Eu queria saber notícias. E no outro dia de manhã recebemos notícias de vizinhos que vieram falar que receberam por telefone, que estavam desabando vários morros do Alto Baú. Perguntei sobre sua casa. Se eu voltar a reconstruir a casa será só para finais de semana. Para morar não, porque não sei se vai ter acesso para meu trabalho, e dia de chuva, será impossível. A estrada que fizeram agora é barro mexido, barro vermelho, para atolar a moto é muito fácil. Perguntei sobre o carro. No que a água estava subindo, o Malique, lá, tentou tirá-lo da garagem e subir o morrinho, mas não conseguiu porque a água levou e bateu ele contra o muro, e entrou água no motor. No dia anterior à tragédia eu havia tirado o carro da oficina, fiz motor e agora... Tudo de novo! Quem sabe a hora que nos encontrarmos de novo já vou estar com ele aí!

Meu relato do dia em que conhecemos Júlio e Sandra. Esta foto, registrei no dia em que conhecemos Júlio e Sandra, sete de janeiro de 2009. Estavam voltando do pouco que sobrou de sua morada, foram resgatar algumas roupinhas do bebê, Caio. Deixaram sua moto até onde conseguirem passar, depois caminharam uns seis quilômetros, mas felizes, porque naquele dia não havia dificuldade alguma em relação ao dia da tragédia. Mas sentiam um aperto no peito em verem seu cantinho todo destruído, e a linda paisagem que por lá existia completamente arrasada. Mas a natureza com certeza fará seu trabalho, de uma região devastada renascerá o lugar encantador que um dia já foi. A história que o casal nos contou foi muito comovente, o que passaram para conseguir retornar para casa foi muito fora do comum. Pareceu serem personagens de um filme de ação, drama e terror! Nesse momento Adriana anota o telefone do casal para mantermos contato por conta do livro que pretendia editar. Posso contar com toda certeza e razão que esse casal sobreviveu por um milagre, o amor incondicional dos pais pelo filho pode ser batizado de Amor Heroi. Júlio e Sandra foram dois guerreiros e ao mesmo tempo, aos trancos e barrancos, aventureiros com um só objetivo: Terem o filho em seus braços!

Dia 7 de janeiro,o dia em que conhecemos Júlio e Sandra. 164


Dia 15/03/2009 :: Depoimento de

Julio César Schloegel

Morador do município de Ilhota. (um dos 14 herois)

T

udo começou no dia 22/11/08. Eu estava indo a Blumenau quando uma chuva muito forte começou a cair. O trânsito parou, e água próximo ao ginásio do SESI em Blumenau começou a alagar o asfalto. Retornei imediatamente para Ilhota. No dia 23/11/08 pela manhã já não tinha mais passagem do bairro Minas para o centro da cidade. Consegui chegar até o centro passando pelo mato. Chegando lá encontrei mais dois amigos, Patrício e Leandro. Fomos até o bairro Ilha Bela ajudar na retirada de móveis e pessoas. No dia 24, segundafeira pela manhã retornei pelo mato até o centro da cidade novamente. Chegando lá encontrei meus amigos novamente então fomos de caminhão até o CTG tio Duda buscar mantimentos doados pelo Ney, para os desabrigados. Lá pelas 11h00min da manhã, estávamos com o bombeiro Pedro Paulo quando ele recebeu em seu aparelho de celular uma ligação do Baú, era uma mulher pedindo socorro. Entramos em pânico, pois sabíamos que era quase impossível atravessar o rio Itajaí-Açu naquelas condições. Aquela ligação não saía das nossas cabeças, então começamos a traçar um plano para chegar até o Baú. Conseguimos um barco de alumínio emprestado e outro do próprio bombeiro voluntário. O pessoal de resgate teria que ser bem reduzido porque os barcos eram pequenos. Formamos uma equipe de quatorze voluntários, sendo cinco trilheiros e nove bombeiros voluntários. Atravessamos o rio embarcados na lancha da balsa, e ao chegarmos à outra margem embarcamos nos dois barcos menores. Conseguimos chegar de barco até o Baú Baixo. Abandonamos os barcos numa encosta da estrada e seguimos a pé. Depois de algum tempo de caminhada encontramos dois senhores retirando entulhos da estrada com dois tratores. Pedimos a eles se havia condições de nos levar até o Alto Baú. Eles aceitaram na hora, subimos nos tratores e seguimos viagem. Ao longo do caminho a paisagem ia se modificando, era como um filme de horror, as plantações inundadas por muita lama, as estradas destruídas, havia peixes mortos sobre as estradas. Naquele momento todo mundo ficou em silêncio. Chegamos em frente à igreja do Alto Baú. A cena que vimos era de desespero, pessoas sendo veladas no interior da igreja, o povo em estado de choque. Uma cena que não me sai da cabeça foi ver o padre local descendo as escadarias da igreja e ao olhar para mim seus olhos não tinham mais expressão... Um vazio. Ao ver aquela cena, fiquei sem reação. Foi quando resolvemos seguir em frente para retirar os outros moradores que estavam isolados pelas águas. Mais à frente encontramos algumas pessoas vindo com um corpo sobre uma escada, era uma moça que ficou soterrada da cintura para baixo durante a noite toda. Mais uma vez me senti inútil, chegamos tarde, pensei. Dividimo-nos em duas equipes, uma foi pela estrada de cima outra pela água. Fui pela água, encontramos quatro casas com as famílias ainda em seu interior. Eram crianças, casais, um senhor e uma senhora. Retiramos as crianças e os casais pelas águas. A senhora, levamos por último de maca, era difícil segurar a emoção porque aquela senhora foi rezando desde que colocamos o pé na água até a hora que saímos dela. Neste mesmo momento a outra equipe resgatou outras senhoras que estavam ilhadas por desbarrancamento na parte de cima da estrada, ou o que era a estrada. Caiu a noite e pedimos abrigo em uma casa nas imediações, havia várias famílias naquela casa. Durante a noite nos reunimos para planejar nossa ação do dia posterior. De repente um estrondo horrível, todo mundo ficou em silêncio, era mais uma barreira que havia caído. Lá pelas 05h00min da manhã vimos uma luz se movimentar na escuridão. Fizemos sinal de luz e ele veio até nós. Era um morador da cidade vizinha de Luiz Alves, ele nos relatou que havia passado por uma vila no Morro do Baú e não havia visto ninguém. Nós dividimos a equipe novamente, uma parte iria procurar por uma senhora desaparecida e a outra subiria o Morro do Baú em busca das pessoas daquela vila. Fui com

Julio César Schloegel

o pessoal que subiu o morro, foram mais ou menos três horas de subida, o terreno estava muito acidentado, as trilhas que conhecíamos haviam mudado de aspecto, tudo estava diferente. Quando conseguimos chegar à parte de cima do morro, encontramos dois senhores que nos relataram que o pessoal daquela vila estava bem. Descemos novamente, e ao chegar lá embaixo um pessoal acenava para nós. Foi quando olhamos para cima e vimos várias pessoas descendo a mata por uma área de risco, retornamos correndo. Ao nos encontrarmos com eles vimos que eram várias famílias vindas de Luiz Alves. Nós os guiamos até embaixo do morro em um local mais seguro. Uma das mulheres relatou que seu pai e seu irmão haviam ficado lá em cima. Retornei correndo com mais um morador que conhecia a região e chegando lá vimos que eles haviam desistido e retornaram para Luiz Alves. Descemos o morro novamente, exaustos. Chegando lá embaixo recebi a noticia de que haviam encontrado o corpo da senhora desaparecida, corremos para lá. Ao retirarmos o corpo dela, colocamos em uma maca e começamos descer o rio. O caminho era muito acidentado e todos nós estávamos exaustos. Foi quando avistamos o primeiro helicóptero, fizemos sinal e ele conseguiu pousar em uma ilha de areia. Colocamos o corpo da senhora na aeronave. E o comandante nos avisou que teríamos que retirar todas as pessoas daquele local imediatamente, porque eles receberam a notícia de que mais barreiras viriam abaixo. Retornamos correndo a aquela casa que tínhamos pernoitado. Reunimos todos os moradores naquela casa. Os helicópteros começaram a pousar e um a um fomos embarcando as pessoas nas aeronaves. Quando o último helicóptero foi carregado, o piloto nos avisou que não poderia retornar, porque tinham que abastecer em Navegantes. Mas prometeu que voltaria se não chovesse mais. A força da água tinha aumentado e estava difícil atravessar, ficamos ali sentados na varanda daquela casa. Foi quando em pensamento me despedi da minha família. Olhei para o morro e vi uma forte chuva vindo. Olhamos uns para os outros e ninguém falou nada. Depois de uns quinze minutos a chuva cessou. E nada do helicóptero vir, conversamos e resolvemos tentar sair dali a pé. Conseguimos passar as águas, e chegar à igreja. Mal chegamos lá e recebemos a ordem de ajudar a sepultar as pessoas encontradas. Aquelas cenas não me saem da cabeça. Ao final da tarde recebemos a notícia que outras equipes estariam chegando e que era para nossa equipe retornar com os barcos. Retornamos e quando chegamos ao centro de Ilhota parecia que tínhamos chegado de outro mundo. A população deste lado do rio nem sonhava com o que aconteceu no Baú.

165


Dia 03/03/2009 :: Depoimento de

Karla Bohr

Moradora do Alto Baú.

B

om dia, na verdade era café da manhã do dia 23 domingo, quando o rio transbordou novamente e o morro do lado de casa caiu por volta das 08h15min. Saímos correndo morro acima, atravessamos o matagal e fomos para casa azul em cima do morro, próxima da nossa. Quando chegamos, o local por onde passamos desmoronou. Escapamos com vida porque DEUS nos protegeu e nos guiou, saímos de casa a tempo. Passamos o dia e a noite lá, não conseguimos mais chegar nem perto de casa, e durante a noite explodiu a tubulação de gás quando tudo ficou ainda pior. Achávamos que iríamos todos morrer ali naquela noite, pois só ouvíamos sons de pedras, árvores quebrando, morros caindo, chuva forte, vento, clarão e cheiro do gás, uma cena de terror, mas graças a DEUS saímos todos com vida. Percebemos de manhã que durante a noite havia caído uma barreira atrás da casa onde estávamos em 17 pessoas, todos vizinhos, pois todos achavam que ali fosse seguro, mas quando vimos aquela barreira atrás de casa, decidimos sair dali e então ligamos mais uma vez para uma amiga de Blumenau, que desde domingo estava tentando conseguir ajuda para nos tirar de lá. Ela foi o único contato que conseguimos. Tentamos ligar para todos os números, desde Bombeiros até Polícia Rodoviária Federal, Defesa Civil, etc., só não ligamos para a força aérea porque não tínhamos o n° deles. Como no Baú não tem fone linha fixa, tínhamos celular com antena externa, e como não tinha energia elétrica desde sábado, nós desligávamos o celular para economizar bateria. Ligávamos a cada duas horas para a nossa amiga, para saber se ela conseguia ajuda. Ela só pedia calma que a ajuda viria quando amanhecesse o dia, mas parecia que ninguém acreditava no que estava acontecendo no Baú. Naquela manhã ligamos novamente para ela e dissemos que ali estava muito perigoso, que iríamos pelo mato até chegarmos à igreja e que dali em diante perderíamos o contato. Tentamos chegar lá, mas o caminho estava impedido e muito perigoso, conseguimos chegar à casa do Sr. José Cândido, onde ficamos até terça-feira à noite quando fomos resgatados. Não sei se você viu na TV um grupo de pessoas refugiadas em um rancho em cima de um morro, pedindo ajuda para retirar as crianças doentes que estavam ali conosco. Estávamos em torno de 60 pessoas esperando ajuda, nunca imaginei que ficaria tão feliz ao avistar um helicóptero. Para nós o helicóptero era o lugar mais seguro da terra, ou melhor, do ar.

Casa da família Bohr antes da tragédia. 1 QUEM SOU Meu nome é Karla Rosimeri Bohr, moro no Alto Baú desde 15/01/1977, data do meu nascimento. Meus avós maternos compraram as terras em 1950, mas já moravam no Baú desde crianças com os pais. Meu avô, pai e tio ajudaram a construir a Igreja Luterana Apóstolo Paulo e sempre participaram ativamente da comunidade, na diretoria, como cristãos e assim foi desde meus bisavós até hoje. Nós, da 4° geração continuamos o mesmo trabalho com amor a DEUS, ao Baú, à comunidade, etc. 2 CEMITÉRIO DA IGREJA LUTERANA No cemitério da Igreja Luterana Apóstolo Paulo estão enterrados meus avós paternos e maternos, os pais deles, irmãos, tios, sobrinhos, meu pai, amigos, meu primo irmão Marcos, filho do meu tio Aroldo, enfim várias gerações de várias famílias. É difícil ver os túmulos soterrados, mas estamos gratos a Deus por estarmos vivos, pois só quem estava lá naqueles dias sabe do medo que passamos. Nenhum lugar era seguro, só tínhamos Deus para nos proteger e ajudávamos uns aos outros no que podíamos.

Casa da família Bohr depois da tragédia.

3 TRABALHO NA IGREJA Eu sou vice-tesoureira e organista da Igreja, era professora de culto infantil, era uma dos líderes do grupo de jovens. 4 PROFISSÃO Trabalhava na C.C.A.B. Cooperativa de Costureiras de Alto Baú, meus tios trabalhavam na feira livre de Blumenau, onde vendiam nata, queijo, doces, conservas, frios, pão, compotas, etc. Minha mãe também trabalhava na C.C.A.B.

166


Lucas Gonçalves

7 REVOLTA Tiraram nossos cães de lá e segundo informações, um vizinho disse que nós não queríamos mais os cães e que havíamos abandonado tudo, o que é uma grande mentira. Um vizinho pegou nosso Fila Brasileiro sem permissão e agora quer doar para outra pessoa, porque o cão está lhe causando problemas, disse ele. Nossa cachorra com os filhotes, já deu para adoção. Na nossa casa eles tinham comida, água, havíamos dado vermífugo, além disso dormiam na minha cama. Cuidavam da casa para que nenhum estranho, bem ou mal intencionado entrasse lá. Estou procurando alguém para cuidar do Fila até nosso carro ficar pronto e podermos ir para o Baú com frequência para limpar tudo e fazer um canil. Acho um absurdo, pessoas como este senhor que tem meios de locomoção de todo tipo a seu dispor fazer isto, sabendo da nossa situação, estou muito decepcionada com as pessoas que quando estão em perigo é uma coisa e quando estão bem querem mais é prejudicar os que estão em dificuldade. Fiquei sabendo que havia pessoas do Baú que queriam matar nossos cães para entrar em nossa casa, para fazer o quê, não se sabe. As pessoas que transitavam ali em frente à nossa casa estavam irritadas porque os nossos cachorros não deixavam ninguém chegar perto da nossa casa. Agora que tiraram nossos cachorros de lá percebemos que nossos pertences foram revirados e demos por falta de algumas coisas pequenas, mas significativas para nós. Estou muito decepcionada com algumas pessoas do Baú por motivos como este, entre outros. Infelizmente tudo o que aconteceu não serviu para nada. O egoísmo, a individualidade, a arrogância de muitos continua, estes acreditam que o mundo é dos espertos e dos que têm dinheiro, Deus está alertando, este não é o caminho.

Deslizamentos de terra que atingiram a casa da família. 5 A VOLTA AO BAÚ DEPOIS DE UM MÊS Finalmente um feirante amigo de meu tio conseguiu dois jipes para nos levar até o Baú e buscar nosso carro, ver nossos animais, nossa casa. Haviam dito para nós que estavam entrando nas casas para roubar o que sobrou. Como não temos onde deixar nossas coisas, só trouxemos as de maior valor, eletrônicos que não caíram na lama, roupas, e documentos, fotos, etc. Gostaríamos de ter trazido nossos cães, mas não temos onde deixar. Aquele dia foi uma mistura de medo, coragem, felicidade, tristeza, era uma mistura de sentimentos que nos movia, nos dava forças, parecia que estávamos em outro mundo, um lugar desconhecido. Até agora ainda tenho a sensação de não estar no Baú, quando vou para lá é tudo tão diferente, parece sem vida, e o medo ainda nos comanda. 6 DIFICULDADE PARA IR PARA O BAÚ O nosso vizinho que estava acampado lá disse que iria dar comida para os cachorros, e automaticamente eles ficariam cuidando da casa. Como nós dependemos de outras pessoas para nos levar para o Baú, não podemos ir toda semana, só quando alguém tem boa vontade e tempo para nos levar. Nosso Monza ainda está lá cheio de barro, a Besta ainda está na oficina e minha moto consegui buscar faz três semanas e ainda está na oficina. No dia 22/11/09 quando eu estava indo para casa, passei muitas vezes por dentro da água até chegar perto da igreja quando a moto se desligou e não funcionou mais. Então deixei-a na casa da Sílvia Bollmann para buscá-la no domingo. Infelizmente a casa da Silvia caiu e minha moto ficou debaixo dela, e só agora há um mês, o pessoal que está trabalhando na recuperação das estradas tiraram ela de lá a pedido de meu primo, que foi lá tentar tirar, mas não conseguiu. Foi preciso máquinas para mover o entulho.

Casa da família Bohr depois da tragédia.

167


S

Dia 25/02/2009 :: Depoimento de

Leoni Reinert

ou natural de Gaspar, morador do Alto Baú desde 2002. Naquele final de semana que tudo aconteceu, eu estava em casa com minha esposa Edenilda Corrêa Reinert, meus filhos, Micheli e Ana Paula, Matheus, o neto Juan Felipe e meu genro Adriano. Estávamos já alguns dias sem luz, não estávamos preocupados com o rio e sim com os deslizamentos de terra, que já havia ocorrido em alguns lugares no sábado, e com isso saímos da nossa casa e fomos para a casa de um vizinho. Nesta casa ficamos em 17 pessoas. No domingo à noite deu um clarão no céu e depois caiu mais uma barreira próxima à casa em que estávamos. Ficamos com muito medo, então saímos todos daquela casa e fomos para outro vizinho, o José Cândido. Ficamos em um rancho que fica atrás da casa dele, em 60 pessoas. Como havia crianças doentes, escrevemos num lençol “Criança Doente”, torcendo para que alguém os socorresse, porque já tínhamos visto um helicóptero sobrevoando. Até então não sabíamos o que estava acontecendo em toda região do Baú, porque estávamos isolados. Mais tarde todos foram resgatados, minha família conseguiu ir antes e desceram em Ilhota. Eu com mais três pessoas fomos os últimos a sair porque descemos em um restaurante próximo ao Parque Botânico Morro do Baú para resgatar uma família que também estava isolada. Entre eles uma senhora grávida e um senhor idoso. Depois nos levaram para Navegantes, porque não dava mais para pousar em Ilhota, porque já estava escurecendo. Depois então fomos para Blumenau e lá os parentes já nos esperavam. Fui para casa de um filho, também em Blumenau, mas também estava interditada porque havia caído uma barreira atrás. Fomos então para casa da minha sogra e também estava interditada. Depois voltamos para Ilhota e fiquei no abrigo com minha família durante 80 dias. Depois então com auxílio do governo, aluguei uma casa aqui em Ilhota mesmo. Minha esposa já está trabalhando na prefeitura. Na parte da alimentação, não posso reclamar que nunca faltou, em matéria de roupas também não. Eu na verdade gostaria de voltar para o Alto Baú, para a minha casa, mas acho que não dá mais porque está interditada. Pelo menos por enquanto não dá para voltar. Minha esposa tem muito medo, meu netinho de apenas quatro anos ficou com trauma, ele sempre gostou de lá, agora não quer mais ir para lá, dizendo que a água não é mais azul, e sim suja. Nesses dias em que minha família estava em segurança no abrigo, voltei para o Alto Baú para ajudar as pessoas a retirar os carros, ajudar a abrir estradas, ajudar nas mudanças e assim por diante. Em tudo em que podia ajudar, eu ajudei, na verdade todos se ajudaram na nossa comunidade. Enfim... Foi uma perda grande! Perdi 13 amigos, meus vizinhos! Mas graças a Deus não perdi nenhuma pessoa da família.

Morador do Alto Baú.

Leoni Reinert ajudando os bombeiros voluntários e moradores do Alto Baú.

Casa da família Reinert no Alto Baú.

168


Patrício Zuccki

Dia 12/01/2009 :: Depoimento de

Leonida Harbes

Moradora do Alto Baú.

S

exta-feira estava aquela chuvarada, daí fui trabalhar, passei pelo mato na ida e à noite voltei para casa também pelo mato. Sábado, toda aquela chuvarada, a gente estava em casa em quatro pessoas, meu marido Roland, meu filhos Sidney de 19 anos e Sílvio de 11 anos. Daí o menino veio dormir comigo, e me dizia, mãe como chove, está relampejando! Estava cheio de água, água que Deus mandava, e ele dizia, ui mãe, isso está muito feio! Eu não conseguia dormir, e dizia para meu filho que ia dar enchente. Será? Disse ele. E ficava olhando na janela a noite toda, continuava a falar que ia dar enchente. Silvio falou que ia dormir junto com o pai e assim fez. E eu não conseguia dormir por causa daquele barulho da água que dava medo e pensei assim comigo: Meu Deus! O que estás fazendo conosco! Sábado de manhã levantei, já estávamos sem energia desde sexta-feira. Fiz fogo no forno, assei meu pão, assei minha cuca, tudo no forno a lenha porque não tinha luz. Fiz a comida toda, choveu sábado o dia todo. Então vieram os dois irmãos, Luis Antônio e Paulinho, vizinhos. Sentaram-se com meu filho Sidney, que já trabalha há oito meses com o pai deles, (Sr.Calinho Hostim), numa serraria alugada lá em Rodeio. Eles são muito amigos. Paulinho perguntou se eu ia fazer pastel. Respondi que primeiro iria fazer o recheio e que ele passasse à noite para comer pastel. Porque todo sábado eu fazia coisas diferentes para comer. Fiz até a massa do pastel e Paulinho não chegou. Lavei roupa, fiz todo o serviço da casa e nada de Paulinho aparecer. À noite no sábado chovia muito forte! Domingo de manhã... Chuva e chuva, chuva que Deus mandava! Meu marido e meus filhos saíram e fiquei sozinha em casa. Nisso cai a barreira atrás da casa do patrão de meu filho, a casa do Calinho Hostim (casa dos amigos do filho, Luis Antônio e Paulinho),antes do meio-dia de domingo( dia 23 de novembro), mas não chegou a derrubar a casa, mas encostou no muro atrás. A mulher do Calinho ficou desesperada, estavam ela, ele e a menina, não podiam sair mais de casa porque tinha muita água. Então, Calinho apavorado entrou no caminhão truque quando estiou, pegou a mulher e a filha Tatiana. O filho, o Luis Antônio estava lá no outro lado, onde tinha muita água, pedras, troncos, e gritava de lá por socorro. Eu via tudo sem saber o que fazer, não podia chegar até lá. Daí o pai com o caminhão conseguiu pegálo, passou numa velocidade... Eu estava na beira da estrada, ele me viu, parou, eu perguntei aonde iam, ele me respondeu,vou lá em cima no meu sogro (Sr.Daniel Manoel da Silva). Daí eles ficaram para lá. O filho mais velho estava no Belchior ( Paulinho). Escurecia e fui para ver onde estava meu marido e meus filhos. Eles estavam fazendo um negócio com cordas para que o pessoal pudesse passar na chácara onde eu trabalhava. Colocaram um cabo de aço, uma corda por cima, para as pessoas passarem por cima do cabo de aço, segurando na corda de cima. Não havia outro jeito para sair, tinha muita água e eram muitas pessoas, queriam ir para um lugar mais seguro, foram passando uma a uma e todos conseguiram passar. Já era noite, foram todos para a casa do Gilberto. Eu não queria sair da minha casa, meu filho Sidnei chegou e eu reclamando de tanta roupa já tinham molhado e ele dizia, mãe deixa de reclamar, temos que socorrer aquele e mais aquele, então fui junto. Saí só com aquela roupa do corpo e fomos para cima. Minha filha Silene também já estava lá... Era quinze para as nove da noite e deu aquele “estralo” tremeu todas as vidraças da casa de Gilberto. A terra começou a balançar, então eu pensei: Meu Deus! O que será isso! Então clareou tudo, parecia fogo, todo mundo começou a gritar, tinha tanta gente na casa, mas tanta gente, todo gritando... Então começamos a rezar. Olhávamos aquela claridade sem saber o que havia acontecido, de repente um estouro e veio uma

Local onde havia a casa da família de Leonida, no Baú Seco, completamente soterrada, matando seu pai,irmã, sobrinhos e cunhado. barreira e soterrou a casa do seu Daniel, aí veio a Débora, nora dele, com Daniela, uma neta pedindo socorro, dizendo que estavam todos soterrados Ficamos com medo, mas fomos para lá, meu genro, filho, marido, o Gil e amigos, até um senhor de idade, que nem podia, (Sr. Anibal Zabel), foi ajudare dizia: Nós somos obrigados a ir lá socorrer! O que tivesse na frente a gente pegava para tentar tirar eles de lá. Mas antes de eu ir para lá, vinha a Scheila e Kátia (filhas do Sr. Daniel ),entraram na casa de Gil,e logo atrás a Kica (cunhada do Sr. Daniel) com Joana, a bebê de Scheila, morta nos braços, toda suja de lama, ela pedia ajuda, porque estava muito nervosa, eu então a limpei e enrolei em duas toalhas brancas e a coloquei sobre uma mesa num quarto, tudo sem a mãe ver. Depois na casa do seu Daniel vi que Paulinho estava só com a mão de fora pedindo socorro, trancado em lajes, a gente queria ir lá retirálo, mas logo ele morreu. Chorei muito, muito... É...pensei, tanto que te esperei para comer aquele pastel que gostavas tanto Paulinho! Carregamos os corpos em cima de tábuas, levando-os para lugar mais alto, para a casa da Débora,(nora do sr.Daniel, casada com Alexandre que no dia estava viajando para São Paulo), a gente subia e descia várias vezes. Fiz tanta força que no outro dia meu braço estava todo roxo e dolorido. Sentia muita dor de tanto carregar pessoas em cima de tábuas, depois descia numa roça de cana, enquanto uns tiravam os corpos encontrados os outros procuravam e resgatavam mais pessoas. A última pessoa que tiramos foi Dona Iolanda, esposa do seu Daniel e na hora meu filho ainda tinha uma lanterna grande na qual entrou água e não funcionou mais. Eu tinha uma lanterna pequena e com uma mão segurava a lanterna e com a outra ajudava a levar as tábuas com os corpos. Estavam todos muito cansados, quase desistindo, então falei que éramos obrigados a ajudar. Vamos tirar o Paulinho, mesmo morto. Sabia onde estava o corpo, não vamos deixar o corpo lá! De repente veio mais uma barreira e não pudemos fazer mais nada. Meu Deus! Dizia para meu filho, parece o fim do mundo! Sidnei dizia não mãe, não é. Levamos Dona Iolanda para frente da casa de Débora. Dona Alzira,(esposa de Gilberto) não tinha mais roupa seca, não tinha mais coberta, então sabe o que eu fiz? Eu tinha tanta força ainda, tanta coragem, peguei minha lanterna pequena e fui lá em casa sozinha e Deus comigo!(tem uma distância de mais ou menos uns 200 metros), mesmo com aquela chuva, força da água que vinha pela estrada eu fui. Busquei duas cobertas e dois pacotes de vela. Meu filho chegou muito molhado, pegou a lanterna e também

169


onde meus sobrinhos Josemar e Sávio dormiam. Sueli e Aline, minha sobrinha, pegaram uma enxada para tentar tirar meus sobrinhos, nisso veio outra barreira e elas ficaram soterradas. O corpo de Sueli foi encontrado com a enxada a seu lado. E meu pai Vitório e Jaime, meu cunhado foram buscar uma motosserra para cortar os galhos das árvores e quando chegaram, veio outra barreira e soterrou Jaim. Meu pai, coitado... Caiu um pau na nuca dele e ele acabou morrendo ali mesmo! Jaime ficou ali soterrado, ficou preso da cintura para baixo, pedia socorro, e ninguém mais tinha coragem de ir até lá, podiam ser mais uma vítima. Ficou lá até domingo à noite, gritando a noite toda por socorro. No dia 23, segunda-feira de manhã quando o pessoal chegou lá, ele ainda estava com vida, gritando e pedindo socorro. Pegaram enxada, pá e começaram a cavar e o retiraram. O corpo da cintura para baixo estava todo aberto, muito machucado, chamaram o resgate, levaram para o hospital de Itajaí e segunda-feira à noite ele morreu. Terça-feira foi enterrado no Braço do Baú. O irmão de Jaime também morreu soterrado no Arraial do Ouro. Não fui a nenhum enterro, não pude ir, meu pai foi enterrado lá na terra dele, só fui ao enterro da Marinéia, porque faz pouco tempo, e lá nós tínhamos acesso.

Jaime e Sueli, com os filhos Sávio e Josemar na primeira eucaristia da sobrinha Kátia, há uns cinco anos.

foi buscar roupas enxutas em casa. Ficamos a noite todinha, ninguém dormia, era muito barulho, corria muita água, era gente andando pra cá e pra lá, cuidando das pessoas, limpando. Daí Débora, que era enfermeira do posto de saúde, disse para a gente ir lá no postinho pegar remédios. Foram em muitos porque tinham medo, quebraram a janela para poder entrar, pegaram o necessário para cuidar dos feridos. Cuidamos de todos, depois veio mais um morro abaixo e represou a água no lugar onde havia a casa do seu Daniel. Ficamos todos com muito medo e assustados, porque de uma hora para outra podia estourar e ir até na casa em que estávamos. Pegaram o que podiam e correram todos para o morro do eucalipto, era um desespero, uma correria só! Mais para cima do morro, algumas pessoas fizeram uma barraca para se abrigarem da chuva. Gritavam muito pedindo e implorando por socorro. Mais ou menos ao meio-dia de segundafeira veio o primeiro helicóptero. Levaram primeiro os feridos para o hospital em Blumenau, depois os idosos, em seguida as crianças, depois as mães das crianças, depois os pais e por último os mais jovens, todos para um abrigo em Blumenau. Fomos... E o Alto Baú ficou abandonado, deixamos nossas casas assim... Se Deus nos salvar, o restante não quero nem saber! Eu não me conformava, quando entrei no helicóptero, o Sr.Anibal Zabel disse assim: Leonida, tu foste forte, tu fosse uma guerreira, tu lutaste a noite toda, mas eu tenho que te contar uma tragédia, seja forte, o teu pai Vitório e a tua irmã Sueli foram soterrados lá no Baú Seco. Eu falei assim :- que nada Aníbal, eu não me conformo, não pode! Eu não acreditava. Fiquei no desespero, não pode ser verdade, e ele afirmava. E assim... Vim para o abrigo de Blumenau, sem saber notícias da minha família. Chegando fui procurar meu filho, como ele é inteligente ele logo me achou e falou: mãe, aonde está o pai? Ele é muito apegado a ele! Respondi: ele logo já vem. Depois de uma semana, viemos para Gaspar sem ter notícias da família. Veio uma senhora, acolheu-nos, eu só com essa roupa suja e molhada, ela me deu roupa, fui tomar banho, desde sábado estava com a mesma roupa. Ficamos por uma semana lá. Vieram nos avisar nós que tínhamos que ir para Ilhota, porque se não não teriam direito a nada. Já em Ilhota, no colégio, depois de muita pesquisa, descobriram que minha mãe, Adelaide Schimitt Bar, estava na casa de meu irmão, Osvaldo Bar, em Gaspar, isso depois de três semanas. Fomos até lá... Que tristeza... Chorando ela me abraçou e contou tudo direitinho para mim como foi. Falou que domingo carregou todas as coisas dela para casa da filha, e o meu pai ficou dentro da casa, minha mãe ficou na casa da irmã mais nova, a Clarisse. Deu o deslizamento de terra e soterrou o quarto da casa de minha irmã Sueli Terezinha,

Fiquei sabendo por intermédio do Cmte. Vinotti de Indaial, que ele e a equipe da corporação ficaram no Baú em uma missão de 60 dias, resgatando corpos. E nesse dia, para chegarem ao Baú Seco, caminharam durante seis horas, lá então eles acharam e retiraram os corpos da família de Leonida dos escombros da casa. No mesmo instante em que eram encontrados, imediatamente eram envolvidos em lonas e em seguida levados para o cemitério, postos diretamente em covas feitas pela família, sem caixões, lá então os familiares faziam as últimas homenagens.

Adelaide e Vitório, pais de Leonida na primeira eucaristia da neta Kátia.

170


Marco Gamborji

Leonida: E assim foi a tragédia toda, eu passei coisa, estou lutando, não tenho medo de voltar, porque na minha casa só entrou água por baixo. Mas meu marido, o Roland, não quer voltar porque tem medo que possa vir mais água por baixo da casa ou ela sair do lugar ou coisa assim. E Roland diz: Voltar para lá sem emprego, fazer o que? (trabalhava fazendo caixas para armazenar bananas, e Leonida em uma chácara, plantando, trabalhava três dias na semana). Já está fazendo quase dois meses que estamos fora de casa. Um mês atrás fui sozinha para o Alto Baú para ver como estava minha casa, peguei uma carona com um casal, chegando lá, vi que alguém entrou em minha casa, levaram um pouco de dinheiro, uns 50 reais em moedas, só isso. Tenho dois cachorros, o Lupe e o Bethoven, ficaram lá, eles estavam na frente da porta, parece que me esperavam, fizeram a maior bagunça dentro de casa, rasgaram lençol, sujaram tudo. Tirei água do poço, para tentar fazer faxina, só que estava tão cansada que acabei desistindo. Fiz só faxina por fora, fechei a casa, e não me conformava com as duas cobertas novas que levei naquela noite que passamos lá em cima do morro onde fizemos a barraca. Fui até lá para buscá-las e levei o maior susto, minhas cobertas estavam molhadas e espedaçadas. Perguntei ao casal o que pensam agora, o que vão fazer? Eu quero ir embora para minha casa, eu já não aguento mais, eu quero voltar, meu marido que dê um jeito, que arrume uma casa, eu quero sair daqui!

Marco Gamborji

Aline (de rosa) com outros parentes, na primeira eucaristia da prima Kátia.

Osmar Bar, irmão de Leonida, com as crianças Luiz Carlos Bar e Claiton Pelz,nos túmulos das vítimas da família.

Meu relato após o depoimento de Leonida Quinze dias após registrar seu depoimento, soube que ela e a família foram morar em Blumenau, em uma casa alugada. Leonida exigiu uma casa do marido, ele, por sua vez atendeu o desejo da esposa. No dia 15 de fevereiro que seguia, pude visitá-la no novo endereço. Ela estava feliz na casa alugada e não sabe até quando ficará por lá com a família, família persistente, que não deixa de visitar com freqüência o Alto Baú, a fim de deixar a casa limpa e em ordem. Alguns dias atrás, antes de eu escrever este texto, Leonida e os filhos Silvério e Sílvio, em um caso curioso, foram para lá. O sol já se punha, Leonida levava consigo uma lanterna grande que havia comprado para a ocasião, pois não havia energia elétrica. Enquanto a família se aproxima da descida do morro, próximo do local onde havia desabado a casa do senhor Daniel, as luzes dos postes ascenderam, como se fosse um sinal dos céus para Leonida, que não relutou e prontamente demonstrou sua gratidão: ‘Graças a Deus! A energia voltou!’ disse ela, muito feliz! Agora sabem que em breve voltarão definitivamente para o seu lar! É realmente a energia volta! Foram dias após dias de trabalho, e a luz volta a iluminar o Baú.

Homens trazendo a energia de volta ao Baú. 171


Dia 03/03/2009 :: Depoimento de

Fotos: Lucas Gonçalves

Dr. Lucas Gonçalves

Médico, morador de Itajaí

E

u e minha esposa Jocelene moramos em Itajaí, e trabalhamos no posto de saúde em Ilhota há dois anos e três meses. Sou médico e ela secretária da saúde (enfermeira). No domingo, dia 23 de novembro, fomos pegos de surpresa, porque durante o dia fazia plantão no Hospital Marieta Konder Bornhausen e começou por volta de 8 horas da manhã um tumulto porque as consequências das cheias estavam se agravando, então começamos acompanhar o drama de lá. Quando estava em Itajaí, recebi um telefonema da Schirley me avisando que em Ilhota as águas estavam subindo e que o pessoal estava indo para o posto de saúde a pedido do prefeito .Quando terminou o plantão fomos dar uma volta em Itajaí, e a impressão que tínhamos era de que tudo estava estabilizado, já não estava mais chovendo naquele domingo à tarde e até pensamos em ir para Ilhota no outro dia. E Jocelene como secretária da saúde, teria que estar aqui para tomar alguma atitude em ajudar no que fosse necessário. Foi quando surgiu a idéia de alguém da prefeitura arrumar um helicóptero, ou da defesa civil ou da polícia para nos trazer para Ilhota. Também entrei em contato com o Corpo de Bombeiros de Itajaí para ver se conseguia alguma coisa, mas o caos lá era muito grande. Me diziam: Lucas! Estamos socorrendo vítimas, estamos buscando vítimas! Se tiver alguma coisa, nós lhe avisamos! Falei para eles que Ilhota estava sem médico, as pessoas estavam sendo levadas para o posto de saúde e não tem ninguém que dê auxílio, e o que eu estou fazendo é por telefone, ’Tem uma pessoa com febre’, ’Olha se tem alergia, vê o que está acontecendo. Eles lá examinavam e passavam para mim mais ou menos e eu passava a conduta para eles, tudo por telefone, como é que está? Melhorou? Qualquer coisa deixa no posto! Chegou uma grávida aqui agora! O que fizemos?Deixa deitada, façam um acesso venoso, peguem uma veia, comecem a fazer uma hidratação, ministrem medicação para dor, que a gente vê o que vai acontecendo. e que nesse tempo iríamos fazer contato para alguém levar a gente para lá. De barco sabíamos que não teria condição, de carro muito menos, o único acesso era o helicóptero, então fiquei sabendo que iriam conseguir um. Pegamos carona na frente do hospital com um jipe alto, e depois até o pavilhão da marejada, lá não tinha água, então ficamos aguardando o helicóptero. Viemos com um helicóptero da polícia do estado do Paraná, viemos assustados e estarrecidos pela visão que tivemos quando levantamos em Itajaí e que olhamos tudo, só água, só os telhados das casas. Quando chegamos ao vale, depois da BR, na rodovia Jorge Lacerda, víamos aqueles morros onde já começava o vale do Baú, era só água, o rio Itajaí-Açu, não sabíamos mais onde era, não conseguíamos localizá-lo, estava tudo debaixo da água, a rodovia embaixo da água, até o piloto perguntou para nós: ‘Onde fica Ilhota?’ e nós: A posição é aqui, para ir para cidade. Mas não tinha mais rodovia para orientá-lo. Chegamos aqui à tarde, na segunda-feira, dia 24. Era um tumulto só, todos estavam no centro e desesperados. Quando descemos, já encontramos a gestante no posto de saúde e já a levamos com o mesmo helicóptero para Itajaí. E encontramos outra gestante que ajudamos aqui, uma paciente que tinha caído, pessoas com febre, com dores, mas eram coisas que nós conseguíamos controlar por aqui. A primeira preocupação nossa era aqueles pacientes que já conhecíamos em estado grave, e que não poderiam ficar aqui, pessoal da hemodiálise, já havíamos catalogado, já sabíamos onde estavam, os pacientes que estavam na localidade do Pocinho, fomos buscar de barco, os que moravam por aqui mandamos buscar de carro, já

Rio Itajaí-Açu durante as cheias de novembro. trouxemos para cá para no outro dia evacuarmos todos eles para o hospital, deu tudo certo, terça-feira de manhã essas pessoas foram resgatadas. E naquela noite de segunda atendemos várias pessoas, mas nada grave, febre, alguns cortes, porque na segunda não conseguiram resgatar ninguém, então atendemos o pessoal da cidade e bairros. O Lavino, coitado! Ficou lá na Pedra de Amolar (localidade mais isolada do município) com uma gestante, e ficava ligando para nós, e agora? E agora meu amigo, vai ter que fazer o parto! Ele deu sorte que os bombeiros conseguiram chegar a tempo de barco e a levaram para Navegantes. Estávamos em estado de guerra, e o que precisasse ser feito, teríamos que fazer, não sabíamos em que condições, mas a gente faz agora e conserta depois. Na terça-feira praticamente organizamos os pacientes em estado grave que teriam que ser removidos, fizemos todos os atendimentos possíveis de resolver aqui. À tarde foi aquela remoção em massa, pessoas vindas de todo o vale do Baú, pousavam dois, três helicópteros de uma vez, então todas as pessoas que desciam eram conduzidas para o posto de saúde. Fizemos duas barreiras de triagem, a primeira era: o paciente está machucado ou doente, trazer para o posto de saúde, e outros para segunda barreira de triagem para analisarmos se estava com alguma dor, fome, ou trocar de roupa. Esses iam direto para o abrigo. O mal conspira, mas o bem também conspira, e naquele dia o bem conspirou a nosso favor, porque eu era o único médico, tinha enfermeiras, técnico de enfermagem, voluntários, e tinham dois alunos da Univale (Universidade), que não sei como estavam ali, porque não tinha passagem, porque ninguém conseguia acesso naquele dia. Chegaram até aqui vindos de Florianópolis de carro na terça-feira à noite e nem conseguiam explicar para as pessoas como realizaram este feito. Apenas diziam que vieram se informando com todos que encontravam pela estrada e, sem nada conhecer, pois só viam água por todos os lados, foram passando por caminhos diversos até chegarem aqui. Auxiliaram muito nessa triagem, avaliando o estado de pacientes. Nesse diachegamos a pedir ajuda ao SAMU e Defesa Civil. Ficamos sabendo de um médico que estve no Braço do Baú, avaliou a situação, deu lista de medicamentos para a enfermeira, e foi embora pouco tempo depois. O que faria uma enfermeira com uma lista de medicamentos? Eles têm que ser específicos para cada paciente. Não se pode pôr na mão do enfermeiro e simplesmente ir embora! Não ajudou! Quando na quarta-feira de manhã já tinha acesso, o Dr. Manoel, psiquiatra, Dr. Alejandro, voluntário de Itapema , Dr.Mirgon, pediatra vieram para o posto de saúde e fomos para o Baú a fim de darmos assistência àquelas pessoas de lá. Descemos no Baú Central onde havia maior quantidade de gente desalojada. Nisso

172


Lucas Gonçalves

os Anjos da Guarda começaram a aparecer. O primeiro, Dr. Ricardo Foscarin, do hospital de Itajaí. Atendemos mais de 70 pessoas com nervosismo, cólicas, ferimentos, febre. Antes de sairmos dali, orientamos o enfermeiro Márcio, que ficou dando toda assistência necessária, depois então voltaríamos. Naquela mesma tarde fomos para o Braço do Baú, onde havia um alojamento no salão paroquial da igreja e encontramos com a técnica de enfermagem Cristina Fischer, muito cansada pelo atendimento direto e sem descanso, tendo visto muitos doentes, pessoas mortas, gente que vinha fazer reconhecimento de corpo e sepultamentos. Combinamos então de eu estar ali no outro dia cedo, quinta-feira e ela poderia descansar. Atendemos lá cerca de 100 pessoas. Enfermeiro Márcio, Dr. Ricardo, as técnicas de enfermagem Eliane e Titã estavam comigo. Só consegui sair daqui de Ilhota porque aqui uma equipe de Florianópolis assumiu o posto. Quatro médicos, enfermeiros e pessoal da vigilância sanitária. Normalmente o posto de saúde aqui não fica aberto à noite, mas naqueles dias de final de novembro até o mês de dezembro assim permaneceu, vinte e quatro horas por dia. Em dezembro assumiu conosco o pessoal da Cruz Vermelha de Curitiba até a normalização do curso de atendimento. O que vimos quando chegamos a primeira vez no Baú, não sei se é diferente de uma guerra! O pessoal da Palestina depois de bombardeado, não sei se o que vive. Aqui as pessoas estavam completamente desesperadas, andavam de um lado para o outro, mas havia grupos de voluntários que as orientavam para se alimentarem, dormir, lavar roupas, quando a maioria do povo estava totalmente perdido, não conseguiam conversar com ninguém, olhavam para o nada, desorientados. Atendemos pessoas que foram tiradas ainda com barro no ouvido, no nariz. Realmente difícil para eles entenderem o que estava acontecendo. Quatorze pessoas, bombeiros e civis, que não sei como conseguiram sair de barco aqui de Ilhota e ir até o Baú Central, haja disposição! Sabendo que teriam que passar por correnteza violenta, troncos de árvores, cercas, encontrando cadáveres dilacerados, e em diversas situações orientar e conduzir pessoas, As cenas dos mortos na igreja, caixões sendo feitos ali mesmo, isso mexeu com a cabeça de muita gente. O Padre Alexandre estava consternado, teve que amparar muitas famílias e nem conseguia dormir. Nos três primeiros dias que passei lá, notei que para a situação ficar fora de controle bastava qualquer coisinha, pois estavam todos com os nervos à flor da pele. Eu conversava com uma pessoa que dizia: ’Eu perdi meu filho, meu

Igreja Nossa Senhora da Glória, onde era o alojamento do Braço do Baú.

neto, meu pai, minha mãe, meu irmão! Era tentar confortar o que não tinha conforto. Não é só o perder, é você estar saindo de escombros sabendo que teu filho está lá, e não estar sabendo se você quer sair também, na verdade ela sai na esperança de poder voltar e salvar o filho. Mas buscar como? Aonde? Debaixo de lajes, de escombros. E sair, deixando o próprio filho ali? As pessoas lá fora sabem que ocorreu essa catástrofe na região do Baú, mas não imaginam como foi isso. Se fosse possível retratar isso para mostrar para que não foi só a catástrofe que aconteceu! É o reconstruir a vida dessas pessoas, que não é construir só a casinha num terreno! É reconstituir a vida emocional. A Débora Mensor, técnica de enfermagem é um grande exemplo, perdeu seu filhinho de 1 ano e 8 meses no Alto Baú e ainda consegue trabalhar, ouvir as pessoas reclamando da vida, e ainda diz para as pessoas:’Você perdeu isso? Eu perdi um filho! Muitas pessoas que não conseguiriam ter esse espírito, ser tão fortes como ela está sendo. Não podemos esquecer a coragem e vontade dessas pessoas que chegaram lá, de barco, de carro a pé, arriscando a própria vida, para tentar retirar flagelados de lá, esses são os verdadeiros heróis. Alguns até brigavam por ir para o Baú. Alguns bombeiros estavam trabalhando até dois dias sem parar e não queriam voltar para casa, esse é o lado bonito. Deve-se esquecer aquele lado feio dos caras que se aproveitaram da situação para saquear e roubar as casas. Teve uma equipe de bombeiros da Brigada do Rio Grande do Sul que ajudou a tirar uma família de Luiz Alves. Quando a família voltou e eles foram tentar tirar novamente, veio uma barreira e atingiu dois bombeiros, Pythan e Vieira, um com ferimentos leves e o outro com ferimentos bem mais graves. Foram socorridos pelo médico do SAMU, que atua com os bombeiros de São Paulo, em seguida levados para o hospital em Itajaí, com o diagnóstico de traumatismo craniano. Várias histórias nos deixaram sensibilizados, mas a que mais nos preocupava era da Giovanna, porque quando chegamos lá, todos queriam saber dela. Então fizemos contato com o hospital, e eu fiquei sabendo da parte ruim, e mais a parte que de passar toda informação para a família, e tinha que passar que perdeu o bebê, que teve que amputar o braço, mas ela está viva. A nossa visão foi essa, de horror! Mas graças a Deus conseguimos dar um pouco de conforto e atenção, embora saiba que não foi o suficiente, porque eles precisavam de muito mais, dei tudo o que podia, mas o tudo foi pouco! Estamos numa cidade pequena e não estávamos preparados para isso!

Dr.Lucas Gonçalves e voluntários na ida para o Braço do Baú.

173


Dia 11/03/2009 :: Depoimento de

Luiz Baldez Júnior

Morador de Presidente Prudente - SP. Relações Públicas do PROJETO ESPERANÇA. O que é o Projeto Esperança? O Projeto Esperança é uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) que há mais de 15 anos desenvolve projetos de melhoria na qualidade de vida e assistência para famílias que vivem em situação de risco nas cidades de Presidente Prudente e Itanhanhem - São Paulo, Londrina Paraná, e agora em Ilhota - Santa Catarina. “Acreditamos que todo ser humano é capaz de se desenvolver plenamente, desde que lhe deem recursos e condições favoráveis para tanto” Pr. Luiz Baldez – Presidente do Projeto Esperança. Nosso principal alvo é a FAMÍLIA, pois é a primeira e a principal instituição criada por DEUS, sendo de vital importância para o desenvolvimento do ser Humano, primeiro como Pessoa e depois como cidadão.

recebimento de doações), foi o meu primeiro dia de trabalho em Ilhota, e posso dizer com certeza, foi muito bom para mim, cansativo, pois o serviço era pesado e muito corrido, mas valeu a pena cada gota de suor derramada, pois me motivou a voltar para Presidente Prudente e continuar com muito mais fé no que estava fazendo, pois o povo estava realmente precisando. Fui hospedado na Corporação do Corpo de Bombeiros Voluntários de Ilhota, que tem as suas instalações em um pequeno espaço cedido pela Prefeitura, mas que para quem olha de fora, não imagina a dimensão do trabalho que eles desenvolvem ali e o quanto isso é importante para muita gente. Os Bombeiros Voluntários foram os primeiros a chegar nos locais das tragédias. No dia sete de dezembro meu desejo era de subir até o Baú para ver de perto o que havia acontecido, mas não havia permissão para idas devido ao alto risco de mais quedas de barreiras e de atolamentos em algum ponto do caminho. Permaneci, auxiliando na entrega de doações às famílias flageladas e na descarga das muitas carretas que chegavam das mais diversas partes do país. Por isso me orgulho de ser Brasileiro, pois a doação que veio para Santa Catarina de todas as partes do mundo foi a maior da história, merecendo até entrar para o famoso Guines Book, como a maior mobilização de ajuda Humanitária da História! Bem, já era noite do dia 07, fui para a corporação descansar... Descansar o quê? A correria era tão grande que eu tive que ficar na base, cuidando da central porque todos os bombeiros saíram para atender as muitas ocorrências daquela noite, foi uma grande experiência. Bom, agora tenho que ir... Já é dia 08, segunda-feira. Trabalhei até as 12hs, mas tinha que voltar para casa, então almocei e dona Marisa me colocou em contato com o Sr. Prefeito Ademar, que me recebeu muito bem e disse “QUE BOM QUE EXISTEM ENTIDADES E PESSOAS COMO VOCÊS PARA NOS AJUDAR NESTA HORA, E TODA AJUDA É MUITO BEM-VINDA”. Naquele instante já entregamos um documento ao prefeito, expondo a nossa idéia de estender nosso trabalho para a cidade de Ilhota, não apenas nesta hora de emergência, mas definitivamente, ajudando esta pequena Cidade que tem grande carência na área da assistência social. Os dados de hoje são alarmantes, mais de 1.500 pessoas desabrigadas, mais de 120 desaparecidas, dezenas de casas destruídas, entre outros dados não mais alarmantes. Por isso o trabalho do Projeto Esperança não pode ser apenas o emergencial, queremos um trabalho mais intenso, mais presente e mais constante. Como representante do Projeto Esperança em Ilhota e em contato com a nossa diretoria, decidimos implantar uma base de atendimento em Ilhota. Retornei a Presidente Prudente e continuei a campanha, visando enviar mais doações, pois verifiquei que a necessidade é real. Para garantir o sucesso da campanha, resolvemos espalhar diversos postos de coleta na nossa cidade. Panificadoras Formosa e Empório do Pão, Supermercados Luzitana, Nagai, Super Muffato e empresas como a Microlins, IBC Matarazzo e na sede do Projeto Esperança. Graças a estes e outros importantes postos de arrecadação

O que nos motivou a fazer uma campanha para ajudar Santa Catarina? A principal frente de trabalho do Projeto Esperança é a família, e todos os dias os dados sobre a tragédia de 23 de Novembro só aumentavam e o número de famílias desabrigadas e desaparecidas também, então resolvemos fazer a nossa parte, quando criamos a campanha “EU POSSO FAZER MAIS”, campanha específica para atender alguma região de Santa Catarina que mais precisasse. Escolhemos Ilhota, devido à quantidade de vítimas e os inúmeros deslizamentos de terra do Morro do Baú. Mas por que a campanha se chamou “Eu posso fazer mais” ? Bom, nós a iniciamos no dia 28 de Novembro, ou seja, fim de ano, quando muitas pessoas achavam que já tinham feito a sua parte em ajudar a quem precisa, ajudando as entidades locais, e que agora seria só se preparar para as suas tão sonhadas férias, por isso a campanha ganhou força com este nome, porque incentivava as pessoas para que fizessem pelo menos um pouco mais, agora pelos irmãos Catarinenses que estão precisando, e graças a Deus a campanha foi um grande sucesso. Minha primeira visita a Ilhota foi no dia 06 de Dezembro, nunca imaginei que iria um dia acompanhar um lugar em clima de guerra como o que se apresentava em Ilhota. Era uma grande mobilização de pessoas, doações, voluntários, enfim, tudo a mil por hora. Embora já houvesse mais de 10 dias do primeiro deslizamento, tudo ainda estava em clima tenso, qualquer tempo nebuloso já colocava todo mundo em situação de alerta, qualquer relâmpago já se ouvia: será?, será quê? ... Era muita tensão, todos ainda estavam muito apavorados com o que havia acontecido. Mas logo quando me apresentei como Voluntário do Projeto Esperança e que estava aqui para ajudar, fui muito bem recebido pelo Comandante Leão do Corpo de Bombeiros Voluntários de Ilhota, que estava muito atarefado, ainda preocupado com a situação de vítimas e acidentados que poderiam ser encontrados com vida no Baú, daí em seguida fui apresentado para a dona Marisa Pereira que é a secretária de Indústria e Comércio e que estava de prontidão para atender os voluntários e cadastrar as famílias que haviam sofrido com as enchentes ou com as quedas de barreiras. Logo em seguida dona Marisa me encaminhou para o Ginásio e me apresentou para o Toni, (voluntário responsável pelo

174


conseguimos alcançar nosso objetivo. Mas uma história me chamou atenção quando fui pedir uma autorização ao senhor Nativo, Gerente do Super Muffato de Presidente Prudente, para que criássemos um ponto de coleta na entrada do super Muffato e ele me disse que sim, porque Catarinense de uma cidade do interior e já que não podia estar lá para ajudar, aqui estaria, fazendo alguma coisa por eles. Dia vinte de dezembro saí de Presidente Prudente novamente para Ilhota, cheguei dia 21 para os abrigos no final de ano. Era domingo, a prefeitura havia organizado uma bonita festa na praça para o pessoal que estava em abrigos. Segunda-feira, dia 22 fui encaminhado para o senhor Raul, responsável pela coordenação dos eventos de final de ano nos abrigos. Trabalhamos com o propósito de oferecer ao menos uma ceia de Natal para as famílias desoladas pela catástrofe e que estavam

em abrigos. Já fazia um mês daquele sinistro e muitas famílias ainda estavam abaladas devido ao grande susto e às enormes perdas que sofreram, incuindo bens materiais, familiares e até a noção do espaço físico em que viviam. Dia vinte e três de dezembro fomos entregar alguns presentes numa área isolada, cerca de 16km de Ilhota, mas ainda pertencente ao município, onde havia quatro crianças que nada recebiam porque distantes da rota de entrega de todas as doações. No fim da tarde assumi a responsabilidade de coordenar e encaminhar pessoas que vinham de outras cidades para entregar brinquedos nos abrigos, e graças a Deus pude ver uma coisa que jamais imaginara, num só abrigo quatro PapaisNoel de diferentes cidades que fizeram arrecadações nos seus municípios e vieram entregar. Nunca na vida estas crianças ganharam tantos brinquedos quanto naquele Natal.

Luiz Baldez Júnior, Relações Públicas do PROJETO ESPERANÇA.

175


Natal: Bom, já é dia 24 e temos uma responsabilidade para com as pessoas do abrigo da Ilhotinha, que estão à espera de algo para esta noite. Este ano, acredito que, como representante do Projeto Esperança em Ilhota – SC, tive a maior de todas as minhas experiências sobre o que é o Natal, e qual a principal mensagem a ser passada. Escolhi o abrigo de Ilhotinha, um dos quatro abrigos principais, para encaminhar a doação de 40 Panetones e Brinquedos que arrecadamos em Presidente Prudente. Lá havia em maioria pessoas do Alto Baú, as que mais sofreram perdas, ainda isoladas, com resgate muito precário. Uma equipe composta por Rejane (Bombeira voluntária de Ilhota), Moacir (Balneário Camboriú), Jairo (RGS), e eu representando o Projeto Esperança, montou toda a decoração de Natal. Enquanto isto na cozinha as mães desabrigadas preparavam uma ceia maravilhosa. Antes da ceia de Natal, juntamente com os Bombeiros Voluntários de Ilhota, fomos a todos os abrigos para levar uma mensagem de paz e conforto a quem lá estava. No abrigo do Baú Baixo fui convidado pelo Chefe Socorrista Carlos para ser o mensageiro, representando todos os voluntários que estiveram e que também ainda estavam trabalhando por eles e também em nome dos Bombeiros Voluntários de Ilhota. Ao término da fala, observei a comoção das pessoas. Abraçou-me fortemente uma senhora de quem não recordo o nome, mas não esquecerei o quanto foi bom sentir seu abraço. Olhava para os lados e via pessoas comovidas. Fiquei feliz pelo acontecido.

Noite de 25 de Dezembro de 2008 Homenagem aos BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DE ILHOTA Foi uma noite de festa para todos da corporação, os Bombeiros Voluntários de Ilhota foi a primeira equipe a subir para o Baú para prestar atendimentos às pessoas desabrigadas e ou acidentadas devido às chuvas. Nos relatos que ouvi, sei que resgataram corpos e pessoas, correndo um grande risco de vida, pois as condições eram as mais adversas, pois ainda descia muita água e barro dos morros que haviam despencado e tudo tinha que ser feito com muito esforço, lembrando que a lama vinha até a cintura na maioria dos pontos. Mas os bombeiros voluntários de Ilhota, embora não tenham todos os equipamentos de que precisam fazem o melhor que podem, pois sabem que o bem maior a ser zelado é a VIDA. Na primeira vez que vim para Ilhota, fiquei hospedado na corporação, onde as instalações são provisórias, num espaço que foi cedido pela prefeitura. Não se consegue descrever o tamanho do empenho e dedicação destes verdadeiros guerreiros que muitas vezes esquecem de si mesmos para cuidar dos necessitados. Para homenageá-los ou ao menos tentar agradecê-los pelos esforços, decidimos fazer um jantar de confraternização e agradecimentos pelos serviços prestados desde a sua fundação que foi no dia 11/01 de 2004. Salvaram a vida de muita gente que na sua maioria não lhes dá o devido reconhecimento, pois eles passam dificuldades até mesmo para manter as viaturas com que prestam os atendimentos. Foi apenas um jantar, mas para mim foi muito importante, senti-me realizado por termos conseguido mais esta vitória. Claro que não posso esquecer da minha equipe, que foi mais uma vez muito importante na realização deste jantar, a Nice, o Jairo, o Moacir, o Francisco, e até o Maravilha, que infelizmente não pôde participar do jantar, tendo que se retirar antes. As condições desta equipe são limitadas, mas o coração... Na hora do discurso o presidente do corpo de Bombeiros Voluntários de Ilhota, Sr. Pedro Paulo fez um breve pronunciamento de agradecimento e falou que desde a inauguração do quartel eles nunca tinham tido uma confraternização como aquela. Logo em seguida o Comandante Expresso presenteou a nossa equipe com uma camiseta dos Bombeiros Voluntários de Ilhota, para mim foi como se tivesse ganhado uma medalha, uma condecoração.

25 de Dezembro - dia de Natal. Nos tínhamos uma grande preocupação, que era a de que todas as crianças da cidade de Ilhota tinham ganhado presentes, mas que até o dia 25 muitas crianças da região mais atingida não tinham ganhado nada ainda, e principalmente aquelas crianças que permaneciam isoladas no BAÚ SECO, para onde o único acesso era de helicóptero. E agora; o que fazer? Bem, Rejane, a Nice, o Moacir e o Tony (Nossa Papai Noel), um voluntário que não mediu esforços, mas desde o começo da enchente ajudou a todos. Colocamos brinquedos e doces no carro da Rejane e, pelas ruas dos bairros mais isolados, fomos entregar a quem precisava. Grande parte dessa “entrega” teve que ser abortada devido uma chuva que caía. Voltamos para o abrigo do Braço do Baú para almoçar, mas a minha preocupação continuava: “Como faremos para entregar presentes e doces para as crianças que estão isoladas no Baú Seco?”. Terminamos de almoçar e um comandante da Polícia Ambiental de Santa Catarina nos pergunta, vocês ainda têm brinquedos aí? Respondemos, sim, por quê? Por que se vocês tiverem uns 40 brinquedos eu peço para o helicóptero levar o Papai Noel no Baú Seco para entregar os brinquedos. Imediatamente corremos para contar os brinquedos... Meu Deus! Mais uma vez ele mostra que, embora não mereçamos, ele cuida dos seus filhos! Nosso papai Noel Tony e a Bombeira voluntária Rejane voaram para entregar os presentes e a lágrima correu, de satisfação e alegria porque aquele desejo do meu coração se realizou, este foi o meu presente de Natal.

Reveillon: Nossa, o ano já acabou... Parece até que ele voou, mas é hora de refletir no que fizemos durante o ano e pensar nos projetos do próximo ano que vem chegando por aí... Mas como estamos aqui em Ilhota, empenhados diariamente na ajuda às pessoas que tanto sofreram com as chuvas de novembro, reunimos a nossa equipe e decidimos: VAMOS OFERECER UMA CEIA DE FIM DE ANO PARA PESSOAS QUE ESTÃO NO ABRIGO DO BRAÇO DO BAÚ. Maravilha, mas como fazer? O quê servir? Como conseguir o

176


que precisamos? Desde o início Deus tem provido tudo para que possamos continuar aqui, Ele também tem nos dado condições necessárias para realizações difíceis. Enviou-nos o Irmão Ronaldo de São Paulo que chegou no dia 29 de dezembro e veio provido de suprimentos e até carro para chegarmos ao Braço do Baú (local da ceia), e também com recursos para comprar o que precisássemos. Naquele momento me lembrei que “o Senhor Jesus é poderoso para fazer infinitamente mais, além de tudo aquilo que pedimos ou pensamos segundo o seu poder que opera em cada um de nós”. Fomos ao supermercado na terça-feira dia 30, fizemos a compra, inclusive a minha coca-cola não faltou. (risos). Subimos para o abrigo logo depois do almoço e demos alguns dias de folga para aquelas mulheres, que além de terem perdido tudo, estavam ali trabalhando incansavelmente para oferecer almoço, café da tarde e janta para quem mora, quem trabalha ou ainda aqueles que passavam pelo abrigo. Dia 31 começamos cedo, tínhamos um cardápio muito grande para prepararmos, mas graças a Deus deu tudo certo, cada um da nossa equipe que era composta de 4 guerreiros assumiu uma responsabilidade, a Nice (SP capital) assumiu a cozinha e deu um show de talento e disposição, o Ronaldo (SP capital) e o Jairo (RS) cuidaram da organização de todo o estoque de alimentos do abrigo e também dos alimentos para a nossa ceia e eu, representante do Projeto Esperança de Presidente Prudente, tentando fazer um pouco mais por quem tanto precisa. Enfim, chegou a hora da ceia, oh my God! Que cardápio maravilhoso, que ceia linda, graças a Deus que nos deu oportunidade de oferecer um pouco de carinho, atenção, afeto e também uma ceia para aquelas pessoas. O padre da capela local estava conosco e após um breve discurso que fiz agradecendo as pessoas que nos ajudaram e a todos que estavam ali e nos permitiram que fizéssemos aquela ceia, o padre orou um Pai nosso e abençoou o jantar. Dia 01 de Janeiro, ainda estávamos no alojamento do Braço do Baú, achando incrível como as coisas melhoraram por ali. No início, quando cumprimentávamos as pessoas que aqui se encontram, não tínhamos sucesso, pois é um povo muito ressabiado, desconfiado. Acho que eles se perguntavam, será que estes vieram para nos ajudar ou para fazer um Turismo tragédia? Pois infelizmente vimos muitos casos assim, mas demonstramos a nossa intenção de não apenas ajudá-los, mas de sermos amigos e agora parece que estão aceitando, pois o clima já está bem melhor. As pessoas que estavam esquecidas neste alojamento, que até há poucos dias nem a prefeitura tinha conhecimento de que existiam, agora já sorriem para nós, cumprimentando-nos. Ufa! Mais uma barreira vencida. Pois é, eu que pensava que só em Prudente tinha que matar um leão por dia, agora pude ver que esses leões vou ter que enfrentar em muitos lugares. Dia 02 de janeiro, o ano está começando e as coisas precisam voltar ao seu curso normal, ou pelo menos tentar recomeçar como é o caso de muitas famílias que ainda estão nos abrigos. Uma igreja de Belo Horizonte cujo nome não me recordo fez uma doação de mil reais através do irmão Ronaldo para ajudar alguma família a recomeçar, mas depois de termos convivido

quatro dias no abrigo, conversando com todas as pessoas que lá estão, fica até difícil escolher a quem ajudar, ou o que comprar para ajudá-las, então decidimos pegar duas famílias que julgamos ser os casos mais complicados e resolvemos dividir a verba e dar a elas a título de ânimo para o recomeço. As famílias que decidimos atender são a da Bernadete, com sua filha Tainara, que perderam tudo o que tinham dentro de casa e também a pequena facção, a outra família é a da Tânia, Mauricio e a Linda Emily, o Mauricio que inclusive era colhedor de banana, uma profissão forte da região e que perderam tudo que tinham, inclusive a sua casa e até o terreno, pois desmoronou todo o barranco e levou tudo. Reunimos as duas mães de família e explicamos qual era a situação, que havíamos decidido abençoar a vida de cada família com R$ 500,00 para ajudá-las a terem por onde recomeçar. Foi muito forte a reação destas mulheres, que não sabiam o que fazer para agradecer, pois elas já não tinham mais esperança. A Bernadete ficou emocionada, pois ela precisava concertar as suas máquinas que haviam estragado, mas com que dinheiro? Quando ela recebeu o envelope ela disse “Eu já não acreditava que existiam pessoas boas na terra, mas vocês me provaram o contrário porque para mim vocês foram uns anjos”. De volta para a cidade, Ronaldo, depois de ter vindo abençoar a vida de muitas pessoas, teve que tomar destino para São Paulo, mas tenho certeza que ele foi embora com a sensação de “Dever cumprido”, pois ele pode fazer a diferença, ELE PODE FAZER +, por quem precisa. Dia 04 Jairo seguiu destino, pois agora ele precisava socorrer os seus. Foi embora com a possibilidade de não chegar em casa, pois estava chovendo muito em Porto Alegre e já havia trechos comprometidos na estrada, mas graças a Deus a viagem foi ótima e ele chegou em paz em casa. Dia 05 é hora da nossa guerreira mor ir embora para retomar as atividades em São Paulo, onde trabalha de farmacêutica voluntária em um bairro carente na capital. A estes e outros que passaram e fizeram um pouco + por Ilhota eu só tenho a agradecer, pois cada um me ensinou a importância de ajudar o próximo. Bem, é fim de tarde, o ônibus de volta para minha terra sairia às 17hs mas a cidade ainda está muito carente de ajuda, pois ainda temos muita coisa para fazer hoje nos 4 abrigos que são o da Ilhotinha, o do Colégio Marcos Konder, o do Baú Baixo e do Braço do Baú, totalizando 465 pessoas, que vão precisar de alguma forma de assistência por cerca de mais 6 meses. Para outros a previsão é de até 2 anos. Alguém tem que ajudá-los. Minha permanência na cidade de Ilhota foi de 21/12/2008 a 10/02/2009, durante o dia trabalhava ajudando no Alto Baú e no Braço do Baú e durante a noite comecei a ajudar no CTG, onde ficou a maior parte das roupas para doações. Diariamente dezenas de pessoas que haviam sofrido com as enchentes passavam à procura de roupas, sapatos e água. Graças a Deus que me deu saúde, disposição, força e coragem, para ajudar os Ilhotenses, agora eu posso dizer que; “EU PUDE FAZER +”.

177


Dia 20/01/2009 :: Depoimento de

Luiz Fischer

Morador do Braço do Baú.

S

ábado à noite, dia 22 de novembro é que começou, deu uma enchente pequena, colocou uns 60 cm de água aqui dentro da minha oficina, e na madrugada eu, minha esposa Arlete e meus dois filhos Leonardo e Anderson, viemos aqui e limpamos tudo. Na casa de meu irmão também entrou água, fomos lá ajudar e começou a chover novamente. Quando voltamos já havia água outra vez aqui na oficina. Domingo foi o dia inteiro de chuva, água normal, não havia nada de entulho, madeira, barranco caindo nada... Mas à tarde começou a chover bastante e por volta das 19 horas a chuva deu uma trégua, mas a água não baixou, voltou a chover, então ocorreu a explosão do gás, que deu uma forte sacudida na terra. Meu filho pequeno estava junto dizia para a mãe: tremeu mesmo! Tremeu! E eu falei: - meu Deus! Que é isso? Tentamos manter a calma. 15 minutos após a explosão começaram os deslizamentos de terra, três simultâneos. Muito barulho! Um desses deslizamentos atingiu a casa de meu tio Antônio, de apelido Nico. Conseguiu sair com vida. Na hora deu um tipo de trovoada “choca” ela não abre, fica correndo no céu. Amplie essa trovoada em dez vezes, era o som que dava das pedras rolando. Nós sem energia, sem telefone, sem nada... Era só escuridão, então começou a cair os barrancos, na minha oficina 1,60 mt. de água. Como moramos no morrinho em frente da oficina, víamos passar pela estrada fogão, máquina de lavar, pedaços de casa, freezer, geladeira e aquilo começou a nos assustar! A água mudou de cor, deixou de ser água, passou a ser lama, e o barranco da minha casa começou a sumir enquanto continuava passando de tudo, botijão de gás, camas, roupas. Na noite a gente via tudo aquilo passando, mas de onde vinha? Como

vinha? A ficha não havia caído para a gente ainda, vi o barranco pronto para cair em cima da minha casa, minha mulher, Arlete vê passar na hora uma máquina de lavar e se apavora: está acontecendo alguma coisa de errado! Vamos sair daqui porque acho que é o fim do mundo! Falei: - vamos ter paciência para ver o que vai acontecer! E a água subindo, era só lama, era grossa, não era mais água, passavam por ali árvores inteiras, raízes, tudo. Desci para frente da minha casa com uma enxada na mão, cravei a enxada lá e voltei para casa. Tomei café e retornei, vi que a água havia baixado quase um metro, lá no morro, não no nível de água,e pensei: graças a Deus, agora a coisa aliviou! Mas a água voltou a subir. Era assustador, arrepiante! Eu tinha aqui um baú de caminhão em cima de um cavalete, ele boiou e começou a andar de um lado para o outro, mas não batia nem aqui e nem na oficina e eu orava, Meu Deus! Tu tens a força, dá um fim nesse baú para não acontecer mais nenhuma desgraça! De repente... Foi por Deus (falou chorando muito emocionado) o baú cai por inteiro no chão! Naquele momento deu um barulho forte, cai a garagem de meu irmão, a camionete não estava dentro, falei: agora vamos ter que sair daqui porque vai se acabar tudo! Caiu minha oficina aqui atrás e começou a entrar entulhos, peguei a lanterna e fui olhar, o portão quebrou e o que tinha dentro da oficina foi tudo embora, e eu não podia fazer nada! Mas a gente recupera, pensava. Eram mais ou menos 23 horas, a água não baixava, e continuavam passando pedaços de carro, móveis, botijões de gás, acho que uns 100, porque abriu o estoque do mercado... Então são coisas assim que a gente volta a falar e se emociona... E foi assim até 1 hora da manhã, quando a água começou a baixar, mas até então ninguém havia medido a

Luiz Fischer, em frente a sua casa no Braço do Baú.

178


proporção da coisa, estávamos sem noção... E baixava muito rápido. Graças a Deus melhorou! Ainda tinha água na caixa para o banho, banho nas crianças, banho frio, sem energia, para depois podermos dormir um pouco. Por volta de 02h30min dormiram... cansados! Olhei no relógio, 4 horas, tomei mais um café, deitei, não se dormi ou não. Tenho uma cachorra brava, deu dois latidos, fui olhar e batia na janela o seu Odobrás Zimermman, vizinho. Ele passou das 7 da noite até as 4 da manhã dentro da casa com água até a cintura.O homem estava morrendo, ele não conseguiu subir o morrinho da minha casa. Da cintura para baixo não se sabia se era gente ou lama, ele tem uns sessenta e poucos anos. A água da caixa havia acabado, peguei água do morro que vinha limpa, levei para dentro da garagem e o lavei, tirei toda lama .O senhor Odobras não conseguia mais falar de tanto frio. Mais dez minutos ele não aguentaria mais. Coloquei-o para dentro de casa, dei-lhe roupas secas. Sentou-se e minha mulher colocou água no gás para fazer o café. Dei-lhe para beber café bem quente misturado meio por meio com conhaque. Sei que isso é bom porque fui presidente dos bombeiros de Ilhota e aprendi em um curso com um capitão de Joinville que quando a pessoa esta sentindo muito frio é só dar bebida quente que ela reage, então foi a minha primeira idéia. Quando ele bebeu quase não conseguia mais falar e quando conseguiu, disse: - não quero morrer na tua casa! E eu dizia: - você não vai morrer. Então levei-o para cama, vi que ele estava respirando bem, então eu e minha esposa também fomos dormir. Eram 7 horas da manhã quando acordei. Vanildo me chamou, levantei e quando fui passar pela porta de trás não olhei para a rua, não tinha medido o tamanho da tragédia, só olhava para a rua durante a noite. E eu perguntei: - o que foi Vanildo? E ele respondeu: - vem cá, não visse a desgraça ainda? Fui para a frente da casa e já não vi mais a casa do meu tio Antonio Fischer, então pensei: lá devem ter morrido todos. Vanildo me falou que na família de Zaíro Zabel morreram todos. Tomamos um café e fomos ver o que realmente tinha acontecido. Saímos à rua, era só entulho e comecei a cair na real. Fomos indo mais para a frente, então começaram a chegar as notícias de cima, da família do Zaíro e de sua mãe tinham morrido todos e que Giovana, grávida de sete meses e o marido Marciano estavam todos machucados na casa de Charles, precisando de socorro. Meu Deus, o que vamos fazer nessa hora? Um olhou para o outro, perguntei se alguém tinha um celular. Falei: peguem todos os celulares que tiverem, façam dois grupos e subam os morros para ver onde dá área e peçam socorro, liguem para 199, vai cair em Ilhota no corpo de Bombeiros ou liguem direto para o telefone do prefeito. Vanildo passou o número do prefeito para todos. Tonho, vice-prefeito chegou, ele e o filho foram para a rua de lá, não tinha acesso nenhum. Tentaram pegar um trator mas não deu certo, foram para o lado do rio do peixe, Laranjeiras, também não deu certo.Um pessoal que subiu o Morro Azul, desceu dizendo que o morro estava numa situação muito perigosa, não conseguiram telefonar. O pessoal do outro lado da cachoeira do Morro Azul, onde mora o senhor Altino Richartz, disse que a senhora Augusta já estava morta e a filha Giane ainda estava lá na casa, presa nos escombros. De lá eles gritavam e a gente mal conseguia escutar por causa do barulho da água Sei que pediam socorro e nós sem poder fazer nada, tentamos passar, mas tinha um metro e meio de água com muita correnteza, sem condições. Fui em casa buscar um rolo de uns duzentos metros de corda e falei: vamos tentar jogar a corda na cachoeira, de repente a água leva e alguém pega do outro lado para podermos atravessar. Não deu certo, desistimos. Por volta de meio-dia recebemos a notícia de que Tonho havia conseguido entrar em contato com o prefeito Ademar e que o socorro logo viria. Começamos a juntar os corpos aonde que já tínhamos acesso. Começou a chegar notícia para procuramos em outros lugares. Por volta de dezesseis horas passou um helicóptero águia e foi buscar Giovana e Marciano lá em cima, que era o caso mais crítico que tínhamos. Eram dez horas da manhã do dia 24

quando tivemos notícias de que conseguiram tirar a Giane Richartz, de vinte e sete anos, que estava presa desde a noite anterior e a levaram para a casa do Senhor Chico Alves. Por volta das quatorze e trinta ela foi a óbito, nem sei como resistiu tanto. Foi muito triste, ela ficou presa no meio dos escombros e durante a madrugada toda seu pai ficou a seu lado sem poder retirá-la. Isso é uma cena muito assustadora. Conversamos com o Capitão Coelho e o major Di Carle e explicamos a situação. Recebemos a notícia de que havia um casal de idosos, senhor Daniel e dona Hermínia Reinert, ilhados e não sabíamos o estado deles. A família estava desesperada, isso nos preocupou muito. O capitão e o major perguntaram para mim: o senhor sabe a localização de onde o casal está? Respondi que sabia, então os acompanhei de helicóptero. Lá fizemos um pouso de risco, com muita dificuldade. A senhora não queria sair e dizia: não, eu não vou sair, eu nunca andei de helicóptero! Ela estava com muito medo, então a pegamos no colo e a levamos. Transportamos o casal até a igreja do Braço do Baú. Era meio-dia e já havia quatro corpos na igreja, do Roberto, do filho do Zaíro, da Barbara e do Leandro. Uma cena assim que... Até o capitão e o major choraram, porque é difícil ver um oficial chorando. Trouxemos os corpos sobre tábuas, trator, o que dava. Colocávamos os corpos em cima de tampos de mesa dentro da igreja. O padre Alexandre dizia: - vamos fazer uma cerimônia com um pouco de calma e esperar os caixões ficarem prontos, não tinha como conseguir quatro caixões decentes naquele momento, impossível. Os militares que estavam ali diziam que a prioridade era a vida, eu posso dizer que negligência não houve. Assim os próprios moradores e voluntários construíam os caixões feitos em madeira bruta de pinos, os corpos eram envolvidos em panos e sacos de plástico. Sabe aquelas cenas da guerra do Iraque? Era aquilo, era cenário de guerra! Não sei se um dia as famílias irão esquecer. Então à tarde foram enterrados aqui no cemitério do Braço do Baú, mais tarde chegou o corpo da Giane, anoiteceu... Uma noite fria... Mórbida. Há um fato curioso: estava o pai de Giane, senhor Altino, sozinho debruçado sobre o caixão da filha, cuja irmã gêmea não tinha condições para nada. Estavam esgotados. Conseguimos levá-los para tomar um banho e dormir. Antonio Pasqualini e Neusa vieram à noite e ficaram com seu Altino. O Jaci do Baú Central também ficou ali com a gente, estávamos sempre nos revezando e o pai de Giane passou o tempo todo debruçado sobre o caixão. Terça-feira de manhã, dia vinte e cinco, chegaram os bombeiros de Ilhota de trator. Montamos dois grupos de busca, estávamos em 16 pessoas. Pedimos informação para o senhor Altino sobre o corpo de sua esposa Augusta, como poderíamos encontrá-lo, para dar uma noção de como era a casa, para começar a procurar. O homem foi forte e disse: - eu vou com vocês! Falei que ele não tinha condições, nisso chega o genro dele, que é meu primo, já com o pé machucado por ter pisado num prego, querendo ir junto, então falei: - vocês fiquem aqui, prometo que vamos trazer Augusta. Altino olhou nos meus olhos e disse: - eu vou confiar em ti. E respondi: podes confiar! Explicaram onde estava o corpo de Augusta, indicando exatamente o quarto do casal, que ela estaria por ali. Organizamos os grupos e saímos, um grupo foi para o morro procurar outros corpos e nós atravessamos a cachoeira do Morro Azul com água pela cintura. Fizemos um cordão e fomos nos segurando um atrás do outro. Chegando na casa fizemos uma avaliação prévia e começamos o trabalho e o sol veio forte. Fomos tirando entulhos e achando cortinas, louças, roupas e procurando o corpo. Chegamos no ponto indicado por eles, mas não encontramos nenhum vestígio sequer do quarto. O fato curioso é que demos uma paradinha para tomar água e ouvimos gemidos fortes, não era só uma pessoa que havia escutado, estávamos em oito. Alguns acreditam em um sinal, pelo lado prático de repente, mexemos com alguma coisa e ela soltou um ar, em seguida novamente os gemidos. Estávamos a três metros de onde estava o corpo, o pessoal que retirou Giane trabalhava em cima de onde estava o corpo da

179


Dona Augusta, a porta do quarto de Giane caiu, a parede caiu pegou o pé da cama e atingiu a cabeça. Ela estava coberta com o edredom, de lado com os pés juntos e a mão por baixo da cabeça do jeito que deitou. Começamos a retirada do entulho pelo outro lado até chegarmos naquela porta. Então o Odinei olhou por um buraco e viu que ela realmente estava morta. Trabalhávamos na esperança de encontrá-la viva. Tinha um cheiro muito forte, então vimos que o corpo já estava em processo de decomposição. Fomos tirando os entulhos de cima para chegarmos até o colchão e tiramos o corpo em cima do próprio lençol. Enrolamos em mais dois edredons e colocamos em uma maca improvisada, nós em oito para levantar o corpo com aquela lama... Carregamos por cerca de 300 metros quando chegou a ajuda de Patrício Zuccki e outro grupo de apoio, revezamo-nos, andamos mais 300 metros, então chegou o Helicóptero Águia com o Capitão Coelho e o Major Di Carle, pousando praticamente dentro de um brejo. Colocamos o corpo na aeronave, o subcomandante Cidnei foi junto. O major perguntou quem estava no comando e respondemos que era o subcomandante Cidnei. Então ele passou o comando para mim, e deu ordem para evacuar a área. Na casa da frente havia mais ou menos umas quarenta pessoas. Quando fomos retirá-los começou a correria e o desespero das pessoas. Tentar convencer as pessoas de sair de suas casas era muito difícil, para algumas não fazia sentido. Sabiam que tinha morrido várias pessoas, mas ninguém tinha velado como manda a tradição, guardar uma lembrança, ninguém tinha feito nada, chegava ali, lavavam o corpo, envolvia-se em um pano, colocavase no caixão e enterrava-se sem cerimônias como deveria ter. Esse povo que estava lá para ser retirado não tinha visto nada disso. Eu falei: pessoal temos que sair daqui, estamos em área de risco! O senhor Daniel e a dona Hermínia, casal que havíamos resgatado no dia anterior, também estavam ali, pois acreditavam ser a área mais segura Tinha sido até então. Então o senhor Daniel disse para o pessoal que ali estava: - vamos sair, se é para sair, vamos sair, o Luizinho sabe o que está dizendo. Veio um rapaz com um trator e limpou o caminho para dar acesso à carreta que levaria os pertences dos moradores. Depois saíram duas aeronaves da polícia civil e da militar. Mais tarde mais uma aeronave da brigada do Rio Grande do Sul pousou lá no pátio da serralheria e pegou o senhor Velázio e seu filho. Por volta da duas horas da tarde todas as pessoas já haviam sido resgatadas e levadas para a igreja do Braço do Baú. Só ficou o dono da casa e nós. Enquanto isso a aeronave foi abastecer e como demorou a voltar, resolvemos ir a pé porque estávamos com fome e cansados. Mais tarde havia dois ônibus para transferir as pessoas para a igreja do Baú Central. Fomos conversando com o pessoal, tentando acalmá-los e organizá-los. Graças a Deus nosso pessoal era unido, não teve aquele que batesse o pé, falasse ou reclamasse que não queria sair. O pessoal era super organizado, eles insistiam: “se é para sair, se estamos em risco, vamos sair!” Muitos diziam “eu só via isso na televisão, não pode estar acontecendo conosco”! Teve o fato da senhora Tânia e o marido que perderam tudo, cuja filha é alérgica a leite de vaca, e a mãe desesperada pedia socorro: - Luizinho pelo amor de Deus me ajuda! Respondi: fique tranqüila, de um jeito ou de outro vou tirar vocês daqui e perguntei onde tinha leite de cabra e ela disse que na casa da mãe dela em Blumenau. Acalmei-a e à menina e garanti que ia tirá-los daquela situação. Nisso o capitão Coelho chegou e eu expliquei para ele o problema da menina, então ele se aproximou da mãe e disse: - o Luizinho prometeu tirar a senhora daqui, vocês vão sair daqui é só ter um pouquinho de calma, para onde querem ir? Ela respondeu que queria ir para o bairro Fortaleza em Blumenau, onde um irmão iria buscá-la. Então o capitão pediu autorização e os levou. O pessoal que estava aqui no abrigo foi todo para o Baú Central, tudo tranquilo, permaneceram cerca de 150 pessoas no abrigo, já era terça-feira à tarde. Procuramos tirar primeiro pessoas de idade, mães com crianças. Minha mulher e meus dois filhos foram junto, fiquei de ir buscá-los à

Oficina mecânica de Luiz Fischer, no Braço do Baú, depois da tragédia.

noite. O pessoal do Baú Central, o Jaci e o Cleber, filho do Chico Costa, com um trator abriam caminho para termos passagem. Por volta das 4 horas da tarde chega o coronel Adelar Pereira Duarte e o tenente Borges com seu grupo, foi por Deus, chegaram em um ótimo momento, conversamos e nos entendemos. O coronel falou “é, senhor Luiz, você será a minha referência aqui dentro”. Coloquei-o a par de tudo que estava acontecendo, conversamos bastante. Dois policiais de Brusque que estavam com eles perguntaram como estavam os alojamentos, falei que bem organizados, grupos se revezavam nas tarefas de cozinha e limpeza. À noite organizamos esse grupo para dormir. Já eram 6:00 da tarde e chovia um pouco, pedi para Gilmar, cunhado do viceprefeito me levar até o alojamento do Baú Central para buscar minha família. No caminho encontramos o senhor Tuti Mendes com a esposa dona Bete, quando paramos ele disse: - “Luizinho, tem um corpo lá na arrozeira” olhei para ele assim... Juro por Deus... estávamos tão cansados que não dávamos conta das próprias pernas porque a terçafeira foi terrível. Eu disse para o Gilmar: tu encaras? O que tu decidires, estou do teu lado, sou teu parceiro! Então encostamos o caminhão, o corpo estava a uns 600 metros dali. Pedi para dona Bete um pedaço de lona ou um lençol, ela me deu uma toalha de plástico. Passou o Valmor em uma caminhonete e lhe pedi que avisasse no Braço do Baú que estávamos levando mais um corpo e que alguém providenciasse mais um caixão. Ele prontificou-se a isso e quando chegou com o caixão, fomos lá recolher o corpo. Era José Roberto, o Betinho , filho do

180


parecia tranquilo caiu uma chuva muito forte. Chegaram equipes de duas emissoras de TV para fazer um reconhecimento da área, junto dois bombeiros de Ilhota, Joel e Tiburcio. Pedi para que eles acompanhassem os repórteres e saíram naquela chuva. Já era umas 5 horas da tarde quando o coronel falou: - O pessoal está demorando! Vamos dar uma olhada! Saímos com duas viaturas e quando chegamos próximo à padaria, vinha o Giselo Miranda, dizendo: - Vocês saiam daqui porque caiu a barreira do nosso pinheiro ali, fechou a cachoeira e vai formar uma represa, e vai se acabar tudo! Nisso estava escurecendo, veja bem! Um dos caras que estava acompanhando o cinegrafista e repórter, bem numa corrida de louco, corria e não olhava para trás, gritou que tinha pessoas soterradas, soterradas, soterradas! O Coronel mandou um policial com viatura levar o rapaz de volta para se acalmar e eu e o coronel e mais outro motorista, o João, mais dois soldados seguimos em frente e da GM, deixamos a caminhonete ali, nisso vinham os dois bombeiros que acompanhavam os repórteres, um cortou a perna, depois acabou levando uns 5 pontos, e outro cinegrafista não podia mais andar. Deu um desespero nesse homem, que precisava ver, o outro mais chorava do que andava. Perguntei se tinha mais alguém, disseram que não, do nosso grupo já saiu todo mundo. O coronel queria ir lá ver e eu falei: - fazer o quê lá, coronel! O que vamos fazer agora? Voltamos para a igreja! Convidei para ver o rio, baixou o nível de água, é porque a água vai fluir. Mas me disseram que veio água da esquerda e da direita junto, aquele vale se aterrar, Deus o livre, se forma uma represa ali, sem condições! Disse ao coronel, a água que baixou é da rua de dentro e essa água que está passando aqui vem do Morro Azul e da cachoeira! Tem certeza Luisinho? Tenho, falei! E você que mora aqui o que faria? Coronel, não sei, não sei, e disse: O Sr. como militar, o que faria numa hora dessa? Como não conheço a área, vou evacuar o local respondeu! Chuva, muita ,chuva, no beirado do galpão da igreja, se você colocasse um balde, até você pôr no chão estava cheio. O que a gente vai fazer agora? O coronel chamou o pessoal dele, sentou todo mundo ali, nós com mais de 100 pessoas, todo mundo já havia jantado, se ajeitando para deitar, sentamos todos em volta de uma mesa e vamos conversar. Coronel falou, vamos evacuar a área? Perguntei: de que maneira, com 3 caminhonetes? Não temos um caminhão... E alguém falou que havia dois ônibus. O Tenente que estava ali falou: - coronel, vamos usar esses ônibus aqui da GM, ninguém vai destruir o patrimônio deles. Nessa hora é solução. Então falei: - vê se tem alguém aí que possa dirigir esses carros, e já. Tinha um cobrador e um motorista, buscaram os ônibus, que estavam no posto do Sr. Nelson Richardt, e as pessoas foram entrando, no outro ônibus foram colocando, colchões, bolsas com que precisassem, formaram uma fila, e devagarzinho embarcou todo mundo. Mas algumas pessoas teimaram e ficaram. Pensem na chuva, chuva... Esses ônibus nessa estrada... Era clima de guerra, parece que estávamos fugindo de um bombardeio, parece assim que tínhamos só meia hora para fugir de um bombardeio! Moral da história: era 1:30 h da manhã, tínhamos acabado de pôr todo o pessoal no Baú Baixo e Baú Central, aí o coronel olhou para mim, e disse: - e agora, Sr Luiz, voltamos? O senhor acha que na igreja há risco? Falei: - Deus o livre, se chegar água naquele galpão, daí então nós não precisamos mais falar do Braço do Baú, assim já está difícil, vamos voltar! Ele fala: e se a gente volta e aquilo estoura? Eu disse: - não acredito que vai acontecer, porque quando a água chegar em cima, o nosso terreno aqui é arenoso, ela vai começar a minar e vai formar um rio e vai esvaziar. Voltamos, ainda bem que não se agravou, aí esse capitulo acabou! E sobre Tione, esposa de Zaíro Zabel, dia 25, dia de natal, Zaíro leva flores, oferecendo para a mulher Tione e o filho Marcelo, no terreno onde só havia lembranças, sem saber se um dia iria encontrar os corpos... Ele sempre diz: tenho uma mulher e um filho desaparecidos, se for para eu achar só um, que Deus me dê conforto de um outro jeito, porque sei que um está perto do outro! Eu tenho certeza disso!

Roberto Richart. Estava de bruços, todo machucado. Colocamos o corpo sobre a toalha. Neste momento chegou o policial militar Ferreti de Gaspar e mais um grupo de rapazes. Em quatro pegamos cada um em uma ponta da toalha e o levamos até a estrada. Nisso chegou a viatura da Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina, estavam fardados. Então os colocamos a par de tudo que estava acontecendo. Falamos que reconhecemos o corpo e que estávamos trabalhando o dia todo na retirada de corpos. Perguntaram se tínhamos condições de continuar o trabalho e respondemos que sim. Ligamos a bomba d’água e lavamos o corpo. O caixão era pequeno para o corpo, o colocamos em cima da caminhoneta e o levamos para a igreja, dali iria para o cemitério. O pessoal da secretaria me levou até a igreja para finalmente eu pegar minha família. Fomos dormir na casa do amigo Odinei. Na manhã seguinte acordamos e fomos para o alojamento da igreja. O coronel Adelar queria fazer um reconhecimento de campo e eu os acompanhei. Ele veio com a caminhonete da polícia ambiental até aqui, então saímos a pé porque não havia condições de seguir pela estrada com o veículo. Vimos a terra que caiu em cima da casa de Mario Lucio, soterrando-a até a janela. A rua estava intransitável, a terra formou cones de dois metros de profundidade, em baixo era um lamaçal, encontramos até uma vaca dentro de um buraco e a retiramos. O coronel falou para sairmos daquele local, pois não estava seguro, voltamos para almoçar. À tarde um helicóptero veio para nos levar para um reconhecimento aéreo da região. Quando tudo

181


O comandante Vinotti e sua equipe de Indaial, no dia 26 de dezembro estava encerrando as buscas, já estava ficando tarde e formava-se uma trovoada. Os entulhos tinham vindo e a água da cachoeira ficou alta. Meu irmão me relatou isso: o menino ficou bem abaixo do nível da água e ela mais acima, morreram asfixiados pela lama e não por afogamento, e no outro lado da cachoeira tinha um porco morto em decomposição, o mau cheiro era insuportável. Meu irmão Olério disse a Zaíro que o cheiro não podia ser dos corpos, então desceram pela cachoeira novamente, porque não se conformavam, o vento vinha da cachoeira abaixo, e o porco estava a cerca de 20 mts, meu irmão disse: Tem alguma coisa errada aqui! Porque dificilmente o cheiro sobe contra o vento! E um bombeiro que estava ali perguntou o porquê, e ele respondeu que o vento estava vindo de um lado e o porco estava do outro, impossível isso! Desceram todos, Zaíro chama meu irmão e diz; - Acho que eu vi uma coisa! Meu irmão olhou e viu que ali havia algo,era uma mão, que por conta do nível da água... Balançava. Chamaram o comandante Vinotti, e ele dizia: - Calma! Chamou todos que estavam na estrada, e falou: - pessoal! Tem alguma coisa morta ali embaixo e a gente vai trabalhar numa hipótese de que seja qualquer coisa, porque podemos nos empolgar, então vamos trabalhar imaginando que possa ser um corpo... e aos poucos veremos se realmente é um corpo. Já estavam sabendo que tinha a mão de uma pessoa, mas já estava preparando o pessoal. Eles não tinham máscara porque a viatura não tinha subido, somente os bombeiros que lá estavam, mas alguém tinha um “gelol”, passaram entre o nariz e a boca, meu irmão e o bombeiro Joel subiram e começaram a cavar, tirando entulhos, madeira, meu irmão deu uma passada, e sentiu uma coisa estranha, pensou que poderia ser uma pedra, tinha um cipó, deu mais uma passada e o cipó não cortou, deu mais uma e torceu a pá, e tinha assim... Parecia um cabelo, ele torceu e viu mais uma coisa branca, chamou Joel e falou: dá uma olhada, parece um pé de banana, mais tem uma coisa branca ali! Era o crânio, ele deu certinho com a pá em cima do osso, era o corpo de uma mulher, e mais para baixo achamos o corpo do menino, estavam realmente próximos um do outro. Ele estava com a cabeça no correr da água e ela com a cabeça ao contrário, ela estava com a mão para trás, e o menino também, como se estivessem segurando um ao outro, e que com a força da terra eles se soltaram, e Zaíro sempre dizia... Eles estão juntos! Creio que dona Lida, mãe de Zaíro, encontrada a uns 4 a 5 km da casa dela, onde estavam todos naquela trágica noite do dia 23, deve ter pegado o canal do ribeirão, por isso o corpo parou a uma distância tão grande. Tione e Marcelo tiveram um enterro digno e descente, foram para o IML, não foi como os outros, que nós mesmos fazíamos o reconhecimento dos corpos porque todos se conheciam, e eram corpos recentes e não tinha como não identificá-los. O policial Ferreti vinha aqui, pegava um documento para emitir o atestado de reconhecimento.

Lucas Gonçalves

senhor fez tudo o que fez até agora, pela gente, por tudo mundo aqui e deixou seu pai e sua mãe ali? O senhor pensou primeiro nos outros e depois neles? Falei: - é, Major, mas não é assim, eu sei que eles estavam bem ali, não tinha risco, meu irmão estava junto, qualquer coisa que se agravasse, tiraríamos eles dali. Ele respondeu: - essa aeronave só sai do chão com os seus pais dentro (nesse momento ele chora, fica muito emocionado, e Adriana, Jr. e eu também choramos junto). Daí ele pede para ir buscar o pai e a mãe, trazer até a igreja. Pois é! Tem cenas tristes, mas também cenas boas, eles foram para a casa de minha irmã, Matilde e meu cunhado Arlindo,

Vista aérea da localidade do Braço do Baú.

Separadamente vou contar a história dos meus pais, João e Gerci. Na segunda-feira, dia 24 de novembro às 10 hrs da manhã, Tonho, viceprefeito deu a notícia que conseguiu falar com o prefeito Ademar, e minha irmã foi à casa dos meus pais. Perguntei se estavam bonzinhos, ela respondeu que sim! Mas o caso era complicado, deixá-los. Pegamos minha mãe, em uma cadeira de plástico, eu e o empregado de meu irmão Osni, minha cunhada Tereza estava junto, subimos pelo morro, pelo mato e saímos ali na pontezinha, ali embaixo, então a levamos para casa da minha sobrinha Jaqueline, ali ela ficou de segunda até quarta à tarde. Falei para o Major, dos meus pais que estavam ali, e ele ficou bravo comigo. Falou: - que isso, Sr.Luiz? Falei que tínhamos que evacuar porque tinha muita chuva... Como minha mãe não anda, vou ter que tirar meu carro para poder levá-los para fora... Ele me falou: o quê? O senhor deve estar brincando comigo, o

182


em Ilhota, e estão muito bem! Eu hoje estou morando na casa de meus pais, porque a minha está interditada. E assim foi mais um capítulo dessa tragédia! Daí agora está seguindo aquele processo de geólogos, defesa civil, etc. O coronel Adelar foi muito atencioso, não saiu daqui, sem estar 70% da coisa resolvida, a gente tem muito que agradecer a ele, e hoje, cada vez que ele para aqui sempre é bem recebido, ele é super gente boa! Para o trabalho que do Corpo de Bombeiros Voluntários de Ilhota fez aqui dentro, não porque eu fiz e faço parte ainda, eu tiro o chapéu! Quem fizer uma critica é porque não conviveu aqui dentro e não sabe. Porque quem conviveu

esses 15 dias aqui, pessoal do Coronel Adelar e seu grupo, policiais, Capitão Coelho, o Major Di Carle, e muitos que no momento não recordo os nomes, é que sabe a guerra que foi! Agora, graças a Deus superamos essa primeira fase, esse primeiro teste, agora temos que reconstruir isso aqui... A natureza fez a parte dela, mas eu garanto que se não fosse aquela explosão, não teria acontecido isso tudo! Deslizamentos sempre houve, eu moro aqui há 43 anos, meu pai tem 81 anos, sempre viu deslizamentos normais, mas nessa proporção e na mesma hora nunca aconteceu! Nós moramos em um lugar que todos conhecem, era um paraíso... E vai continuar sendo.

183


Meu relato sobre o que aconteceu após digitar o depoimento de Luiz Fisher. muito escuro, sozinha... E meu medo não era por estar só, sempre fico só e nunca tive medo... O medo era lembrar do texto que estava digitando, era um texto com muita dor, muita tristeza, muitas lágrimas, mortes... O que fiz? Abri a porta do meu quarto, chamei minha cachorra, ela veio na hora porque adora dormir em minha cama, chega a roncar. Não queria que ela entrasse porque o quarto estava limpinho, e ela solta muito pelo, mas naquela hora não quis nem saber desse pequeno grande detalhe, ela deitou na cama a meu lado, ela é bem grandinha, quase ocupa a cama toda, agarrei-a como se fosse um bicho de pelúcia, ela dormiu e eu não. Ela se virava e eu voltava a abraçá-la quase sufocandoa, ela deveria estar muito feliz porque adora carinho e nunca ganhou tanto por tanto tempo. Havia uma pequena fresta na janela e por ali eu via o dia amanhecer, mas muitas vezes tive medo de olhar, acho que fiquei traumatizada com o relato de Luiz, esse homem que para mim foi um guerreiro! Mesmo a gente sabendo de tudo ou quase tudo o que passou nesses dias em relação à enchente, quando alguém senta na tua frente e fala emocionado... Sentimos na pele um pouco do que aquele povo passou, o sofreu, a dor por ter perdido um ente querido, um pai, uma mãe, filhos, irmãos e amigos. É assustador, é lamentável! Levantei e abri toda a cortina para tentar melhorar a luz. De repente... Consegui dormir e acordei com um lindo dia de sol. Levantei para fechar a cortina e dei uma olhada no que adoro ver, sempre que o dia está bom! Um pedacinho do Morro do Baú!

Na noite do dia 24 de janeiro estava digitando o depoimento de Luiz Fischer, chovia bastante, por isso deixei minha cachorra Dalila, uma São Bernardo dormir dentro de casa e também por estar sozinha. Digitei até quase meia-noite, tentei imprimir um texto e a impressora não funcionou, resolvi dormir.Tenho mania de dormir com a TV ligada, fico assistindo até o sono vir e acabo deixando ligada até quase de manhã. Depois dessa tragédia que abalou a nossa cidade, cada vez que acordo, vejo só cenas da enchente na TV, e só lama, resgates, pessoas chorando, tudo que está passando na TV no momento seja o que for, para mim tem alguma relação com essa triste verdade, acho que é de tanto me relacionar com os fatos e fotos e idas ao Baú. Era por volta de 5hrs da manhã, levei o maior susto, a impressora do nada ligou e começou a imprimir... Gelei, não sei se a programei sem saber, como havia perdido o sono, continuei no texto sobre o depoimento triste de Luis Fischer. Foi um depoimento muito marcante para mim, chorava volta e meia digitando, muito assustador, parecia assim que estava ouvindo dele um capítulo de um filme de suspense e terror. Estava quase no fim, de repente acaba a energia e ficou um tempinho em uma só fase, desliguei rapidamente o computador. A luminária do meu quarto, composta por 3 lâmpadas pequenas que estavam sem as cúpulas, com aquela luz fraca pareceu-me assim um candelabro de um castelo de terror, em meia luz ficou muito assustador, o medo ia aumentando, estava suando e ficando cada vez mais apavorada. Então a energia caiu totalmente, estava

Minha cachorra Dalila.

184


De volta para casa. No dia seis de fevereiro estava no Braço do Baú, e próximo à casa do Luiz Fischer, encontrei sua irmã, dona Iolanda. Estava com um cachorro em seu colo, quando vi aquela cena perguntei onde ela estava indo. Então me falou que iria levar o cachorro para seu pai, João Fischer, porque durante a enchente ficaram separados por quase três meses, e ficara aos cuidados dela. Sr.João e dona Gerci, sua esposa o adotaram antes da enchente. Num certo dia ele apareceu por lá (conta dona Iolanda), e ficou, não saía mais de lá, aonde seu João ou dona Gerci iam ele os perseguia. Então dona Gerci o batizou de Colega, desde então o Colega passou a fazer parte da família. Colega tinha muitos ciúmes. Em uma ocasião, conta dona Gerci, que ela estava só em casa e levou um tombo na cozinha em frente ao fogão a lenha. Não conseguia levantar, não tinha forças o suficiente, porque é uma senhora idosa e frágil. O Colega, muito inteligente e cuidadoso com seus donos chegou perto da senhora, colocou a cabeça por baixo de seu braço tentando levantá-la, como não conseguia, foi para rua procurando Sr. João, parecia apavorado! Até que o encontrou e o trouxe-o até dona Gerci. Infelizmente ela quebrou o fêmur, e ficou impossibilitada de andar, está assim desde antes da enchente. Durante o resgate, os filhos a levaram sentada em uma cadeira, subindo um morro, por dentro do mato, com muita dificuldade. Quando dona Iolanda chega na casa com o Colega, Sr. João e dona Gerci ficaram felizes da vida e Colega também, abanando o rabinho! E neste dia, por uma grande coincidência era o dia em que o casal também voltara para casa. Eu queria tanto o conhecer que quando cheguei perto do Sr. João, o abracei bem forte e chorei muito, e ele também se emocionou. Entreguei a ele as fotos da esposa, que registrei no dia em que foram resgatados, a foto dele já havia entregado ao seu filho Luiz, no dia em que o visitei para tomar seu depoimento. A foto já estava na portarretrato, seu João me mostrou sorrindo! Esse foi o homem que me fez chorar muito! Muito! Lembro-me daquela triste e lamentável imagem. Aquele casal de idosos saindo do helicóptero, ele chorando, dá um aperto de mão no Major De Carli, agradecendo por tudo. Ela imediatamente é atendida por bombeiros, Cidnei Conink (sub comandante os bombeiros voluntários), Rejane Gabriela Cunha e Claiton Silva, todos de Ilhota, colocaram-na em uma maca. Então, naquele dia, quando cheguei no Braço do Baú, no dia em que o casal retorna para casa, deparei-me ainda com encontro deles com o cachorro... Minha reação foi aquela... Chorar por tê- los visto novamente e feliz porque eles estavam felizes! Não viam a hora de voltar, estavam desde o dia do resgate na casa da filha Matilde, casada

Iolanda entregando o cachorro Colega para seu pai, João Fischer.

De volta para casa! João e Gerci felizes por terem voltado ao Braço do Baú.

com Arlindo. Lá estavam bem, foram muito bem tratados, com todo o conforto possível. Sr. João fala: ’Lá estava muito bom, só posso elogiar, mas a nossa vontade era muito grande de voltar para o nosso cantinho, eu e minha Júlia! (esse é o nome como Sr. João chama com carinho dona Gerci). E perguntei para dona Gerci se estava feliz com o retorno ao seu lar. Ela me responde assim: Sim, estou muito feliz, mas agora o que eu mais queria, era poder andar um pouquinho! E nesse mesmo dia Luiz, o filho, também retorna com sua família para casa, até então estavam morando na casa do pai. Sua casa não está totalmente fora de perigo, mas está na hora de voltar, diz ele! É lamentável tudo que aconteceu com esse povo querido do Baú, mas só assim conheci pessoas tão maravilhosas, tão amáveis quanto a família Fischer! E tantas outras!

Dia do resgate no campo municipal em Ilhota. 185


Dia 27/01/2009 :: Depoimento de

Luzia Goreti Bachmann

Moradora do Braço do Baú.

N

o dia 23 à noite, eu estava na minha casa na Rua Vandelino Fischer, preocupada com o Rodrigo (filho), a Bárbara (nora) e o Leandro (neto). Então eu pedi ao meu marido me passar pelo mato, que eu tinha um pressentimento ruim dentro de mim. Pode perguntar para ele. Eu pedia para ele “me leva, me leva!” Eu tenho que ir lá, eu tenho que ver como eles estão, se acontecer qualquer coisa nós temos que tirá-los de lá, e ele disse que não dava para passar, estava tudo cercado de água, daí eu dizia para ele ‘vamos passar pelo mato que dá!’ E ele ficava apreensivo. À tarde ele disse que ia ver o vizinho e aí pegou e saiu. Passou o mato e foi sozinho. Só que não os trouxe lá para casa. Não sei, eles disseram que não queriam sair de casa, que não tinha perigo, que qualquer coisa eles iriam dormir no sogro dele. E... Os três ficaram na porta e faziam ‘tchau’ para ele, enquanto ainda o avistavam. Essa foi a última imagem que ele viu deles vivos. O vizinho viu que eles saíram da casa e foram dormir na casa da mãe dela, que se chama Aparecida. Então, quando meu esposo chegou em casa, falou que tinha ido à casa do Rodrigo e que lá não havia perigo porque era só água. Mas não adiantou. Foi na segunda-feira de manhã que recebemos a notícia que tinham morrido todos. Já desde as sete e meia da manhã eu estava com um pressentimento o dia todo, mas à noite era mais forte, então eu já comecei a tomar água de açúcar. Quando era quinze para as onze caiu a primeira barreira lá perto da minha casa e... Daí vieram meu marido e vizinhos, desceram e já encontraram o Sr. Nico e a Dona Verônica, dois idosos, elameados, e os trouxeram para cima, para a casa do irmão dele, Sr. Nicolau. Ali eles foram acolhidos, tomaram um banho e foram se deitar. E eles, que desceram para ajudar, voltaram para casa também. Aí a minha filha, com o meu neto (Vitor Hugo), foram dormir na casa do meu vizinho, acima da minha casa. E eu e o meu marido ficamos sozinhos em casa, só que meu marido conseguiu dormir;eu peguei o Terço e fiquei encostada na cama, rezando. Quando era uma e meia da manhã escutei aquele estouro. Eu escorreguei na cama, como se a casa tivesse cedido, daí ele acordou apavorado, abriu a janela e botou o pé para pular para fora. Daí eu saí correndo para ir até a porta. Aí ele voltou e agarrou-se comigo e disse ‘vamos pular a janela nós dois!’ Aí a gente começou a chorar, daí eu disse para ele ‘está acabando o mundo!’ Aí eu já diss: ‘Meu Deus! O Rodrigo, a Barbara e o Leandro!’ E meu marido disse ‘não, o que está acontecendo é daqui para baixo. Pegamos a lanterna e saímos, fechamos a casa e fomos para a casa de meus vizinhos, o ‘Gima’ e a Priscila, onde já estava a minha filha com o meu neto. Eles moram um pouco acima da minha casa. Lá a gente não conseguiu dormir, ficamos acordados até amanhecer o dia. Quando amanheceu, eu e minha filha fomos à minha casa e ao chegarmos o meu irmão Zezinho apareceu desesperado e lhe perguntei sobre a casa da mãe. Daí ele caiu no chão sentado e disse para mim assim, a casa da mãe, nada, não aconteceu nada. A Augusta está morta, debaixo da casa dela. A Augusta morreu e a Giane está soterrada até a cintura. Aí eu comecei a gritar, e perguntei do Rodrigo e os outros. Daí ele disse assim, eu não sei, mas ele já sabia de tudo e não queria me dizer. Aí a minha filha veio e me deu um comprimido, dizendo, mãe, toma esse remédio, a mãe já está muito nervosa. Ali eu já não me segurei mais, o desespero bateu, porque dentro de mim eu já sabia que o pior tinha acontecido. Aí eu já comecei a passar mal e então me carregaram de volta para a casa do Gima e da Priscila e lá fiquei até a hora que o meu marido chegou. Ele tinha saído para avisar que na família do Sr. Nico e da Dona Verônica estavam vivos, porque era muita gente gritando do outro lado, perguntando se eles estavam mortos ou vivos e nós respondíamos de cá,

Bárbara, o marido Rodrigo e o filho Leandro, mortos na tragédia. gritávamos, eles estão vivos, eles estão conosco! Só que enquanto isso, o meu filho, a minha nora e o meu neto já estavam mortos (choro, numa longa pausa em pranto). Eu não agüentei isso. Nunca deixei de ajudar o meu filho, nunca! Nós éramos inseparáveis... Todosos dias ele ia na minha casa, ele me dava um beijo, ele me dava um abraço, todo dia ele dizia ‘Mãe, eu te amo’. E hoje, dois meses depois, eu espero todo dia... Ele chegar com o meu marido, que eles chegavam juntos... Ele trabalhava com o pai, de pedreiro; ele já fazia uma casa sozinho! Até hoje eu ainda espero ele chegar... Eu espero um abraço dele, eu espero ele dizer ‘Mãe, eu te amo’... E tudo acabou! Acabou tudo em questão de minutos... Ver aquela senhora chorando me doía tanto, que eu não sabia mais o que fazer para consolá-la... _Você tem outros filhos? Então ela continuou: tenho, eu tenho três filhos: a Lucilene, que é mãe do Victor Hugo, a Lilian, que está grávida e eles iam ser padrinhos; o Rodrigo e a Bárbara, e tenho o Luciano, que tem a namorada que está morando com nós também . O Leandro foi o meu primeiro neto. Foi tanta alegria, tanta alegria, em toda a minha vida, meu filho... Agora que ele tinha tudo! Tudo que ele ia realizar, todos sonhos dele; meu filho mais velho. Ele disse ‘Mãe, agora tenho minha casa, tenho tudo dentro! Ele e o pai a tinham construído. Ele chegava do serviço com o pai à noite e ia trabalhar na casa dele até onze horas da noite, até acabar a casa. Agora que ele tinha acabado, tinha tudo dentro de casa, ele disse pra mim, mãe, agora só falta o carro, vou comprar um carrinho no final do ano. Porque eu tenho a minha sogra, e quando o Rodrigo nasceu eu morava com ela, que ajudou a criá-lo e quando o meu cunhado mais novo morreu, a minha sogra aguentou tudo, porque ela se apoiou nele (Rodrigo) porque ele também era um filho para ela. Depois ele deu um bisneto para ela. E agora a minha sogra está mal. Quando ela soube que o Rodrigo tinha morrido, ela que é alemã, ela é a OMA! Quando ela soube, ela caiu, foi para o hospital e no momento não está bem de saúde. Está abaixo de remédio e de calmante durante o dia. Na segunda-feira pela manhã meu marido saiu para avisar que o vizinho estava vivo e quando chegou na estrada, encontrou o sobrinho do sogro do Rodrigo, que é o primo da Bárbara. Vinha desesperado, mas na hora ele nem se tocou que estava falando com o pai do Rodrigo. Daí o Laudelino falou (Marido de Dona Goreti, pai do Rodrigo) “MEU DEUS!” Ele disse, acabou tudo aqui, ele disse ‘o Baú está em nada, e Marquinhos disse, aqui não é nada, vai lá no Morro Azul, vai no tio Roberto, estão todos mortos! Morreu o tio Roberto, a tia Cida, o Betinho, a Bárbara, o Rodrigo e o Leandro. Aí o meu marido começou a gritar, ele disse NÃO! Isso não pode! Tu estás louco rapaz! Não fala uma coisa dessas! Ele não se tocou que ele estava falando com o pai do Rodrigo. Aí

186


disse, ‘não, é o Rodrigo!’ Aí quando eles chegaram lá perto, ele já estava com ele no colo, já tava lavando o corpo de Rodrigo. Daí ele disse que Rodrigo usava um brinquinho de pedrinha na orelha esquerda. Daí ele disse que lavou aquele brinco até que brilhasse. E com ele no colo, lavou-o pela última vez. Ele foi removido do local pelo helicóptero até na igreja Nossa Senhora da Glória. Nós não pudemos acompanhar. O padre fez a cerimônia do corpo presente. Eu pedi que quando o achassem, que fossem me buscar, só que não foram porque falaram que nós não aguentaríamos vê-lo, ele tinha que ser enterrado já. Até que o meu irmão chegasse de moto, o helicóptero já tinha chegado e ele já estava no caixão tampado. Tiveram que destapar para o meu irmão vê-lo de novo. Nós não o vimos. Eles falaram que ele tinha quebrado a perna e o pescoço. Eu tenho lembrança dele só vivo. Só tenho lembrança dele de quintafeira, quando trabalhou na casa da minha filha, ajudando a construir a casa da Lucilene. Daí quinta-feira à noite ele foi para casa com ela e o menino. Foi nossa última despedida. No dia do sepultamento estava a minha família e meus cunhados de Luiz Alves. Todos eles viram. Eles não foram buscar eu e o Laudelino, para que a gente não ficasse com essa lembrança triste. Dali em diante, de tudo o meu irmão fez. EU NÃO PUDE ME DESPEDIR DELE. Despedi-me da Bárbara e do Leandro, só. Todo dia ele ia lá em casa para me dar um abraço. Quando ele tinha moto, ele ia de moto. Depois que vendeu a moto, ia a pé, mas ia todos os dias. Meu Deus! É um filho que... Eu acho que era um filho que pouca mãe tem... Não houve um que não chorasse, que não sentisse falta dele. Esquecer jamais!

meu marido saiu desesperado, correndo. E quando ele chegou lá, passou por dentro de roça de banana, por dentro de água... Quando ele chegou lá, deu de cara com o meu netinho caído, morto! Encontrou o meu neto e a minha nora estava mais retirada, tudo ali, bem em cima, limpinho. E o meu filho foi encontrado quarta-feira lá no Baú Central (Que fica a cerca de sete quilômetros de distância da casa dele até onde ele foi levado pela água). Foi o meu irmão, o Deco, padrinho de batismo, que o encontrou. Ele estava para baixo da igreja do Baú Central, dentro da arrozeira. Foram encontrados ele, a sogra dele (a Dona Cida) e o cunhado dele (Betinho). Foram encontrados todos eles, quase todos perto um do outro. Num dia eles encontraram a Cida, no outro o Betinho e depois, o último foi o Rodrigo. Quando o Corpo de Bombeiros partiu aa procura do Rodrigo, o meu irmão Deco estava com eles. E ele avistou algoe disse, ‘lá está’, mas não era! Disse que não ia desistir de procurar. Ele virava o dia procurando. No outro dia ele saiu de casa de manhã e disse, ‘hoje eu vou achar! Hoje eu não volto para casa sem o Rodrigo’! Ele chegou de longe, daí ele avistou e disse: ‘lá! Eu achei!’ (Foram três dias depois, porque o Rodrigo morreu no domingo à noite. Foi na quarta-feira à tarde que eles o encontraram). Daí o bombeiro falou assim, ‘não, não é, é um plástico’. Ele saiu correndo e

Barreira que soterrou e matou toda a família.

Meus pais perderam meus dois irmãos e a gente abraçava eles, dizendo, nós estamos aqui é, a gente... mas não se ocupa o vazio de um filho no coração. Nenhum filho ocupa o lugar de outro, nenhum neto ocupa o espaço de outro. É parte da gente. O Leandro não era meu neto, era meu filho! Porque ser avó é ser mãe duas vezes. E a Bárbara, a Bárbara... A Márcia, elas para mim, não as tenho como noras, são como duas filhas, é uma benção na vida da gente. Não tem dia que a gente não chora e não fica esperando. Ontem à noite eu e meu marido anoitecemos chorando na frente de casa... Estávamos ali, começamos a falar da casa, da nossa casa, porque que eu disse para reformar nossa casa lá, estava pensando em voltar... Só que bate um desespero, uma tristeza tão grande que ninguém sabe se vamos aguentar voltar para nossa casa. Lá está toda a lembrança deles, muita tristeza...

Comentário da autora: Numa das idas ao Braço do Baú, conheci a simpática senhora Onélia Alves. Nasceu e mora no Braço do Baú há 82 anos. Casada com Francisco Alves há 51 anos, tiveram 15 filhos, dois deles falecidos. Dos filhos de dona Onélia, conheci alguns, entre eles Luzia Goreti, mãe de Rodrigo que morreu durante a tragédia de novembro, com ele também morreu seu neto Leandro, nora Bárbara, sendo netos e bisneto de dona Onélia. Ela me contou que no dia 28 de dezembro quando estava no alojamento do Baú Baixo, receberam a visita da atriz Cléo Pires, da qual ela é muito fã. Ela me disse que nunca irá esquecer a grande surpresa que todos receberam e que Cléo é uma simpatia, muito querida e até parecia que ela tinha sido criada ali, de tão simples. Almoçou com todos, conversou muito, depois deu uma volta para conhecer um pouco do Baú e voltou para se despedir. Dona Onélia me disse que ela chegou chorando e se despediu de todos chorando. Foi um dia inesquecível para ela e todos que ali estavam!

Dona Onélia Alves e a atriz Cléo Pires. 187


Dia 29/01/2009 :: Depoimento de

Luzia Martendal

A transferência da família e da empresa familiar para Ilhota.

O

que aconteceu é o que vi que estava desbarrancando, caindo o galpão da empresa de conservas de palmito.Vi quando caiu o primeiro galpão, depois o segundo. Era mais ou menos sete horas e vi cair a empresa. Desde sábado, via aquelas águas vindo, depois chegou o domingo e os meus filhos derrubaram as árvores para não levarem a empresa. Depois veio do morro bem de longe uma barreira, essa foi muito grande! Ficamos todos traumatizados, não tínhamos para onde correr e fomos para casa da Jane, minha nora. Ficamos lá a noite toda. Por volta de umas oito e meia, vimos aquele clarão no morro e eu disse para minhas noras: vamos nos agarrar com Deus porque vai acabar o mundo. Naquela hora, acredito, houve a explosão do gás, todo mundo fala a mesma coisa. Era uma claridade como se fosse um raio bem forte de trovoada e ficou a noite toda assim, muito claro. Domingo, eu não pensava em ir até a casa da minha filha Marinéia, casada com Juliano Scwambach, mas disse para o Braz, meu marido: eu vou lá na casa deles, para ver como estão. Fui até um pedaço e voltei, não sei porque, tinha na cabeça que deixei uma vela acesa na mesa. Parecia que tinha uma coisa que me puxava para eu não continuar. Tinha muita água na estrada, descendo por onde eu iria passar, se eu tivesse continuado, aquela correnteza forte teria me levado. À tarde, meu filho foi até lá ver se não tinha acontecido nada com eles. Olhou por tudo e viu, de longe, quando caiu a barreira. Segunda-feira de manhã eles ainda não tinham aparecido lá em casa e mandei meu filho Júnior ver o que tinha acontecido. Como ele não voltava, meu filho Ademir e sua mulher Cristiana foram ver o que havia acontecido e também não voltaram. Minha nora Márcio e Ademar, também filho, foram atrás dos outros que demoravam em voltar. Quando voltaram, entendi que escondiam alguma coisa de

Conservas Martendal, antes da tragédia

mim e perguntei: onde está a Néia? Esse era o apelido da Marinéia. Minha nora Márcia respondeu: a Néia está bem, não se preocupe, ela está na casa da tua tia Nena. Mas eu já sabia, sentia que eles não queriam me dizer a verdade! Entrei em desespero e falei: pode me contar que ela se foi. Eu vi como a Márcia estava triste. Disse que podiam contar que ela e a menina não estavam mais vivas, que eu queria saber a verdade e vi também, que Juliano estava voltando sozinho. Ela foi obrigada a contar o que estavam me escondendo, pois tenho problemas de saúde, pressão. No momento que a Márcia contou, toda a família estava ali, inclusive o pai. Tomei um remédio e melhorei um pouco. Na segunda feira a tarde, todos nós fomos para o pasto do meu cunhado José Martendal, para ver se havia um helicóptero para sair dali. Quem conseguiu fazer contato com a defesa civil, foi o filho do Aníbal Zabel. Fizemos uma barraca de lona no pasto e ficamos todos embaixo, esperando ajuda. Para cada avião que passava, a gente acenava. Márcia com uma sombrinha e Cristiane com folhas de palmeira. Ficamos muito

Conservas Martendal, após a tragédia

188


preocupados, porque não vinha o resgate e meu filho Junior foi até o campo principal, na frente da casa do Gil, o Gilberto Schmidt. Atravessou o rio por cima de pedras, entulho, lama, e pediu ajuda para nossa família, com sete crianças. Quando o helicóptero chegou, nos desesperamos, pois só poderia levar as mães com as crianças e eu. Começamos a gritar para que todos fossem juntos, com medo que acontecesse mais alguma coisa de ruim, mais uma tragédia. Chegamos em um campo, em Blumenau e, no mesmo dia, ligamos para um amigo da família, o Gilson Reinert de Gaspar. Meus filhos, noras e netos ficaram na casa dele. Eu e o Braz ficamos na casa da minha irmã Zenilda, também em Gaspar. Depois de quinze dias, viemos para Ilhota para procurar uma casa para alugar e estamos aqui até hoje! Meus sobrinhos foram para casa deles e quando passaram no pasto do vizinho, acharam o corpo da minha filha Marinéia, em cima de um monte de areia. Dona Luzia, chorando, relata que as buscas já haviam sido suspensas e que o corpo foi encontrado pelos sobrinhos Roberto Pereira e Francisco Martendal. Eles conseguiram ligar para os bombeiros, que buscaram o corpo de helicóptero e levaram para o Instituto Médico Legal, em Blumenau. Depois trouxeram para Gaspar, para a casa mortuária, onde, até sábado de manhã, o caixão ficou lacrado e então, foi levado para o cemitério do Braço do Baú. Ela não tinha mais dedos, orelhas, olhos, nem cabelo. Estava sem roupas que foram levadas pela água. Sobrou apenas uma tira de uma blusa azul. Não cheguei a ver, só o Juliano, marido dela e meu filho Ademir, marido da Cristiane viram. Para mim, era como se estivessem viajando. Eu não acreditava que elas tinham ido, nenhuma das duas! Eu não tinha nada disso na cabeça, agora é que estou sentido falta delas.

Roupa da menina Larissa, encontrada em uma cerca. BV Rejane e Adriana (Ilhota) com Cmte. Vinotti (Indaial)

Equipe de bombeiros voluntários de Indaial, em busca do corpo da menina Larissa

189


O comandante Vinotti, de Indaial, e seu grupo vinham diariamente ao Alto Baú, com um único objetivo: encontrar o corpo de Larissa, filha de Marinéia de apenas onze meses.Um trabalho difícil, pois em se tratando de um bebê, provavelmente, só existissem mechas de cabelos, ossos e alguma roupa. Maquinário e equipamentos precários, também não contribuíam muito. Em uma das buscas, encontrava-me presente, acompanhada de Adriana e Rejane, amigas que fazem parte da equipe voluntária do corpo de bombeiros de Ilhota. Na ocasião, enquanto conversávamos com o comandante Vinotti, observei que em uma cerca de arame farpado, havia uma calcinha comprida, rosa, virada do avesso, além de um pequeno pedaço de pano, que parecia ser uma fralda. Imediatamente as buscas foram focalizadas para aquele local, mas infelizmente, em vão. Logo em seguida avistei uma linda flor, roxa e registrei com as lentes de minha câmera fotográfica, o antagonismo entre delicada beleza e tragédia de dimensões astronômicas. Foi um momento fascinante e deprimente, simultaneamente. Ao olhar para os lados, vi, muito próximo, o que me parecia ser cabelo e mesmo sob forte emoção, decidi me certificar antes de dar outro alarme falso. Concluí, ao tocar que era realmente cabelo e aos gritos, chamei o comandante, que, também a plenos pulmões, disse: “que seja você, Larissa!” E mais uma vez, o sentimento de frustração se abateu sobre os que estavam presentes, pois apesar da semelhança, o que encontramos era apenas raízes de plantas. A área onde provavelmente o corpo se alojou é extensa, e foi, em praticamente toda sua totalidade, destruída. Muitas e gigantescas pedras rolaram, transformando o local num emaranhado de lodo, ocasionado também, pelos jorros violentos e abundantes de água fora de seu curso natural e de árvores frondosas,

Flor fotografada no momento em que considerei ter encontrado cabelo da menina Larissa.

com enormes raízes arrancadas do solo, que destruíram e soterraram residências, empreendimentos comerciais, veículos, equipamentos agrícolas e maquinário industrial. Some-se a isso, o desaparecimento de muitos animais, moradores e trabalhadores da região. A transformação da paisagem pode ser comparada aos mais brutais campos de guerra e foi fator determinante para dificultar e impossibilitar as muitas tentativas de localizar não apenas o corpo de Larissa, mas de diversas pessoas em meio caos reinante. Questionada em ocasião mais recente, sobre as buscas do corpo de sua neta, Dona Luzia, me disse: não foi achado. E eu quero, pelo menos os ossinhos dela, para por no túmulo da mãe!

Raizes confundidas com cabelo da menina Larissa

190


Queremos que continuem as buscas. O Juliano, marido de Marineía e pai da Larissa, também quer. Fica um peso por dentro da gente, esperando sempre, encontrar o corpo da menina. Solicitamos ao diretor da Secretaria de Indústria e Comércio e Comandante Administrativo dos Bombeiros Voluntários de Ilhota, Paulo Vilmar Batista, popularmente conhecido como Expresso, para que as buscas fossem retomadas. A matriarca nos relatou o que aconteceu com a empresa familiar que possuem, atuante no ramo de compra de palmeiras e vendas de palmito em conserva, a conhecida Conservas Martendal, que desapareceu com a tragédia, mas que não conseguiu abalar o ânimo empreendedor dos Martendal. Já as residências, apesar de não terem sido atingidas, foram abandonadas, por estarem localizadas em uma região de alto risco e sem acesso. Depois de natal, compramos um terreno aqui em Ilhota, no bairro de Minas, estamos construindo e até o final de fevereiro, estará pronto. Já está coberto. Quase todos os funcionários que trabalhavam na empresa lá no Alto Baú, voltaram. Tínhamos 28 pessoas trabalhando, uma delas era minha filha Marinéia. O que restou das máquinas, ainda tentamos reformar, mas quase não deu para aproveitar nada, ficou tudo muito retorcido. Depois de reconstruir a empresa, nós vamos ganhar aquelas casinhas da prefeitura e começar tudo de novo, porque só a vida não volta mais! Eu podia ter perdido tudo, até minha casa, menos a minha filha, porque era a única filha mulher e acabei perdendo as duas. Ela era uma pessoa que não abria a boca pra nada, era só alegria e brincadeira! Quando a gente trabalhava lá na nossa empresa, ela sempre me dizia na hora de ir embora, para a casa dela: mãe tu te cuida. Tu estás boa hoje?Pai, tu cuida bem da mãe! Isso é um peso muito grande para mim! Só que eu tenho mais três filhos e tenho que dar apoio para eles, para o meu marido, as noras e os netos, é tudo o que eu tenho! O Juliano continua aqui, É como um filho, gosta da gente e também temos que dar apoio para ele. Aonde meus filhos vão, eu peço para levarem ele junto, para se distrair. E meus filhos apóiam o cunhado, todos os três! Eles também emprestam o carro para ele sair, porque nós somos assim, uma família unida! O que um fala todos aceitam.O que eu mais quero agora é encontrar minha neta. E vou, com toda certeza. Não sei onde ela está e já passaram dois meses. Tenho fé em Deus que será encontrada!

Marinéia no dia de seu casamento

Construção da nova sede das Conservas Martendal, bairro de Minas, em Ilhota

Menina Larissa. 191


Relato da autora e fotógrafa, após entrevista com Dona Luzia Após a conversa que tive com dona Luzia sobre o que encontrou, quando retornou ao local onde sua família residia, trabalhava, e suas filha e neta perderam a vida, prometi a ela, procurar Paulo Vilmar Batista, o Expresso, pois o prefeito Ademar Felisk já havia autorizado a liberação do maquinário para que fossem retormadas as buscas ao corpo de Larissa. Em ligação telefônica, Expresso me informou que formaria a equipe de bombeiros voluntários e comuniquei minha intenção em acompanhá-los.

BV Pedro Paulo Batista Neto, de Ilhota, quando momento em que encontrou o calçado pertencente à menina Larissa

No dia seis de fevereiro, uma sexta feira, Expresso, em novo telefonema do quartel do corpo de bombeiros, avisava que os voluntários já estavam se deslocando para o Baú Alto e logo após o almoço, seguimos juntos a outros amigos solidários, para fôssemos dar nossa parcela de contribuição, na tentativa, de mais uma vez, localizar os despojos do bebê. Trazia comigo a fotografia do triste dia que considerei ter encontrado o cabelo da menina e a entreguei a ele que, cuidadosamente, analisou a imagem com auxílio de uma lanterna e disse ter observado algo suspeito. Um dos bombeiros voluntários também considerou aquela possibilidade, mas eu não conseguia ver o que eles pretendiam me mostrar e sofri um breve mal estar. Acompanhados por Adriana Conink e Luiz Baldez Júnior, voluntário do Projeto Esperança de Presidente Presidente, São Paulo, chegamos ao local e mostrei ao grupo onde havia visto as raízes que confundi com o cabelo da criança. Dias antes, eu e Juliano, pai de Larissa, já havíamos ido até lá, para que soubesse exatamente onde se localizava. Infelizmente, novas chuvas tinham, mais uma vez, alterado aquele cenário devastado. Seguimos para o local onde foi encontrado o corpo de Marinéia, mãe da menina, onde agora, os bombeiros trabalhavam. No trajeto, nos deparamos com o BV Pedro Paulo Batista Neto, que trazia nas mãos, um pequeno calçado, rosa, pertencente à criança cujo corpo buscávamos e observamos a tristeza e decepção em seu olhar, que a todos contagiou.

O BV Pedro Paulo ainda encontrou, em sua incansável procura, lembranças Marinéia: duas certidões, Primeira Eucaristia e Crisma. Até uma lagoa chegou a ser esvaziada, na esperança de que algum vestígio aparecesse, mas as respostas naqueles dias, eram todas negativas. Certa feita, estando em casa digitando depoimentos para este livro, recebi a visita de um casal de amigos e não titubeei em pedir-lhes auxílio, mostrando a fotografia que vinha nos intrigando, na tentativa de esclarecer o que realmente fora registrado no momento em que foi batida. Resolvi ampliar a fotografia no computador, os dois olharam atentamente e somente ela, disse ver algo, balbuciando: “está ali, estou vendo, parece ser, Meu Deus!’. Novamente senti aquele mal estar, o mesmo do momento em que registrei a imagem e depois, quando da análise da fotografia no dia em retomamos as buscas. Não entendia como algumas pessoas

Pedro Paulo, Expresso e Jornas Maciel vasculharam cada palmo do local, com auxílio de moto serra, para que o entulho pudesse ser removido, facilitando as buscas. Mais uma empreitada sem sucesso, pois nem um sinal do corpo da menina foi visto e já havia decorridos 75 dias da morte de Larissa, o que dificultava as buscas, em se tratando de um bebê com 11 mêses de idade.

Bombeiros voluntários de Ilhota em busca do corpo da menina Larissa.

192


afirmavam ver, o que poderia ser o corpo de Larissa, se na ocasião, a área fora totalmente vasculhada. Pode ser que se trate apenas de impressões, coincidências de imagens devido ao caos que se encontrava e permace naquele lugar, mas até hoje, a dúvida mantem-se instalada em minhas recordações.

Certidões, encontradas durantes as buscas, pertencentes a Marinéia Martendal Scwambach: Primeira Eucaristia (19/11/1995), realizada na igreja Nossa Senhora Aparecida do Alto Baú, e Crisma (10/12/2000), realizada na Capela Braço do Baú.

Esperança da Avó Luzia No dia 17 de março, terça feira, recebi um telefonema, de dona Luzia, que me pedia acompanhar sua nora Márcia ao Alto Baú, na tentativa de ajudar Juliano, seu genro, a dar continuidade às buscas do corpo de sua neta. Disse-me que ele estava desesperançoso, decorridos 115 dias da catástrofe onde perdera a esposa e única filha. Por aqueles dias, uma conhecida senhora daquela comunidade, os informara que, rezando o famoso Responso, tivera a visagem exata do local onde encontrariam os restos mortais daquela criança tão procurada, para que tivesse o descanso final, junto à mãe, no túmulo que lhes cabia. Encontrar o bebê, representava também, o sentimento de dever cumprido e paz àquela família que sequer tivera a chance de chorar seus mortos. Seguimos, era um dia de calor abrasador e quando lá chegamos, câmera fotográfica em punho, Juliano e a pessoa que fez o comunicado à família, ser sabedora do local exato onde encontrariam Larissa.

Nova busca pelo corpo da menina Larissa, no dia 17/03/2009.

Pai Sem Fé e Esperança Permanecemos por longo tempo na localização indicada e mais uma vez, tristes, cansados, cabisbaixos, já considerávamos a possibilidade de nova derrota em mais uma tentiva. Todos os olhares permaneceram fixos à terra que ia sendo removida, na esperança de algum vestígio, quando apareceu a ponta do que poderia ser uma fralda, junto aos pés de Juliano. Ingrata emoção, pois mais uma vez, o corpo não foi encontrado, afinal tantos dias, meses já haviam transcorrido desde a morte e considerávamos que em se tratando de um bebê, as chances eram mínimas, mesmo para localização dos ossos. Ao pai sentido e amargurado e todos os familiares, unidos pela dor, restou apenas, a carga de lembranças e felecidade que a pequena lhes trouxe, no breve período que junto deles esteve.

193


Dia 05/03/2009 :: Depoimento de

Maria Aparecida Maes Mabba Quintino

Moradora do município de Ilhota, Técnica de Enfermagem da Prefeitura Municipal.

M

eu nome é Maria Aparecida Maes Mabba Quintino, funcionária da Secretaria da Saúde do município de Ilhota. No dia 23/11/2008 (domingo) a secretária Jocelene me ligou para saber se eu poderia ir até o Posto de Saúde para ajudar minhas colegas de trabalho, pois havia algumas pessoas feridas devido aos alagamentos locais. Falei que estava um tanto ocupada, pois estava entrando água na minha casa também, precisava tirar meus móveis e roupas; depois de tudo retirado, fomos eu, meus filhos, Renann e Ron Denis, e meu marido alojar-nos na casa de minha cunhada. Na segunda-feira, dia 24/11/2008, novamente Jocelene me liga para saber como eu estava e me contou que estava acontecendo uma grande tragédia no Alto Baú e Braço do Baú, com grandes deslizamentos dos morros, inclusive do nosso Posto de Saúde. Falou-me também que nossa colega de trabalho Débora, e sua família também haviam sido soterradas pelos desmoronamentos, e

Maria Aparecida Maes Mabba Quintino (Tita), com a menina Júlia.

Lilian Clasen.

194


seu filho tão querido e amado, no qual falava com tanto orgulho, João Pedro, de um ano e oito meses teria falecido junto com mais quatro pessoas de sua família. Foi muito triste saber que o filhinho de minha colega não estava mais presente entre nós, quando se fala de criança é muito mais trágico e chocante. Jocelene estava apavorada, não só ela, mas toda a população, não se sabia nem se acreditava em tudo que estava acontecendo. Cada vez mais se ouvia falar em mais duas, três mortes. Pessoas simples, queridas, que morreram sem saber o que estava acontecendo. Jocelene estava sem poder chegar a Ilhota, pois como mora em Itajaí, estava tudo interditado. Conseguimos por alguns contatos, um helicóptero para buscá-la, afinal de contas, ela tinha que se fazer presente, ela é a Secretária da Saúde, juntamente com seu marido, Dr Lucas. Foi a sorte de muitos, que eles puderam chegar até aqui. No final da tarde do dia 25/11/2008 começaram a chegar as primeiras vítimas que foram socorridas. Chegavam de helicóptero. Suas aparências eram assustadoras. Arregalados, desesperados, sujos, famintos; alguns, com sua vida apenas enrolada entre os dedos numa sacolinha plástica; tudo que lhes restou de toda uma vida, estava alí... E muitos que nada conseguiram salvar. Alguns, carinhosamente, ainda conseguiram trazer seus bichinhos de estimação. Estavam machucados, física e psicologicamente, diziam que o mundo parecia ter acabado, que andaram a noite inteira fugindo das avalanches de pedras, barro, lama, árvores... Enfim... Uma luta para poder se manterem vivos. Correndo de um lado para outro na esperança de poder alcançar um lugar mais seguro para si e para alguns familiares que conseguiram se salvar, tendo que deixar para trás aquele que ficou debaixo do barro. A luta pela sobrevivência, sem ter como ajudar o próximo. Até que nessas vindas dos helicópteros trazendo os sobreviventes, fui ao encontro de mais um pessoal chegando e chorando muito. Foi aí que peguei em meus braços uma menina linda, de olhos azuis, porque era o que parecia, ela estava suja e molhada. Ela se chama Júlia e tem um aninho. Ela grudou-se em meu pescoço, abrindo um sorriso de gratidão, com os olhos cheinhos de lágrimas, como que quisesse me dizer: Obrigada por me salvar, estou viva. Não me contive e junto com ela comecei a chorar. Mas, tive que ser forte o suficiente para não me deixar levar pelas emoções, pois havia muitas pessoas chegando com ferimentos. Chegou inclusive uma paciente com hipoglicemia, fizemos os primeiros atendimentos e encaminhamos para o Hospital mais próximo, em Itajaí. Na quarta-feira, dia 26/11/2008 fui para o Baú Central, na Igreja, onde estavam alojadas as pessoas desabrigadas. Havia muitos feridos, pessoas desesperadas, por terem perdido parentes e amigos, e o pior, sem saber notícias, se estavam vivos ou mortos. Na quinta-feira, dia 27/11/2008 fomos para o Alto Baú, e sobrevoando, olhando para baixo, parecia uma localidade de horror. Pousamos num campo de futebol, vi um monte de entulhos, carro, trator. Perguntei para um bombeiro do que se tratavam aqueles entulhos, ele me respondeu que ali havia duas casas, que já não existem mais, só restaram escombros, e que ali haviam falecido cinco pessoas, e para minha surpresa, ali havia morrido o pequeno e querido João Pedro, filho da minha colega de trabalho, Débora. Foram chegando mais militares e bombeiros, à procura de vítimas, trouxeram dois cães labradores farejadores chamados Frank e Sarah, para ajudar nas buscas. Fomos até uma casa que estava toda aberta e abandonada, parecia casa mal assombrada... Nessa casa, estavam abrigadas as pessoas que tiveram que fugir dos desmoronamentos. Ficaram ali aquela noite (domingo), inclusive as pessoas das duas casas soterradas que estavam nos entulhos, onde lá ficou João Pedro. Conseguiram contato e socorro na segunda-feira, os feridos foram

para os hospitais de Blumenau, e as outras pessoas para os abrigos, então falei para minha amiga e colega de trabalho Eliane, que deveríamos ir para o outro posto de atendimento, onde estavam o enfermeiro Márcio e nosso médico, Dr. Lucas, que não media esforços para ajudar esses seres desesperados. Trabalhou durante três dias consecutivos, sem descansar, sem dormir, com o único objetivo de poder ajudar, salvar, curar e fechar uma ferida que só o tempo mostrará a verdadeira cicatrização. Entramos no helicóptero e fomos para o Braço do Baú, onde tinham montado um posto de atendimento na Igreja. Ali era muito triste, várias pessoas feridas. Todos muito assustados, eles falavam que havia acontecido uma explosão e que um clarão fez a noite virar dia, e em seguida começou a vir muita terra, troncos de árvores e muita água. Parecia que todo o mundo estava desmoronando sobre eles, e que os morros derretiam como picolés. Apesar das pessoas feridas e assustadas, o mais triste naquela Igreja foi quando um helicóptero chegou trazendo dois caixões. Um era bem pequeno e branco. Era um anjo. Um feto de oito meses, e no outro caixão, o seu tio. Era muito triste ver as pessoas sem ter mais suas casas, seus terrenos, seus móveis e imóveis, e ainda sem seus entes queridos. Algumas pessoas perderam tudo e quase todos. E nós tendo que estar firmes para podermos agir da melhor e mais rápida maneira. Do nosso Posto de Saúde nada sobrou. Entrou mais de um metro de água e lama. Tinham algumas pessoas tentando salvar alguns pertences no meio de toda lama. As máquinas tentando tirar os entulhos da estrada, para tentar dar passagem para as pessoas verem o que sobrou de suas residências. Voltei para a Igreja do Braço do Baú, e logo em seguida retornamos para a Unidade Central. No dia seguinte ficamos sabendo que durante a noite havia acontecido mais deslizamentos naquele local. Os morros são muito altos, imagine que venha lá de cima o deslizamento. Vem numa velocidade e volume que não se faz idéia. Leva tudo e todos que estão pela frente. Sem saber da onde será o próximo deslizamento. Sem saber para onde fugir, visto que a área é toda de morros, por todos os lados. Tiveram que retirar todo o pessoal que estava no abrigo do Braço do Baú, pois estava correndo risco, e o posto de atendimento também, foram todos transferidos para o Baú Baixo. Fiquei trabalhando na Unidade Central com vários voluntários. Vinham de todo o Brasil, médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem da Cruz Vermelha, SAMU, bombeiros, exército; todos juntos, unindo forças para poder dar um pouco de luz àquelas pessoas desesperadas, que não sabiam mais o que fazer, alguns preferiam ter morrido junto com seus familiares. Trabalhamos, fazendo plantão a cada 12 horas ou mais. Meu amor pela minha profissão cresceu muito diante de toda essa tragédia. Senti-me importante, honrada e acima de tudo, foi-me muito gratificante ter podido me doar tanto a essas pessoas, fiz tudo que pude. E faria tudo de novo se fosse preciso, mas, espero nunca mais precisar socorrer pessoas queridas, conhecidas, numa tragédia tão triste como essa que aconteceu na nossa pequenina e singela cidade, deixando 32 mortos, onde nunca imaginamos que isso poderia acontecer um dia. Passou... Vamos rezar e pedir a Deus que ilumine essas pessoas, que elas possam dormir em paz, que refaçam suas vidas e que a lembrança das noites dos dias 23 e 24/11/2008 sejam amenizadas. Que as crianças que sobreviveram, possam velhinhos, contar aos seus netos, que foram sobreviventes de uma guerra, não de bombas e armas, mas, de água e lama, e que foram abençoados e escolhidos por Deus para concluírem seus ciclos e deixarem uma mensagem de otimismo e fé, que nunca se deixem enfraquecer, e que a luz divina sempre os acompanhe...

195


Dia 09/02/2009 :: Depoimento de

Maria Batista Hostin

Moradora do Alto Baú.

S

ábado, dia vinte e dois, umas nove e meia da manhã, caiu uma árvore grande da minha casa, em frente do sítio do Calinho Schimitt, e já ficamos sem energia. Chovia tanto que encheu todo o terreno, depois a chuva parou um pouco. À a tarde eu e meu marido (José Valdir Hostin) limpamos tudo, os canteiros de verdura ficaram limpinhos, tudo bonitinho. Quando chegou de noite eu e meu marido sentados, com uma vela acesa na mesa, estávamos só nós dois. Ele então abriu a janela da frente e ficou cuidando, de repente gritou que a água estava subindo. E eu falei ‘Meu Deus! Deus nos livre! E ele falava, ‘está subindo rápido, já está na calçada, está chegando na antena parabólica’. E eu, ‘Credo, Zé, nem quero sair daqui!’ Fiquei sentada à mesa, pasma! Ele levou de volta a lanterninha lá para fora e falou: ‘Velha está subindo muito, vamos levantar alguma coisa.’ E eu falava, não, mas não entra aqui dentro de casa.’ Ele insistiu tanto que acabei concordando, daí tiramos nove gavetinhas dos guardarroupas, colocamos em cima da cama e só! E eu falava, ‘não vai subir nego, não vai subir em cima da cama, não vai encher.’ Eu estava bem assustada, mas confiante de que não iria encher, e agora para onde nós vamos? Perguntei. Não sei, ele disse, vamos subir, pegar o morro! Não, disse em seguida, vamos para dentro da caminhonete, então fomos. Quando nós abrimos a porta da cozinha a água já veio até nos nossos joelhos e jogou-nos para trás, de tanta força que tinha. E eu dizia para ele, tranca, tranca com a chave, não deixa a porta aberta. Fechamos e fomos para a caminhonete, subimos, e a correnteza do rio arrebentou a cerca, a caminhonete boiava, (chorava muito, muito emocionada em lembrar desse momento) ficamos lá dentro até quatro horas da manhã. Queríamos subir para o mato, mas era tanta chuva, tanto vento, que não dava para nós dois se segurar! Entramos então para a casa, a água já tinha baixado um pouco, começamos a tirar lixo, paus, peixes, tinha de tudo dentro de casa. Daí meu marido me fala, ’eu não aguento

Destruição em frente à casa da família Hostin.

mais, acho que vou morrer!’ E eu dizia, ‘tu não vais morrer, Deus é pai, tu não vais morrer!’ E ele, ‘Eu não aguento mais de frio!’ Então peguei um balde com água quente, lavei as pernas dele, sequei com uma toalha, daí ele foi para cama e me deitei a seu lado com o braço para baixo pendurado, pensei, ’eu sou boba! E se eu dormir e a água subir de novo? Vamos boiar nós dois aqui, vamos morrer dormindo?’ Então fiquei com a mão para o chão, e quando a água chegar no meu dedo nós correríamos de novo, mas graças a Deus não encheu mais! Quando foi seis horas da manhã, ele acordou assustado e me perguntou, ‘tem água dentro de casa?’ E eu disse, ‘não nego, não entrou.’ Ele abriu a janela da frente, a várzea estava toda destruída, as plantações que a gente tinha de banana, aipim, frutas, tudo cheio de palmeiras, tudo carregado dando frutas, era coisa mais linda que se via,estava tudo destruído. Quem olha agora é só uma tristeza. Então ele começou a chorar, gritava e dizia ‘Velha, tanto dinheiro que a gente gastou!’ Todo mês aquele trocadinho, a gente comprava mais um pé de fruta. Eu para consolar dizia, ‘deixa nego, Deus tira, e é assim mesmo, só deus é que pode tudo!’

Casa da família Hostin no Alto do Baú.

196


Chegou meu primo, irmão do Malique, o Miti (Amilton), batendo com o facão na porta e dizendo ‘Zeca, Zeca, Maria, Maria!’ E eu falava para o Zeca,’ Estão batendo aqui!’ Ele então abriu a porta e disse ‘Vamos embora, lá de cima e vocês vão sumir daqui se não saírem, vamos embora porque vem uma barreira muito grande!’ Pegamos o mato, meu marido foi ligeiro como um gato, eu levei umas duas horas por aquele mato adentro até chegar na tia Nini (Maria da Silva). Chegando lá eu disse assim, ‘a Preta (Alexandra, mulher do Miti) não pode ficar na casa dela’. Ela tem um bebezinho. Ela dizia que não ia sair dali. E eu dizia, ‘ Preta tu não sabes ainda o que a água da enchente pode fazer para a gente! Não, eu não vou! Ela insistia. E eu disse, ‘me dá o Nacinho (Inácio,de oito anos) que já carrego, pegue o João Vítor (bebê de cinco meses). E a Preta teimava que queria ficar ali com os filhos. E eu falava sobre o perigo da barreira descer e ninguém sairia mais do lugar. O rio já estava a um metro e pouco do portão deles. Uma correnteza muito forte. Quando o barro descia do morro, aquela água subia até uns três metros de altura. Estávamos em onze pessoas na casa na casa da Nini, e eles em treze na casa da dona Ana. Fomos todos então para lá (casa Dona Ana). Não tínhamos mais comunicação com ninguém. Depois os helicópteros desciam ali na dona Ana, traziam comida... Ainda na segunda-feira, dia vinte e quatro, eu escrevi um bilhete dizendo que todos estavam vivos e fui levar lá nos helicópteros para tentar que alguém anunciasse via rádio ou TV, na esperança de que minha filha, a Edna que mora em Itajaí ouvisse, porque não tive mais contato com ela, estava muito aflita, e quem pegou foi o Cabrini, um jornalista da TV, ele me falou, ‘pode deixar que nós vamos anunciar, dona Maria, pode deixar’. Eu disse ‘então está.’ Agradeci muito e voltei. Na quarta de manhã, nosso vizinho, o Egon Budag conseguiu carregar o celular, aí então consegui falar com ela. Depois disso tudo, na quarta mesmo, fomos regatados, descemos no campo de futebol no centro de Ilhota. Eu tinha uma bolsinha com alguns pertences e (nesse momento ela se emociona com a lembrança) também a viola e o violão dele, eu quase morri, minha pressão estava a mil. Dalí fui direto para o hospital. Cheguei lá igual a um bicho, de botas, porque lá no campinho enterrava todo o pé da gente! Lá eles queriam me ver e não me achavam (família).Depois minha prima chegou e perguntou? ‘A Nia, (meu apelido) onde está?’

Chegada da família Hostin e vizinhos em Ilhota. Encontrou-me e fiquei muito feliz! Lá me medicaram, veio um médico, veio outro e diziam que eu teria que ficar em observação. Eu estava tão nervosa que não conseguia dizer o nosso nome. Depois uma moça que estava ali no meu lado perguntou o nome do meu marido, e eu falei José Valdir Hostim, e tinha uma mulher ali com hemorragia, quase morrendo, disse assim: ‘Ah! Essa mulher, eu escutei a carta dela na televisão. Disse que ouviu dizer assim: Edna! A mãe e o pai estão vivos! O Malique, o Miti, a dona Maria, a tia Nini, estão todos vivos! Edna, nós não morremos, Edna! A mulher disse que havia escutado isso e a minha filha não! (Dona Maria nesse momento chorava demais). Depois outro médico me atendeu de novo e me deu alta. Dona Maria Sperber e seu filho chegaram para me buscar.Fomos direto para Itajaí, na casa da filha e lá estamos até hoje! Perguntei se gostaria de um dia voltar para o Baú. Meu marido quer voltar, está doido que recuperem a energia logo para poder voltar. Eu não tenho mais vontade! (Chorando dizia) ‘Acabou tudo, vou ficar mais perto dos filhos, pode acontecer outra desgraça e se Deus não levou na primeira, mas pode levar! Sábado passado estivemos lá no Alto Baú, então tiramos tudo de dentro de casa. Deu dois caminhões de entulho, tudo que tinha dentro de casa. Lá, o que sobrou são só as paredes da casa!

Sr.José Valdir Hostin, no dia do resgate, com seu violão.

Dona Maria Hostin, no dia do resgate, sendo conduzida pelo BV Roberto Carlos Merlini, de Ilhota. 197


Dia 06/03/2009 :: Depoimento de

Maria Júlia Corrêa

Secretária Executiva da ACE e Voluntária S.O.S Ilhota

A

lição de vida que tiramos de tudo o que aconteceu, com o pesar das vidas que foram ceifadas, é que jamais poderemos esquecer que para tudo há um recomeço. Rogamos a Deus, pelos “anjos da guarda” que não mediram esforços para socorrer as vítimas da catástrofe. E que a paz, união e perseverança, seja o lema do povo, pois para tudo o que acontece na trajetória de nossas vidas, nunca devemos esquecer que nada acontece por acaso.

198


Dia 28/02/2009 :: Depoimento de

Mário Lúcio Reichert, Márcia Reichert

Moradores do Braço do Baú, Rua Teodoro Reichert, popular Mata Pasto.

Clarice Pitz e Juliana Zuchi Moradoras de Gaspar.

Mário Lúcio: Sexta-feira, dia 21 de novembro, eu convidei minha irmã Clarice e minha sobrinha Juliana que moram em Gaspar para virem à minha casa no Braço do Baú, porque eu e minha esposa Márcia queríamos sair no sábado de manhã, e queríamos que elas ficassem com nosso pai, Hildemar que precisa de cuidados, tem o mal de Alzheimer, e já está com 82 anos. Elas ficaram em dúvida, se iam ou não, porque chovia muito. Eu trabalho em Gaspar e minha esposa me ligou assustada porque chovia muito. Clarisse e Juliana estavam no ponto do ônibus se preparando para ir para o Braço do Baú. Naquele dia eu trabalhei até mais tarde e às 10 horas fui para casa. Ao chegar, vi que elas estavam muito tranquilas e brincando. Eu passei por uma ponte perto de casa e fiquei assustado, tinha muita água! Em casa ainda comentei com elas, vocês não estão assustadas, tem água quase por cima da ponte. E continuou chovendo, até dormimos bem aquela noite. De manhã eu e minha esposa e Juliana íamos para Gaspar, e Clarice iria ficar com o pai. Chegamos a nos arrumar. Clarice abre a torneira da pia e me fala: - ‘Lúcio, antes de saíres dá uma olhada na água, porque acabou!’ Então eu resolvi subir o morro para arrumar a mangueira e demorei muito, pois estragado a caixa d’água. Quando voltei disse a elas: - ’fora de cogitação, vamos ficar em casa, não vai dar para sairmos daqui.’ Márcia e Juliana ficaram meio assim, e perguntavam, será que não dá para passar?Respondi que não, a cachoeira ali em cima estás com muita água e continua chovendo. Desistimos. Ainda bem! Já tinha água por cima da estrada, nesse dia deram três enxurradas, a água baixava e voltava, saímos de carro para ver alguma coisa e já não deu para passar lá para baixo. Já começou a dar alguns estragos.

À noite, mais chuva forte, ficamos até meia-noite com o Jorge, meu vizinho, que tinha o beneficiamento de madeira ao lado da minha casa, cuidando para a madeira não ir embora. Depois fomos dormir, e chovendo, mas ninguém imaginava nada. Meu pai mora há 82 anos ali e nunca aconteceu nada mais do que enxurradas e pequenas enchentes, Coisa normal, pensávamos que seria assim. Clarice: Nós nos preocupávamos com o ribeirão na frente de casa e não com a cachoeira. Mário Lúcio: Domingo de manhã, levantei bem cedo, por volta de 5.30 horas, fui lá para o beneficiamento de madeira do Jorge, acho que ele não dormiu a noite inteira, estavam também sua esposa Célia, os vizinhos Chico e Ângela, cuidando da madeira dele, tinha os estaleiros todos em pé, eu já corri para ajudá-lo, pois descia muita água do morro. Salvamos algumas madeiras jogando-as para outro lado. Ali eu já senti que a água já não estava normal, o que descia do morro era lama, aquilo vinha trancando no meio das madeiras, cada vez aumentado mais, andávamos com água pela cintura. Eu disse para o Jorge, não adianta mais a gente salvar as madeiras, só vamos abrir os estaleiros para a água passar, senão formará barreiras e vai derrubar os estaleiros todos e vai causar mais estragos. Começamos abrir os buracos e num momento Célia se arriscou tentando salvar madeiras que caíram do estaleiro, o filho deles, o Marlon pulou e puxou-a, foi por pouco. Então Jorge viu que realmente estava ficando muito perigoso, desistindo. Eles então foram para casa deles e eu fui para a minha. Quando cheguei minha irmã já estava desesperada e me disse: - Lúcio, não é hora de nós sairmos daqui da casa? A Márcia, minha esposa disse que era besteira e fiquei em dúvida. Márcia: Eu gritei, então vamos! Se é para sair vamos sair já! A Clarice falou para irmos levantando alguma coisa. Mário Lúcio: Saímos com meu pai, com meu menino, o Antônio

Casa da família Reichert antes da tragédia.

199


Carlos de 5 anos, pegamos alguma coisa, meu pai ainda andava devagar e com dificuldades, atravessamos o morro para casa do Chico, subimos o morro, atravessamos com dificuldade, atrás da minha casa passamos com água até no joelho, quando chegamos na casa do Chico e Ângela, nos já ficamos assustados porque eles já estavam limpando a lama da varanda que tinham atrás da casa, a água já tinha entrado e saído, porque no morro atrás tem uma cachoeirinha que desce no meu terreno e provavelmente já estava acontecendo deslizamentos e trancava a água, que então se acumulava e quando arrebentava, vinha a água com lama e foi assim que entrou lama na casa deles. Até levamos frango temperado para assarmos na churrasqueira nova do Chico, ele reformou tudo, fez essa varanda nova. Mas daí começou a assustar, era muita água que descia dos morros e começou a vir árvores também. Clarice: A Ângela disse: ‘ entrou água, mas já baixou.Não é que tinha baixado, é que a tranqueira não deixava a água passar. Todos também achávamosisso, todos contentes, mas não. É que a tranqueira represava a água, mas depois enchia de volta. Mário Lúcio: e quando se rompia a represa vinha água de novo. Clarisse: Quando chegamos lá, estávamos todos molhados, trocamos a roupa do pai, ele gritou muito para passar por dentro da água e nós o arrastando, e ele nem entendia o que estava acontecendo e só gritava: - Para que isso? Desesperado. Lá eu não parei nunca, andava direto e minha filha gritava comigo, mas eu estava apavorada andando naquela chuva forte. Eu rezando, mas sempre na rua. Mário Lúcio: Tínhamos que cuidar de Clarice, pois não saía da chuva, desesperada, pronta para correr. Atrás da casa do Chico a cachoeira faz uma curva e antes tem um morro. E começou a jogar água ali por cima do morro e vinha para a casa deles, quando a gente viu que começou a jogar água e lama ali, que sentimos que arrebentou alguma coisa no morro, corremos todos nós, também os 3 filhos do Chico. Menos eu. Clarisse: Nós todos para fora e Lúcio dentro de casa tirando o nosso pai. Mário Lúcio: Nossa, foi um momento de desespero porque eu tive que puxá-lo e sair arrastando e ele só gritava sem noção do que estava acontecendo. O Chico então pegou em um lado e eu no outro e fomos carregando-o por dentro do bananal, atravessamos todo meu terreno. Clarisse: Daí o Chico gritou: - Vamos entrar no rancho, atrás da minha casa! Era um rancho mais alto do chão, íamos entrando quando a lama começou entrar por debaixo. Então já saímos dali, quando estávamos correndo, batemos com uma cerca de arame farpado com os fios bem juntinhos. Acho que na hora o ser humano adquire uma

força tão grande, que Lúcio se agarrou em um moeirão e eu no outro e derrubamos a cerca. Atravessamos por cima daquele aram, levando o nosso pai de arrasto, até que chegamos embaixo do pé de tangerina. Mário Lúcio: Ficamos lá até dar uma acalmada e depois fomos para a casa do senhor Pedro Miranda, conhecido como senhor Pepa, deixamos o pai lá e voltamos para a casa do Chico. O pai, Márcia, Juliana e Antônio Carlos ficaram na casa do seu Pepa. Clarisse: Voltamos para buscar nossas bolsas, quando chegamos lá, a casa estava de lama até a altura do joelho. O Chico e Ângela só choravam junto das crianças, e eu dizia: - vamos com a gente para casa do seu Pepa! E eles respondiam que iam ficar ali. Daí eles ficaram, ainda quis levar o menino deles conosco, mas ele não quis ir. Eu e Lúcio voltamos para casa do seu Pepa. Mário Lúcio: Chico ficou lá com a família até a tarde. Continuava chovendo e fui até minha casa, consegui passar, fui buscar roupa para nós. Para voltar passei com água pela cintura. Deixei as roupas no seu Pepa e fui à casa do Chico novamente. Lá eles haviam desistido de limpar porque a lama tinha tomado conta, eles já estavam tentando atravessar a cachoeira para ir na casa do pai da Ângela, minha tia e do Jorge. Jorge também atravessou a cachoeira e levou a família para lá, que era o ponto mais alto e ficamos separados. Clarice: Trancou tanto lá em cima que a cachoeira baixou e eles conseguiram passar para a casa da minha tia. Mário Lúcio: De tarde deu uma baixada boa, e pensei que ia melhorar. Dali a pouco começou a chover forte. Começou encher de novo. Já era de noitinha, tudo era tão desesperador, eu rezava muito para parar de chover, para melhorar, era muita água e cada vez vindo mais, e seu Pepa, um senhor já de idade, acalmava a gente, dizendo, não, nunca chegou água aqui e nunca vai chegar, nunca aconteceu isso! Bateu o desespero na minha esposa. Clarisse: Porque ela não sabia nada da família, os pais e uma irmã, que moram perto do mercado do Gelásio Richart, não muito longe, mas não tinha mais acesso para lá e ninguém conseguia acalmá-la. Mário Lúcio: Continuavam os deslizamentos nos morros, e eu assustado, já tinha noção de como era lá para cima na cachoeira, já tinha subido lá à tarde e meu medo era de que podia trancar e depois vir tudo para casa do seu Pepa, onde estávamos. Quando chegou 7.30 horas foi o momento mais horroroso da minha vida. Vi que arrebentou a parte alta da cachoeira, começou a vir pedras, veio derrubando bananeiras e veio em nossa direção, foi quando agarrei meu filho e chamei elas, dizendo: - Vamos fugir! Só

200


olhamos um para o outro e subimos o morro atrás da casa do seu Pepa. Clarisse: Na casa do seu Pepa estavam ele, sua esposa, um filho e o pai. Nós insistimos muito para eles saírem e ele só dizia que não e que não ia acontecer nada, só que eles não tinham visto nada na rua. Mário Lúcio: Corremos com duas sombrinhas nós cinco. Clarisse: Corremos até um pedaço, daí Lúcio olhou para mim apavorado e disse: - E o pai? Ao que respondi: - Mas levar o pai como? Mário Lúcio: Meu pai ficou na casa do seu Pepa, chegou num ponto que ninguém podia fazer nada, ele não suportaria o que nós passamos. Nós olhamos um para o outro, e o deixamos na mão de Deus, já que iam ficar seu Pepa, a esposa e o filho. Ele era seguro no que dizia, nós não. Quando estávamos subindo eu olhei no sentido da casa do Chico e da Tia Maria e já vi que a casa do Chico não estava mais, e só vi uma vela acesa na casa da tia Maria, não tinha mais nem porta da cozinha. Eles tinham fugido, mas eu não comentei nada com os outros, estava começando a anoitecer, nós subimos uns quinhentos metros para dentro de uma roça de eucalipto e lá ficamos Foi a pior noite da minha vida. Clarisse: Nós encharcados, Lúcio agarrado com o filho, frio, frio, chuva, chuva, era horário de verão, estava começando a anoitecer, não víamos nada, nenhum verde, só branco de chuva. Era assim como se tivesse colocado num buraco e só víamos aquela coisa branca. Nós não sabíamos onde tinha um lugar seguro. O barulho, o ronco das pedras era tanto que não sabíamos para onde ir, daí Márcia dizia: - Vamos mais para cima, mais para cima!’ E nós estávamos desesperados, não sabíamos onde nos meter. Dava-me aqueles desesperos, e minha filha

gritava, mãe, fica aqui, fica aqui! E eu não sabia aonde ia parar. Então nessa hora nos juntamos todos, nós quatro juntinhos com o menino no meio, e começamos a rezar. Mário Lúcio: Nós ficamos bem no meio de um ponto, onde num lado terreno de grota, de cachoeira e nós ficamos a uns 10 a 15 metros de onde passaram os deslizamentos. Na minha cabeça eu imaginava que podia deslizar o morro em cima de nós também, tinha um bananal atrás de nós também, ficamos ali, agarrados, nós rezando e a Juliana cantando. Clarisse: Cantava cantos para a Nossa Senhora. Mário Lúcio: Eu tinha uma jaqueta, enrolei meu filho, e perguntava para ele: - Estás bem, Antônio Carlos? Estás com frio? E ele: - Não, só estou com sono! Depois ele dormiu, ele não reclamava nada, nem de pedir para ir embora,nada, ficou ali. Clarisse: Eu só pedia para Nossa Senhora... (nesse momento Clarisse não consegue nem falar, começa a chorar, e todos nós também) que ela... Mário Lúcio: No dia ela não chorou em nenhum momento. Chegou lá em cima eu falei para elas: - Vamos prometer que ninguém vai ser fraco, ninguém vai chorar, vamos ser fortes porque temos que aguentar, pelo menino. Estávamos fazendo tudo por ele. E meu pai? Se acontecesse alguma coisa com ele, eu não me perdoaria jamais. Clarisse: Minha mãe sempre tinha muita fé no Anjo da Guarda, ela só falava no Anjo da Guarda, daí eu pedia muito para Nossa Senhora dar um sinal para gente (todos choram) que nós íamos conseguir, então uma coisa me dizia, como se minha mãe dissesse, era uma voz que dizia: - eu estou dando um sinal para vocês, eu dei um Anjo da Guarda para vocês! E eu disse: - Nós temos um sinal! A Nossa Senhora já deu um sinal, nós temos um anjo, o anjo está conosco, ela

No dia que Mário Lúcio, parentes e amigos foram para o Braço do Baú com o trator de Sérgio Werner (Mi) buscar a mudança.

201


já deu para nós! Então ficamos todos ao redor dele (Antônio Carlos) e nos abraçamos bem pertinho dele, e eu dizia: - Nossa senhora não deixa nosso anjo passar frio, cobre com teu manto! A gente sentiu um calor, aquecia a gente, e nos abraçávamos e ficávamos bem juntinhos para esquentar o menino. Nós íamos rezando e Juliana cantando os cantos de Nossa Senhora e depois nós também cantávamos. Não aguentávamos mais de pé, então sentávamos todos no chão molhado e nos abraçávamos. Mário Lúcio: O barulho era horrível, estou com esse barulho na minha cabeça até hoje, nós sentíamos que deslizava o morro e vinha rolando pedras, árvores. Eu sabia certinho o caminho da cachoeira, sabia onde fazia a curva e dizia para elas: - Agora essa passou! O meu medo era que quando fazia a curva podia arrebentar e vir para nosso sentido. E Juliana perguntava: - Passou tio?Passou agora? Mas qualquer pingo de chuva forte que dava, ficávamos assustados. Era uma aflição só. Márcia: O barulho parece que começava lá longe no morro do Baú e começávamos a escutar, estávamos em pânico e dizíamos agora está vindo, agora está vindo, e daí... Graças a Deus passava! Clarisse: Teve horas assim que minha filha ia rezando cada vez mais forte, cada vez mais forte, daí eu dizia: - Filha não adianta (se emocionava muito) não adianta mais nada, dava aquele desespero assim. Daí quando passava aquele monte de água, pedra e lama pelo nosso lado, que a gente escutava bater lá embaixo, dizia: Agora passou! Mário Lúcio: E eu só ficava imaginando a casa deles lá para baixo e só pensava no que aquele pessoal estaria passando! Até tentava fazer um comentário com ela, que só dizia, não fala, não fala! Não fala nada porque pode estar acontecendo. Clarisse: Na minha cabeça, o Jorge, tia Maria, o Chico e Ângela, já estavam todos mortos e na casa do seu Pepa também pensava, não tem mais nada lá. Mário Lúcio: Até tem um detalhe do Antônio Carlos, que a sombrinha estava furada, porque andamos no meio de eucaliptos, e começou a cair

goteira bem na cabeça dele, a Márcia tinha levado uma sacola plástica com uma roupinha dele para trocar, e sobrou aquela sacolinha, eu fiz então uma touca e coloquei na cabeça dele, e eu perguntava para ele se estava molhando a cabeça, não, não ele dizia, e ele ficou sempre com aquela sacola na cabeça. Clarisse: A noite inteira não escutamos essa criança dizer pai eu estou com medo ou, vamos embora, ficou a noite inteira quietinho. Mário Lúcio: Houve um momento em que Clarisse pediu para ver estrelas... Clarisse: Eu lá falava: - Nossa Senhora vai fazer com que vejamos estrelas no céu essa noite ainda! Ela vai mostrar estrelas para nós! E falei, e continuamos a rezar a cantar. Juliana: E com aquela chuva, como iríamos ver estrelas? Dizia eu à minha mãe. Mário Lúcio: Eu calculava que deveria ser umas três horas da manhã, só depois que a chuva deu uma trégua. Clarisse: Eu só escutei quando Lúcio disse assim: - O que tu querias ver essa noite? E eu: - Eu queria ver estrelas no céu. Que a nossa senhora ia nos mostrar. Ele disse: - Então olha para o céu! Contamos 12 estrelas em cima de nós, só numa roda em cima de nós. Mário Lúcio: É incrível, mas foi só naquele momento ali. Só naquele momento que apareceu. Clarisse: Para mim não teve outra explicação, (chorando) foi a Nossa Senhora! Mário Lúcio: Ameaçava de chover de novo, dava uma acalmada. E daí foi até3.30 da manhã, eu comentei com Clarisse, será que já está amanhecendo? Vamos descer! E a Márcia dizia: - Vamos esperar! Eu dizia para elas, quando escutarmos o primeiro passarinho cantar, é porque está começando a amanhecer! Clarisse: Eu fiz uma cirurgia de coluna e tenho um problema na perna esquerda, e minha filha dizia: - Mãe, movimenta a perna!’ Juliana: Como ela ficou muito tempo na chuva, ela tremia muito, era muito frio mesmo, e como eu estava com roupa de tactel, já protege

No dia que Mário Lúcio, parentes e amigos foram para o Braço do Baú com o trator de Sérgio Werner (Mi) buscar a mudança.

202


mais, eu só me preocupava em protegê-la, e a abraçava bem juntinho. Nervosa e frio! Ficamos muito tempo sentadas e começava a adormecer as pernas. Eu pensava: será que vamos morrer todos de frio? Mário Lúcio: Eu disse: ‘Vamos descer agora porque eu acabo de ouvir um passarinho cantando! Vai começar a amanhecer. De fato começou. Quando estávamos descendo deu um deslizamento no lado esquerdo, ainda a Márcia comentou: - Será que agora que acabou tudo! Márcia: A noite toda houve deslizamentos. Quando descemos, chegando na casa do seu Pepa, veio bem forte aquele barulho de novo em outra direção, daí pensei, agora vem em cima de nós, mas passou do outro lado, acabou. Mário Lúcio: Descemos eram 5.30 horas quando chegamos dentro da casa do seu Pepa. Clarissa: Seu Pepa dormindo, a esposa dormindo e nosso pai também. Dormiram a noite toda. Na minha mente, como a Nossa Senhora protegeu a gente que estávamos na mesma direção da casa deles, protegeu-os também Mário Lúcio: Ao redor da casa dele ficou tudo alagado, e a casa dele ficou ali, o deslizamento que deu foi certinho na divisa do meu terreno com o dele, só pegou o meu terreno e a casa dele nada. Entramos na casa, até cheguei calmo, trocamos de roupa, até pegamos umas roupas da dona Nina, esposa do seu Pepa, para vestirmos. Até fui deitar com meu menino no chão, ele já começou a dormir só que daí pensei: nossa! O que estou fazendo aqui, depois de tudo que me aconteceu, sou obrigado a sair daqui! Tenho que sair para ver o que aconteceu. Passei por trás da casa dele, olho para minha casa, para a casa do Chico, bem... A do Chico já não existia mais, a paisagem era assim... Meu Deus! Uma tragédia! Márcia: Fomos à nossa casa pegar umas roupas, estava toda com lama ao redor, a gente atolava, só mesmo quando estávamos por cima da calçada que conseguimos andar, se não afundávamos. Estava de lama até a janela e dentro dela não tinha entrado nada! Estava tudo intacto, só uma lâmina de água que talvez que tivesse voltado pelo esgoto ou coisa assim, menos mal, pensei, pelo menos não perdi tanta coisa. Clarisse: O carro tinha saído da garagem, foi lá para fora. Márcia: Ele saiu boiando, bateu na quina da varanda e parou. Mário Lúcio: Depois disso tudo que aconteceu, todos receberam ordem de evacuar a área, começaram a sair devagarzinho. E convencer seu Pepa a sair com dona Nina, que é uma senhora doente, são pessoas de idade, achavam que não precisavam sair. E eles não queriam sair, foi muito difícil de tirá-los de lá. Clarisse: Tirar mais uma vez meu pai do lugar em que estava, na verdade meu pai saiu três vezes da cama, da cama para a lama. Nesse momento meu pai, ( José Fischer) e minha irmã Lair, chegaram ali, na casa do seu Pepa, procurando por nós. Eles estavam muitos assustados, pensaram que não iam encontrar a gente, porque

perguntavam para todos e ninguém sabia. Daí então consegui ficar mais tranquila e eles também. Então meu pai, pela terceira vez, o seu Pepa e dona Nina saíram. Mário Lúcio: Ainda bem que chegou um amigo, o Onenir (Gira) que colocou meu pai nas costas, ele é bem forte, e carregou-o com dificuldade, porque tinha muitas tranqueiras, lama, árvores. Então meu cunhado, Sérgio Werner, chegou nos procurando, colocou meu menino no colo e saiu carregando-o por dentro daquela lama toda. E meu menino dizia: - O tio Mi(Sérgio) é nosso heroi! O tio Mi nos tirou do meio da lama! Márcia: O Sérgio tem trator, então ele ajudou muita gente. Clarisse: Fomos os últimos a sair, queríamos ir até a igreja do Braço do Baú, onde todos os moradores estavam indo. Saímos, mas a correnteza era muito forte quando atravessamos o ribeirão. Quando chegamos ao mercado do Gelásio, eu me perguntava assim: meu Deus! Por que convidei a minha filha que é casada para vir comigo para cá? Mas ela dizia: Eu vou com a mãe, eu vou com a mãe! E fazê-la passar por tudo isso, e o marido dela lá em Gaspar, fiquei me sentindo culpada por isso. Mas tudo tinha uma explicação, minha filha veio junto para ajudar-nos a rezar, a cantar, ela tinha que estar lá. Eu, Juliana, Sérgio e o menino vínhamos mais na frente, ali já vi meus primos, todos apavorados. Minha tia Maria, irmã da minha mãe mora no Morro Azul e eu estava preocupada com ela, então vi o Jorge, meu primo, perguntei-lhe sobre minha tia, e ele disse, a mãe eu não sei, mas o Roberto e a Bárbara morreram e já foram encontrados. Ele disse também que o Roberto foi ainda encontrado com o netinho no colo, o Leandro. Deu um desespero, víamos que tinha morrido gente, e primos nossos. Mário Lúcio: Não tinha estrada, era só lama, árvores, entulhos, e passar com esses velhinhos. Com muitas dificuldades chegamos lá na igreja, e também ajuda do meu colega carregando o pai. Clarisse: Quando chegamos à igreja, no salão paroquial, uma cena que a gente nunca vai esquecer, é aquele povo todo com o rosto sofrido, triste, mas ao mesmo tempo muito solidário. Vinham e ajudavam a gente, e carregavam, ofereciam roupas, ofereciam comida. Troquei a roupa do meu pai, deram café para todos nós, todos se ajudavam, foi uma coisa muito bonita da parte de todas as pessoas, depois entramos na igreja, havia aqueles cavaletes com uma tábua, por cima uma toalha branca, quando eu olhei, vi o corpo daquela criança, o filho do Zaíro, o primeiro que acharam, não tinha caixão ainda, as pessoas que já estavam ali deram banho colocaram uma roupinha nele. A cabeça dele estava muito machucada,(Clarisse chorava muito nessa hora) eu o destapei e ficava olhando para o menino, nisso o pai dele chegou, o Zaíro. Meu Deus! Que tristeza! Mário Lúcio: Quando chegamos à igreja, meu filho não estava com o Sérgio, que veio sempre na frente com meu filho, nós ficamos para trás porque estávamos com meu pai, entramos na igreja e não os vimos, só Clarisse e Juliana, e perguntamos por ele, e elas disseram que Sérgio havia levado para alguma casa de parentes. Márcia: Meu Deus! Eu apavorada e dizia: - Por que tu deixaste Clarisse! Por que tu deixaste levá-lo? E para onde? Eu fiquei assim porque tinha água na estrada. Então ela nos disse aonde ele o havia levado. Voltamos então para buscá-lo. Mário Lúcio: No caminho encontramos o Zaíro, por volta de 10 horas da manhã, ele vinha do Baú Baixo, porque estava com o caminhão trancado lá, ele conseguiu vir a pé, estava chegando à igreja. Márcia: Ele falou para Lúcio: - Lúcio, ninguém quis me contar a verdade, mas eu fiz o Sérgio Werner contar para mim. Ele então já sabia da família inteira. Mário Lúcio: Porque eu e Márcia quando o vimos, pensamos: o que vamos falar para ele agora, daí então ele veio já sabendo de tudo, ele se abraçou comigo e começou a chorar. Nossa! Eu estava tão desesperado quanto ele, eu que passei a noite toda com meu filho, imaginava o que

203


ele estava sentindo. Márcia: Ele comentou que ele viu o jogo de cozinha dele boiando nas águas lá no Baú Central, e daí ele já estava imaginando. Mário Lúcio: Ele então foi junto com o amigo para a igreja. E lá já estava o corpo do Marques, seu filho. E nós fomos buscar nosso filho que estava na casa da Neuza, irmã de Sérgio. Clarisse: Ele então se debruçou em cima do menino e disse: - Filho! O pai veio, o pai está aqui contigo! (Nessa hora, não conseguimos nos conter). O pessoal já começou se organizando, alguns iam procurar os corpos que faltavam, alguns iam ajudar alguém (chorando). Mário Lúcio: O pessoal lá do Braço do Baú, os colonos, colocaram lâminas nos tratores e vieram limpando a lama da estrada, para termos acesso pelo menos para chegar aos locais. Clarisse: Nós na igreja pensávamos: ‘Será que estamos todos seguros aqui?’ Nós olhávamos, estava tudo caído nos morros. Ficamos na igreja até o Sérgio chegar, ele tinha ido à casa dele. Ele então chega com um trator com lâmina, dizendo: - Eu não vou deixar vocês aqui, vou levar para minha casa! Conseguimos colocar meu pai dentro da lâmina do trator e depois nós subimos e nos agarramos, Então quando a lâmina levantou e o trator começou a andar, meu pai gritava e gritava, tinha muita água na estrada. Chegamos na casa do Sérgio por volta de onze horas da manhã. Começaram então a chegar as notícias sobre todos que tinham morrido, a Giane, que ainda estava trancada viva nos escombros de sua casa. Depois veio a notícia que alguém achou um telefone que estava funcionando na casa da Rose Alves, eu e Juliana fomos até lá e ligamos para nossa família em Gaspar, conseguimos falar com o marido de Juliana e minha irmã Madalena, mas na hora eu não conseguia falar, só gritava e chorava dizendo: - Pelo amor de Deus, façam alguma coisa, por que tem gente morrendo e o socorro ainda não chegou! Contei para ela que passamos a noite no mato, nossos primos morreram todos. E Madalena começou a ficar desesperada com a gravidade da situação, ela disse que escutou

no rádio todas as mortes no Alto Baú, mas do Braço do Baú ela não sabia nada. Mário Lúcio: Os helicópteros passavam no sentido Luis Alves Alto Baú Clarisse: Então passei o número do telefone da Rose para minha irmã Madalena, ela então foi para uma estação de rádio em Gaspar e falou que também no Braço do Baú a situação era muito grave e deu o número de telefone da Rose Alves. A rádio ligou então para ela, e a colocou para falar ao vivo. Eram quatro e meia da tarde de segunda-feira, dia 24 quando o primeiro helicóptero chegou ao Braço do Baú. Era um desespero, dava vontade de gritar: - Helicóptero, me tira daqui, me leva embora daqui! Mário Lúcio: Então fui para a igreja e a cena mais triste que eu vi foi a do seu Altino, meu primo, velando a filha Giane. Ela estava num caixão de madeira bruta de pinus, aquele monte de pessoas chorando, sem luz, aquela escuridão, só duas velas acessas. Ele também perdeu a esposa Augusta que ainda estava soterrada. Para mim foi a cena mais horrível que eu vi. Depois vi toda aquela mobilização, tudo ali parecia um cenário de um filme de guerra. Então seis e meia da noite voltei para casa com os irmãos Sérgio e Márcio Werner. Clarisse: Os irmãos Sérgio e Márcio Werner que acolheram a mim e minha família e nos ajudaram muito, trabalhando direto, ajudando a todos, abriram estradas com os próprios tratores para o povo poder ter acesso, carregaram pessoas para todos os lados... Foram verdadeiros Anjos, ajudaram sem parar. Naquela noite, dormimos na casa do Sérgio. Lá então resolvemos ligar o rádio do carro do Sérgio, para ouvirmos as notícias, então ouvimos que o pessoal que trabalhava com Juliana no colégio Francisco Mastella , os professores, procurando por ela. Mário Lúcio: Então veio a notícia de que o morro do Baú iria cair e começaram a levar todo povo da igreja do Braço do Baú de ônibus para a Igreja do Baú Central. Então na terça-feira, dia 25 ao meio-dia eu e a Márcia voltamos de trator com o Márcio até nossa casa para

204


Mauri Miglioli

buscar roupas. Clarisse: Eu falei ao Márcio para dar o recado para minha tia Maria Cândido, e para todos que estivessem lá perto, que viessem até a Igreja para todos irem embora com a gente para Gaspar. Então pedi ao Márcio para depois nos levar de trator até onde fosse possível, porque queríamos que ir para Gaspar ver nossa família. Não queríamos mais ficar ali, porque chovia muito e tínhamos medo de mais deslizamentos, olhávamos para o morro do Baú e não víamos nada, só branco de chuva, e nós começamos a rezar. Márcia: Na minha casa peguei todas os fotos, documentos e roupas, então voltamos. Clarisse: Liguei novamente para minha irmã Madalena avisando que Sérgio e Márcio iriam nos levar até onde desse e pedi para ela nos esperar. Então meu pai, tios, a Ângela, o Chico, as crianças subiram todos na carroceria do trator. Então marcamos com minha irmã que a uma hora sairíamos de lá e ela teve que nos esperar até as quatro e meia da tarde, pois quando chegamos no Pontaldi, encontramos a estrada alagada com a água do rio, a nossa sorte é que na hora chegou o Senhor Müller com um barco a motor, ele colocou primeiro meu pai, depois meus tios Alfredo e Maria, os mais idosos, depois então fomos nós e atravessamos. Lá no outro lado estavam todos esperando, minha irmã, meu genro, meu Deus! Que felicidade de encontrá-los! Abraçamo-nos e choramos muito. Lá tinha muita gente esperando os parentes, todo mundo desesperado, querendo saber notícias de seus familiares. Para o Baú não entrava ninguém, só podiam sair. Graças a Deus chegamos a Gaspar e a chuva continuava, à noite quando íamos dormir, parece que sempre estávamos ouvindo barulho de pedras rolando, isso não saía de nossas cabeças. Mário Lúcio: Na casa em que estávamos, havia uma estrada de paralelepípedos e a janela do quarto que dormíamos era na frente, eu me acordava de vez em quando assustado quando os carros passavam. Qualquer chuva nos assustava. Na quinta-feira da mesma semana eu reuni oito pessoas, Márcia (esposa), Madalena (irmã), Eduardo, Adriano e Maicon (sobrinhos), José Orlando (irmão), Valdenir e José Pitz (cunhados), José Fischer (sogro) e Sérgio Werner com o trator, para irmos para o Braço do Baú tirarmos alguma coisa da minha casa. Veio um caminhão e um carro pequeno, no carro estavam meu sogro e meu cunhado Valdenir, que desistiram, porque chovia muito, com medo de não poderem voltar. Nós então fomos com o caminhão e quando chegamos perto do posto do Nelson, ficamos na dúvida, se íamos lá em casa ou não, porque chovia muito, eu disse para eles: - Já que viemos até aqui, vamos lá! O caminhão não conseguiu chegar até minha casa, tinha muita lama e entulhos, então o Sérgio com o trator com a carretinha atrás novamente e fomos indo com muita dificuldade, passamos até por dentro de um ribeirão. Lá ele encostou de ré, mas não chegou na casa, então esticamos umas pranchas de madeira para chegar até lá. Tiramos então a geladeira, fogão, estávamos muito apreensivos, com muito medo do morro de trás. Márcia: Meu cunhado Orlando queria levar tudo,foi ensacando todos os brinquedos do Antônio Carlos, queria trazer o colchão, e eu dizia: Não precisa, tio Orlando, eu vou voltar para casa depois! Eu só queria mesmo era pegar o suficiente para eu poder me virar. Mas quando eu saí de dentro de casa me deu uma tristeza bem forte, parecia que eu não ia mais voltar. Mário Lúcio: queria levar meu carro, como não deu, deixei a chave para o Sérgio, e falei: - Tenta tirar o carro mais tarde, ou amanhã, ou fim de semana que eu volto aqui. A uma hora da tarde então saímos de lá e fomos para o Arraial (bairro de Gaspar, mais próximo ao Baú), na casa do Jair e Iracema, essa casa estava vazia porque eles atualmente estão morando na cidade de Gaspar. Ele é cunhado de Clarisse, cederam a casa para guardarmos nossos pertences. No caminho para o Arraial o caminhão atolou, tivemos que retirá-lo com um trator e no caminho

Casa da família Richartz depois da tragédia.

encontramos o Jair, que ainda nos disse: - Tu podes ir para minha casa e ficar o tempo que quiseres! Ele foi um anjo para nós, estamos muito agradecidos a ele e sua esposa Iracema. (Lúcio nesse momento fica muito emocionado, pela bondade do amigo). Minha irmã Clarisse ficou lá com meu pai e nós voltamos para Gaspar, levar minha vida, voltei a trabalhar. Quando chegou sexta-feira de manhã, Jorge, vizinho da minha irmã lá no Braço do Baú, liga para cunhada Rosa, em Gaspar, vizinha da minha irmã Célia, e deu um recado para Márcia, dizendo: - É Márcia, agora acabou tudo de uma vez no Baú! E Jorge disse para olhar uma página na internet, que logo iriam ver sua casa soterrada. Quando vimos, bateu-nos um desespero tão grande, porque era toda tua vida que estava ali, que foi embora... (todos se emocionam) Às 7.30 da noite tinha desmoronado o morro na frente da minha casa e soterrou toda a casa do Jair Kretz, genro do seu Pepa. Também acabou com a casa do seu Pepa, porque deu uma represa e foi lama até a metade da casa. Se esse desmoronamento fosse durante a parte da manhã, poderíamos estar todos mortos agora, estávamos em oito pessoas. Perguntei para o casal se queriam reconstruir novamente no Braço do Baú. Márcia: Para o nosso terreno eu não volto mais, por medo. Se lá acontecer outra enchente, não tem como fugir para lado nenhum. Mário Lúcio: A princípio meu plano é ficar por aqui, em Gaspar ou Arraial, ficarmos mais próximos da cidade. Estamos pensando no futuro do nosso filho.

Deslizamento de terra que destruiu toda casa da família Reichert.

205


Dia 24/03/2009 :: Depoimento de

Marisa Terezinha Pereira

Secretária Municipal de Indústria Comércio e Turismo de Ilhota e empresária, sobre as tragédias de novembro de 2008 em Ilhota - SC.

E

Para melhor entender: O município de Ilhota é cortado pelo Rio Itajaí-Açu e o seu transbordamento causou inundação em grande parte da cidade. Não bastasse a enchente, foi duramente atingido pelos deslizamentos de montanhas principalmente na margem esquerda do rio, região denominada complexo do Baú. Nesta região há várias comunidades: Baú Baixo, Baú Central, Braço do Baú, Alto Braço Baú, Baú Seco e Alto Baú, onde está o conhecido Morro do Baú ponto mais alto da região da Foz do Rio Itajaí-Açu, com mais de 800 m de altura. Nesta região, propícia ao turismo em espaço rural, os equipamentos turísticos como Parques Aquáticos e Pesque-pagues foram destruídos parcial ou totalmente. O Morro do Baú sempre foi ícone pelo forte apelo ao turismo ecológico e por ser importante área de preservação da mata atlântica. Localizado dentro do Parque Botânico de mesmo nome, sua imagem sempre nos orgulhou muito e foi incansavelmente utilizada para representar o “verde” da nossa região turística “Costa Verde e Mar”, formada pelos onze municípios que compõem a AMFRI - Associação dos Municípios da Foz do Rio Itajaí. No ano de 2008 o município de Ilhota completou 50 anos de emancipação política e a imagem selecionada para marcar a data foi a do Morro do Baú.

como chovia naquele sábado... mas com a presença confirmada, não queria deixar de ir a um casamento em Curitiba. Minha amiga Delísia Salete Vivan e eu convidadas para o evento, estávamos empolgadas por reencontrar nossos antigos amigos da época de faculdade e seria uma excelente oportunidade para rever alguns que não víamos há 30 anos. De repente um congestionamento incrível na BR-101 e a notícia dada por um caminhoneiro: “uma barreira caiu em Garuva, próximo à divisa entre Paraná e Santa Catarina e não passa nada”. Era o sinal de algo maior, cuja gravidade até então não havíamos nos dado conta. Como já era tarde da noite e estávamos próximo à cidade de Joinville, resolvemos pernoitar e prosseguir viagem no dia seguinte, dia da tão esperada festa. Na manhã de domingo, já preparando-nos para a saída ao destino programado, um telefonema de minha mãe alertou para uma possível enchente em Ilhota. Que fazer? enchente? Bom, vamos voltar mas não sem antes passar num supermercado e levar o “kit enchente” ao que até já estava acostumada por ter enfrentado as cheias de 83 e 84, a de 92 e várias outras de menor proporção. Água, pão, lingüiça defumada, frutas, café solúvel, leite em pó, enfim, alimentos não perecíveis fizeram parte da compra. Nada que precisasse de geladeira, pois não se sabia como ficaria o fornecimento de energia, ah... sem esquecer pilhas, vela, fósforo, produtos de higiene, botas de borracha e capas de chuva. Compra feita retornei rumo à Ilhota, mas nada feito. Foi impossível chegar pois a água subiu tão rapidamente que impediu a passagem no trecho próximo à divisa Ilhota – Itajaí na rodovia Jorge Lacerda. Decidi ir para meu apartamento no Balneário Camboriú com muito cuidado ao dirigir pelo grande acúmulo de água na pista. A imagem que se via desde a BR-101 era desoladora, os terrenos e casas à sua margem já estavam submersas. O assunto das enchentes e a catástrofe na região do Vale do Itajaí era tema principal de todos os noticiários. Consegui falar com minha família por telefone em contatos rápidos, pois estavam todos muito ocupados em levantar móveis, desmontar e recolher mercadorias da loja, preparando-se porque o nível da água subia e alcançava o interior da casa. Diariamente fiz, sem sucesso, tentativas para ir a Ilhota de carro. Tentei pela Jorge Lacerda (estrada Itajaí - Blumenau), pela Antônio Heil (estrada de Itajaí - Brusque), pelo interior do município de Camboriú. Numa destas tentativas encontrei o caminhão do Senhor Luiz Guilherme Brockveld e uma equipe de voluntários. (Seu Luiz Peru, como é conhecido, faz-me recordar na minha época de faculdade em Curitiba, pelas caronas àquela cidade quando ia levar cargas de tijolos de nossa cerâmica). Liderados por Almir César Paul, Secretário de Agricultura e Meio Ambiente, haviam ido a Florianópolis buscar os primeiros alimentos para distribuição à população.

Na praça avistei o Almir bastante envolvido nos trabalhos de atendimento a desabrigados e perguntei-lhe em que poderia ajudar. Sugeriu que seria importante o cadastramento. Fiquei um pouco fora de sintonia pensando que cadastro seria este, que tão urgente se fazia. Ele entregou-me um cartãozinho plastificado com algumas anotações, que a princípio não entendi, mas depois ao observar melhor percebi: eram as coordenadas geográficas de três pontos de apoio para descida de helicópteros na região do Baú para atendimento às vítimas. Dirigi-me então ao Salão Paroquial da Igreja Matriz São Pio X e encontrei Noeli Corradi Curioletti, conhecida e dedicada professora, que estava rodeada de pessoas preenchendo fichas para a Defesa Civil. Comecei a perceber todo o drama, pois se tratava do cadastro dos resgatados da região do Morro do Baú pelos helicópteros. Tive oportunidade de ver rostos e situações de desespero, cada um com sua história. Ali foram procedidos naqueles dias, com apoio de vários voluntários, em torno de 1500 registros de pessoas, cujos nomes, dados pessoais, local de resgate eram anotados

Na quarta feira seguinte ainda com água na rodovia Jorge Lacerda finalmente cheguei à Ilhota, era dia 26 de novembro de 2008. Ao chegar levei um susto pois não imaginava a proporção da movimentação. Deparei com uma praça que mais parecia um cenário de um filme de guerra pelo grande número de helicópteros nunca antes visto na cidade. Carros de bombeiro, ambulâncias, imprensa, gente andando rápido de um lado a outro, rostos assustados, tristeza, formavam um cenário realmente impressionante. O assunto era a tragédia do Baú e comentários vinham por toda parte.

206


“De mãos dadas pela reconstrução” - Voluntária Rosângela Luíza Pereira Burille, que tão inteligentemente usou seu poder de organização auxiliando na distribuição de roupas juntamente com tantos outros dedicados voluntários e eu Marisa Terezinha Pereira.

em fichas. O endereço de destino para facilitar a localização dos mesmos quando fossem procurados, foi um dado agregado por uma ótima sugestão da Noeli. Do cadastramento fizeram parte também os que tiveram suas residências interditadas pela Defesa Civil, mesmo fora da área do Baú. As pessoas que não tinham uma casa de parente ou amigos para hospedarse eram encaminhadas a abrigos preparados pela Prefeitura Municipal. Também era atualizado cadastro dos óbitos, dados estes recebidos através da Delegacia de Polícia Civil e repassados à Defesa Civil. À noite, em casa eu passava os dados das fichas para planilhas que no dia seguinte eram publicadas no site na Prefeitura, em murais e repassadas para a área da Assistência Social e à imprensa. Simultaneamente, na Secretaria de Educação eram realizados os cadastros da população em geral atingidas pelas cheias. A sala da Secretaria de Indústria Comércio e Turismo no paço municipal transformou-se num depósito de equipamentos. Encontrei o Paulo Vilmar Batista mais conhecido por Expresso, Diretor de Indústria e Comércio e Comandante do Corpo de Bombeiros Voluntários de Ilhota, às voltas com distribuição de tarefas e material aos colegas bombeiros. Que importantes são estas pessoas, que voluntariamente dedicam-se em salvar, em ajudar a todos num trabalho incansável e sem medir esforços. Deixo aqui a todos um forte apelo: sempre que puderem que colaborem com esta entidade para garantir a sua manutenção e preparação de novos membros. Deixo registrado um agradecimento especial ao Senhor Patrick Maselis, empresário belga e autor do livro “Dos Açores ao Zaire – Todas as colônias belgas nos seis continentes” onde Ilhota é citada como única colônia belga no Brasil, por sua doação repassada à corporação de nossa cidade. Apelos por apoios e pedidos de auxílios financeiros foram feitos através de cartas, mensagens à imprensa e sociedade em geral. Muitos amigos pessoais enviaram suas contribuições e a todos igualmente registro meus agradecimentos. Doações de alimentos, roupas, produtos de higiene e água chegavam e muitos trabalhavam em torno da organização. Cozinhas foram instaladas para alimentar tantos que ficaram desabrigados e àqueles que de todas as partes do Brasil, e até do exterior vieram para ajudar. As expressões de solidariedade chegavam de várias formas e lugares para prestar auxílio não só àqueles resgatados da região do Baú, mas toda população atingida pelas enchentes. Reuniões de trabalho procurando melhores estratégias para enfrentar as situações que se apresentavam eram realizadas na Prefeitura com vários segmentos. Havia a participação de representantes do Executivo, Legislativo, Defesa Civil, Exército, Aeronáutica, Bombeiros Militares, Bombeiros Voluntários, Voluntários de Organizações Não Governamentais de vários lugares do país, Voluntários da comunidade ilhotense e de outras cidades, Entidades Filantrópicas, Representantes de Igrejas, Polícias Civil e Militar

entre outros, todos em torno de busca de melhor atendimento ao caos que a situação apresentava. Nosso prefeito Ademar Felisky mostrava-se firme no propósito de organizar a difícil tarefa de reconstruir o município. O atendimento às pessoas desabrigadas e desalojadas e auxílio na organização da comunidade foram motivos pelos quais meus pais Marcos Leonel Pereira e Nilva Jasper Pereira entenderam o fato de eu não colaborar com a limpeza em nossa própria casa e nossas empresas atingidas pela enchente, função feita com dedicação por nossos colaboradores e familiares. A notícia que a cidade havia desaparecido caiu como uma bomba, pois além da catástrofe ambiental que vitimou muitas pessoas e provocou perdas materiais, o município que é conhecido como “Capital Catarinense da Moda íntima e Moda Praia” viu ameaçado sua economia. Há um mês do Natal as lojas do ramo da confecção de lingerie e moda praia sentiram seu comércio prejudicado. A maioria das empresas foram tomadas pelas águas e permaneceram fechadas por até quinze dias. Neste período os empresários realizaram a limpeza dos estabelecimentos comerciais, reorganizaram sua produção, colocaram a “casa em ordem” para voltar às atividades normais. Na função de Secretária de Indústria Comércio e Turismo do Município, tive que participar de uma nova luta que era a da recuperação da imagem do comércio local. Medidas principalmente junto à imprensa, que foi sempre muito atenciosa, ajudou muito naquele momento. Neste sentido contei com a especial participação de minha amiga e jornalista Alexandra Martins Marques que voluntariamente dedicou seu tempo em todo este processo. Quero através deste relato agradecer a cada um que de certa forma se sensibilizou com nosso drama e que naquele momento teve uma ação ou palavra de consolo e solidariedade. Especial foi a participação de grupos de voluntários que num momento de tanta tristeza vieram trazer a alegria com seus grupos de teatro e manifestações culturais e que promoveram festas de natal na praça e nos abrigos. Muitas pessoas das quais eu não tinha notícias há anos e que, através de meu número de telefone celular estampado no site da Prefeitura Municipal me localizaram e sensibilizaram-se com nossa situação. Conhecidos que talvez fosse encontrar naquela festa citada no início deste depoimento fizeram-se presentes mostrando que apesar dos anos e da distância, seguem os laços de amizade. Cada vez mais me convenço que o que temos hoje é resultado do que plantamos durante nossa vida: as verdadeiras amizades e o carinho dos amigos fazem parte da colheita. Quando a autora deste livro, minha irmã Maristela Pereira, pediu-me uma foto para ilustrar este depoimento, resolvi selecionar uma que para mim representa força pela reconstrução. De mãos dadas vamos sim conseguir reconstruir nossa cidade, apoiar nossa comunidade tão sofrida mas cheia de esperanças.

207


Dia 03/02/2009 :: Depoimento de

Maurício André Runco e Aline Farias

Moradores do Alto Baú.

M

aurício: Na tarde do dia vinte e dois Gil (Gilberto Schimitt), contou para nós que havia caído a casa da dona Deonilda, então eu, Aline e outras pessoas subimos para ver, olhamos mais de longe porque não dava para chegar perto, tinha muitas barreiras que desceram, não tinha acesso até lá. E não ficamos sabendo se havia morrido alguém. Só sei que foi a primeira casa a cair. Na casa do seu Daniel estava tudo bem. Então eu e Aline fomos embora.

estava muito machucado. Depois eu, Juliano, Fabiano, Marcelo e mais pessoas que agora não lembro, levamos Calinho também para casa de Gil. Depois fomos lá buscar mais gente, o seu Daniel e sua esposa, dona Iolanda, foram os últimos. Nisso chegou Márcio, falando da nossa mãe, preocupado porque ela não estava muito boa, tem problema de coração, ficamos preocupados e fomos para casa e Márcio foi lá com o pessoal para ajudar a resgatar seu Daniel e dona Iolanda. Márcio demorava muito, não chegava mais e nós preocupados, achando que tinha acontecido alguma coisa com ele. Até que enfim voltou, falou que foi muito difícil de tirá-los de lá. Ficamos ali na casa da minha mãe, praticamente sem dormir, só esperando o que poderia acontecer. No outro dia, fomos para cima no campo, tinha muitas pessoas indo ali. Então começou o desespero, como iríamos chamar os resgates. Tínhamos celular, mas não contato, sem área.

Ficamos em casa vendo tudo que acontecia ao nosso redor. Havia um pessoal no pasto que queria atravessar o rio e fomos lá tentar ajudar, mas a água foi aumentando, aumentando... Tivemos que desistir. Então fomos para a casa da minha mãe, que fica em frente ao posto de saúde. Lá estava toda a família, umas dezesseis pessoas. Passou o Calinho (Carlos Hostim, vizinho) por ali com a família de caminhão e foi na casa do sogro, o seu Daniel. Eram mais ou menos umas nove horas, não tinha luz, estava tudo escuro. De repente aquele clarão, deu aquele desespero em todos, achamos que era o fim do mundo. Escutamos aquele barulhão no rio, parecia estar acabando com tudo. Depois de um tempo, chega a Leonida (vizinha) pedindo socorro, que tinha desabado a casa do seu Daniel. Fomos para cima, quando chegamos no campo, estava tudo cheio de lama. Encontramos o João Galdino, irmão do seu Daniel. E falou: - -‘Vocês que são novos vão lá tentar resgatar, porque estão todos trancados, vão lá dar uma força! Então eu e meu irmão Marcelo fomos para lá. No caminho, perto da casa do Xande (Alexandre Daniel da Silva), filho do seu Daniel, encontramos a mulher do João Galdino, a Kica e o filho Gustavo, então eu perguntei para ela o que ela estava segurando no braço, ela não queria falar, era a criancinha da Scheila (sobrinha) morta, a Joana(7 meses), estava toda suja de barro. O Gustavo tem X...anos, ele dava forças para mãe que estava muito tensa. Quando estava bem em frente da casa do Xande, vinha a Isabel Cristina, que é modelo e a Scheila, filhas do seu Daniel saindo da lama. E falavam: - Por favor ajuda a tirar nossa família de lá, porque caiu tudo! Gustavo ajudou a tirar Isabel. Eu e meu irmão Marcelo estávamos com medo de ir lá, porque não sabíamos a profundidade da lama. Mas fomos mesmo assim, estava muito claro por conta da explosão do gás, quando chegamos num canto da casa assim, estava o Fabiano Baiher, tentamos ajudar a retirar o Paulinho (neto de Daniel), ainda peguei na mão dele, e o irmão dele estava no lado, o Luiz Antônio e perguntava para nós, como está meu irmão? A gente falava para ele assim, ele está bem, só está inconsciente! Mas nós sabíamos que ele já estava morto. Então desistimos de retirá-lo porque tínhamos que ajudar quem estava lá pedindo socorro. Eu e Fabiano pegamos uma tampa de caixa d’água e colocamos Luiz Antônio em cima, foi o maior trabalho porque ele gritava muito de dor, estava muito machucado, a gente dizia para ele, temos que sair daqui porque podemos morrer aqui. Estava sujeito a desabar mais barreiras. Nós o levamos e foi o maior sufoco, porque não podíamos levantar a tampa porque se dobrava, era de plástico, tínhamos que arrastar, arrastávamos um pedacinho e nos enterrávamos na lama e assim foi um tempão até chegar no morrinho da casa do Xande. Depois foi levado para casa do Gil. Marcelo ficou lá dando força para o Calinho (pai de Paulinho e Luiz Antonio e Maria Tatiana). Também estava trancado. Passamos muito trabalho, porque ele

Passamos o maior sufoco ali. Então levamos madeira, lona para fazer barraca lá em cima do morro, levamos as pessoas machucadas. Não sabíamos se ficávamos embaixo porque podia estourar aquela barragem, podendo matar todos ali, ou se subíamos o morro, podendo esse morro cair. Aline: Quando o primeiro helicóptero desceu no campo, nós descemos o morro até na serraria ao lado do campo. Então o comandante Neto ficou dizendo para subirmos. Ele subiu com a gente, porque um pedaço da barragem já tinha caído. Maurício: Ele vigiava os morros, para ver onde tinha mais segurança. O comandante Neto entrou em mais desespero porque eu e meu pai fomos tirar meu gado. Aline: Eu gritava com Maurício, eu chorava. Porque ele e meu sogro (Harnestides) foram lá soltar a vaca e o bezerro no pasto, então começou a cair aquela barreira, pensei que ia cair tudo lá, fiquei num desespero, e nem imaginava que estava grávida. Eu desmaiei várias vezes, passei muito mal. Maurício: Passou muito mal mesmo, toda molhada, tremia demais. Era assim, ela desmaiava, a Cláudia minha cunhada levantava... Era assim, caía uma, caía a outra. Mas quando eles viram que Aline e Claúdia estavam passando mal mesmo, que não tinha mais jeito, nós fomos resgatados também. Quando chegamos em Blumenau, estávamos no ônibus para sair para a Igreja Matriz, o comandante Neto chega ali, e até chegou a chorar! Aline: Lá o comandante saiu, deixou-nos sozinhos, sem bombeiros, só com os médicos. Então pensamos que ele tinha fugido, que ele tinha ido embora. Maurício: Porque ele estava passando muita confiança para nós, muita força. Ele pega e sai dali, e nós preocupados que ele poderia ter fugido. Mas que nada! Ele foi pedir força para os helicópteros grandes de São Paulo nos buscar! Então quando ele chegou no ônibus o comandante Neto fala para nós: - É, acharam que eu tinha abandonado vocês, mas eu fiz de tudo para tirar todos de lá, porque eu não conseguiria tirar com aquele helicóptero pequeno. No helicóptero em que ele veio só cabia de quatro a cinco pessoas e a cada duas viagens teria que ir até Navegantes abastecer. Não iria conseguir, porque à noite não trabalham nos resgates. Quando chegou o helicóptero grande, começou a render mais os resgates. Estávamos em aproximadamente cento e cinquenta pessoas.

208


Perguntei a eles para onde foram. Aline: Fomos até Blumenau, na matriz, ficamos uns dias, depois viemos para Gaspar, ficamos mais uns dias, e depois para Ilhota e estamos até agora aqui. E o comandante Neto? Perguntei. Maurício: Vai dar saudade daquele homem, ele fez muito por todos nós. Somos muito agradecidos a ele. Perguntei sobre o bebê que Aline esperava. Eu soube que estava grávida quando cheguei aqui em Ilhota, em dezembro. Estava de um mês e meio. Era para eu estar com nove semanas de gestação, e parou com seis semanas e cinco dias, dia nove de janeiro fui internada, dia dez fiz a curetagem. Eu tenho tudo guardado lá na mãe, as coisinhas do bebê, fui achando tudo aqui, nas doações, ganhei tudo, as fraldas... Tudo! Minha mãe disse que ela vai guardar tudo cheirosinho (falou chorando, muito emocionada). Maurício: não estava se sentido bem, foi encaminhada para um hospital, o médico fez um toque e falou que era normal, que poderia ir para casa. Depois ela começou a piorar, piorar.... E acabou perdendo o nosso bebê. Ele foi planejado. Estamos juntos há cinco anos, temos nossa casa, carro e já estávamos fazendo reflorestamento de eucalipto, pensando no futuro do filho!

Depois Maurício me contou a história de seu fusquinha.

Meu primo, o Marcos Riincos perdeu a casa, carro, tudo. Ele dependia desse carro para trabalhar, ele um dia falou brincando, poxa, tu podias me dar esse fusca! E eu disse, eu vou te dar esse fusca, Negão (apelido), pode ficar com ele, agora é só reformar! Antes de ter acontecido toda essa tragédia, eu pensava em reformar, porque tinha comprado outro. E o fusquinha ia ficar para andar só por lá. Eu fiquei muito sensibilizado com tudo que a família passou. Tanto ele quanto o pai, tio Dodo, perderam tudo que tinham, as casas, carros, trabalho... Tudo!

carro que Maurício A. Runco doou para Marcos Riincos.

209


Dia 02/02/2009 :: Depoimento de

Mauro Silva

Bombeiro do município de Pomerode SC.

E

m meados de dezembro de 2008 eu e mais quatro bombeiros (Thomas; Marcelo; Cesar e Leandro) fomos convocados pelo nosso comandante Vilmar Volkman a formar uma equipe de resgate sendo eu o chefe, para auxiliar a corporação de Ilhota na localidade do Morro do Baú, sob o comando do comandante Leão que tinha uma equipe de três mulheres e dois homens sendo uma delas a senhorita Maristela, que registrava tudo com a sua maquina fotográfica. Devíamos ir até o local do helicóptero, mas como teve problemas com a ONG dona da aeronave, acabamos indo de ônibus. Em um determinado trecho do caminho, já bem próximo da primeira base montada numa serralheria e onde era um alambique, o ônibus encalhou e prosseguimos a pé por mais ou menos uma hora e meia. Na verdade foi melhor assim do que voando, pois isso me deu a noção do tamanho do estrago feito pela natureza. A cada curva da estrada ou morro ultrapassado, era cada vez mais triste o cenário, nunca estive numa guerra e nem quero estar, mas era esse o cenário. Onde o rio corria era todo marcado pela erosão pluvial, tanto na sua margem quanto na profundidade, ali pedras que foram

Dia em que os bombeiros do município de Ilhota e Pomerode, tentam subir de microônibus para o Alto Baú.

Bombeiros Voluntários de Pomerode, Marcelo, Mauro, Thomas, Cesar e Leandro.

210


Longa caminhada dos Bombeiros Voluntários de Pomerode e Navegantes até a Tifa do Grahl.

arrastadas pelas águas e também troncos e galhos de árvores, até que começaram a surgir casas demolidas e carros debaixo de garagens sob os escombros. Ao chegarmos à primeira base encontramos com um grupo de cinco bombeiros de Navegantes que estavam por lá já alguns dias e também um bombeiro com uma camiseta de Ilhota que atendia pelo nome de “Professor” o qual percebi que era muito solidário com os animais que estavam lá. Assim que chegamos fomos almoçar e nesse meio tempo eu fui fazer uma varredura do local e vi numa casa algumas roupas jogadas pelo chão e sobre alguns móveis. Era assim em todos os cômodos da casa e na cozinha, as portas dos armários estavam abertas, na lavação também roupas jogadas e algumas gaiolas de passarinho quebradas. Naquele cenário a impressão que tive foi de que as pessoas saíram dali às pressas, desesperadas. Numa outra parte estavam soterrados caminhões e motonetas e escombros de alvenaria. Tentei imaginar o desespero das pessoas que ali estavam e confesso que me senti mal e cada vez mais eu me convenço que temos que amar as pessoas como se fosse sempre o último dia e também vivermos cada instante intensamente, pois a vida é frágil tal como uma vidraça. Após o almoço saímos em missão mais abaixo daquele vale, fomos até a segunda base e neste trajeto as coisas iam ficando cada vez

mais horripilantes, percebia-se que o rio forçadamente mudou seu trajeto de forma que até algumas casas e carros ficaram isolados, pois na frente estava o novo caminho do rio e atrás o barro que desceu do morro. Chegando na segunda base, após um breve descanso seguimos com um dos bombeiros de Navegantes para um lugar ali próximo, no qual dias antes ele havia encontrado um cadáver com os membros inferiores presos em galhos de árvore dentro do rio. Ao caminharmos por este rio que já se encontrava com o seu nível baixo víamos pertences tais como roupas e utensílios domésticos pelas margens, algumas coisas em galhos, outras nas pedras, neste mesmo lugar ainda estava desaparecido o corpo de uma adolescente de dezessete anos. Procuramos também e lá estavam quatro bombeiros militares fazendo busca também. Como tínhamos que retornar para Pomerode ainda naquele dia batemos, em retirada para a primeira base para pegar as nossas coisas. Gostaríamos de ter ficado até domingo, mas dois da minha equipe tinham que trabalhar no dia seguinte. Posso dizer o seguinte: orgulho-me de ser bombeiro voluntário e dispor do meu tempo para ajudar o próximo, e depois do que vi acho que a minha missão aqui tem um propósito.

211


Dia 23/02/2009 :: Depoimento de

Nelson Gonçalves de Oliveira

Bombeiro Voluntário de Guaramirim

M

eu nome é Nelson Gonçalves de Oliveira sou Bombeiro Voluntário em Guaramirim, Santa Catarina. Atuei no Morro do Baú no resgate de algumas vítimas. Chegamos ao centro de Ilhota e já me assustei com a cena, que mais parecia uma concentração de refugiados de guerra, coisa que só via na TV. Quando nossa equipe chegou, éramos cinco pessoas da minha corporação. Logo fomos recebidos pelos Bombeiros de Ilhota que de pronto já nos embarcaram em um helicóptero do Exército para auxiliar no resgate de pessoas na localidade de Alto Baú. Tenho quase vinte anos de experiência como bombeiro, mas nunca imaginei que um dia atuaria em uma situação como esta. Ao chegarmos no Alto do Baú a cena era triste, dolorosa. Algumas pessoas esperavam para ser resgatadas, relatos que nunca mais vou esquecer enquanto viver. Dor, tristeza, comoção! Os relatos de moradores eram de mortes e de pessoas desaparecidas. Ao sairmos para fazer buscas ao redor de onde se concentravam, pude ver que algumas pessoas tentaram se refugiar em barracas em um morro acima de onde estávamos e me perguntei. Deus, quanto medo, dor, tristeza e desespero essas pessoas passaram? Retornamos à base, ou seja, o centro de Ilhota, pois ficar à noite naquele local era muito arriscado, pois o que se via eram constantes deslizamentos de terra enquanto resgatávamos pessoas ou tentávamos localizar outras vítimas. No outro dia cedo, novamente o helicóptero do Exército nos levou ao Alto Baú. Ao chegarmos notamos que a cena já não era a mesma, pois devido a deslizamentos de terra o local já havia se modificado. Nossa equipe já estava com um grupo de Bombeiros Voluntários de várias cidades de Santa Catarina. Depois de algumas horas de busca encontramos uma localidade onde havia pessoas a serem resgatadas, entre elas uma senhora de aproximadamente uns 60 anos ou mais, que era cadeirante, não tinha um dos membros inferiores. O resgate foi difícil, mas compensado pois deu tudo certo. Retornamos novamente à base. No outro dia fomos ao Alto do Baú novamente e neste dia trabalhamos em resgate de corpos em uma casa próxima do local onde nós nos concentrávamos. Tínhamos a informação de que três vítimas estavam ali soterradas e depois de algumas horas de tentativas de localizar as pessoas, juntamente com a Força Nacional, um jovem de aproximadamente 20anos foi encontrado.

Nelson Gonçalves de Oliveira e seu cão Skank. Logo depois uma criança também foi encontrada, cena triste de se ver, pois também temos famílias, filhos, irmãos e somos seres humanos. Muitos ou todos os Bombeiros que atuaram nesta ocorrência, que deixou o Brasil de luto, deixaram cair lágrimas. Também atuamos na organização de recebimentos e distribuição de donativos. A todos que de uma forma ou de outra ajudaram, que Deus os abençoe sempre. Nossa equipe de Guaramirim era composta por: Nelson Gonçalves de Oliveira Rodrigo Casa grande Maicon Rosa Henderson Ricardo Bulitz Cleomar Severino Nunes

Equipe de bombeiros voluntários resgatando mais um corpo. Marco Gambogi

Nelson Gonçalves de Oliveira com seu cão Skank em sua missão no Alto Baú.

212


Dia 27/03/2009 :: Depoimento de

Nelson Henrique Coelho

Comandante da Segunda Companhia de Aviação da Polícia Militar – SC com sede no município de Joinville.

S

ou natural de Florianópolis, atualmente morando em Joinville. Graduado na Academia da Polícia Militar em 1990, e fiz o Curso de Aperfeiçoamento de Aviação para Oficiais na Marinha do Brasil em 1992, e desde então estou na aviação. Nesses 16 anos, essa é a quinta calamidade em que eu opero com a aeronave, a que chegou um pouco perto desta de Ilhota foi uma enchente em Criciúma no ano de 1995, mas nunca vi nada igual a esta que ocorreu em Ilhota, além do que não se vê na literatura algo parecido na América, com estas características e proporção. Na sexta-feira dia 21 de novembro, tivemos uma fuga de 40 presos do presídio de Joinville, estava nessa missão. No sábado, dia 22, começou alagar a cidade, e na operação da aeronave daquele dia, foram resgatadas 26 pessoas em situação de risco. No mesmo dia, tivemos um chamado do Bombeiro de Balneário Camboriú, porque o viaduto que dá acesso à cidade estava alagado, tendo um ônibus com pessoas em cima e pessoas se segurando em placas, os Bombeiros não tinham condições para resgatá-los e nos acionaram, mas não pudemos nos deslocar porque já tínhamos emergência em Joinville. Depois de tudo resolvido em Joinville, a guarnição tentou ir para Balneário Camboriú, porém o mau tempo não permitiu. Na terceira tentativa é que a guarnição obteve êxito. Chegando lá as águas já haviam baixado e toda situação já resolvida. Blumenau então nos solicita e a aeronave vai para lá. Já no deslocamento a situação era desoladora, o vale estava todo alagado e o mau tempo quase não permitiu que a tripulação chegasse lá, o que só foi possível pela experiência, presença de espírito e tranquilidade daquela tripulação. No sábado à noite foi quando ocorreu a explosão do gasoduto e começaram os pedidos de socorro. Recebíamos ligações de que havia cerca de 600 pessoas em um parque aquático no Belchior, município de Gaspar, que estavam isoladas não conseguindo descer. Passamos então a informação para eles de que havia pessoas com risco de vida, e eles estavam lá bem, tinham comida, água, que era para aguardarem, que quando chegasse uma aeronave de maior porte seriam resgatados. À tarde a nossa guarnição estava fazendo resgate de pessoas no Alto Baú e ocorreu outro deslizamento. No Alto Baú a guarnição do Águia 1, resgatou cerca de 40 pessoas poli-traumatizadas. Voltaram para Blumenau, no domingo a situação continuou, e com uma condição climática a que muitos tripulantes não se arriscariam. O clima estava péssimo, com mau tempo, neblina, chuva, uma região de relevo, terreno irregular, montanhoso, linhas de transmissão de energia de alta tensão, e aquela tripulação estava já há dois dias operando, sob uma pressão incalculável, pois era a única aeronave naqueles momentos iniciais. Como comandante da unidade, tanto no sábado e no domingo, procurava administrar a situação para que eles pudessem voar só se preocupando com a missão, pois são várias outras coisas que são necessárias para o sucesso da operação, como alimentação, equipamentos, abastecimento, substituição de tripulantes e repassar informações precisas às autoridades. Na segunda-feira, dia 24, desloquei mais tripulantes para Blumenau e eu tive que assumir a outra aeronave o Águia 02, juntamente com o Major De Carli; assim a guarnição do Águia 01 teve que continuar operando. Uma das primeiras missões foi deslocar reforço policial e alimento a três presídios, o de Tijucas, Balneário Camboriú e Itajaí que estavam para entrar em rebelião. Além disso, levamos comida para os presos, porque já estavam isolados. Mais tarde então retiramos as polícias que tinham ido a reforço do presídio, depois da situação estar controlada.

No outro dia, terça-feira, ficamos especificamente no Braço do Baú. Como a situação estava muito crítica, tipo “a barata voa”, não tinha uma coordenação das operações aéreas ainda, então decidimos ficar no Braço do Baú. Estava ali o pessoal dos bombeiros voluntários de Ilhota, pessoal da comunidade, e tinham muitas pessoas isoladas para serem resgatadas. Tínhamos que priorizar alguns resgates e foi fundamental a experiência dos tripulantes multimissão do BAPM, que tinham que determinar em breve tempo quem deveria ser ou não resgatado primeiro. Precisávamos tirar esse pessoal para uma área centralizada, primeiro: a região estava em risco de colapso por deslizamentos, segundo: para facilitar a questão de suporte logístico, porque, se tens um grupo muito grande afastado, para dar apoio logístico para eles causa muito transtorno e não se consegue ter controle. O pessoal do Braço do Baú, Alto Braço do Baú, eles iriam para a igreja do Braço do Baú. E no Alto Baú, que tinha outra aeronave operando levavam para o Baú Baixo e Central. No primeiro dia nós contabilizamos 156 pessoas resgatadas, e dois corpos e no segundo dia foram 86 pessoas e um corpo, só pelo Águia 02. Fizemos também transportes de alimentos, medicamentos, roupas e também transportamos pessoas do IPT (Instituto de Perícia Técnica) de São Paulo para fazerem avaliações geológicas da área. E assim foi desenvolvida a operação. Na terça-feira nós tínhamos cerca de 21 aeronaves, só de Segurança Pública. Na quarta-feira a defesa civil decretou a instalação da Coordenação das Operações Aéreas que ficou a cargo do Batalhão da Aviação da Polícia Militar de Santa Catarina, e foi o Tenente Coronel Kern, que com sua equipe montou a coordenação. Então todas as informações que chegavam iam para essa coordenadoria junto com o pessoal da defesa civil, ela pegava a missão para as aeronaves, para que essas não ficassem cumprindo missões aleatoriamente. Em um dos dias, para resgatar a moça grávida no Baú foram deslocadas três aeronaves, sendo que ela já havia sido resgatada pelo águia 01 no dia anterior. Isto ocorreu porque uma das aeronaves ouviu informação num determinado lugar e foram para lá para resgatar e não tinha mais ninguém, uma terceira ouviu informação em outro lugar e também foi. Três aeronaves foram para lá e não tinha mais o que fazer! Uma situação que não precisa mais, a pessoa já havia sido resgatada. Então com a instalação da coordenação foi fundamental para filtrar e confirmar as informações, para que não houvesse duplicidade de levar a aeronave para os mesmos lugares, assim podendo estar resgatando pessoas em outros lugares, podia estar transportando alimentos e com certeza economia também. Tivemos 91 tripulantes, só da Segurança Pública e engajados na aviação do estado, no Batalhão da Aviação. A Marinha do Brasil também trabalhou conosco, ela não faz parte do sistema de segurança pública, mas ela se incorporou na coordenação. A Força Aérea e o Exército com coordenação própria, eles não estavam com a coordenação da segurança pública. A Força Aérea por estar com sua coordenação instalada em uma sala ao lado da nossa, trocavase informações. O total foram 21 aeronaves e 91 tripulantes, na operação toda, foram resgatadas pela segurança pública, 850 pessoas, cerca de 10 toneladas de alimentos, e cerca de quase 700 horas de vôo nessas 21 aeronaves. Estavam trabalhando além das aeronaves da PMSC, a Polícia Militar

213


do Rio de Janeiro, do governo do estado do Paraná, da Polícia Militar e Civil de São Paulo, da Polícia Militar e Bombeiro de Minas Gerais, da Brigada do Rio Grande do Sul, Polícia Civil de Santa Catarina, do IBAMA, Polícia Rodoviária Federal e a solidariedade era tanta que outras Polícias Militares de outros estados se ofereceram para vir, mas já tínhamos aeronaves suficientes. Na quinta-feira estávamos fazendo um voo e como neste dia todas as pessoas basicamente haviam sido todas resgatadas, eu estava cumprindo uma missão de reportagem e deixamos a repórter em Blumenau, e no retorno resolvemos passar pelo Alto Baú que estavam fazendo resgates de corpos, e passando pelo Arraial do Ouro, que ali já havíamos resgatados todos, vimos pessoas no local acenando para gente. Pousamos e ali nos informaram que naquele dia pela manhã havia ocorrido um deslizamento e quatro pessoas ficaram soterradas inclusive uma criança de onze anos e que essas pessoas já haviam sido resgatadas e retornaram lá para quê? Tinha um pessoal da Força Nacional no Alto Baú, com o capitão fizemos uma avaliação no local. Por ele, no Alto Baú, mais nenhuma equipe iria trabalhar; pelo menos a equipe dele. Falou-me que não tinha mais condições de trabalhar naquela área de alto risco, o terreno estava muito encharcado, colocar pessoal aqui para buscar corpos, é você arriscar vidas para um trabalho que já perdeu as características de emergência. Era aconselhável deixar estabilizar um pouco mais o terreno para depois continuar buscando aqueles que já haviam perdido a vida. Naquele momento tinham cinco aeronaves decolando aqui de Ilhota para levar bombeiros para fazerem buscas no Alto Baú. Foi então naquele momento que em voo determinamos a área vermelha, ou seja, ninguém mais desembarca no Alto Baú, só se desembarca para retirar alguém com vida, caso contrário não se faz mais nada. Sabíamos desde o início que as operações eram de alto risco, uma situação completamente inóspita. Tinha a chuva, nuvem baixa, uma região de relevo irregular, montanhosa, muitas das tripulações não conheciam bem a região, ou seja, era uma situação de extremo risco; perigo não! Porque todas as tripulações que vieram eram experientes. Era necessário! Todas as tripulações arriscaram para salvar vidas, essa foi uma grande verdade, não tem outra palavra. Na terça-feira pela manhã o aeroporto de Navegantes estava fechado para operações, e mesmo assim as aeronaves estavam decolando, porque tinha vidas em risco. E graças a todos os profissionais que vieram para Ilhota, não foi preciso parar nem por uma hora. A situação era tão crítica que até o comandante da operação em um determinado momento, por volta de 10 horas da manhã de terçafeira, chegou quase a encerrar as operações por questões de risco. Decolava-se no aeroporto, dava uns 500 a 1000 metros, não se via mais a aeronave, desaparecia no meio da chuva e do nevoeiro. Era essa a situação que encontrávamos. Trabalhamos um dia com área vermelha, no terceiro dia deu outro deslizamento, esse em Luiz Alves, dois bombeiros da Brigada do Rio grande do Sul se machucaram. Eu estava no solo em Blumenau, e ouvi uma aeronave pedindo ajuda para retirar um pessoal do Belchior, e que havia muita gente lá, na hora que eu pousei tinha mais de 35 pessoas da Cia de Gás e da Celesc trabalhando. Naquele momento que eu não contive minhas emoções, falei para eles: “Vocês estão fazendo um desfavor aqui, estamos tendo trabalho duplo, nós tiramos vocês e depois vocês retornam para cá, daqui a pouco será igual àquela família que retornou e depois temos que buscar pessoas mortas!” A situação não era fácil, as pessoas não entendiam a gravidade, os nervos estavam sobressaltados, mas tínhamos que procurar manter o controle. Tínhamos que conduzir equipamentos e que muitos dependiam de nós, pois éramos a única salvação ou recurso.

Já era final de tarde, um pouco mais abaixo desde local havia ocorrido um deslizamento, de lá foram retirados 12 bombeiros, que estavam no ímpeto de querer ajudar. Naquele momento estavam tentando tirar uma vaca no meio do deslizamento, numa área de risco, e eles com lama até a cabeça. Tiramos os 12 bombeiros de lá, então se confirmou mais uma vez a nossa tese que realmente a situação estava bem crítica. Depois da decretação da área vermelha houve mais dois deslizamentos, que resultou na morte de 02 duas pessoas e dois bombeiros feridos. Neste mesmo dia num debriefing, reunião após as operações no aeroporto de Navegantes; com a presença do governador do estado Luís Henrique da Silveira, comentando sobre o Gasoduto e a Celesc, explicando que toda a região sul estava desabastecida, e que havia empresas e indústrias no vale que dependem dessa alimentação de energia. Então nós fizemos essa colocação para ele: “Para o cidadão leigo, vendo o pessoal lá em cima que já estão trabalhando numa área de risco, para eles está tudo normal, eles vão querer voltar e não seria aconselhável porque mais pessoas podem morrer.” Então o governador com os olhos lacrimejando e compreendendo a posição da equipe, na mesma hora determinou que as equipes, tanto da Cia do gasoduto quanto a Celesc, parassem as operações naquela região, até uma nova avaliação do IPT. Naquele momento o governador tomou uma decisão pela vida. Agradeceu emocionado a todas as unidades aéreas que ali estavam. Voltaram então a trabalhar depois de quatro dias, mas tinham regras e normas para cumprir, com relação à quantidade de pessoas, o tempo que poderiam ficar, tinham que ter suporte aéreo, e vários outros critérios. Quem trouxe a informação de Ilhota foi a aviação, não se tinha informações, e a visão que se tinha tanto da imprensa como dos telespectadores era de que a catástrofe era em Blumenau, aquela região ali era Blumenau, Alto Baú era Blumenau, tudo era Blumenau para

214


eles. Não se tinha essa noção regional que o Baú era Ilhota. Na verdade essa visão da área crítica de onde houve mais mortes foi a aviação que trouxe. E em relação a esse trabalho de divulgação realizado pela imprensa com o apoio e as informações das unidades aéreas é que ocorreram muitas doações. Nós éramos o meio mais rápido e confiável de informações. Por isso mudou o foco, não é só Blumenau, o ponto mais crítico era Ilhota. No Braço do Baú, quando estávamos tirando as pessoas das casas e levando para a igreja, teve um momento em que uma família que nós levamos se encontrou com alguns parentes que já estavam na igreja e começaram a se abraçar e chorar dizendo uns aos outros: ’Meu Deus do céu! Eu achava que vocês estavam mortos!’ E quando eu ouvi e vi isso, eu realmente me emocionei! Uma coisa que me impressionou foi a quantidade de pessoas que moram naquela região. Num dia resgatamos 156 pessoas, e no outro dia, 86 pessoas, onde estavam todas essas pessoas? Passávamos pelos locais e de repente via-se gente andando no meio do mato para ser resgatado. Nunca tínhamos visto uma coisa assim, dessa magnitude. De chegar numa casa e ter 35 pessoas! Ficávamos impressionados, porque retirávamos as pessoas e daqui a pouco olhávamos para trás e víamos tudo vazio, não se via mais ninguém, aquelas casas abandonadas com portas abertas, ficavam só os papagaios, cachorros, galinhas, chinelos jogados no chão. Meu Deus! Como a gente é tão fraco diante da natureza, não somos nada!

Por parte do povo havia muita teimosia para não sair das suas casas, mas tudo se contornava. Tinham as famílias que queriam ir juntos. Teve situações que um cara queria ser transportado para Blumenau, mas só que a nossa missão ali era tirar as pessoas da área de risco e colocá-los em uma área segura, não era para produzir conforto, era garantir a vida delas, era uma obrigação do estado. Então quando tirávamos de um lugar, dizíamos que íamos deixar em Blumenau e deixávamos na igreja do Braço do Baú. Quem estava nos abrigos é que passava aperto na situação, porque não tinha como levá-los para casa de parentes em outras cidades, sei que era perto e rápido, mas às vezes em cinco minutos podíamos salvar uma vida, não dava tempo para essas coisas. Chegou uma situação depois em que foi decretado a área vermelha, que passávamos em locais as pessoas se escondiam para não serem resgatadas. Só teve uma localidade que as pessoas ficaram, foi no Baú Seco. Mas de dois em dois dias íamos levar alimentação, e o que precisassem. Não foi necessário tirá-los de lá porque estavam em sessenta e cinco pessoas, como estávamos numa situação delicada nos abrigos com relação tanto na quantidade quanto a própria estrutura dos abrigos, resolvemos administrar da melhor forma. Foram três técnicos do IPT, fizeram uma análise do local e o resultado foi que o Baú Seco não era uma área de risco até aquele momento, podendo ser administrado, onde as pessoas estavam que era na parte da igreja, do campo não era área de risco. Então foi passado para os moradores instruções de quais eram as características para que eles precisassem sair dali, ficava mais fácil, porque dentro daquela situação crítica, isolados, sem luz, sem nenhum contato, mas havia segurança de deixá-los ali. Pela própria geografia do terreno, e pela proporção e características do Alto Baú, não poderiam retornar tão cedo. Exigindo a montagem de uma estrutura para não permitir que os moradores retornassem ou que saqueadores aproveitassem a situação. Com a aeronave que eu estava trabalhando transportei cinco pessoas mortas, duas do Braço do Baú a Augusta que estava perto da casa dela e o Roberto que estava nas arrozeiras, a cerca de 10 km de sua casa. Estes dois levamos para igreja do Braço do Baú, onde seriam enterrados, e mais três corpos no Arraial do Ouro, que levamos para Gaspar onde o IP,( Instituto de Perícia) já estava com uma estrutura montada lá. No caso dos dois primeiros, levamos para a igreja do Braço do Baú para que dessem um destino ali, porque se transportasse aqueles corpos para Itajaí que tinha o IML, aqueles corpos iriam permanecer um bom tempo lá, e iria dar um transtorno grande para a família, teriam que ir para Itajaí para reconhecer então já que estavam ali, melhor já dar destino para os corpos ali mesmo. O Major De Carli trabalhou comigo de segunda-feira dia 24 até domingo dia 30 na minha guarnição. Ele era encarregado de administrar todas as situações, fazia a coleta de dados e informações e a partir dessas informações começávamos a operar. Ele era o coordenador, conversava com o prefeito e os responsáveis nos abrigos para passar as informações e ver o que estavam precisando. Lembro de uma enfermeira, a Cristina que era um de nossos contatos no Braço do Baú, pessoa marcante e que trabalhou por quatro dias direto, os bombeiros voluntários, bombeiros militares, policiais militares, todos aqueles que vieram para ajudar foram verdadeiros herois. Muitos que estavam ali trabalhando tiveram suas casas invadidas pelas águas, perderam tudo e deixaram suas famílias para ajudar. A operação com as aeronaves transcorreu do dia 22 até o dia 14 de dezembro, sendo mantido o apoio à guarnição da polícia militar ambiental no Alto Baú até o dia 10 de março de 2009. A aviação foi fundamental para que mais pessoas não morressem. Sem a aviação temos a absoluta certeza de que a tragédia seria muito maior.

Capitão Coelho conversando com Sr. Alfredo Tolardo, que estava querendo voltar.

215


Dia 02/02/2009 :: Depoimento de

Hersi Arndt e de Maria Irene Arndt

Hersi Arndt (conhecido popularmente como Nelson Rosa) e de Maria Irene Arndt (conhecida como Irene Rosa), moradores do Alto Baú. Estão morando na casa do filho Júnior, no Alto Baú, mas só vão passar a noite, durante o dia, vão para sua casa.

E

le: Já chovia há mais de três meses. Sábado à noite, dia vinte e dois, a chuva aumentou e começou a cair barreiras. Eram mais ou menos nove horas da noite e estourou o gás. Nós estávamos com a vela acesa, e luz acesa, não tinha energia, mas fizemos um rabicho e ligamos no caminhão. Depois que estourou o gás ficou tão claro que apagamos a vela e desligamos o rabicho, não precisou mais, ficou dia. Completamente claro até no outro dia. Meu filho mais velho, o Júnior, falou que era alguma coisa nas nuvens, assim como se fosse parar a chuva. Dei a hora exata para ele que tinha estourado o gás, aí então ele concordou comigo que era o gás mesmo. Ele estava dentro do caminhão na hora, na garagem ao lado da nossa casa. Fiquei acordado a noite toda. Ela: eu também, a noite toda sem dormir, nada! Dentro do caminhão! Não ficamos dentro da casa porque a gente tinha medo que caísse. Ele: Saímos porque domingo às dez horas da noite estourou uma lagoa e já tinha muita água no rio, muita madeira, já tinha água também na calçada, arrancou as árvores e desbarrancou atrás de casa, por isso dormimos dentro do caminhão. Ficamos em quatro ali dentro. Eu, a mulher, meu filho mais velho, Jean e o mais novo o Jean (Nino) Ela : Coloquei um colchão, daí o Júnior dormiu em cima. Nós não conseguimos dormir a noite toda. Ele: Eu não fiquei com medo, fiquei com medo por causa deles, da mulher e meu filho mais novo. A gente se defende, criança e mulher é mais difícil. Amanheceu o dia e fomos lá pra igreja Nossa Senhora Aparecida, que fica aqui perto. Ali tinha mais ou menos umas cinquenta pessoas ou mais. Ficamos lá até quarta-feira. Às onze horas almocei e fiquei quieto na mesa. Depois vi o helicóptero e fiz sinal para descer. Ela: Eu, o Júnior e o Nino fomos até Ilhota, no campo de futebol no centro. Quando descemos tinha muitas pessoas da TV, faziam muitas perguntas para nós, tanto para mim como para os meus filhos. Depois o meu filho, o Júnior desaparece, depois fiquei sabendo que ele foi para Blumenau atrás da mulher que estava lá. Eu e Nino ficamos ali, depois veio o dono de um posto, conhecido da família e e nos levou para casa da minha filha (Vanusa Arndt ) lá no bairro da Itoupava Central em Blumenau. Perguntei: E o senhor não foi por que? Ele: Eu fiquei, fiquei na igreja até sexta-feira. Fiquei sozinho lá. Eu achava que não precisava ir. Então fiquei tratando as criações, enfrentando a chuva. Perguntei se ele dormia na igreja. Não dormi, fiquei quase cinco dias sem dormir, só dormi na sexta-feira

porque relaxei um pouquinho e peguei no sono. Não podia dormir, estava com medo da barreira. Meu pensamento era só isso, mais nada, do resto não tinha medo. Perguntei como ele saiu dali. Vinham me procurar, eu sempre fugia e me escondia. Apareceu meu filho aqui, o Júnior, veio por dentro do mato do Belchior até na igreja, dizendo que a polícia andava atrás de mim. Então fui para Blumenau com ele. Fomos pelo mato até lá no Belchior, onde Júnior deixou a moto, andamos uns 20 quilômetros, saímos às duas horas da tarde e chegamos seis e meia da tarde. Ela: Eu pedia ao meu filho ir buscá-lo, estava muito preocupada, meu Deus! Ele lá sozinho, eu não dormia mais. Ele: Só que fiquei dois dias e voltei para o Alto Baú, para minha casa. Dormi trinta dias no caminhão. E ela ficou em Blumenau. Perguntei sobre a alimentação. A Vanusa e o Júnior vinham trazer comida, vinham a pé do Belchior até aqui, dia sim dia não. Ela: No natal a Vanusa trouxe, doces, carne, tudo pronto! Ele passou o natal e ano novo sozinho aqui. Ela: Depois de um bom tempo, eu e Nino íamos para lá, mesmo sem luz, a gente ficava uns dias, depois voltava, a gente vinha a pé, porque a gente sentia saudade do Nelson, da nossa casa, das coisas aqui. Depois quando melhorou um pouco a estrada a gente vinha de carona, do que dava. Mas agora a defesa civil interditou nossa casa, porque está em área de risco. E agora fomos morar com o Júnior aqui mesmo no Alto Baú, ao lado do posto de saúde, ele voltou a morar em sua casa semana passada, lá não tem risco, é um lugar mais seguro. Mas durante o dia ficamos lá em casa, porque tem que tirar leite. Tenho muita saudade da minha casinha, eu acho que vamos conseguir recuperá-la! Vai demorar, mas vai dar, a gente nunca pode perder a esperança. Ele: Eu vou voltar para casa, no mesmo cantinho de volta é o que nós queremos!

216


Dia 26/03/2009 :: Depoimento de

Odair Pereira

Morador do município de Ilhota.

N

o dia 23 de Novembro, após conhecimento do que ocorria no complexo do Baú, comecei a receber telefonemas em casa de celulares de alguns parentes de moradores da região do Baú. Então eu e minha esposa fomos para o salão paroquial trabalhar como voluntários, até porque fazemos parte da Pastoral Familiar e do Movimento de Irmãos da Paróquia São Pio X- Matriz. De imediato, começamos então a ajudar outros voluntários que já se encontravam no local, e naquele momento só havia moradores flagelados da margem direita da cidade, principalmente do bairro Vila Nova e Ilha Bela. Ajudávamos no que podíamos, como: receber o pessoal, encaminhar atendimento, depois fomos para a cozinha, etc. Na segunda-feira, dia 24, voltamos pela manhã e continuamos o trabalho. E as notícias eram cada vez mais assustadoras. O que me impressionou neste dia foi a coragem de alguns bombeiros e amigos do Movimento de Irmãos, que se uniram e se dirigiram perigosamente com barcos até a localidade do Braço do Baú. Pois foi deste pessoal, praticamente sem instrumentos apropriados, que as vítimas tiveram o primeiro socorro. É aí que a gente conhece quanta gente boa temos ao nosso lado, que além da coragem, não medem esforços para ajudar nas dificuldades. Eu e minha esposa deixamos nossos filhos em casa com mais algumas pessoas da família, que também estavam flagelados pela enchente, e continuamos nossa tarefa de voluntários, onde fazíamos o que tinha para ser feito, na medida de nossas condições, sempre em muita harmonia com todo o pessoal voluntário. Na terça-feira, dia 25, no final da tarde, fomos pegos de surpresa, pelo menos nós não sabíamos. Começaram a pousar helicópteros com as primeiras pessoas desabrigadas do Baú. Lembro-me bem. Foi uma cena que mais parecia filme de guerra, onde aquelas pessoas eram retiradas dos helicópteros e olhavam assustadíssimas e perdidas, como se estivessem olhando para o nada. A impressão era de que elas estavam fugindo de uma guerra. Prontamente muitos voluntários reuniram forças e acima de tudo, muito carinho por aquelas pessoas, e começaram a encaminhá-las para atendimento. Foi tudo efetuado de improviso, então eles eram levados para tomar banho, na casa paroquial, onde íamos chamando em famílias. Depois eram vestidos com roupas doadas. Senti-me muito triste quando olhava, principalmente as pessoas idosas e crianças, alguns chorando, outros totalmente sujos de lama, com fome, sede, enfim foi muito dolorida aquela cena. Mas Deus nos deu tanta força que em instantes, apareceram muitos voluntários, pessoas das pastorais, movimento de irmãos e muitas pessoas da comunidade, onde uma energia muito benéfica ajudou no atendimento daquele pessoal. Neste mesmo dia (25) à noite, a Elizabeth, secretária da Secretaria Paroquial, me pediu ajuda no sentido de tomar o nome e localidade das pessoas desabrigadas que estavam chegando do Baú. Então arrumamos um pouco de papel, e comecei a falar com essas pessoas, cadastrando-as mesmo num papel qualquer de última hora. Minha esposa continuava ajudando outros voluntários em providenciar banho e alimentação. O que me marcou muito também, e no fim, parece que era uma missão minha, notei um senhor já bem idoso que acabava de chegar do Baú, todo sujo de barro, num canto, e perguntei a ele, se ele estava só. O idoso (que não lembro mais o nome) me disse que teria a esposa, mas que ela não embarcou no mesmo helicóptero. Então comecei a conversar com ele e pedi à dona Elizabeth (secretária da Paróquia), para ver se ela conseguia encontrar a esposa daquele senhor. Logo ela veio com aquela senhora e finalmente juntamos os dois. Daí em diante, pelo acaso e provisão de Deus, é que apareceu a minha verdadeira

Claudeonor e Odair (Odi), no serviço voluntariado. missão naquela situação. Comecei então, com este mesmo casal, a solicitar nome de parentes, telefone, e onde eles moram. Lembro que a esposa dele disse que tinha uma neta morando em Blumenau, e pedi o nome e telefone. Neste momento, juntaram-se a nós mais alguns familiares deste casal, muito nervosos, inclusive um neto deles, com mais ou menos 27- 28 anos com semblante de choro. A idosa então revirou sua bolsa e não encontrava e nem se lembravam do telefone dos parentes em Blumenau. Começaram a revirarem algumas bolsas de plástico, com algumas roupas que haviam trazido do Baú para acharem um papel com o numero do telefone. Até que alguém lembrou e me passou. Aquela ligação para mim foi o exemplo de como a gente sem querer pode fazer um grande bem às pessoas. Peguei meu celular e fiz a ligação para Blumenau. Então falei meu nome e que era de Ilhota. Falei então o nome dos dois idosos e quando disse que eles estavam comigo, a mulher começou a chorar muito e sem condições de continuar a falar, me indagava a todo o instante se era mesmo verdade... E quem eu era... E que soube que os avós (o casal de idosos), havia morrido soterrado pela lama, e mesmo emocionada duvidava de que fosse verdade. Logo então, passou o telefone ao marido e então passei o endereço de onde os idosos estavam. Quando lá pelas 22h00min ou 23h00min horas, não sei bem, eles chegaram de automóvel, vindos de Blumenau, presenciei um encontro, que já havia visto só em filmes. A neta chorava muito no pátio do Salão Paroquial, e então levei a família ao encontro dela, e foi muito triste e ao mesmo tempo alegre pelos choros de alívio. Lembro também que na despedida comigo, o idoso me disse que tinha 81 anos e que nunca na vida dele, morando onde morava (Baú), tinha passado por isso e que não acreditava que no Baú fosse acontecer uma coisa dessas. No final me agradeceram muito, e disse a eles que era voluntário como muitos que ali estavam. E ainda disse a ele que muitas vezes, as coisas acontecem para nos ensinar muito sobre a vida e o modo que agimos, devemos refletir e dar mais valor à vida e às coisas simples que ela oferece. Assim, continuei meu trabalho e graças a Deus, consegui encaminhar algumas famílias para seus parentes em outras cidades.

217


Dia 03/02/2009 :: Depoimento de

Nilson Reinert e Elaine Custódio

Nilson, professor de educação física e Elaine diretora, ambos do colégio Domingos José Machado, no bairro Ilhotinha.

E

laine: O início foi assim, dia vinte e um de novembro, numa sexta-feira, os alunos vieram para a aula, era um dia normal de aula, fim de ano letivo. Chegando aqui, havia tinha um grupo de alunos que iria fazer um passeio em Balneário Camboriú, mas chovia muito. Eu fui com esse grupo e mais uma professora porque estava programado o passeio. Em Balneário, também muita chuva. Fomos ao schopping e o encontramos todo alagado. Aí recebemos um telefonema da escola informando que a secretaria da educação havia ligado dispensando todos os alunos em função da chuva. Que em muitos lugares não estavam mais conseguindo passar, como para o bairro Minas, por exemplo e estava começando a alagar todo o município de Ilhota. Então retornamos e fiquei em casa que era caminho. E ali começou tudo, os alunos foram embora. Muitas crianças deixaram material na escola porque era muita chuva. Na sexta-feira a escola permaneceu fechada e começou a alagar o município. No domingo à noite começaram a chegar desabrigados. Nilson: Eu comecei a resgatar o pessoal lá da Vila Nova (bairro), ajudando a retirar móveis, inclusive. Depois houve a necessidade de abrir a escola para o pessoal ir para lá. Nisso veio a Eli (funcionária da escola) e começamos a atender o pessoal que chegava. Como a Eli também teve sua casa alagada, hospedou-se, digamos assim, aqui na escola e já ficou como coordenadora do abrigo com a gente. Como somos pessoas que conhecemos bem a estrutura da

escola, onde procurar cada coisa que precisasse, então ficamos como voluntários responsáveis. Dali começaram as prioridades a resolvermos. Como estas pessoas iriam dormir? Começamos pegar colchonetes da escola, lá da creche, só que tínhamos que pegar essa quantidade e devolver essa quantidade, só que a gente sabe que numa situação dessa, quase não se tem controle, ainda mais numa situação de desespero. Pessoal ia chegando, a gente ia arrumando colocação para eles. Enquanto isso, dona Tereza (mãe de Nilson) já ia fazendo a comida. Os desabrigados chegavam com poucos pertences. Uma família conseguiu resgatar quase tudo de dentro de casa, geladeira, fogão, armário, não sei como, e colocaram dentro da sala, que virou quarto. Daí começamos a adequar o material que a gente tinha para as famílias. Colchonetes não eram suficientes para todos, limitados a quatro por família, pririzando crianças e idosos. Algumas pessoas conseguiram trazer colchões, o que já aliviava a demanda, outros eram bem conscientes e avisavam que precisavam menos de quatro colchonetes. Perguntei sobre a alimentação. Em questão da alimentação, o que a gente conseguia fazer, estava bom para eles, sempre agradeciam. Sobre produtos de higiene e limpeza, a princípio a gente começou a usar o que tinha na escola, mais depois, a gente começou a ganhar doações, as pessoas já traziam direto para cá. E daí com o decorrer do

218


tempo, começou a vir doações do Brasil todo. Desde o início não passamos necessidade de alimentos e com produto nenhum, estávamos bem supridos. Claro que no começo tinha mais variedades, as doações eram maiores, em questão de carne de primeira, de churrascarias, agora não. A maior parte da semana o cardápio é frango e uma vez por semana se consegue coisa melhor. Enfim, é o que a gente pode oferecer. Quando saíram os desabrigados do bairro Vila Nova, começaram a chegar os do Baú. Até uns dias atrás, minha mãe fazia parte da pastoral da criança e da família, então tinha uma senhora que a ajudava ela na cozinha, só que só permanecia enquanto minha mãe estivesse também, vinha somente para ajudá-la. Então vimos a necessidade de colocar os próprios desabrigados para ajudar nos afazeres do abrigo e começou pela cozinha. A dona Tereza fica até o café da tarde, a janta são outros que fazem. No começo deu o maior fuzuê, porque o pessoal não tinha noção da quantidade de comida que devia ser preparada. O pessoal que estava alojado no CTG não tinha cozinha comunitária e pessoal vinha almoçar aqui. Algumas pessoas lá tinham fogão e faziam seu próprio alimento. Já passaram por aqui mais de duzentos e cinquenta pessoas, da Vila Nova e do Baú. Chegaram a almoçar e jantar umas cento e oitenta pessoas. No início era só sopa. Antes tínhamos que servi-los, hoje não, a gente bota na mesa e eles mesmo se servem. A carne foi um dos grandes problemas que a gente enfrentou, ou porque era só frango, ou porque ganhavam pouco, ou porque não tinha carne o suficiente,foi uma coisa! E quem sofria com isso tudo na maioria das vezes era a cozinheira. A dona Tereza que o diga, pois está bem cansada Depois que as voluntárias não vieram mais, ela ficou com outra ajudante, a dona Maurina Pfleger, paga pela prefeitura. Dona Maurina é uma pessoa muito querida e vai trabalhar conosco na escola. Perguntei sobre a situação dos idosos. Aqui tinha uma família de idosos, dona Asta, seu irmão Nivaldo,

deficiente, manco de uma perna, veio uma semana depois da dona Asta, e dona Leonida, que era como que guiada por dona Asta, só os três, sem família. Dona Leonida estava com o braço quebrado e precisava de uma certa atenção que dona Asta não conseguia lhe dar, pois tinha que receber medicamentos específicos e se sentiam cansados. Dona Leonida voltou para casa com os sobrinhos dela e dona Asta e seu Nivaldo já voltaram para suas casas também. Perguntei sobre a psicóloga Marisa Lobo, de Curitiba. Quando conversamos com ela pela primeira vez, estava num abrigo em Itajaí. Lá ela considerou seu trabalho encerrado e veio parar aqui. Ela e mais uma colega ficaram alojadas aqui até depois do Natal,

219


não passaram a virada do ano com a gente. Quando ela chegou aqui, comentou: - nossa, gente! Pessoal aqui está no céu!’. Aqui eles têm um café da manhã muito bom, almoço muito bom, café da tarde, janta. Se você olhar na cozinha, tem garrafas de café, docinhos, tudo preparado para eles. Lá em Itajaí, o pessoal só comia pão com mortadela, de manhã, à tarde e à noite. Esse é o depoimento da dona Marisa. Com relação aos afazeres num abrigo, no início o voluntariado é numeroso, mas com o amainar da situação, diminui muito e acaba, e os desabrigados vão assumindo as tarfeas. Perguntei sobre o trabalho da psicóloga Marisa Lobo com crianças. Seu objetivo maior era de fazer o trabalho pós-trauma com as crianças. Fez artesanato, dança e conversava bastante.Deu uma assitência muito importante enquanto nós tocávamos a parte administrativa. E sobre o natal?

Mas no final tudo acabou bem e as pessoas premiadas foram as que realmente necessitavam daqueles prêmios. As pessoas que têm mais interesse em começar a vida novamente, vão procurar casa para alugar, ou tentam voltar para a própria casa e, se hoje recebem um “não” da defesa civil, no dia seguinte estão lá novamente insistindo. Mas as que aqui ainda permanecem, não sei... estão deixando até o último dia do prazo para saírem e arrumar um lugarzinho. Há um prazo até sexta-feira e os desabrigados que não encontrarem um lugar serão transferidos para o abrigo do Baú Baixo. Muitos já encontraram lugar para ficar. E assim que saem, a gente faz uma sexta básica bem farta para eles começarem.

Dona Marisa ajudou a gente a incrementar a ceia de Natal. Através da igreja à qual ela pertencia conseguimos a doação de uma geladeira e um fogão. Também vieram brinquedos e cobertores e nós fazíamos kits desses pequenos itens que, juntamente com a geladeira e o fogão foram sorteados entre os desabrigados através de um bingo que fizemos para eles. Durante a ceia de Natal pudemos entregar brindes para todos. Muitos voluntários vêm para somar, mas alguns vêm para atrapalhar. Houve uma certa confusão quanto a este bingo porque alguns voluntários anunciaram noutros abrigos que o bingo do abrigo de Ilhotinha seria para todos, quando na verdade tivemos esse intuito para incrementar o nosso Natal aqui e tal informação gerou deslocamento de muitas pessoas, principalmente do abrigo Marcos Konder para cá.

Perguntei sobre doenças. Havia muitas equipes voluntárias da área da saúde, só que não se sabia

220


por quem estavam sendo enviadas estas equipes. Então uns médicos consultavam e davam medicamentos e às vezes somente receitas. Depois chegava outra equipe e dizia que aqueles medicamentos não serviam para as pessoas a quem foram ministrados. Então foi sugerido e solicitado que as equipes passassem pela coordenação lá no centro para que se definisse para onde vai, quanto tempo permanece e com qual objetivo e qu isto fosse informado ao abrigo que receberia a equipe. Porque também ocorria de num dia estarem lá alguns médicos atendendo e no outro nenhum aparecia, não havia uma coordenação disso, deixando os abrigos despreparados, sob o fator surpresa. De qualquer forma fomos bem assistidos, principalmente no tocante à questão ambulatorial, pronto atendimento dos bombeiros, ambulâncias, etc. Quando a gente ajuda e vê que está servindo para alguma coisa, temos mais força ainda! Quando se vê que a ajuda não está dando resultado a gente acabava se desgastando também. Perguntei para Elaine (diretora) sobre a intimidade dos casais, as suas privacidades. Eu e a Marisa psicóloga, fomos fazer uma visita no abrigo Marcos Konder, porque o pessoal de lá estava passando bastante dificuldade com as crianças. Chegando lá a gente foi conhecer o abrigo, e eles haviam montado um quartinho, e mostraram para a gente. Gostamos da idéia, achamos interessante. Chegando aqui Marisa conversou com todas as mulheres do abrigo, comentou o que havíamos visto no Marcos Konder, dizendo que achamos interessante. Até assim porque os homens podem ter o problema da traição, as mulheres às vezes, pela situação, pela tragédia não podia estar preparada, por isso resolvemos conversar com as mulheres, em uma reunião, e elas acharam interessante. Ficamos dois dias montando um quartinho, foi muito legal! Não falamos para elas que íamos criar um motel, dissemos que íamos criar um local privado para que tivessem um espaço com o esposo.

Fotos cedidas por Nilson Reinert e Elaine Custódio

Doaram colchão, achamos legal colocarmos cama, porque nos quartos eles dormiam no colchão no chão. Falamos às mulheres: - Vamos colocar uma cama! E também fomos atrás de guloseimas, tudo sabe... Camisinha, fizemos um quartinho bem legal. Decoramos todo o quarto. Colocamos o nome de “Ninho do Amor”, criamos uma escala, e as reunimos novamente, nesse momento no local mesmo. Elas vieram conhecer as instalações, - as casadas - tinha essa observação! Ah! Foi a maior festa! A princípio algumas ficaram tímidas, outras se abriram e disseram que não dormiam comos esposos, outras respondiam àquelas ‘esse é o momento para vocês dois conversarem!’ Foi muito legal! Então decidimos que a chave do “Ninho de Amor” ficaria com elas, que fariam o repasse da mesma de acordo com a escala que organizassem entre si. Os homens gostaram, foi ótima a aceitação e respeitaram a questão da ordem e vez de cada casal. E assim criou-se o “Ninho do Amor”. E assim criou-se o Ninho do Amor! E no nosso abrigo ainda não tinha existido caso de traição. Só que a gente já estava sabendo que em outros abrigos, os esposos estavam traindo suas esposas. Porque eles não tinham privacidade nenhuma, ficavam no alojamento mesmo.

221


Dia 03/02/2009 :: Depoimento de

Odésio Henrique Braatz

Morador do Alto Baú

Local onde estava sendo construída casa de Odésio.

N

o dia em que tudo aconteceu, eu estava na casa do meu cunhado (Marcos Riincos), estava morando com ele. Começou a correr barro dos morros então falei para sairmos da casa, pois não estava seguro. Então fomos para casa do tio “Quinho” (Valdemiro Riincos). Ficamos lá, era aniversário da minha tia (Elda), naquele dia tinha bastante gente na casa. Domingo à noite, por volta de nove horas, aconteceu a explosão do gás, fomos todos para casa da prima do meu cunhado, Daniela, que fica num local mais alto. Na segunda-feira fomos ao local em que morávamos, não havia mais nada, tinha sumido tudo! Havia caído a casa do meu cunhado, do pai dele, e a minha ainda sendo construída, porém, caiu tudo também. Nós descemos, então segunda-feira, passamos a noite toda acordados, esperamos até terça-feira à tarde para sermos resgatados. Fomos até Blumenau, de lá para Gaspar e depois aqui para o colégio em Ilhota. Um dia resolvi ir para o Alto Baú junto com dois amigos, o Charles e o Jorge Martendal. Chegando lá em cima no Alto Baú, eu disse a eles: _ “Eu vou até lá na casa da minha mãe”. Então desci, chegando lá atrás da casa do “Neném Preto”, encontrei dois bombeiros voluntários que estavam procurando o corpo da filha do Juliano, a Larissa. Disseram para mim que devia ter cuidado, pois lá para baixo estava meio perigoso. Falei a eles que só ia até ali na casa da minha mãe, e que ia bater umas fotos para mostrar a ela e subir em seguida. Daí ele falou:

-_ Você não pode dar uma informação de onde pode estar essa menina (Larissa)? Falei: _ Olha, sobre essa menina eu não posso dar informação, mas posso dizer que tem uma mulher soterrada, o filho dela falou que a viu soterrada, que só ficou com a mão de fora, e é lá para cima, lá para trás de onde estão procurando os corpos dos parentes do sr. Daniel. Eles me falaram que era para eu subir e depois falar com o tenente que estava lá. Na hora já passaram via rádio para o tenente, avisando que eu estava subindo para onde se encontrava o corpo da dona Deonilda (foi a primeira pessoa a morrer lá no Alto Baú). Subimos o morro. Um amigo foi junto. Fomos até o local onde era a casa dela. Pediram-me para mostrar onde mais ou menos poderia estar o corpo, disse: _ Eu não sei dizer certo onde ela pode estar, mas eu sei que está nessa região por aqui, enterrada. Fizeram assim a base de dez por dez, de ângulo para procurar, com ajuda de cães. No final, os bombeiros procurando, acharam-na atrás de um monte de barro, no meio dos eucaliptos. Ela estava normal, não estava suja, não tinha nenhum ferimento, só o pescoço quebrado. Os bombeiros constataram que ela estava morta mesmo, depois resgataram o corpo com o helicóptero. Eu vim embora mais cedo e meu amigo ficou por lá. Alguns dias depois Odésio foi morar com a família em uma casa alugada, em Ilhota.

222


Dia 13/02/2009 :: Depoimento de

Olga Regina Soares (Preta)

Moradora do município de Ilhota.

N

o dia vinte e quatro de novembro, uma segunda feira em que chovia muito, resolvi ir até a casa de meu irmão, Jedson, para ver se a família estava precisando de ajuda por conta da enchente. Minha casa fica em um lugar seguro, mas infelizmente na enchente de 1983 perdi tudo, fiquei somente com a roupa do corpo. Vi que no campo de futebol no centro estavam pousando muitos helicópteros, muitas pessoas. Havia muita movimentação, e eu pensei: Gente! O que está acontecendo? Parecia uma guerra! Falei para a minha cunhada Nilza: Vou ver o que está acontecendo! Quando cheguei lá que vi que esses helicópteros estavam trazendo pessoas do Baú para o centro, pessoas estas que sofreram com os deslizamentos de terra e muitas delas perderam suas casas e familiares, vi as pessoas saindo descalças, sujas de lama, com poucos pertences, alguns com pequenas sacolas com poucas roupas. Ofereci minha casa, porque lá poderia abrigar até oito pessoas, mas o prefeito achou melhor não separá-los. Fui até o salão paroquial e vi que estavam chegando doações de roupas e outros, prontifiquei-me para ajudar e acabei ficando por 30 dias. E todos dias estava lá às 07:30 horas da manhã e só retornava por volta de 10 horas da noite. Houve alguns dias em que estava muito cansada, que me custava ir, mas tinha uma força maior que me obrigava e era muito prazeroso. Foi uma situação muito triste para todos nós, porque essa enchente foi diferente. Na enchente de 1983 ficamos com água em nossas casas durante muitos dias, todos esses dias sem energia, e desta vez, a água veio e ficou apenas um dia, na terça já havia baixado. Até então achávamos que havia terminado, mas não sabíamos da região do Baú, a tragédia terrível que por lá aconteceu. Durante o período em que realizei este trabalho voluntário conheci muitas pessoas, fazíamos de tudo para confortá-las. A primeira semana foi muito precária, tínhamos falta de tudo, e não havia quem nos orientasse. E pelo fato da tragédia ser tão grande, ficávamos um pouco sem ação, com isso houve muito tumulto, talvez não agradamos como gostaríamos. Depois de alguns dias começaram a chegar muitas doações, vindas de todo o país. Eu e mais algumas voluntárias começamos a organizar estas roupas, tentando separar por tamanhos, tipos, o lado infantil do lado adulto, e assim por diante, e selecionando tudo conforme as necessidades. Ficou tudo muito bem organizado, assim encontrávamos quaisquer roupas, calçados, roupas de cama, tudo com maior facilidade e agilidade, agradando as pessoas e também a nós.

Olga Regina Soares (Preta), lendo a cartinha de amor, ao seu redor outras voluntárias. As pessoas que por lá passavam eram pessoas muito humildes, tudo para eles estava bom, qualquer calçado, qualquer roupa as contentava. E junto com essas roupas que recebíamos de doações apareciam algumas coisas muito interessantes e até cômicas, como por exemplo, vestidos de noiva antigos, roupas de festas, e foram encontradas várias cartas. Uma das voluntárias achou uma cartinha de amor, e eu li esta carta, como se alguém tivesse mandado para mim. Li em voz alta para todas voluntárias que ali estavam, fazendo todas rirem. Nós a achamos muito interessante porque quem escreveu talvez nem imaginasse que havia guardado aquela carta no bolso de uma roupa, e o pior, que um dia alguém iria ler. E uma das voluntárias pediu para levar esta cartinha, porque achou muito romântica e gostaria de ler para o marido. Vieram muitos bilhetes dando-nos fé, para que tivéssemos força, acredito, da religião, assim como eu mandaria também. Um desses bilhetes dizia o seguinte: Meu nome é Ricardo, moro em Ponta Grossa (PR), por erro médico não ando, mas gostaria de dar a minha ajuda para vocês. Tenho orado muito por vocês todos para que superem esta tragédia, mas com ajuda de Deus e com a confiança em Deus hão de superar! Abraços Ricardo. Vieram muitos voluntários, tanto da nossa cidade quanto de outras cidades e até de outros estados, que muito nos ajudaram. Houve um casal com três filhos que estava de passagem por aqui, e queriam ensinar a eles que em casa tinham tudo o que queriam, e gostariam de ajudar alguém, eram de Goiânia, e conversaram comigo, então fui a um dos abrigos. Chegando lá falei com uma moça que também fora atingida pelas cheias, mas nos indicou uma outra senhora que tinha um filho especial que precisava muito mais que ela própria, então o casal ajudou essa mãe com algum dinheiro, depois fiquei sabendo que a moça que nos indicou aquela mãe, tinha perdido tudo, e não pediu nada para si. Isso é uma lição de vida! Conhecemos também um Militar de São Paulo que nos ajudou muito, ficou conosco durante nove dias. Tomava decisões muito importantes para nós, como distribuição de senhas para tentar agilizar nosso trabalho, nas horas que não podíamos fazer limpeza dos banheiros, ele mesmo fazia. Sabia conversar com as pessoas, foi muito atencioso com todos. Foi o ser humano mais incrível que conhecemos ali. Nesse trabalho fiz muitas amizades, houve uma harmonia muito grande, muito profunda. Todas nós soubemos contornar muito bem todas as situações. Sempre acreditei que a verdadeira felicidade estava nos pequenos momentos especiais que vivemos. Mas este acontecimento me mostrou que a grande realização do ser humano, a verdadeira forma de nos aproximar de Deus é ajudando ao próximo, oferecendo talvez uma simples palavra de consolo. Diante da dimensão da tragédia foi que pude compreender que a verdadeira grandeza do ser humano está dentro dele mesmo..

Cartinha de amor encontrada em meio às roupas doadas.

223


Dia 28/02/2009 :: Depoimento de

Patrício Zuccki

Patrício Zuccki

Morador do município de Ilhota. (um dos 14 herois)

Patrício Zuccki.

Sempre admirei o trabalho dos bombeiros voluntário, prestando auxílio por iniciativa pessoal ou através de minha empresa de móveis rústicos.Gosto de elogiar a atitude daquelas pessoas, que voluntariamente, salvam muitas vidas, querendo apenas ajudar a comunidade’ Atravessamos o rio Itajaí Açu, naquela segunda feira, dia 24 de novembro, ignorando o perigo que corríamos, devido a força correnteza. Seguimos em dois barcos e um bote, que logo veio a encalhar na outra margem, gerando discussões acaloradas entre as quatorze pessoas que precisavam se transportar com urgência, tendo como único recurso, dois pequenos barcos. Acalmados os ânimos, decidimos seguir mesmo naquelas condições adversas. Chegamos ao Baú Central após duas horas de viagem, sob forte tensão, devido as constantes falhas no motor do barco de Edinilson, a quem chamamos carinhosamente de Passarinho. Na chegada, sem perda tempo, o subcomandante Cidnei e Pedro Paulo, que dirigiam a operação, determinaram que onze pessoas seguissem imediatamente para os locais de trabalho, enquanto permaneci acompanhada de Edinilson e Leandro, providenciando o atracamento dos barcos e alguém que pudesse guardá-los em segurança. Acondicionados em mochilas, levávamos tudo o que seria necessário para prestar auxílio imediato às vítimas da tragédia, além das macas e demais equipamentos de emergência. Apesar da

destruição e imensidade de entulhos e lama, seguimos por mais de um quilômetro, encontrando o senhor Osmar Prebianca durante o trajeto, que imediatamente dos advertiu sobre o que encontraríamos naquele cenário de horror. Ao chegarmos à residência senhor Nelson Richarts, é que me dei conta do que realmente havia acontecido, deparando-me com eletrodomésticos, móveis, roupas, madeiras, utensílios domésticos e de trabalho, carros, enfim, toda sorte do que sobrou daquela comunidade, imaginando o que ainda encontraríamos pela frente. Ao chegarmos na igreja do Braço, três, quatro corpos já estavam sendo velados e logo a seguir, encontramos moradores construindo caixões na serraria do seu Ilário Pelz. Ainda nos depararíamos com outras cenas horríveis, constatei ao encontrar, logo a seguir, Beto”Bananeira”, uma cunhada sua , Luiz Fischer, além de outras pessoas, que vinham trazendo o corpo de Giane, sobre escada. Chegaram de trator, além do trecho feito a pé, e suas fisionomias eram carregadas de tristeza. Ao passarmos pela padaria de Renato Werner, em frente do mercado Ziloca, avistamos uma parte da equipe que já havia avançado um bom trecho e se encontrava na casa de Adriano Kremer. Solicitei ao senhor Osmar que nos levasse de trator até as proximidades do acesso ao Morro Azul e Alto Braço, juntando-nos a equipe que ali estava para atender as duas localidades. Logo encontramos escombros de uma residência de amigos, onde 6 pessoas haviam morrido e nos juntamos aos que

224


procuravam o corpo de Betinho, velho amigo, com quem, muitas vezes saí a passeios de motocicleta e de sua mãe Aparecida. Durante as buscas, encontrei luvas e camisa que pertenciam a ele, quando então, escorreguei, quebrando um dos dedos da mão e mesmo com fortes dores, não abandonei meu trabalho. Ao Tomarmos conhecimento de que muitas pessoas estavam isoladas, seguimos para ajudá-las, apesar do caminho interrompido, devido a uma cachoeira que se transformara em caudaloso rio, de aproximadamente 30 metros entre as margens. Leandro, na tentativa de alcançar o outro lado, por pouco não foi arrastado pela forte correnteza. Felizmente, tivemos a sorte de encontrar um rapaz que portava uma moto serra e com um eucalipto, foi improvisada uma ponte. Leandro, Passarinho e o rapaz que nos ajudou, arrastando-se por cima do tronco, atravessaram aquele rio formado pela catástrofe e após 10 minutos, nos avisaram que haviam sobreviventes isolados naquela área. Pedro de Abreu, Josimar Cunha, Jaci, além de um morador das localidades, seguiram comigo e ao chegarmos, encontramos Passarinho conversando com as duas senhoras, mãe e filha,, ilhadas, que encontravam-se totalmente desesperadas, pois a casa em que moravam, ficou na outra margem. Queriam que as levássemos dali imediatamente. Passarinho as tranqüilizou, informando que já havia feito contato com uma aeronave, que viria buscá-las, o que não era verdade mas utilizou-se dessa estratégia para que se acalmassem, já que sequer dispúnhamos de um simples rádio, Já conhecíamos a realidade brutal daquela família da qual era as únicas sobreviventes, fato que não declaramos, para amenizar a situação, até que Pedro Paulo voltasse com socorro. Deus age na hora certa, pois um helicóptero apareceu e as resgatou. Subimos até ao final da estrada do Morro Azul, cortando outra árvore para atravessarmos novo rio. Continuamos, parando à porta de cada casa que restou, mas ninguém mais foi encontrado. Um lugar sinistro, fantasmagórico, onde encontramos casas desmoronadas, outras onde cães haviam ficado trancados, além daquelas que simplesmente foram abandonadas às pressas, devido ao pavor que assolou aquela gente. Continuamos a subir, e ainda encontramos um morador solitário que nos informou haver mais de trinta e cinco pessoas em local próximo e alto. Ao chegarmos, nos deparamos com uma residência de dois pisos, onde cada qual, daquele grupo tinha a sua tragédia pessoal e familiar, histórias de sobrevivência consideradas milagrosa, onde a imagem de Nossa Senhora Aparecida, nas mãos de um jovem rapaz, era enaltecida e tida como responsável pela salvação de várias pessoas. Aquele grupo na tentativa de ser visto e resgatado por algum helicóptero, acenava com panos brancos, que trocamos por vermelho para melhor destacar e logo foi identificado, mas na verdade,considero que Pedro Paulo é quem foi o responsável pelo contato, incansável em conseguir ajuda aos sobreviventes. Durante a organização para que houvesse o resgate, apenas três pessoas conseguiram seguir naquele dia, por ser quase noite e não haver possibilidade de retorno da aeronave, que somente voltaria na manhã seguinte, o que realmente aconteceu, levando a todos para local seguro. Quando iniciamos a descida, voltando, já escurecia, mesmo assim, ao passarmos pelo local onde havia sido a residência de Betinho, ainda tentamos encontrar seu corpo e de Aparecida. Sem sucesso, tomamos nosso rumo, num clima de desolação e tristeza geral e seguimos para a casa de Adriano Cremer, próximo ao mercado Ziloca, onde passaríamos a noite. Chegamos molhados, sujos e com frio e mesmo assim, pouco depois, acompanhei Pedro Paulo até uma serraria próxima, com o objetivo de telefonar à base dos bombeiros em Ilhota, pois estávamos sem energia e comunicação. Com ajuda de uma bateria de um trator, conseguimos fazer com que o telefone funcionasse e após o contato com a base, ainda falei com minha esposa Vanessa, para que tranqüilizasse os familiares dos civis e bombeiros, avisando que

pernoitaríamos lá e que todos estavam bem. Ao retornar à casa de Adriano, encontramos cinco famílias que alojou e fomos muito bem recebidos, inclusive com comida, apesar de dispormos apenas de água barrenta e devido a sede, ignoramos problema. Pedro Paulo e Cidnei fizeram uma breve reunião, para definir ações do dia seguinte e informar que receberam notícias de que no Alto Braço, próximo à Santa Paulina, apesar dos muitos feridos e mortos, o socorro ainda não havia chegado ao local. Decidimos que essa seria nova próxima missão, ao amanhecer, cientes de que os acessos foram completos destruídos.Por volta das onze horas da noite fomos dormir e chamou-me a atenção, naquele silêncio, que as famílias recebidas naquela casa e que perderam vários entes queridos, ainda rezavam um terço e concluí que na adversidade, nos apagamos ainda mais a Deus. Convidei meu companheiro Passarinho e nos juntamos a elas, e tão logo chegamos, cederam suas cadeiras para que tivéssemos mais conforto e sentaram-se no chão, gratos por nossa ajuda e companheirismo, nos dizendo que apesar de terem perdido tudo o que possuíam, além de familiares, a fé jamais perderiam. Tentamos descansar, mas barulhos, grito, buzinas, resultaram numa noite intranquila, sem que soubéssemos de onde veio o estouro ouvido na madrugada. Iluminando o caminho com uma lanterna, recebemos um cidadão de Luiz Alves, que tinha atravessado todo aquele morro pelo meio do mato e nos informou que na comunidade próxima à igreja Santa Paulina no Alto Braço do Baú,o socorro ainda não havia chegado, coisa que já sabíamos e o convidamos para ser o nosso guia daquela empreitada. Estava quase amanhecendo o dia, ficamos ali em baixo, ninguém dormiu mais. Fizemos uma reunião e foi definida a equipe para subir o morro e Passarinho foi o primeiro a se dispor, seguido de Paulo Minuzzi, Júlio, Leandro e Josimar, além de mim e nosso guia de Luiz Alves. Antes de ir ainda tomamos um café, mas na casa não tinha mais nada o que comer, nem pão ou bolacha. Nos contentamos com duas bolachas cada um, recebidas de um bombeiro que ainda tinha em sua mochila. Subimos e estávamos há uma hora caminhando, quando nos deparamos com uma rachadura de uns dois metros que fez com que o morro inteiro caísse e ali parou mas que a qualquer momento poderia vir abaixo. Estávamos com o estômago completamente vazio, nisso avistamos um pé de limão e comemos com casca e tudo, tamanha fome.Ao passarmos por baixo de uma barrira, percebemos que ela ainda estava caindo e repentinamente parava, repetindo essa ação, o que nos impediu nosso caminho, apesar do perigo. Ao chegarmos próximo a igreja, pelas dez horas, encontramos dois senhores que nos informaram não terem caído barreiras e que todos estavam bem, sem mortes naquela comunidade e que faltava comida e remédios Observamos que um grupo estava naquela área de risco, onde a barreira ainda estava em movimento e com esforço supremo conseguimos avisá-los do perigo, quando encontramos outro grupo que trazia alimentos e agradecidos, comemos aqueles sanduíches como se fossem um banquete. Ao descer, já na casa de Adriano, fomos informados de que teríamos que novamente atravessar o rio no Morro Azul, para ajudar a trazer o corpo de dona Augusta e ao passarmos por mais uma barreira, devido ao lamaçal, afundávamos até a cintura. Por sorte, encontramos um helicóptero comandado pelo Capitão Coelho, que transportou o corpo para a igreja do Braço do Baú e o Cidnei os acompanhou. Ao retornar, soubemos que o morro do Baú estava prestes a cair e deveria, ser evacuado e três helicópteros vieram para o resgate. Aquela sensação foi horrível e deveríamos ir a todas s casas fazer o comunicado, trabalho delicado e difícil, mas ainda assim, tiramos muita gente dali. Ao atender o pedido de uma senhora que buscava, chorando e envergonhada, suas roupas íntimas pela casa, conforme ela relatava seu drama, já abalado psicologicamente, cedi às emoções

225


Patrício Zuccki

Escombros da casa do senhor Daniel.

Nosso grupo era de uma quinze pessoas e nos dirigimos ao local onde tinham acabado de tirar dois corpos. Num alojamento que era uma cancha de bocha, encontramos sujeira, desorganização e a pensar de ter comida, não havia quem a preparasse. Eu e Fabiano buscamos água, lavei a louça e organizei tudo, pedindo autorização para preparar comida, quando o senhor Egon Budag e nos falou que havia muita carne nos freezers das casas, mas longe. Fabiano ainda matou umas galinhas para preparar risoto. Assumi por saber que a equipe estava exausta. Ao retorna ao local, senhor Egon trouxe pacotes de carne de porco picada, o que nos fez desistir das galinhas. Almoçamos e fomos buscar os corpos. Ainda soltamos animais que haviam ficado presos nas casas, além de muitos que estavam mortos, cujo cheiro era insuportável. Como a equipe não conseguiu achar nenhum corpo na Tifa do Grahl, voltamos para Ilhota, porque a noite tínhamos reunião no salão paroquial. Voltamos no fim da tarde. Eu, Paulo, Leandro Minuzzi e Josimar Cunha, recemos convocação

Patrício Zuccki

e chorei, tendo sido por ela consolado, que me dizia: “nós não vamos morrer, calma!”. Novamente entrei em desespero, quando conversava com Luizinho Fischer e chegou o Zaíro pedindo ajuda para procurar o corpo de seu filho e nos dizia que ele deveria estar naquele local, porque o cachorro dele ali permanecia. Chorei convulsivamente e quando Passarinho chegou, levando-me dali, conforme me acalmei, explicou que se nós, bombeiros, não nos controlássemos, como povo se manteria calmo? Que a população estava aguentando porque nós estávamos dando apoio. Quando já tínhamos tirado todos os moradores, o Adriano disse que não queria sair com a família, mas conseguimos fazer com que seguisse para o helicóptero, apesar de seu desespero e choro, dizendo que queria seguir a pé. Uma cena horrível. Seguimos, atolando até os joelhos e conseguimos chegar na igreja do Braço, quando soubemos que encontraram o corpo de dona Cida, mãe do Betinho, no Baú Central e que precisava ser sepultada, mas eu não tive mais condições psicológicas de ajudar naquela tarefa. Quando tínhamos acabado de chegar à igreja, vi uma moto com um cara de capacete. Olhei e pensei: meu Deus! Estou louco! O cara está morto e esta aqui na minha frente de moto! Olhei de novo, mas a moto saiu. Chamei o Leandro e disse: cara! Eu estou pirando, estou louco! O Betinho apareceu de moto ali na minha frente! E Leandro fala: pois é cara! Eu também vi! Eu pensei que estava meio doido!Mas a moto voltou e chamei o Leandro e quando rapaz tirou o capacete e eu falei: meu Deus! Tu estás vivo, cara? E ele respondeu: claro que estou vivo! Contei ainda que na noite passada, havia rezado pela alma dele, o abracei e ele disse: como eu fico contente sabendo que as pessoas gostam de mim e quem morreu foi o outro Betinho! Mesmo assim, informei que na tinha condições de participar do sepultamento de sua mãe. Tínhamos que levar os barcos para Ilhota, mesmo assim, um ficaria para a travessia do Baú Baixo para o Central, num percurso com água. Eu, Leandro, Passarinho, Júlio e Éderson, com um trator, conseguimos uma carreta para colocar os barcos. Levamos o que estava no campo do União, onde havíamos para a população fazer a travessia e o outro, que era do Sítio Tio Duda, do Ney, usamos para atravessar o rio Itajaí Açu de volta. Ao chegar, numa breve reunião, encontramos muita gente saber tudo que acontecera lá. Naquela noite, terça feira, dormi em casa. Na quarta de manhã eu fui até o campo onde era a base e soube que precisavam da mesma equipe para ir para o Alto Baú. Segui com Passarinho, Fabiano Ramos, o Bica, e os irmãos Leandro e Paulo de helicóptero. Chegamos ao campo por volta das onze horas da manhã, próximo a Tifa do Grah e encontramos Pedro Paulo, e o comandante Leão.

Leandro Minuzzi, Edinilson Carvalho (Passarinho), Fabiano Ramos (Bica) e outros Bombeiros Voluntários 226


Ambulância doada por Antônio Maestri (Dindo), e alguns amigos da cidade de Embu, SP. para atuarmos como guias de uma operação no Alto Baú. Na quinta feira de manhã seguimos e encontramos muitos bombeiros, quando formamos quatro equipes. A que estava o Pauloseguiu para um lugar horrível, na Tifa do Galdino, era ali da casa de seu Daniel, que caiu. Na equipe em estava o Malique, seguiu para o Belchior, outra foi para o Arraial, enquanto eu, Leandro, Josimar e Passarinho saímos com duas equipes para ajudar a buscar algumas pessoas, logo abaixo do local em que estávamos e encontramos o prefeito Ademar. Retornamos quinta a noite, quando em reunião, pediram para que eu acompanhasse o Sargento Aquina na sexta feira, num sobrevoo para mostrar todas as áreas onde haviam pessoas. Fomos e descemos no Braço do Baú e pegamos carona num jipe do Jipe Clube de Gaspar. Seguimos para o Alto Baú e vimos uma equipe que entra sem autorizaçã, numa área de alto risco. Sobrevoamos a rua do Arraial, onde a Força Nacional se encontrava, fazendo prisão de ladrões que se aproveitavam da situação. Recebemos nova informação de que na Tifa dos Galdinos, a qualquer momento, poderia estourar nova barreira e que a população precisava evacuar o local. O resgate aconteceu com a chegada dos helicópteros do exército. Aquele foi o último dia que estive na região do Baú, pois não tive mais coragem, fiquei traumatizado. Antes da catástrofe eu e meus amigos íamos todos os sábados de moto ou Jipe. Amanhã, 29 de março, devido a insistência de meus amigos Roberto Schaattt, o Beto e Renato Lessa, o Pato, voltarei lá. Depois de tudo o que aconteceu, vendo a situação do nosso quartel dos Bombeiros Voluntários de Ilhota, tentei ajudar entrando em contato com meu compadre Antônio Maestri, conhecido por Dindo, de Embu, São Paulo e fiz um apelo para que a prefeitura daquela cidade conseguisse uma ambulância para Ilhota. Meu pai, Pedro Zuccki, trabalhou durante 30 anos naquela cidade, onde é muito conhecido. Dindo mais vinte amigos seus e de meu pai, juntaram então uma quantia em dinheiro e conseguiram comprar uma Caravan, verdadeira relíquia, bem conservada, apesar de ser um carro antigo, e nos entregaram. Os bombeiros, quando receberam o veículo, prestaram-lhe uma homenagem, que me fez muito feliz!

Patrício, policiais Edevaldo Velho ( Japonês), Leoni Baldança (Canal) e os Bvs Carlos, Fabiano e Josimar.

Patrício Zuccki

Patrício Zuccki.

227


Dia 02/02/2009 :: Depoimento de

Paulo Roberto Drun

Secretário da Defesa Civil de Ilhota.

Paulo Roberto Drun.

N

a época que aconteceu tudo eu não estava na defesa civil, estava na secretaria da câmara, então nosso primeiro trabalho foi com a rádio de Ilhota. Nos dias 21 e 22 de novembro ficamos 48 horas no ar, dando as parciais das marés e das subidas das cheias em Blumenau. E no dia seguinte na prefeitura do município, juntamente com o prefeito Ademar Feliski demos início ao trabalho para tentarmos resolver os problemas das cheias da cidade. No dia 23 então foi o dia em que tudo aconteceu no Baú, até então, ninguém aqui sabia de nada. Então no dia 24 de manhã às 11 horas dei uma entrevista para uma TV de Blumenau, deixei meu telefone no ar para as pessoas que quisessem fazer doações aos desabrigados aqui de Ilhota. Logo em seguida recebi uma ligação de uma senhora, tia de uma das nossas enfermeiras de Blumenau, perguntando o que faríamos para socorrer as pessoas do Alto Baú e eu disse a ela: - Mas não aconteceu nada no Baú! Então ela passou a me contar toda a tragédia que por lá havia acontecido. Imediatamente comuniquei o prefeito e entramos em contato com o GRAER (Grupo de Radiopatrulhamento Aéreo da Polícia Militar), a equipe de navegantes para questão de helicópteros. Quando o primeiro helicóptero sobrevoou a área, entrou em contato com a gente passando toda a questão. Logo em seguida chegaram as notícias do Braço do Baú. Passamos dia 24 em função de conseguirmos um helicóptero para resgatarmos uma gestante, grávida de sete meses do Alto Braço. Já no hospital, veio a perder o bebê e um braço, foi tudo muito complicado por ser final de tarde. Ficamos sabendo depois de toda a situação no Baú, de pessoas sendo enterradas de qualquer

Paulo Roberto Drun com pessoas do Alto Baú na recuperação das estradas.

228


maneira, e todas essas questões. Recebemos donativos de toda parte, do Brasil e exterior, voluntários de toda parte do país. Estamos muitos agradecidos a todos que ajudaram de uma forma e de outra, financeiramente ou com o seu trabalho. Assumi a defesa civil no dia 3 de dezembro e desde lá estamos trabalhando principalmente na localidade do Alto Baú. Adotei o Alto Baú como referência. Estou lá desde o dia 28 de novembro até agora. Em média temos 50 casas interditadas definitivamente no Alto Baú e que precisarão ser reconstruídas, calcula-se que mais de 220 casas em todo o município de Ilhota serão relocadas, no complexo do Baú, calculo que umas 150. Tem muitas pessoas que acabaram de construir suas casas, algumas de alvenaria com 130 metros quadrados que agora estão em casas de madeira de 36 metros quadrados, doadas pelo município e pelo governo do estado. É bastante difícil uma pessoa saber que na casa não aconteceu nada, mas que a encosta está toda rachada e a casa comprometida. É muito complicado como fica a parte psicológica da pessoa. Imagina uma pessoa de 70 anos que a vida toda trabalhou para ter sua casa boa e agora ser reduzida a nada, é muito difícil lidar com a situação. No Alto Baú estamos adquirindo uma área para serem construídas as casas, no Braço do Baú já foram adquiridos 4,3 hectares de terra, Baú Baixo também, e no lado da cidade também. Das 37 casas que foram vistoriadas no mês de janeiro, 70 % precisa ser relocado, é um trabalho bastante complicado que já envolve o trabalho social, por exemplo: no bairro Vila Nova, aqui no centro, cada casa que visitamos, dificilmente está sendo liberada para morar. Aqui do lado de Ilhota foi água, do lado do Baú, os desmoronamentos e deslizamentos de terra. 70% das pessoas do Baú preferem voltar para lá. No dia 10 de fevereiro conseguimos ligar novamente a energia

Colocação de postes de energia elétrica no Alto Baú.

elétrica, poucos lugares estão sem energia ainda por questão das pontes, mas até dia 15 de março, o serviço estará concluído 100%. O Baú Seco foi a localidade que mais tempo ficou sem energia, 96 dias. Depois desse trabalho umas 30 pessoas já voltaram para o Alto Baú. As estradas também já foram em mais de 70% arrumadas, obviamente um trabalho bastante complicado, porque foram poucos os trechos que não precisaram ser reconstruídos, a destruição foi quase que total, trabalhou-se praticamente todos os dias para agilizarmos o acesso aos moradores.

Casa de Hersi e Maria Irene Arndt.

229


Dia 02/02/2009 :: Depoimento de

Paulo Sérgio de Castro Leão

Comandante dos Bombeiros Voluntários de Ilhota.

S

como essa.

ou Paulo Leão, Comandante dos Bombeiros Voluntários de Ilhota. Sou Bombeiro há 10 anos e estou atuando como comandante em Ilhota há cerca de 6 meses. Diante da experiência adquirida durante o tempo de serviço, nunca imaginei que passaria por uma experiência

possíveis. A Rodovia Jorge Lacerda estava tomada pelas águas, a BR 470 também, tentei via bairro São Roque, Boa Vista, mas tudo debaixo d’água. Então deixei meu carro na Igreja do Espinheirinho, peguei meus equipamentos e fui atravessar o ponto que estava alagado. A água estava chegando à cintura, mesmo assim fui adiante. Quando já havia andado cerca de 600 metros, a água começou a subir, e a correnteza aumentava a cada momento. Faltavam mais uns 1500 metros para acabar o ponto de alagamento, quando por motivos de segurança pessoal, decidi voltar ao carro. Então retornei a Camboriu e fui auxiliar no socorro das vítimas da enchente. No domingo durante o dia retornei a Ilhota, porém, as águas ainda estavam subindo, então auxiliei algumas pessoas em Itajaí, nas localidades do Espinheiro, Loteamento portal I e II. Foi quando um senhor falou que por Brusque ele conseguiu passar, vindo de Blumenau. Para mim foi um grande alívio, pois poderia estar junto à Minha Corporação nos trabalhos. Antes de partir, aquele senhor me disse algo que nunca vou esquecer. - Leão, você já ouviu falar na enchente de 1983 e 1984? Pois é, na época eu era responsável pela defesa civil de Blumenau, e vivi cada momento daquela tragédia. Em vista do que está acontecendo hoje, aqui na nossa região, a enchente de 1983 e 1984 foi como dar um “passeio no Parque”.

Os trabalhos começaram na sexta-feira, passamos a noite removendo pessoas das casas que começaram a ser alagadas, alguns resgates, alguns salvamentos. Com isso já trabalhávamos alertando as pessoas a saírem de suas residências, pois a água estava subindo. Tínhamos como parâmetro a defesa civil de Blumenau. Com as águas do rio subindo, automaticamente não havia possibilidade de atendermos, ou prestar auxilio às famílias que estavam pegando água em suas residências no Baú, Pedra de Amolar, Pocinho, margem esquerda, etc. Até então estava tranquilo com isso e fui a Camboriu, onde moro, para ver qual a situação da cidade. Quando estava indo, no caminho já havia Indícios de que a coisa era maior que imaginávamos. Levei cerca de 2 horas para ir a Camboriu e voltar a Ilhota. Para minha surpresa, não consegui retornar no sábado. Tentei todos os caminhos

Cmt. Paulo Sérgio Leão de Castro

230


Cmt. Paulo Sérgio Leão de Castro instruindo os bombeiros voluntários para uma missão. Surpreso, perguntei o porquê daquela opinião. Então o senhor me disse: - Leão, nunca Santa Catarina, ou a Região do Vale do Itajaí, ficou tanto tempo com chuva, o que choveu de sexta até hoje (domingo) equivale a 2 meses de chuva. Você acha que a natureza, ou o homem vai conseguir evitar o pior? Ficou a pergunta no ar. Então segui por Brusque a fim de chegar em Ilhota. No caminho inúmeras barreiras caídas, e caindo, muitos pontos de alagamentos na pista da Rodovia, mas mesmo com dificuldades consegui chegar a Gaspar. Quando chegamos próximo ao ginásio João dos Santos, outro susto, passei por um ponto de alagamento em que a água cobriu o capô do carro. No restante do percurso, mais barreiras caídas, árvores, postes, casas em risco iminente, mas seguimos até próximo a Prima. Lá havia ainda muita água, passamos de bateira com um morador da região. Caminhamos uns 2 Km e novamente água. Passamos na frente da Cerâmica Pereira com água no umbigo. Enfim, consegui chegar ao Posto de Saúde Central, onde foi instalada provisoriamente a Base dos Bombeiros Voluntários de Ilhota. “nosso quartel ficou debaixo d’água”. Logo já reuni os Bombeiros que estavam de plantão e tomei nota da situação atual. A informação foi a seguinte: - Foi uma equipe para o Braço Baú com uma embarcação. Não temos comunicação com eles ainda. Tem oito Bombeiros e quatro Voluntários nessa equipe. Logo formei a equipe que iria ao Complexo do Baú no dia seguinte. Foi aí que acionei a FORÇA TAREFA DOS BOMBEIROS VOLUNTÁRIOS DO ESTADO, além de solicitar a empresários, amigos e conhecidos toda ajuda possível.

Na manhã seguinte, avisaram-nos que uma aeronave nos levaria até o Baú. A postos aguardamos a tal aeronave. Fiz um Briefing com minha equipe, reforçando o motivo pelo qual estávamos indo nessa missão. “nossa prioridade é a Vida... Vamos resgatar o máximo de sobreviventes possível... Os corpos serão resgatados posteriormente... Vamos todos juntos... Sairemos todos juntos”. Encerramos com um abraço coletivo. Nesses minutos, pude observar o olhar de cada membro da Equipe, todos com expressão séria, compenetrados na missão. A primeira aeronave que desceu, foi o Pantera da FAB. A bordo, a equipe de Jornalismo do “Profissão Repórter”. Conversei com o piloto da aeronave, “tenho uma equipe de resgate para ir ao Baú, nós precisamos ir!” Então num gesto que achei gentil e sábio, a equipe de reportagem desceu, e enfim minha equipe de resgate decolou. Por instantes, olhei para cada Bombeiro que estava na aeronave, e vi seus olhos marearem ao ver a situação das localidades do complexo do Baú. Falei para um Bombeiro que conhecia muito bem a região. - Vê se consegue localizar um ponto de referência para um possível pouso. A resposta fria: - Comandante, não consigo localizar nada, não tem mais estrada, nem rio, tudo mudou. Fomos até o Baú Seco com a intenção de certificar a situação e resgatar se fosse necessário. Numa conversa rápida com os moradores, constatamos que havia cinco pessoas soterradas, mas que o restante da comunidade estava a salvo. Havia mantimentos para alguns dias. Então subimos uns 1000 metros. Lá já estava uma Equipe dos Bombeiros Voluntários de Indaial, uma de Campo Belo do Sul e uma dos Bombeiros de Florianópolis.

231


Numa conversa rápida com os Comandantes das equipes, decidi descer, a fim de retirar as pessoas das áreas de risco. Foi quando a aeronave que nos trouxe pousou. Novamente pedi para nos auxiliarem, então descemos no Alto Baú, mais precisamente na Tifa do Grahl.

verificaram as residências e conversaram com todos os moradores, assim convencendo-os a partir. Assim, mais 12 pessoas saíram da área de risco, indo ao abrigo provisório. Quando nossa equipe retornou ao abrigo, contabilizamos um total de 186 pessoas, dentre elas crianças, idosos, gestantes, etc. Aí começou o trabalho definitivo de retirada das pessoas para o centro de Ilhota. A equipe foi comunicada que uma casa havia sido soterrada, e que provavelmente 4 pessoas estariam em seu interior. Fomos ao local, porém para espanto de todos, no lugar onde a casa estava, tinha uns 6 metros de terra, e no caminho onde a água passou, destroços da casa espalhados por pelo menos 800 metros. Fizemos uma varredura por onde a água passou, sem que fosse detalhada. Lembrando sempre à equipe que nossa missão era “salvar vidas”. Retornamos ao abrigo. Para alívio da equipe, enfim um reforço. Nossos irmãos do Corpo de Bombeiros Voluntários de Jaraguá do sul e Guaramirim estavam no abrigo. Demos uma pausa para reposição alimentar e hidratação da equipe. Fomos rio acima, na companhia de um morador até a Igreja Luterana. Caminhamos cerca de 3 km, batemos em cada casa, chamamos moradores, soltamos alguns animais. Por instantes, afastava-me um pouco dos demais, observando a destruição, sentindo uma sensação que jamais havia experimentado na vida. Alegre por não encontrar pessoas ilhadas, tendo a confirmação de que eles estavam todos bem. Apreensivo diante daquela situação, sentindo uma impotência, por não ter chegado mais sedo. Lá em cima, próximo a uma serraria, tivemos contato com as aeronaves, que nos orientaram a retornar, pois a área acima, já estava “limpo” (sem ninguém). Concentramo-nos na retirada integral de todos. Exceto o Sr. Egon Budag, que insistiu muito para permanecer no local, relatando que tinha condições para ficar lá no Alto Baú por bastante tempo. Fui pessoalmente à residência dele, confirmando assim a estabilidade da residência, além de geradores, telefone via satélite, alimento e água o suficiente para 20 dias. Era aproximadamente 19 hs quando a aeronave pousou, nos orientando a abandonar o local, pois foi decretado “área Vermelha”. Não tivemos escolha, embarcamos rumo ao centro de Ilhota. Novamente observei os membros da equipe, agora com um olhar menos apreensivo, porém cansados, sujos, molhados, mas com o coração explodindo por mais uma missão cumprida. Aqueles cinco minutos que voamos, pareceram horas, os olhares de todos se voltavam às áreas atingidas. Não havia um monte sequer que não estivesse com deslizamento. Raro os locais onde o rio e a estrada estavam no seu lugar de origem. Ao pousar no Campo no cetro de Ilhota, desembarcamos os equipamentos, e por fim, estávamos aliviados. Diante de uma multidão que aplaudia, chorava e agradecia. Outros, desligados. “Passei por cada membro da minha equipe, dei-lhes um abraço, disse só duas palavras: MUITO OBRIGADO!” Surpreendi-me quando avistei minha mulher, que veio ao meu encontro com os olhos mareados e me abraçou. Mais uma vez senti aquela sensação que jamais havia sentido, mas agora de agradecimento. Quando levantei a cabeça, vi meus amigos, Bombeiros, algumas pessoas que no dia anterior, ou horas antes haviam sido resgatadas, todas com uma aparência de satisfação. Novamente minha equipe foi repor as forças, liberei a equipe para descansar, pois sabia que provavelmente no dia seguinte continuaria com a missão. Fui a uma reunião com os Comandantes dos Bombeiros Voluntários

Então encontramos outros Bombeiros e Voluntários, logo já nos organizamos. Minha equipe faria o resgate, os outros voluntários tomariam conta do “abrigo que improvisamos” e da retirada das pessoas com auxílio de aeronaves. Chovia incessantemente. Pedimos para que um morador da região nos orientasse, a fim de irmos aos locais onde havia pessoas ilhadas. Começamos pelos moradores próximos ao Parque Aquático Baú. O rio que passava antes tinha cerca de 4 metros de largura, o local onde a água passou, cerca de 50 metros e o rio atual, 15 metros. Como a correnteza era intensa e assustadora decidimos que nenhuma pessoa que fosse resgatada passaria por dentro da água. Então pegamos nossos equipamentos e montamos uma Tirolesa. Dois membros da equipe atravessaram o rio e foram chamar as pessoas ilhadas, e certificar que ninguém mais ficaria na localidade. Em questão de minutos, percebi que a água do rio começou a subir rápido demais. Então corremos contra o tempo, e conseguimos retirar duas famílias. Partimos então para um ponto mais abaixo, onde barreiras enormes desceram, dificultando ainda mais nossa missão. Mas conseguimos passar e chegamos à casa do Sr. Alexandre. Lá estava ele com sua família e seu vizinho, que conseguiu sair a tempo de casa, pois sua casa foi esmagada pelas árvores que desceram junto com as barreiras. Um total de 12 pessoas, sendo 4 crianças. Numa conversa rápida e objetiva, convencemos todos de saírem do local, pois a área era de risco. Foi aí que tive a primeira resistência por parte dos moradores. Eles se preocupavam com a criação de gado, lavoura, carros, máquinas e equipamentos. Meu único argumento: - Sr., eu prefiro levar o Sr. arrastado, do que voltar aqui para procurar seu corpo. Curto e grosso, assim conseguimos convencer de que nada vale mais que a vida. Por sorte, a aeronave estava sobrevoando o local, então sinalizamos e depois de algumas tentativas, enfim conseguimos embarcar todas as 12 pessoas, que foram levadas para o abrigo provisório. Dali para baixo (fluxo do rio) não havia mais nenhuma família. Retornamos ao abrigo. Já era próximo das 18:00hs. Estava escurecendo, e a chuva não dava trégua. Como as aeronaves que sobrevoavam a região estavam levando as pessoas que encontravam para o ponto onde estabelecemos como Abrigo Provisório, isso nos deixou numa situação complicada, pois o número de pessoas aumentava, e o local não tinha condições de abrigálas. Então fomos a algumas residências que não foram atingidas, e que estavam numa situação tranquila, longe de encostas e fluxos de água. Foi então que colocamos algumas pessoas nessas residências, junto com seus respectivos donos. No abrigo ficaram alguns homens e a equipe de resgate. Algumas coisas que chamaram nossa atenção, na janta, os proprietários das residências e também do abrigo, fizeram um churrasco para a Equipe. Não foi em comemoração, mas porque na localidade havia sempre fartura, e as geladeiras e freezers estavam abarrotados de carne (grande parte estragou). Na manhã seguinte, minha equipe de resgate subiu o rio, e encontramos mais três famílias que estavam ilhadas. Como das outras vezes, optamos por não deixar ninguém passar por dentro d’água. Montamos novamente o sistema com cordas, dois Bombeiros atravessaram,

232


de Santa Catarina, onde oficialmente foi estabelecido o SCO. No outro dia logo sedo, colocamos em prática os planos da missão. Então cerca de 85 Bombeiros Voluntários do Estado junto com os 25 de Ilhota foram destinados ao Complexo do Baú. Primeiramente foram ao Alto Baú, junto à serraria do Sr. Gil, onde resgataram algumas pessoas, e alguns corpos. Desde então comecei a atuar na retaguarda das equipes que foram montadas. Passou alguns dias, fui novamente ao Complexo Baú, porém à localidade de Braço do Baú. Minha equipe não era mais a mesma, porém com a mesma energia. Nossos irmãos Bombeiros Voluntários de RS, alguns Comandantes de Bombeiros Voluntários do Estado. Num acordo realizado no SCO, os Bombeiros Militares do RS seguiriam até a região mais atingida por cima, e nós seguiríamos o rio, todos desta vez em busca de corpos. Trabalho difícil, árduo, mesmo com o auxilio de cães, não obtivemos sucesso na busca. A instabilidade era total, a todo momento sons de árvores batendo, como se estivesse desmoronando novamente. Em determinados pontos, o simples fato de pisar no chão, dava a sensação de estar em cima de uma tampa, como se estivesse oco abaixo de nossos pés. Ao chegar na base do SCO, infelizmente começamos a ter surpresas

desagradáveis. Algumas pessoas que vivem de aparências, que procuram estrelismo junto à mídia, pessoas de patente superior, porém com mentalidade tão mesquinha que parecia criança ranzinza quando quer um doce. Este fato levou o stress ao extremo. Fomos agraciados com pessoas iluminadas, como o pessoal da defesa civil de Brasília. Ao conversar com algumas pessoas, leigas, técnicos, especialistas, obtive respostas que me surpreenderam. Diante dos momentos vividos, do trabalho realizado, da emoção sentida, do dever cumprido, hoje me orgulho de ter feito o que fiz, falado o que falei, estado onde estive, vivido o que vivi. Aprendi que somos infinitamente menos que as forças da natureza, a dar valor às coisas que parecem insignificantes. A ver o que a alma diz através do olhar. Espero que nunca mais na minha vida, eu enfrente algo parecido com essa tragédia, porém se algum dia eu for designado para uma missão como essa, vou com a certeza de que essa experiência foi para mim, para alguns Bombeiros, para algumas pessoas, como uma PÓS –GRADUAÇÃO. Houve momentos e situações que gostaria de expressar, porém não encontro palavras para tal situação.

O Comandante Leão sendo entrevistado pelo Repórter Márcio Campos

233


Dia 02/02/2009 :: Depoimento de

Paulo Sérgio Schroder

Bombeiro voluntário da cidade de Ascurra SC.

M

eu nome é Paulo Sérgio Schroeder, 32 anos e faço parte do Corpo de Bombeiros Voluntários da União que atende a 3 municípios (Ascurra, Apiúna e Rodeio). No dia 19 de dezembro de 2008, a pedido do comandante da corporação responsável pelos resgates na localidade do Morro do Baú, no município de Ilhota, desloqueime até o mesmo, permanecendo 9 dias na localidade de ALTO BAÚ, onde por ter conhecimento em manuseio de maquinas pesadas, fui solicitado para auxiliar a equipe do Comandante Leão, na busca por possíveis vítimas ainda soterradas em meio aos escombros. Chegando no local tive a oportunidade de observar que a situação no era bem diferente do que via em fotos, jornais e veículos de mídia, no meu ponto de vista, o que aconteceu lá não tem explicação, foi um total desastre natural de imensa proporção. No contato direto com moradores que iam e vinham de suas casas, buscando documentos e pertences, com cada um que parava para conversar, eram contadas inúmeras histórias diferentes, mas todas com um só tom... Tristeza, destruição e medo, pois o local ainda estava instável. Podia ver nos olhos de cada pessoa o desespero e ao mesmo tempo muita força de vontade de ajudar ao próximo que perdeu todos os bens materiais e principalmente os familiares.

Equipe de bombeiros que acompanhava Paulo Schroder para o Alto Baú, estrada sem acesso.

Começamos a viabilizar o trabalho de abertura de vias para os moradores que ainda tinham algo pudessem chegar às suas residências e tirarem seus pertences. Mas o trabalho não foi fácil, porque no local só se via lama, pedras e escombros. Com muito trabalho conseguimos abrir algumas estradas por onde muitos moradores conseguiram chegar às suas casas e retirar os últimos pertences que ainda restavam, inclusive abrindo uma estrada para a localidade de BAÚ SECO, onde muitos moradores encontravam-se isolados. Nessa hora que notamos a força de um ser humano, um dos dois moradores que ainda estavam na localidade era o Sr. Marcílio, que por todos os dias esteve presente ao lado da equipe de resgate auxiliando naquilo que fosse necessário, mesmo tendo perdido 5 familiares, não desistiu e com a força de vontade estava presente

Paulo e o companheiro Thiago, bombeiro voluntário de Ilhota, saindo para mais uma missão.

234


Equipe de bombeiros voluntários na abertura da estrada de acesso do Alto Baú - Baú Seco.

ajudando vidas alheias. Havia momentos que eu parava e ficava pensando no porquê daquilo tudo? O que havia de errado naquela localidade e nas outras para sofrer um desastre dessa proporção imensurável? E não conseguia chegar à conclusão nenhuma, porque o que aconteceu é inimaginável. Dentro disso tudo havia outra pessoa que foi de muita utilidade, Professor Cefas Querois, que saiu do DF com apenas uma mochila nas costas e a força de vontade e a perseverança em ajudar o próximo, simplesmente realizou um trabalho de imensa coragem e acima de tudo de amor aos animais, pois resgatou e cuidou de aproximadamente 70 cães, alguns deles estavam feridos, trancados, acorrentados agonizando em latidos o pedido de ajuda. Ele caminhava aproximadamente 6km por dia com um carrinho de mão e um saco de ração para tratar os animais. Por exatos 46 dias. Fora os outros trabalhos que o mesmo realizava auxiliando os necessitados, indicando os caminhos mais seguros para que todos pudessem transitar em segurança e recuperar seus pertences. Deveriam existir inúmeras pessoas iguais a ele, onde a força de vontade e a coragem dominam a mente e deixam o cansaço de lado,

apesar de todas as limitações que existiam naqueles dias. Apesar de todo o trabalho realizado por ele, houve algumas pessoas que o criticavam por sua origem e por restrições da família, ou mesmo pelo seu trabalho ou por falta de informação, pois o mesmo estava realizando esses valiosos trabalhos voluntariamente, não recebendo nenhum tipo de remuneração. Pessoalmente gostaria de ter ido desde o começo da tragédia, mas não tive a possibilidade, pois nos municípios que atendemos também houve desastres parecidos com desmoronamentos e soterramentos, por este motivo não pude permanecer mais tempo. Depois de todo o acontecido em Santa Catarina, a nossa Corporação resolveu criar um grupo especializado para esse tipo de catástrofe, onde passamos por treinamentos constantes no manuseio de máquinas de grande porte e todos os tipos de equipamentos necessários para os respectivos trabalhos. Esperamos que as autoridades e as empresas reconheçam que há uma grande necessidade de existir esse tipo de equipe especializada em grandes desastres e nos apoiem na árdua missão que nos foi confiada, mesmo por que não temos recursos financeiros suficientes para adquirir e manter todos os equipamentos necessários.

235


Dia 10/02/2009 :: Depoimento de

Paulo Vilmar Batista

Diretor da Secretaria da Indústria e Comércio, e Comandante Administrativo dos Bombeiros Voluntários do Município de Ilhota.

Paulo Vilmar Batista.

I

niciou tudo na quinta-feira, dia vinte de novembro, com a queda de uma residência no bairro Pocinho, que já pertence a Gaspar. Como era na margem esquerda do rio Itajaí-Açu, não tínhamos mais passagem por balsa, fomos de barco, lá fizemos a proteção com a fita, o isolamento. Por coincidência, bem na hora que estávamos lá, o poste estava caindo e orientamos as pessoas a saírem rápido. A gente sempre fica focado em uma só coisa, quando nós vamos atender, nós ficamos olhando todo o universo ao redor, primeira coisa é a prevenção, vamos sempre com este foco, não podemos ser bombeiros herois mortos, temos que ser herois resgatando. Essa é a visão que temos no atendimento. Na sexta-feira, dia vinte e um, muitas enxurradas atingiam nossa região, de grandes proporções jamais vistas. Eu até entendo que deva ter acontecido uma nuvem vindo do Chile ou do Rio Grande do Sul, e quando chegava aqui, encontrando com a massa de ar quente, caía todo sobre o nosso litoral. Em Ilhota, já na sexta-feira com essas enxurradas, já tivemos casos de alagamentos nas residências, onde os bombeiros voluntários começaram a retirada de pessoas acamadas, com macas e levando-as para residências de familiares. Por volta de três horas da manhã, estávamos no bairro Vila Nova, atendendo, quando recebemos outro chamado, um carro teria sido arrastado pela correnteza das águas no bairro Minas. Chegamos lá, o carro de Blumenau foi realmente levado pelas águas. O casal que estava no carro estava em uma ilha, cercado por correntezas fortes que vinham de todos os lados. Estávamos lá eu, o comandante Leão, sua esposa Gi e Edson Guimarães. Lançamos as cordas, coletes, passamos todas as informações necessárias para que eles fossem então resgatados com segurança. Com muito êxito conseguiram sair de lá, primeiramente foi atendida a moça, posteriormente o rapaz.

Sábado com a queda da energia elétrica, demos atendimentos a várias pessoas. No sábado pela manhã, começou outro período que era de enchente, o rio começou a encher muito rápido, nós atendemos a várias chamadas dos bairros Vila Nova, Pocinho, Ilha Bela, Barra de Luís Alves. Na sexta-feira, dia 21 de novembro, fomos informados que uma barreira havia caído, represendo a água e formando um açude. Que havia necessidade de retirar duzentas pessoas do Braço do Baú. Conseguimos então falar com o Secretário da Educação (Marcelo Jacob) e fomos com quatro ônibus. Saímos na frente para podermos atender as pessoas. No caminho encontramos muitas barreiras que haviam caído, e encontramos um pessoal do exército voluntário, já retirando essas pessoas. Fomos à residência do vice-prefeito, Antônio Schmitz, para tentar convencer o povo da retirada dos moradores, porque ele como líder automaticamente facilitaria. Assim foi feito, saímos de lá com dois ônibus com os moradores para o Baú Central naquele dia. Só que tivemos muitas dificuldades, porque as estradas já estavam intransitáveis, tinham barreiras que caíram perto de onde passávamos, o ônibus tinha que passar muito próximo,foi muito complicado, muita tensão neste resgate. E o padre insistentemente não veio, ele e mais cinco homens saíram da igreja e foram para o ginásio de esportes do Braço do Baú. E felizmente não precisou, nada aconteceu. Porque a informação que nos passaram, era de cinco metros de altura por cem de comprimento, se formasse um açude desse tamanho, na hora que descesse teríamos problemas seríssimos. Também tivemos muitos acontecimentos por aqui, completamente diferentes ao do Baú, todas chamadas sobre casas caindo nas barrancas do rio, teve uma pedra muito grande no Bairro Ilhotinha, subimos até

236


lá, averiguamos, realmente era uma pedra de mais ou menos quarenta toneladas, estávamos com muito medo que ela poderia rolar e atingir as casas. E está bem complicado ainda. Essa pedra é achatada e na circunferência se formam mais três pedras. Já em Ilhota, o motorista da ambulância da prefeitura, o Cristiano Plother, em uma ligação de um amigo, na conversa comentou que deu um grande estrondo, um tremor no Baú. Ficou por isso, porque era de amigo para amigo, não foi um comunicado do acontecimento, depois o telefone do quartel dos bombeiros toca, alguém atende e recebe a informação de que o Morro do Baú estava caindo, na hora desligávamos o telefone achando ser trote, isso aconteceu umas duas vezes. Na segunda-feira de manhã, dia vinte e quatro então é que recebemos informações de que havia acontecido todos aqueles deslizamentos na margem esquerda, atingindo os vales do Baú. Então reunimos para ir o Braço do Baú, treze homens e uma mulher, entre eles seis civis e oito bombeiros voluntários. São eles, Bombeiros- subcomandante Cidnei Conink, Fábio Geovane Costa, Pedro Paulo Batista Neto, Éderson José Luiz da Silva, Josimar Cunha, Rejane Gabriela Cunha, Jornas Rodrigo Maciel, Jean Carlos Benaci e Patrício Zuccki. Civis- Leandro Minuzzi, Paulo Minuzzi,Pedro Zulmar de Oliveira Abreu, Edinilson José de Carvalho e Júlio César Schloegel.

Salão Paroquial da Igreja São Pio X, onde as pessoas desabrigadas faziam suas refeições. grande e o coronel Bombeiro Militar Prates de S.C. me comunicou que iriam chegar cento e sessenta pessoas aqui no centro de Ilhota, resgatadas do Baú. Foi realmente um clima de guerra, porque várias aeronaves começaram a descer aqui no campo, algumas com alimentação, medicamentos e outras com pessoas feridas. Nós colocamos ali vários bombeiros, equipe médica, equipe de enfermeiros da prefeitura, do posto de saúde, foram muito atenciosos e muito importantes para todas aquelas pessoas flageladas. Fizemos uma triagem, algumas pessoas eram atendidas pelos bombeiros, fazendo a avaliação inicial, as mais feridas passavam pela equipe médica, outras encaminhávamos direto para o banho e outros para irem fazer sua refeição no salão paroquial, onde os voluntários faziam todas as refeições. Havia muita gente para se alimentar, porque fomos pegos de surpresa. A solidariedade foi muito grande naqueles momentos. Nesse dia ficamos muito felizes porque havia no local mais de trezentos voluntários, a carga e descarga dos caminhões que chegavam com donativos, crianças sendo carregadas no colo. A equipe da educação que colocou os ônibus para levar pessoal para os abrigos. Foi um trabalho jamais imaginado em Ilhota, e isso nunca iremos esquecer. E tenho certeza que essa tragédia nunca mais irá acontecer! Um fato que nunca vou esquecer que me chamou muita atenção foi o dia em que o pessoal do resgate veio chamar alguém para reconhecer o corpo de uma criança, que no momento ainda estava com a chupeta na boca, para mim esta foi a parte mais chocante e lamentável. Acho que fui muito iluminado, porque eu consegui conciliar todos os problemas e tinha uma calma muito grande, e quando existiam alguns conflitos, ia lá e dizia, calma, vamos continuar guerreiros. E sempre assim, muito positivo fui muito iluminado mesmo nesse percurso todo, porque trabalhando das sete da manhã, às vezes até meia-noite, duas horas da manhã, e no dia seguinte estar com aquele espírito novamente!

Com a finalidade dos civis conduzirem o barco, para a partir do momento que os bombeiros chegassem lá, poderem trabalhar. Depois, nos próximos dias, em toda a região do Baú, estavam quarenta bombeiros de Ilhota e de toda Santa Catarina. Alguns voluntários. Depois começaram a chegar equipes de resgates de todo Brasil. Eu não fui, fiquei porque estava como coordenador do bombeiro e também como defesa civil. E toda a defesa civil do estado, o contato era comigo. Fui um dia para o Braço do Baú não para ajudar nos resgates, mas com a função de ver o que o pessoal estava precisando, eu como da defesa civil, não como bombeiro, porque as informações chegavam aqui muito desencontradas. Fui lá também para convencer bombeiros a trocarem guarnições, porque sabíamos que o cansaço era muito, só que as solicitações eram tantas que eles queriam continuar trabalhando. Eu mesmo vi, tinha bombeiros que chegavam exaustos. Tinha bombeiros fazendo serviço de enfermagem, tirando farpas dos pés do pessoal, de tudo um pouco. As primeiras imagens que vi lá eram chocantes, muitas pessoas com faixas nos pés, e faltando medicamento realmente, a enfermeira Cristina Fischer, do posto de saúde do Braço do Baú ,já estava trabalhando lá há mais de quarenta e oito horas, aquela mulher foi uma guerreira! O atendimento era na sacristia da igreja, era o ambulatório. Eram muitos feridos, a enfermeira fazia atendimento de cortes, os bombeiros ajudavam a enfaixar. Parecia uma missão de guerra. Em Ilhota a situação já estava bem controlada com as as pessoas desabrigadas e tudo mais tranqüilo. Alguns dias depois houve, uma retirada bastante

Voluntários de Ilhota, prontamente ajudando os desabrigados, e no recebimento de alimentos. 237


Dia 22/01/2009 :: Depoimento de

Pedro Miranda

Conhecido por Seu Pepa, 74 anos - Morador do Braço do Baú, na Rua Teodoro Reichert, popular Mata Pasto.

N

esse dia estava em companhia de Adriana Conink, (bombeiro voluntária de Ilhota) minha companheira de todas idas e vindas para o Baú, e Júnior, voluntário de Presidente Prudente, SP. Depois de quase dois meses da tragédia que abalou todo o Baú, encontramos Sr. Pedro, só, em sua casa, tentando limpar o que a tragédia deixou... Lama... Entulhos e tentando esquecer as tristes lembranças! Sábado e domingo a chuva foi demais. Chuva, chuva, né? Então, vieram aqui em minha casa meu vizinho, que tinha uma casa que ficou a metade soterrada, um homem que está doente na cama, só anda de arrasto, vieram sábado perto do meio-dia aqui e pediram: - Seu Pedro, deixa a gente ficar essa noite aqui? Eu falei que sim e vieram, o casal, a filha Clarisse com sua filha, que mora lá onde estourou o gás, no Arraial, mais outro filho com a nora e uma criança, ficaram aqui. Chegou domingo à noite, aquelas pedreiras ali, era bum, bum, bum, que era igual a uma festa aqui! Eram pedras enormes que rolavam morro abaixo. E que não parava mais de rolar, parecia até de foguete, que nem bomba, assim! Então o pessoal gritava e eu dizia: - calma que aqui não tem perigo! Aí tinha dois casais que subiram ali em cima e ficaram a noite toda na chuva, embaixo de dois guardachuvas os quatro. Chegaram todos encharcados aqui, já pulei peguei roupa seca... Ninguém imaginava nada, porque sempre dava chuvarada assim, mas nunca caiu barreira, nem grotas, nada, e agora caiu. Achamos que foi do gás, porque eu me lembro bem que eu estava

Pedro Miranda

Residência de Jair Kretz (genro).

238


aqui domingo de noite e escutei as janelas blim blim blim... Eu até perguntei. Quem é que está aí? Pensava que era alguém que estava chegando... Nada, passou. Eu olhei, não vi ninguém! De manhã, segunda-feira, eu me levantei, abri a porta da cozinha e saí, senti um cheiro de gás, perguntei: mulher o gás ali fora está aberto?Fui olhar, nada... Aí aquela que dormiu aqui em casa disse: - é mesmo, que cheiro de gás! E eu não sabia que tinha estourado lá, o cheiro acabou depois de muitos dias que estourou, foi assim... Agora está desse jeito! Aqui foi na quarta-feira de tarde que caiu aquela barreira, depois daquela enxurrada que deu domingo de noite, que foi a maior chuva, depois, segunda, terça, foi na quarta. Ainda sorte do genro do Jair Kretz que caiu aquela casa ali na frente! Na casa dele nem chegou a entrar água, veio uma barreira e derrubou a casa, veio tudo abaixo, só sobrou a casinha de boneca! E a outra casa que ficou soterrada é do Jamir Correa, que é da minha filha, e a outra ali é do Valmor Miranda, meu filho mais novo, e aquela casinha de material é do genro do meu filho, o Rodrigo Bea. Quarta-feira até meio-dia, ainda tiramos caminhão, carro, e daí na quarta-feira de tardinha, bem de tardinha, o Nelson Richart tirou dois caminhões dele, depois ele veio, pegou o trator e nem pôde passar com o trator, aí deixou aí. Nós já tínhamos saído daqui, que levamos carro, tudo, saímos segunda de tarde, depois terça, viemos buscar alguma coisa de dentro de casa do genro, depois quarta-feira que tiramos os carros, puxados por trator. Aí fomos lá pro Baú Central, fomos de picape, caminhonete fechada, aquelas que eles carregam animais. Aqui no seu Richart aconteceu tudo no domingo à noite. Passamos com bastante lama, minha mulher (Valentina Rosa Miranda,73 anos), é doente né, ela não tem mais idéia, tinha idéia pra tudo, e agora não tem mais idéia pra nada, e ela é meio gorda, então... Meu filho e o genro passaram por ali, levaram ela assim de arrasto, calçava minha bota, foram por aí afora e foram até na igreja, os outros ficaram, mas eu fiquei no meu genro. Estive no Baú Central duas semanas, três semanas em Gaspar no Zé Pereira. Agora estou morando no lado da capela, na casa do tio do Jair Kretz. Para a gente vir aqui, não dava de varar, a gente vinha por dentro do bananal e coisa assim. Eu deixei tudo dentro de casa, só que... Na primeira enxurrada não tinha tirado nada, nem roupa, mas daí entrou um pouquinho d’água dentro de casa, só um tantinho assim... Aí cama de ferro que eu tinha, colchão, tudo, não estragou, e guardarroupa, só embaixo, mas aí tiramos toda a roupa de dentro. Depois, acabou que no outro domingo, aí caiu a barreira aqui, daí bom... Daí no outro domingo deu outra enxurrada, já estava entupido ali e veio quase um metro ali dentro de casa, na casa de material dá para ver a altura que foi. Isso foi por causa da barreira, porque aqui, no meu genro, aquele outro, entrou um bocadinho de água na cozinha, porque é um pouquinho mais baixa que o corpo da casa, alagou a do filho também. Sorte que saímos todos daqui, senão tínhamos morrido.

EU QUERO VOLTAR, MEUS FILHOS NÃO QUEREM, EU QUERO VOLTAR! Perguntamos para o sr. Pedro se ele não tinha medo de voltar. Medo eu não tenho, isso ali caiu, e não cai mais, porque aonde tem buraco, está caído ainda um pouquinho, mas... Não vem mais! Perguntamos o tempo que morava ali naquela casa: Nessa casa, quarenta e poucos anos, mas eu moro toda vida aqui desde pequeno, meu pai morava bem ali, apontando para o lado, próximo a sua casa. Aqui não tem ninguém morando, só trabalhando e à noite vão tudo embora. Lá na igreja do Baú Baixo tem bastante gente morando, aqui na igreja também tem um pouco, no salão. É... E é tudo isso aí!

Outras casas atingidas na rua do Senhor Pepa.

Residência do Senhor Pepa.

239


Dia 26/03/2009 :: Depoimento de

Pedro Paulo Batista Neto

Presidente dos Bombeiros de Ilhota. (um dos 14 herois)

No dia em que Pedro Paulo, Maciel e Expresso retomaram as buscas pelo corpo de Larissa.

N

o ano de 2005, Ilhota inaugura o quartel dos Bombeiros Voluntários, dando início como presidente, Luís Fischer.

para que o helicóptero pudesse pousar, e as senhoras assim foram resgatadas. O outro pessoal subiu em um morro onde havia umas casas, lá encontraram 35 pessoas. Lá o helicóptero pousou e conseguiu resgatar apenas 3, porque já estava anoitecendo. No outro dia conseguiram resgatar as que haviam ficado. E naquela noite dormimos na casa do nosso amigo Adriano. De manhã um grupo subiu no morro, acharam mais um pessoal, próximo à igreja Madre Paulina no Alto Braço do Baú, e o nosso grupo ficou na igreja do Braço, ajudando a fazer curativos, no que fosse preciso, enfim, porque a enfermeira já estava muito cansada. Começamos mais tarde a encontrar os corpos, achamos a dona Cida, o corpo dela estava atrás da casa da dona Alvina, numa arrozeira, foi encontrada por alguns moradores. Chamaram alguns bombeiros, fomos até o local. Não conseguimos identificá-la no momento porque estava já sem a face, muito machucada. Ela foi arrastada uns dezoito quilômetros para depois de sua casa, ela veio desde o Morro Azul até o Baú Baixo, esse corpo foi o mais distanciado que encontramos. Levamos o corpo em um barco até a estrada, de lá em um tobata até a igreja do Braço, e lá então foi reconhecida pelas unhas, tinha hábito de pintar de vermelho. Na quarta-feira, dia 26, 25 pessoas entre bombeiros voluntários e civis, foram de ônibus pela BR 470 para o Braço do Baú para fazer uma varredura dentro das arrozeiras, com o objetivo de encontrar os corpos que até então não haviam sido encontrados. Na terça algumas pessoas já retornaram para Ilhota porque estavam muito cansadas, os BVs Maciel, Fábio e Clederson ficaram até na

No dia 24 de novembro, depois de uma reunião na prefeitura, decidimos ir em quatorze pessoas em dois barcos para socorrer as pessoas do Braço do Baú. Atravessamos o rio ItajaíAçu e fomos até o Baú Central atrás do campo do União. Lá havia dois tratores esperando por nós. Fomos até o Braço, lá só víamos calamidades e tristezas, era geladeiras, fogões, madeiras, troncos de árvores nas arrozeiras. Achávamos que era uma coisa e era outra totalmente diferente. Quando chegamos, as pessoas vinham desesperadas para cima de nós, dizendo: ’Meu Deus! Tem gente morta lá! O Ilário Pelz já subiu no trator conosco e fomos para frente, no que estávamos chegando na igreja do Braço do Baú, estava chegando um trator, transportando a Giane Richartz em cima de uma escada feito maca, morta. Ali então nos dividimos, um grupo foi retirar as pessoas que estavam ilhadas, e eu no outro grupo fomos em uma casa onde morreram seis, e começamos a procurar os corpos. Soubemos no momento que havia duas idosas do outro lado da cachoeira, conseguimos com muito custo fazer uma ponte improvisada com um eucalipto, chegamos na casa, elas estavam desesperadas, eu corri fui até a creche do Braço, onde os helicópteros estavam pousando, falei com o pessoal da polícia civil, expliquei a situação, e eles me falaram que iriam buscá-las. Lá o pessoal que estava comigo limpou o terreno no lado da casa

240


sexta-feira, dia 28. Chegamos na terça-feira, dia 25, final de tarde. Na quarta-feira fomos de helicóptero para o Alto Baú, lá eu fui indicar onde era o Baú Seco para o pessoal da Polícia Rodoviária Federal. Depois fomos até a Tifa do Grahl, alí morreram 5 pessoas, encontramos o comandante Leão, do nosso quartel. Começamos a andar em todos os lugares, conosco estava o morador do Baú, Toninho Russi e alguns bombeiros. Começou a evacuação de todas as pessoas, todos sendo conduzidos para os helicópteros. O morador José Cândido não queria sair, conversamos até convencê-lo. De onde estávamos não conseguíamos ir até a igreja católica, houve muita queda de barreiras e não tinha mais acesso, conseguimos ir somente até a casa do José Cândido, ali procuramos se havia mais pessoas para serem resgatadas, retornamos para a Tifa do Grahl, chovia muito e escorria ainda muita terra dos morros, estava muito perigoso. Dali fomos com o helicóptero até o campo do Gilberto Schmitt, próximo à casa do Senhor Daniel que fora soterrada, vitimando 5 pessoas. Ficamos por ali ajudando a procurar corpos, quando cavávamos, descia tudo, porque chovia demais. Mais tarde fomos até o Baú Seco para buscar uma senhora que estava passando mal. Lá também morreram 6 pessoas, mas os próprios moradores resgataram os corpos, e logo os enterraram. Naquele dia, retornamos para Ilhota e ficamos auxiliando as pessoas que vinham de todas as localidades do Baú. Algum tempo depois retornei ao Alto Baú, com o BV Maciel e Expresso (Paulo Vilmar Batista, comandante administrativo dos bombeiros voluntários do município de Ilhota) com o objetivo de tentarmos encontrar o corpo da menina Larissa de 11 meses, a pedido de sua avó Luzia Martendal, que inconformada nos procurou para retomarmos as buscas, mas infelizmente foram dois dias de trabalho e não conseguimos encontrá-la. Naqueles dias, encontrei vários pertences da família, como um calçado de Larissa, roupas e também duas certidões de primeira eucaristia e crisma da mãe da menina, Marinéia Martendal, que infelizmente morreu naquela lamentável catástrofe.

241


Dia 02/03/2009 :: Depoimento de

Pedro Zulmar de Oliveira Abreu

Morador de Ilhota. (um dos 14 herois)

S

ou Bombeiro Voluntário na empresa Bunge Alimentos, e trabalho no município de Gaspar-SC, há 23 anos. Participo também do CPP, (Conselho Paróquia de Pastoral) da igreja católica do município de Ilhota. No dia 24 do mês de novembro, uma segundafeira, durante a enchente no nosso município fomos para o salão paroquial para ajudar as pessoas no que precisasse. O pessoal do movimento de irmãos que também faz parte da igreja católica (Patrício Zuccki, Leandro Minuzzi, Edinilson Carvalho (Passarinho) e outros voluntários estavam se movimentando para irem para o Braço do Baú, assim que souberam da situação por lá. Já estavam à procura de mais barcos, já tinha um do quartel dos bombeiros e precisavam de mais um, então o Ney (Rene Hess de Souza), do sítio Tio Duda ofereceu outro. Prontamente me ofereci para ir, então se formou um grupo de 13 homens e uma mulher, entre civis e bombeiros voluntários. Ficaram pessoas que gostariam de ir, só que tínhamos apenas dois barcos. Por volta de duas horas da tarde saímos, atravessando o rio com muita correnteza. Quando chegamos ao outro lado do rio, onde estava mais raso, nos dividimos nos dois barcos e fomos até o Baú Central, por

cima das arrozeiras. Lá já havia dois tratores traçados nos esperando, colocamos todos nossos equipamentos, macas, cordas, equipamentos de primeiros socorros. Nós imaginávamos assim, que havia só desbarrancado um morro e caiu em cima de algumas casas, era isso que tínhamos em mente. Chegando lá o cenário foi terrível, eu assisti um filme Volcano, era semelhante. Vi cenas do filme ali, naquele local que estávamos. Lá o rio mudou-se de um ponto para outro, 100 a 200 metros do lugar que era. Antes de chegarmos à igreja Nossa Senhora da Glória do Braço do Baú, que eu conheço muito bem, a arrozeira estava toda fechada, lama, só areia, foi assustador, aquelas madeiras das serrarias todas entulhadas nas árvores, postes, foi uma cena bem triste. Outra cena que me marcou, é que as pessoas estavam todas na porta da igreja, esperando por socorro, e quando nos viram chegando, víamos nos rostos deles que estavam muitos assustados, paramos um pouco ali, conversamos com aquelas pessoas, pedimos informações, e assim ficamos sabendo que já tinham encontrados alguns corpos, parecia tudo aquilo uma cena de guerra, alguns corpos já na igreja com caixões improvisados pelos próprios moradores, uma coisa assim que jamais esquecerei, meu Deus! Depois de ter visto tudo aquilo,

Pedro Zulmar de Abreu, no dia em que chegaram doações de alimentos no campo municipal de Ilhota.

242


mais para frente, passando o pontilhão, era terrível, nunca imaginei que aquilo tudo um dia iria acontecer. Quando chegamos próximo ao mercado Richart, encontramos quatro pessoas trazendo o corpo de uma moça envolvida em um pano, estavam todos muito sujos de lama e no rosto de cada um deles estampado muito cansaço, como no momento não tinham nenhum equipamento, estavam trazendo o corpo em cima de uma escada, fazendo de maca, essa moça ficou soterrada por muitas horas e infelizmente não conseguiu sobreviver. E seguiram o caminho até na igreja. Mais tarde conversei com o pai dela, foi terrível, depois conversei com uma das irmãs, foi muito chocante, muito desespero. Os primeiros veículos a passarem por ali foram esses tratores em que estávamos. Os tratoristas, agricultores do Baú Central, tiveram bastante coragem, porque nas estradas tinha muita lama mesmo, fora os entulhos, árvores, madeiras e outras coisas. Dividimo-nos em dois grupos, 7 pessoas para cada grupo. No que eu estava, fomos então nas casas para retirar pessoas que lá estavam ainda, mas tinha muita água e estava muito perigoso, então amarrávamos cordas de um ponto ao outro, e assim íamos. E o outro grupo foi para um lugar mais para cima, de difícil acesso, retirando as pessoas e as levando para uma casa que teoricamente era mais segura, lá então ficaram umas 30 pessoas. Nas casas que íamos, sempre pedíamos para serem mais rápidos possível porque já estava escurecendo, e por serem locais de risco. Fomos a uma casa onde resgatamos uma senhora de idade com a perna machucada. O que me marcou muito é que esta senhora estava de pijama e sei que com toda dificuldade de andar, ainda se preocupou em trocar sua roupa e se arrumou direitinho, e então a colocamos em uma maca, tendo todos os cuidados com sua perna. Nesse momento chovia muito, usávamos uma loninha preta para cobrir esta senhora. Quando chegamos ao trator, acharam que seria um corpo de alguém que tivesse morrido. Ela mesma ajudava segurar a lona para se proteger. Levamos também seus familiares até na igreja. Antes de chegarmos à igreja, passamos pelo pontilhão, ali todo mundo ficou apavorado, com muito medo, queriam tirar as crianças, estavam transtornados e qualquer coisa para eles significava perigo, então conseguimos acalmá-los, dando mais tranquilidade. Deixamos todos na igreja do Braço do Baú, e caminhamos até o salão paroquial, onde todos que chegavam, iam se alojando. Já havia aproximadamente umas 100 pessoas, somente para esse local tinham acesso, mais para nenhum lugar, vimos muita tristeza ali. As pessoas então foram se mobilizando, uns ajudando aos outros. Nós vimos muitas pessoas que riam quando encontravam com pessoas que achavam que haviam morrido, dizendo: - Pensei que tinhas morrido, porque vi que tua casa não estava mais lá! E se abraçavam, outras choravam se lembrando das pessoas que morreram. Outra cena muito triste foi no cemitério, um homem cavando os buracos para enterrar a própria família, esperando pelos corpos, e naquele momento viu que eu via tudo isso. Veio a notícia que tinham achado o corpo de uma mulher, e ele me disse que deveria ser de sua esposa, mas depois foi identificar e não era, foi muito triste esse momento. Mais tarde é que chegou uma máquina para então ajudar a fazer as covas. Havia muitas pessoas doentes, um senhor estava com a diabetes muito alta, teria que ir para o hospital, e não conseguia. Então só no outro dia que começaram a chegar os resgates por helicóptero.

Nesse dia ficamos sabendo que no Alto Baú também tinha acontecido muitas coisas semelhantes as que aconteceram no Braço do Baú. Teve um senhor de idade que nos contou que a esposa já estava deitada e quando ele foi abrir a janela para ver o que tinha acontecido por causa do barulho que havia escutado, veio uma avalanche que o jogou para cima da cama e a esposa foi jogada para a sala, deu tempo para eles saírem, ele só de cueca, com o rosto todo arranhado e todos os dois sujos de lama da cabeça aos pés, foram para casa do vizinho. Depois que tudo passou davam risadas por ele ter chegado só de cueca, faziam troça, brincavam muito com ele. Depois ele me disse que perdeu tudo, carro, casa, mas graças a Deus não perderam a vida. O local da casa ele achava seguro, ninguém jamais imaginaria que iria acontecer aquilo tudo. Naquela noite dormimos na casa de um rapaz, o Adriano que foi muito bom com todos nós, deu roupa seca, fez um peixe muito bom, arrumou colchão, dormimos no segundo piso. À noite não choveu muito, mas de vez em quando escutávamos barulhos, teve um momento já na madrugada, escutamos um estrondo muito grande, todo mundo ficou apavorado, naquela noite ninguém conseguiu dormir, ficamos conversando um com outro. Eu mesmo não dormi, deitamos e pelo menos conseguimos descansar um pouco. Continuamos então fazendo uma varredura no local para que não ficasse mais ninguém nessas áreas de risco. Alguns do grupo ficaram no salão paroquial ajudando as pessoas. Inclusive tinha uma casa que um senhor não quis sair de jeito nenhum, a família toda já tinha saído, mas ficou. Não conseguimos tirá-lo de lá, mesmo insistindo muito e falando que era um local de risco. Depois ficamos sabendo que ele saiu porque depois veio o pessoal do exército e a ordem mesmo era de evacuar o local. Tinha um rapaz da localidade que sempre ia nos guiando, então fomos ao Morro Azul, localidade próxima ao Braço do Baú, naquela casa onde havia aquelas 30 pessoas que o outro grupo havia deixado. Lá ficamos aguardando os helicópteros, então eles pousavam no próprio jardim onde antes foi limpo, ali mesmo pegavam essas pessoas, de 3 a 4, dependendo do que levavam consigo, e levavam para a igreja do Braço do Baú. Alguns voluntários dos grupos se envolveram mais e ficaram até três dias, inclusive os bombeiros de Ilhota, batalharam muito mesmo, temos que parabenizá-los pelo grande trabalho que lá fizeram, mesmo muito exaustos continuaram. Como eu teria que voltar ao meu trabalho, voltei na terça-feira à tarde, nesse dia as águas começaram a baixar. Tinha pouco conhecimento com as pessoas que foram comigo, passamos poucas horas juntos, lá batalhando, foi muito boa a integração. Tanto os civis quanto os bombeiros se esforçaram muito, estão dei parabéns por todo trabalho a que eles se dedicaram, e que sempre continuem assim! Espero que nunca mais aconteça uma desgraça dessas, jamais querer ver isso novamente, o meu objetivo foi realmente ajudar aquelas pessoas que precisavam do nosso apoio. Que Deus sempre me dê forças para que eu sempre possa ajudar as pessoas, independente de como, sempre farei o bem para o próximo.

243


Dia 01/02/2009 :: Depoimento de

Rainoldo Rincos (Dodo) e Maria Dolores Rincos

Sr. Rainoldo e Dna. Maria são moradores do Alto Baú. Quando concederam a entrevista estavam alojados na Escola de Educação Básica Marcos Konder, em Ilhota.

D

na. Maria Rincos: Saímos às 5 da tarde de casa, pois de uma hora para outra podia desabar tudo. Fomos para a casa do meu cunhado, “Quinho”. Lá ele disse: _ ‘Vamos lá na minha filha (Daniela, mora em um pequeno morro ao lado). Já estava chovendo sábado, mas quando deu a explosão foi domingo à noite, já estávamos na casa da Daniela. Nós escutávamos assim um barulho... Parecia que estava trovejando, roncando trovoada, mas não era trovoada, não sabíamos o que era. Era a explosão, estava começando a explodir por debaixo da terra, logo ali em cima. Oito e meia nos deitamos, às nove, quinze para as nove, deu um estouro, aquele clarão, parecia que era dia, aí já veio tudo abaixo, caía tudo. Nós cismávamos que ia acabar tudo, que ia acabar o mundo. Sr. Rainoldo Rincos (Dodo): Então eu já calculei que era isso, pois vinham os eucaliptos arrancando tudo. No outro dia de manhã, fomos lá em cima. Quando cheguei lá, na curva já vi destruída a casa, o rancho, tudo abaixo, carro de perna pra cima lá dentro da “coisa”, tinha acabado com tudo. Da minha casa só sobrou o fundamento, do qual dá para ver só um pedaço, não existia mais a nossa casa nem a do meu filho Marcos, que ficava logo atrás da minha. Ficou por aquilo. Passou o dia, ninguém sabia o que estava acontecendo para baixo, porque não tinha condições para nada. Quando era segunda à noite, acabou com o restante, o carro se acabou “com tudo”, arrancou a casa do vizinho lá e destruiu... Ficou num... Dna. Maria: Havia se formado uma lagoa, porque o vizinho

Marcos, o filho, mostrando o local onde um dia existiu sua casa.

Deslizamento que atingiu as casas.

244


O que sobrou da casa do sr. Rainoldo, apenas um pedaço do fundamento.

lá de cima, onde ele atravessava para casa dele, existiam quatro pés de “touceira” de bambu, para firmar o barranco, sendo que a “tranqueirada”, a madeira que vinha, tudo do morro, isso trancou tudo ali. Quando pesou demais estourou, abriu e veio o resto pra baixo. Mas a nossa casa já tinha sido toda derrubada no domingo à noite, eu nem fui lá ver, só foram ele, o filho (Marcos) e o Décio. Sr. “Dodo”: Nós ficamos na rua, não temos mais nada, acabou nossa vida. Na região ali todos falam que é a barreira maior que causou a destruição, e foi mesmo. A nossa desgraça foi a explosão do gás, porque se não fosse o gás, eu tenho certeza que estaríamos no nosso lugar. A chuva estava... Dna. Maria: chuva atrapalhou também, mas... Se não fosse a chuva, nós estávamos que nem um “torrãozinho” naquele dia de noite. A chuva que abrandou o fogo. Sr. “Dodo”: ... Concordo... Todos falam, pois se não fosse esses temporais de chuva ali, aí a explosão... Ou acaba com tudo ou nada, porque um fala que ia dar uma explosão maior, eu não acredito nisso, porque se fosse... (silêncio) tinha acabado com tudo, pois você chega no “Quinho” ali, olhando de cima, vê os pés de eucalipto queimados lá. Porque víamos o fogo ali dentro, tinha fogo a mais de cinquenta metros de altura. Aquele fogo trabalhava, levantava e ia estourando tudo. De onde nós estávamos, víamos tudo. Aí eu já calculei que ia acabar com tudo e acabou com tudo mesmo. No outro dia, pela manhã, vi que estava tudo arrancado, só sobrou o forninho que fazia carvão. Dna. Maria: Tem carvão dentro, a hora que reconstruirmos nossa casa lá em cima, aí nós vamos fazer uma churrascada lá, já tem carvão... (risos). Sr. “Dodo”: A vida é assim, hoje estamos aqui... Não sei o que vão inventar, essas conversas de um dia pro outro... Já estamos chegando a noventa dias e o resultado é isso aí! Alguma solução tem que haver, ficar na rua de um dia pro outro... Hoje eu sou franco em dizer pra ti, eu não tenho nem jeito de pegar um prato de comida, porque era uma

O que restou do carro de Marcos. A moto retorcida de Marcos.

245


pessoa que não dependia de ninguém, e hoje... É ruim! Hoje de manhã eu fiquei tão ruim, passei mal dos nervos, até chamaram até os bombeiros. Eu fiquei louquinho, louquinho, porque tem horas que eu fico desesperado, até discuti com ela (esposa) e não adianta, a gente não aguenta mais. Vamos ver como é que vai ficar, se tudo que ele falou, se vai cumprir. A casa que vamos ganhar, não precisa ser assim como era a nossa e a do meu filho, que com cento e cinqüenta mil não faz. Seis por oito de material já estava contente, depois “numa” puxada e fazia sozinho. O cara perdeu tudo, hoje não tem mais condições de comprar, porque não adianta, sou aposentado, a aposentadoria é dinheiro que... Dna. Maria: Fazia um ano e pouco que nós compramos tudo novo pra dentro de casa... Sr. “Dodo”: Não tinha nada velho! Dna. Maria: ... Geladeira, jogo de cozinha completo, televisão nova, guardarroupas, o que precisava de novo dentro de casa, tínhamos tudo dentro de casa. Sr. “Dodo”: Não dependíamos de ninguém mais. Dna. Maria: O Valmor (outro filho que é caminhoneiro e estava viajando) também tinha um jogo de quarto novinho. Sr. “Dodo”: Aquilo que visse ali em baixo, todo retorcido, era o carro dele. A minha picape, eu vou lá e mostro... Um pneu achei na frente da casa do “Quinho”, e o resto não achei nada, nada, nada mais, é uma coisa assim que foi tirada... A moto foi encontrada lá embaixo..

O forno, uma das principais fontes de renda do Sr. Rainoldo Rincos

Perguntei sobre seu trabalho. Trabalhava com carvão e plantava eucalipto. Naquele forno que restou é onde eu fazia o carvão, ali eu fiz minha vida. Daí eu vendia pra um vizinho de fora, ele me dava os pacotes eu queimava, embalava e vendia para ele. Assim que trabalhávamos. Era tudo legalizado, e se eu fazer de novo, tem que fazer toda documentação porque eu perdi tudo, documento não existe mais na minha casa, tem que renovar tudo. E assim é nossa vida e assim está! Esperamos que daqui pra frente alguma coisa vá acontecer!

Meu relato após o depoimento de Rainoldo Rincos. que o irmão construísse uma pequena moradia, e assim aconteceu. Toda a família ajudou e eles já estavam instalados em uma nova casa, num ótimo local. Foi lá que nos recepcionaram felizes e nos serviram um gostoso café, juntamente com seus familiares. Fiquei muito feliz ao ver o sonho do casal realizado, livres da dependência de um alojamento ou das despesas com aluguel.

No dia três de fevereiro, dois dias após ter conversado com o sr. Dodo e a sra. Maria Dolores, estive com eles no alojamento. Prometi ajudá-los a encontrar uma casa para alugar. Já havia encontrado duas, mas quando os vi novamente já tinham encontrado uma casa no centro de Ilhota, estavam felizes. Ficariam nesta casa até encontrarem uma solução para a moradia. Quando cheguei em casa chorei muito, lembrando o momento em que havíamos conversado, seu depoimento me cortara o coração, me segurei na hora nem sei como. Deu-me uma vontade grande de abraçá-los, mas sabia que só iria piorar a situação. A imagem que eu tenho dos dois falando sobre a tragédia é muito sofrida. Algum tempo depois eu fui até o local da tragédia com Adriana, Juliano Schwambach e Marcos, o “Negão” filho do casal, que também perdeu sua casa, foi impressionante, nos deparamos com a maior barreira desmoronada, foi o maior deslizamento de toda região do Baú.

Maria Dolores, Dodo e seu irmão Quinho na nova casa.

Enfim... De volta ao Alto Baú! Algum tempo depois, mais precisamente no dia 19 de abril de 2009, minha amiga Iara, Anilton Junckes, morador do Braço do Baú e eu fomos até o Alto Baú, para ver de perto a nova casa de Dodo e Maria Dolores. Quinho, seu irmão, havia afirmado em seu depoimento prestado a mim que doaria um pedaço de terra para

246


Dia 03/02/2009 :: Depoimento de

Raul Roden

Morador do Braço Baú

E

u sou morador do Braço do Baú a minha vida toda e nunca tinha visto uma coisa dessa acontecer! Eu tinha minha casinha lá, tenho ainda, mas está caída a parte de trás. Vivia de uma pequena aposentadoria e da venda de verduras como aipim, feijão, milho e outras que eu mesmo plantava. O dia que começou tudo eu estava lá em baixo, na casa de dois vizinhos, o seu Teixeira e o outro é seu Horácio. Daí repentinamente, quando estávamos dez minutos lá embaixo, caiu aquele morro, caiu tudo, as casas que tinham lá, galpão, três casas e matou todos os animais domésticos, a criação que tinha, não ficou uma galinha viva.

Raul Roden e sua casa no Braço do Baú

Perguntei por que ele não havia ficado na casa dele no dia. Porque meu vizinho falou que era perigoso, ele falou: - Vamos sair porque vai cair, está estalando tudo! Eu falei, não, não vai cair nada. E eu estava sozinho em casa. Meu vizinho disse: - Desce aqui pra baixo, vem aqui! Aí eu desci na água até no umbigo mais ou menos, fui lá, a mulher vizinha disse, vamos almoçar aqui. Daí almocei, não cheguei nem a almoçar, comi pela metade já... Aí começou a estalar tudo, aí a menina do vizinho falou, vem cá ver, caiu a barreira lá perto do tanque de peixe! Aí eu fui lá ver a tampa dos peixes já tinha estourado, aí de repente vem água perto da casa do vizinho. Aí a água levou a moto uns quatro metros adiante, aí ele falou: Vamos descer! “peguemo e descemo lá pra baixo,com água até no umbigo já. Ficamo uma noite na casa, nós dormimo numa casa lá do motorista do ônibus, o Mai, daí ele falou que era pra ficar tranquilo, mas depois nós saimo. Eu falei vamo até a igreja, vamo até no mercado comprar cigarro, eu to sem cigarro. Fomo lá, a mulher abriu o mercado, com lama até o joelho também, peguemo o cigarro e voltamo né, de tarde nós pra fora, viemo pra o Baú central, de tobata. Fomo mais em frente da igreja, ficamo uma noite por lá, tinha faixa de duzentos e poucas pessoas por lá. Meu Deus do céu era um desespero! Era só gente chorando. Lá fiquei sabendo que numa casa lá, morreram cinco pessoas, tudo conhecido. Porque eu me criei lá, nasci no Braço do Baú. Os corpos ficava tudo lá na igreja do Braço do Baú, eu fui lá ver três que tinham lá, duma família lá, não sei o nome, acho que era pai, mãe e filho. Estavam em cima de um tampo de mesa, enrolado num lençol branco, nem caixão não tinha. Daqui a pouco fizeram o caixão, de madeira de pinus, tudo molhado, botaram lá dentro, e foram levar pro cemitério, o pai estava junto, chorando lá. Depois fomo de trator para o Baú Baixo,

pra cá. Depois fui pra Joinville fiquei dois dias lá pra casa de parente, eu tenho irmão morando pra lá. Depois de lá eu vim pra Ilhota fazer meu cadastro, então falaram que era pra eu ficar por aqui. E me trouxeram para cá” (alojamento do colégio de Ilhotinha.) Perguntei onde ficava sua casa, o local. “Minha casa era perto do João Ramos, ali, aquela casa que caiu também, caiu a do meu vizinho, caiu do outro. Da minha casa... ela ta lá, mas não dá mais para morar. Só voltei para ver minha casa depois de duas a três semanas da tragédia, muito difícil de chegar até lá, acho que nunca mais vou poder voltar. Nem deu pra chegar perto, a barreira lá é mais alta que esse colégio aqui! Eles tiveram lá, já falaram que não iam mais botar mais nem luz lá em cima, foi o terreno, foi tudo lá...” E agora, para onde o senhor vai agora? Perguntei. “Vou pro Baú Baixo de novo, no abrigo do salão.” Perguntei se não queria mais voltar para Joinville, para casa de parentes. “Não adianta, não adianta incomodar os outros. Se fosse pra mim incomodar os outros, eu preferia ficar debaixo de um viaduto por aí, debaixo de uma ponte, ficar incomodando os outros não adianta, mesmo assim que é família, é parente tudo, mas não adianta. Esperar pra ver... A hora que der, que eu conseguir minha casinha de novo, vamos ver, né!” No início do ano letivo de 2009 o Senhor Raul foi removido do alojamento do Colégio Ilhotinha para a Igreja Cristo Rei, na localidade de Baú Baixo.

Barreira que caiu ao lado de sua casa

247


Dia 07/02/2009 :: Depoimento de

Rejane Gabriela Cunha

Bombeiro voluntária de Ilhota. (um dos 14 herois) corpo de uma moça, que ficou soterrada por muitas horas, e apesar de terem conseguido tirá-la com vida, devido aos ferimentos ela veio a óbito.Foi marcante ver aquele trator com o corpo coberto por um pano branco, onde os pés, de fora, mostravam parte dos tantos traumatismos que sofrera. Os caixões, para sepultar tantos mortos, estavam sendo feito pelos próprios moradores, com tábuas de pinos. Seguimos até o local onde havia caído uma casa e no caminho fomos fazendo regates de pessoas que não tinham para onde ir.Como nosso grupo era grande, nos dividimos em duas equipes, seguindo para lugares diferentes. No Morro Azul, localidade do Braço do Baú, encontramos uma senhora com a perna fraturada, que sentia muito medo e a trouxemos conosco. Ela chorava e rezava todo o tempo.Ao chegarmos na casa que havia desmoronado, vimos que não havia sobrado nada, estava totalmente destruída. Andando mais um pouco recebemos uma informação de que duas senhoras idosas estavam isoladas e presas na própria casa. Tentamos atravessar o ribeirão, mas a força da água não deixou, quando resolvemos usar um eucalipto para servir de ponte, mas a primeira tentativa não deu certo, o eucalipto quebrou, o que não fez com que desistíssemos e por fim, conseguimos. Cinco pessoas passaram para tentar fazer o resgate, que, felizmente deu certo, com a chegada do helicóptero, que consegui pousar ao lado da casa., graças a Deus. A outra turma estava procurando o corpo de uma senhora que ficara soterrada um pouco mais para baixo, no início do Morro Azul. Logo escureceu e voltamos para uma casa de Adriano, morador que nos deu abrigo e jantamos peixe, pão e água e fomos dormir, mas havia muito barulho. Quando amanheceu parte de nossa equipe tentou chegar até o Alto Braço por uma trilha, mas infelizmente, não conseguiu e voltamos para igreja no Braço do Baú, onde havia muita gente machucada e a enfermeira pediu que eu a ajudasse e imediatamente comecei a atender as vítimas..Os helicópteros começaram a chegar, trazendo as pessoas que ficaram isoladas e o ambiente era de muito choro e tristeza. Naquele momento, me senti uma pessoa muito forte, pois uma familiar da moça que morrera após ter sido salva do soterramento e que encontramos ao chegar, veio ao ambulatório e me pediu um algodão para limpar o nariz que sangrava. A cena seguinte, creio, jamais verei outra igual: um corpo num caixão, coberto apenas por um pedaço de tnt, material utilizado principalmente em decorações, muito parecido com papel,, completamente machucado, ainda revia sangue. Quanta tristeza e quanta coisa ruim poderia acontecer mais? Era muito sofrimento para aquelas comunidades inteiras. Em seguida, recebemos a notícia que haviam encontrado outro corpo no Baú Central, de uma mulher que também num trator, já em estado avançado de decomposição, muito inchado. Um dos senhores que estava perto perguntou se eu era bombeiro, pois precisava saber de quem eram os corpos encontrados, procurava pelos de sua mulher e filho. Meu Deus! Ouvir aquilo foi horrível, principalmente quando falou que já tinha os dois caixões e as covas prontos para enterrá-los, que havia passado a noite anterior fazendo os caixões. Outro helicóptero chega, com mais um corpo de mulher, envolvido em um edredom branco que foi amarrado numa maca, mas eu já estava tão chocada, que sequer olhei.Fomos avisados que teríamos que voltar para Ilhota e quando descemos do helicóptero, havia muita gente na pista de pouso, além de alimento, medicamentos e água, os donativos que chegavam para tentar amenizar tanta dor, morte e destruição. Ajudei e continuarei ajudando, com muito mais garra e vontade, se preciso for. Aprendi muito com aquela lamentável experiência, aprendi a dar mais valor a vida!

M

eu nome é Rejane Gabriela Cunha, tenho vinte e oito anos, nasci em Blumenau e sou filha de Mário César Cunha e de Maria Madalena Cota. Tenho dois filhos, Willian e Bárbara. Moro atualmente em Ilhota.Sou bombeiro voluntária há dois anos, porque gosto de ajudar o próximo. Estava de plantão no dia vinte e dois de novembro, quando recebemos um chamado, dizendo que havia caído uma barreira e soterrado cinco pessoas. Não tínhamos como fazer a travessia do rio Itajaí Açu, pois estava muito cheio e havia muita correnteza. Em seguida, surge outro chamado, era de uma gestante que havia entrado em trabalho de parto.O desespero foi grande! Entramos em contato com os bombeiros de Gaspar, mas sem resultado, porque também tinham muitas ocorrências para atender, prometendo prestar auxílio. E assim foi aquela noite, com o rio enchendo cada vez mais. Quando amanheceu, resolvemos tirar tudo o que havia no quartel, pois o rio continuava subindo rapidamente. Com a chegada do comandante administrativo, que tratamos por Expresso, Paulo Vilmar Batista, nos reunimos e ele perguntou quem poderia ir para o Braço do Baú, informando que não havia dia certo para o retorno, pois não sabia da situação do local. Conseguimos dois barcos de populares para que pudéssemos chegar até lá e fiquei pensando naquela gestante que tanto pedia por socorro e então falei: eu vou comandante! Sou guerreira e tem gente precisando de mim. Seguimos a um local próximo à igreja matriz e um trator nos levou até os barcos, para iniciarmos nossa missão. Fiz minhas orações e pedi para avisar minha família, que eu estava indo para lá, mas que não se preocupasse comigo. Eu era a única mulher entre treze homens, entre bombeiros e moradores que conheciam bem o Baú. Saímos em dois barcos e só enxergávamos os telhados das casas, em várias ocasiões, o motor do barco falhou. Graças a Deus, conseguimos chegar até um campo de futebol no Baú central. Caminhamos um pouco, chovia demais e tinha muita lama. Logo em frente vimos um trator que já nos esperava. Quando me deparei com aquele cenário, perguntei a mim mesma o que eu estou fazendo ali. Havia muita destruição, troncos de árvores em todo lugar, mas conseguimos chegar na igreja do Braço do Baú, onde havia muitas pessoas chorando. Pai, filha e neto, tinham morrido no deslizamento de terra e não haviam encontrado o corpo da esposa, filho e genro. Seguimos em frente, vi mais uma cena chocante, pessoas trazendo o

248


Dia 09/03/2009 :: Depoimento de

Roberto Carlos Merlini

Bombeiro Voluntário do município de Ilhota.

N

que tinha recebido pela manhã, a ligação telefônica daquele senhor da praia de Armação e recebi como resposta, a com confirmação de que sua cunhada havia feito aquele telefonema, pois não conseguia outro contato e que aquele número de telefone, ela encontrou em sua carteira, sem saber de quem era. Levei sua esposa até o posto de saúde, recebida pela enfermeira Maria Aparecida, a Tita, que providenciou para que fosse atendida pelo Dr. Lucas. A família foi alojada na Igreja São Pio X, no salão paroquial . Durante o trajeto, a menina perguntou ao pai quando voltariam para casa. Depois de entregar a família ao responsável pelo abrigo e me certificar de que foram alimentados, voltei ao campo de pouso mais renovado e com mais vontade ainda de ajudar outras famílias.

a manhã de terça-feira, vinte e cinco de novembro de 2008, após ter passado a noite trabalhando no plantão no posto de saúde em Ilhota, fui designado para a limpeza do quartel com mais dois aluno, além de uma voluntária, a Jane, esposa do professor Bráulio. Minha missão era colocar os telefones em uso. Ao limpar a sala de administração tentei colocar o telefone 33431470 em uso, mas não consegui sinal. Fui até a sala da central de comunicação e coloquei o telefone 3343-1515 no local e em seguida ouvi a campainha do aparelho soar.Para minha surpresa, no outro lado da linha estava um Senhor da praia de Armação, que me relatou ter recebido uma ligação de um telefone celular, onde uma família solicitava socorro, pois estava há dois dias na mata, completamente molhados, sem comida, com uma criança e que uma senhora, provavelmente mãe dessa criança, há dez dias havia sofrido uma operação de laqueadura, encontrando-se bastante debilitada. Ainda faziam parte daquela família, o pai da criança, uma senhora idosa, uma moça, além de uma pessoa deficiente, de aproximadamente 30 anos. Eram moradores da Tifa do Grahl, localidade do Alto Baú. Tiveram a casa soterrada e não conseguiram ser vistos pelos helicópteros que sobrevoavam o local. Rapidamente agradeci as informações e entrei em contato com o Expresso, Paulo Vilmar Batista, relatando o que ouvi naquela ligação telefônica e a família foi resgatada no mesmo dia.. Na parte da tarde fui designado para o campo de pouso, no campo de futebol municipal, onde eram recebidos os donativos e vítimas resgatadas. Num dos pousos dos helicópteros, acontecimento freqüente naqueles dias, devido a tragédia, ao receber e tranqüilizar as vítimas, deparei-me com uma família que fora socorrida, com as mesmas características daquela que solicitou o resgate pela manhã. Ao tomar a criança no colo, perguntei ao pai de qual localidade eles estavam vindo ,e fui informado que eram moradores da Tifa do Grahl. Contei a ele

Roberto Carlos Merlini,ajudando nos resgates das vítimas vindas de toda a região do Baú.

249


Dia 13/02/2009 :: Depoimento de

Rosângela Luísa Pereira Burille

Moradora do município de Ilhota, voluntária durante trinta dias, setor de doações de roupas no salão paroquial.

Diário de uma enchente.

A

quele seria um final de semana como qualquer outro... Ate chegar a notícia dos acontecimentos...

Imediatamente providenciamos doações, mas somente chegando aos locais improvisados de recebimento (tanto de pessoas quanto de doações) que tivemos uma idéia da proporção das cheias. As necessidades imediatas eram sanadas com precariedade, mas com rapidez. À medida que aumentavam as doações, os fatos de uma tragédia aumentavam na mesma proporção. Mas, era preciso agir... O impacto era evidente e o sobressalto dominava o comportamento das pessoas envolvidas direta e/ou indiretamente. Aquelas pessoas chegavam totalmente desprovidas. Mas não somente de roupas ou alimentos. Naquele momento, elas estavam também desprovidas de vaidade, de autoestima e de sonhos. Da mesma forma como foram arrastadas de suas casas, foram também arrastadas de seu passado e futuro. E, o presente era incrédulo. Impelidas a uma brusca realidade, não se opunham às ordens dos grupos salva-vidas. Naquele instante, aquelas pessoas já não tinham suporte emocional para afrontar e defender seus princípios. A chuva levara também o seu discernimento. Assim que chegavam, às pressas, suas necessidades materiais eram sanadas mas, a necessidade maior era de amparo, solidariedade e aconchego à alma. E, assim agíamos. Guiados por uma força maior, nosso passado e futuro também deixaram de existir. Compartilhávamos o mesmo presente. Quando fomos chamados de “anjos da guarda” entendi toda a extensão e a plenitude do grupo ter-se doado tão inteiramente. O grupo de voluntários também estava desprovido. Desprovido de orgulho, de insensatez e de preconceitos. O mesmo vento que levara os pertences nos trazia agora a gratidão. Diante de uma realidade inimaginável me deparei com fatos inenarráveis, mas também com pessoas indescritíveis. Hoje, cada qual segue seu caminho, na certeza de que a reconstrução é inevitável, gradativa e necessária. A superação se inicia. É o início da reconstrução da alma, do futuro e de sonhos...

250


Dia 22/03/2009 :: Depoimento de

Roseli Maria Busarello Piontkowski

Moradora do município de Ilhota.

Roseli e Olga(Preta), durante o trabalho voluntário de distribuições e organizações de roupas no salão paroquial.

S

ou natural da cidade de Rio dos Cedros, Santa Catarina, moro em Ilhota há 14 anos. Casada com Tadeu e tenho dois filhos, Marcos Tadeu e Rosélis Taís. Depois que as coisas aqui em casa se ajeitaram, porque em partes da loja entrou água da enchente, eu fui até ao centro para ver como as coisas estavam, e levei dois colchões para doar. Eu vi a situação quando cheguei, vi um filme de guerra, eram helicópteros subindo e descendo com vítimas do Baú. Fiquei muito comovida vendo toda aquela situação, e resolvi ser voluntária no salão paroquial, fiquei durante doze dias trabalhando, eu e mais outras voluntárias, na distribuição e organização de roupas. Fiquei muito comovida com as pessoas que vinham nos ajudar. Com o passar dos dias chegou um moço de Balneário Camboriu, o Moacir, para ser voluntário. A despesa de vir era do seu próprio bolso, e vinha todos os dias, também um senhor de São Paulo, o Beto, era do exército, ficou uns 20 dias alojado na casa paroquial e foi uma pessoa muito importante, ajudou na organização, porque ele já tinha trabalhado em outros acontecimentos em outros países. Emocionei-me muito com um casal que chegou com uma criança com mais ou menos sete anos, que estava muito assustada, os olhos pareciam que saltavam, foi muito triste porque o que eles devem ter sentido quando aqueles morros desceram deve ter mexido muito com o

psicológico da criança, esse foi um momento que me marcou. Também uma senhora de muita idade que a família carregava, e foi alojada às pressas dentro do próprio salão paroquial no meio das distribuições das roupas, teve vários momentos assim, tristes de recordar. Achei muito bonita uma cartinha de amor que veio no meio das doações, tanto que levei para casa, escrevi igual e dei de presente no Natal para o meu marido Tadeu. Quando abríamos os pacotes das roupas, muitas delas eram boas, e às vezes também chegavam roupas mais usadas e a gente sempre pensava assim, que de qualquer forma, a pessoa que doava uma roupa mesmo bem usada, pelo menos ela teve coração de mandar alguma coisa. Teve solidariedade do país inteiro, e também do exterior. Íamos abrindo e vendo, o pouco que eles tinham, mas mesmo assim mandavam com carinho, era o que eu sentia. Todos os dias que trabalhei lá, se eu contribuí com alguma coisa, foi muito bom para mim mesma. Eu não sou natural daqui, sou uma filha adotiva, mas aqui que eu quero viver sempre! E espero que meus olhos não vejam mais isso tudo que aconteceu no município, mas se um dia voltar a acontecer, eu vou ajudar novamente, a gente tem que enfrentar e se erguer, e se a minha geração não ver mais isso, a próxima poderá ver, porque são coisas da natureza!

251


Dia 14/02/2009 :: Depoimento de

Rosemeri Sperber Zabel

Moradora do Alto Braço do Baú, está morando em sua casa, com a família.

N

o dia 22 de novembro, no sábado que começou tudo, estava em casa com meu marido Clemente e meus filhos gêmeos Claudemir e Cleonir, de 8 anos. Nesse dia já não tínhamos mais energia. À noite de domingo dia 23 chovia muito, nós escutávamos muito barulho, estava muito escuro e não enxergávamos nada na rua. Por volta de 9 horas da noite, rolavam pedras desses morros, o barulho era tão grande que não ouvimos quando as casas dos vizinhos caíram, Zaíro Zabel, Laudelina Zabel e Gracía Cardino Zabel. Só ficamos sabendo na segunda de manhã. Clemente achava que era uma trovoada forte, e eu dizia que não era trovoada, e que era pedra no ribeirão rolando. Na madrugada de segunda, por volta de 4.30 horas da manhã, escutei Marciano e Giovana chamando, conseguiram sair do barro e vieram ficar na casa do meu cunhado, Charles, arrombando a porta, porque Charles não mora aqui, mora em Gaspar, vem somente nos finais de semana. Quando eles chamaram, fomos até a varanda só que não víamos nada, tudo escuro, a água correndo na estrada, e muito barulho das pedras que rolavam. Íamos deixar amanhecer para irmos lá ver. Por volta de seis horas, quando abri a porta, me deparei com aquilo tudo, aqui no lado tinha uma lagoa de peixe, um curral de porcos, tínhamos um ranchinho, aquilo não tinha mais nada, a lagoa estava reta com barro. Então olhei para cima e o Marciano estava saindo da casa de Charles, e começou a chamar. Clemente foi até lá, quando chegou ali na beirada, não tinha mais bueiro, desapareceu. Nosso outro vizinho aqui debaixo foi com o Clemente lá e conseguiram atravessar, quando chegaram lá, Marciano contou que tinha caído sua casa, lá estava toda a família, que todos tinham ficado soterrados ou ido embora com a água. Para casa do pai dele também não conseguiam passar, porque não tinha mais ponte. Giovana, irmã de Zaíro, perdeu um braço e estava

Clemente Zabel no dia do resgate, no campo no centro de Ilhota.

Rosemeri Sperber Zabel com seus filhos gêmeos Cleonir e Claudemir, sendo guiados pelos o BVs André da Silva Neumayr e Carlos Osnildo Rampelotti, no dia do resgate.

252


grávida de oito meses, fizeram cesarriana mas o bebê já estava morto, se chamaria Miguel, e perdeu a filha Larissa(4) mais a mãe Laudelina, a cunhada Tione e os sobrinhos Marques(13), e Marcelo (7). A Tione com o marido Zaíro e os filhos Marques e Marcelo moravam mais atrás em uma casa de alvenaria, depois tinha a casa de Laudelina, mãe de Zaíro, e Giovana morava na parte superior de uma casa de madeira de dois pisos, embaixo moravam Marciano e Larissa. Estavam todos na casa da Laudelina. Quando começou a chover muito se reuniram todos, menos Zaíro que estava viajando. Foi aquela correria o dia todo, ligar para bombeiros, para virem buscálos. Começou a chegar gente, subiam os morros para ver se algum celular pegava, até que conseguiram. Mas os bombeiros chegaram já era por volta de 5 horas da tarde, eles já estavam no Braço do Baú desde o dia anterior, mas só aquela hora chegaram naquele local. Então levaram o casal. Os meus filhos choravam muito porque as três crianças que morreram eram coleguinhas, iam para escola juntos, brincavam juntos. É... Não é fácil! Eu me dava muito bem com todos. Nós saímos de casa porque atrás estava descendo barro até na janela. Estávamos sem energia elétrica. No sábado à tarde meu marido já queria sair, mas não tinha como, porque para baixo já tinha caído barreiras, e aqui para cima também já havia caído, ficamos em casa porque não tínhamos realmente nenhuma saída. Segunda dormimos na casa da minha vizinha, a Elza de Souza. Terça feira dia 25, fomos para casa, meu marido falou para arrumarmos alguma coisa em casa e irmos lá para casa dos meus pais, (Alcides e Rosemari Sperber). Fomos para lá. Aqui já haviam resgatado muita gente, iam lá para o pátio da Igreja Santa Paulina. Lá no pai, nós tínhamos energia, porque lá vem de Luís Alves mas só até na quarta feira, depois começou a cair barreiras. Ficamos até sábado ao meio-dia, depois começaram a resgatar o pessoal que estava por lá. Fomos até no campo no centro de Ilhota. Fomos lá fazer o cadastro no salão paroquial. E lá meu cunhado (Carlos Valter Zabel) de Brusque já estava nos esperando, porque quando estava no pai, meu marido já havia entrado em contato com ele, ficamos dez dias em Brusque. De Brusque ficamos mais duas semanas na minha irmã (Juliana Maria Sperber Richartz) mora na rua Das Laranjeiras, no Braço do Baú. Depois na casa dos meus pais, que lá já haviam liberado, ficamos por lá até dia 20 de janeiro. Graças a Deus viemos para nossa casa,

A família sendo conduzida por bombeiros e voluntários para abrigos ou para encontro com familiares. começamos então a faxina. Perguntei sobre os meninos que estavam traumatizados, depois de tudo que aconteceu. Eles têm medo de tudo, tanto um como o outro, não fazem nada sozinhos, não dormem sozinhos, temos que sempre estar por perto. Se eles estão na rua e querem entrar para casa, não vão se não estivermos junto. À noite, se querem ir ao banheiro, nos chamam. Eles não eram assim, têm seu quarto, dormiam sozinhos, nunca precisavam de ninguém por perto. Nós percebemos quando num sábado à noite, tínhamos acabado de jantar, e meu marido falou para eles escovarem os dentes, eles disseram que não iriam sozinhos, então meu marido perguntou o porquê do medo. Eles então começaram a chorar e disseram que tinham medo por causa das mortes das crianças e das outras pessoas. Nós explicamos, mas sabe como é... Eles eram muito amigos. Eu sempre ia à casa Laudelina, ela fazia uns tapetes muito bonitos de retalhos e eu vendia para algumas amigas, uns 3 dias na semana estava por lá, meus filhos também, brincavam muito com as 3 crianças, à tarde iam para a escola e voltavam juntos. E é por isso que estão assim, medo e saudades ao mesmo tempo!

Emocionados choravam muito.

253


Dia 19/02/2009 :: Depoimento de

Rosi Voltolini e Lilian de Oliveira

Assistentes Sociais da Prefeitura Municipal de Ilhota

R

osi: Moro em Blumenau, trabalho no município de Ilhota já há 11 anos, como servidora efetiva, sendo na ocasião do desastre, a única assistente social do município. Enquanto muitas pessoas fugiam de Ilhota para Blumenau, buscando abrigo ou um lugar mais seguro, fiz o percurso inverso. Cheguei ao município no dia 25/11/2009, tendo em vista que por questão de segurança não tinha como chegar ao município antes. Desconhecia o que se passava no município. Sem saber por onde começar, percorri os abrigos improvisados e descobri que não havia um levantamento exato de quantas pessoas estavam sendo atendidas. Tendo um histórico de trabalho no município, e conhecendo muitas das pessoas pelo nome, bem como suas famílias, foi de grande valia para identificar a situação e a área de abrangência do desastre. Priorizei a elaboração de um formulário de cadastramento, reunindo as agentes de saúde, repassando as necessidades de atendimento. Em doze horas tínhamos um diagnóstico da situação: 870 pessoas em 8 abrigos. Estes estavam localizados, no Salão Paroquial do Braço do Baú, do Baú Baixo, Baú Central, na escola Domingos José Machado, bairro Ilhotinha, e no centro mais precisamente na APAE, no Salão Paroquial, no CTG, igreja Evangélica e no Colégio Marcos Konder. No total a cidade tinha mais de dois mil desalojados, sendo que identificamos ainda o perfil dos desabrigados por gênero e idade, além de registrar as perdas de cada um. Essa operação aparentemente simples se tornou complicada pela dificuldade das pessoas em dar informações, tendo em vista que estavam exaustas e desesperadas. Tinham perdido familiares, seus pertences e ainda precisavam fazer filas e responder as nossas perguntas. Mas percebendo que a necessidade desse levantamento de dados era necessária colaboraram; até porque homens, mulheres, crianças e idosos têm necessidades diferentes. Passei as informações para o prefeito Ademar Felisky, que autorizou de imediato a contratação de outros técnicos especializados, como uma assistente social e duas psicólogas que integraram a equipe. As psicólogas otimizaram o trabalho de atendimento diretamente nos abrigos juntamente às coordenações que se formaram. Além das contratações, passaram por nosso município muitos voluntários que contribuíram nas mais diversas situações. Tivemos o auxílio do chefe dos escoteiros de Santa Catarina Marcus Vinicius, Adriano Borges, Assistente Social da cidade de Votuporanga S/P, Márcia Cristina Passos, Assistente Social da cidade de Votuporanga S/P, Neide Hengler educadora social da cidade de Votuporanga S/P, Wanda Arroio, Assistente Social da Cidade de Votuporanga S/P, Roseli Ferreira da Silva psicóloga da cidade de Votuporanga S/P, Ivanildo dos Santos padre da Cidade de Votuporanga S/P. Estes voluntários dedicaram suas férias em prol do atendimento ao nosso município. Contribuíram significativamente no planejamento do atendimento da rede sócioassistencial como também organizaram uma comissão para criar a Associação dos Desabrigados e Desalojados do município. Nesta ocasião minha preocupação já era com a autonomia dos grupos de cada abrigo e com as lideranças, pois não sabíamos por quanto tempo essas pessoas iriam ficar nos abrigos. Elas não podiam ficar dependendo de ajuda. Deveriam se organizar e resolver seus problemas e suprindo suas necessidades diárias

tais como: manutenção dos banheiros limpos, fazendo o rodízio na preparação das refeições, organização para se deslocar ao trabalho, pois não poderiam parar suas vidas por estarem nos abrigos. Ao contrário do que divulgavam os noticiários, Ilhota não estava destruída. A zona rural foi a mais afetada e as perdas nessa área realmente foi grande e naquele momento, difícil de ser contabilizada. Tudo o que estava acontecendo era novo pra mim, não sabia quando voltaria para casa. Minha rotina diária incluía visitas a todos os alojamentos e os mais diversos encaminhamentos. Como estava alojada na secretaria de Saúde e assistência social (minha sala) não tinha horário para encerrar o atendimento. Muitas pessoas passaram por este município, mesmo que rápido marcaram sua presença, contribuíram muito, auxiliando no trabalho que estava acontecendo. Contamos com o exército, na pessoa do tenente coronel Marcius Vinícius, que fez a parte de logística das doações. O Major César de Assumpção Nunes, do corpo de bombeiros Militar, equipe da defesa Civil Nacional, a Cruz Vermelha e tantos outros que contribuíram com seus conhecimentos. Também lembrando do ministério público e o judiciário nas pessoas de Murilo Adaghinari, promotor de justiça e a juíza Dra. Ana Paula Amaro da Silveira que também nos auxiliaram no que foi necessário. Em uma ocasião Um médico da Cruz Vermelha atendeu uma senhora na comunidade do Baú Seco, que havia ganhado bebê há três meses. Este médico manifestou uma preocupação com a mãe e a criança, pois a mãe estava com dificuldades para amamentar o bebê. Já a criança estava com diagnóstico de otite e diante desta preocupação do médico comunicamos ao conselho tutelar. Em comissão assistente social, a conselheira tutelar Sonia Maria Regado e Doutor Lucas Gonçalves prestaram o atendimento necessário. Esta comunidade estava isolada e os vôos aéreos já estavam escassos no município. Até a ocasião tínhamos a informação de que a comunidade era atendida somente pelo serviço aéreo, mas quando chegamos na comunidade, fomos tranqüilizados que possuíam um acesso pela a cidade de Luis Alves. Esta comunidade estava sem energia elétrica, sendo esta oferecida apenas através de geradores. Explicamos à Comunidade do Baú Seco, que poderia ser perigoso, eles permanecerem lá com crianças pequenas, pois caso precisassem de um socorro imediato, esse não seria possível. Porém deixaram bem claro que não queriam sair de lá, tendo em vista que estavam se organizando, possuíam comida e água suficiente e que em breve seria aberta a estrada com acesso à Luis Alves. Lilian: Moro em Ilhota, realizei meu estágio supervisionado de serviço social por três semestres na secretaria de saúde e Assistência Social, tendo como supervisora a Rosi. Após esta catástrofe fui convidada para trabalhar como assistente social e não tinha noção do que realmente acontecia. Quando cheguei para trabalhar com a Rosi, não imaginava a extensão do trabalho a ser realizado. De imediato comecei efetuando o preenchimento dos cadastros que tinham que ser concluídos. Fazia-se necessário irmos adequando o atendimento às necessidades, pois conforme o tempo se passava necessitávamos de mais informações. Na sequência o governo do estado criou o Beneficio Auxilio Reação, novamente mais um cadastro para ser feito. Nesta ocasião mudamos de sala, pois a disponibilidade de espaço que tínhamos não atendia a demanda de atendimento. Inicialmente toda população que procurou o

254


benefício da cesta básica foi atendida, mas passando 60 dias do acontecimento começamos a distribuição de maneira ordenada e seletiva, com dias e horários para ser retirada. Isso não é fácil pois causa bastante polêmica para conseguir esta operacionalização com tranquilidade. Fazia-se necessário fazer um encaminhamento no sentido de garantir esta distribuição para o pessoal atingido pelas cheias. Estabelecemos dias e horários, quem distribuiria, e local de distribuição. Inicialmente estabelecemos nove pontos, divididos na margem direita, e margem esquerda. Desta maneira acreditávamos que conseguiríamos atender todas as vítimas das cheias. As agentes de saúde foram responsáveis pela distribuição, sendo que atualmente esta distribuição é feita pelo Serviço Social. Iniciamos também os cadastros para as famílias que perderam suas casas.

Posso resumir dizendo que há ainda muito trabalho a ser feito e a cada dia que passa atendemos uma diversidade de demandas como: conflitos com idosos, conflitos familiares, tendo também muita procura por parte das pessoas para obterem informações. Rosi: Dia 24 de dezembro a assistente Lilian estava trabalhando aqui, sendo que eu estava fazendo as visitas nos abrigos para ver como estava sendo organizada a Festa de Natal. Na verdade as coordenações dos abrigos em parceria com as psicólogas já estavam bem organizadas. Muitas pessoas solidárias começaram ligar querendo fazer o Natal, muitas ONGs contribuíram para as festas natalinas. Com estávamos repletos de trabalho o prefeito delegou a tarefa de organização das entregas dos presentes ao professor Raul sendo que as doações foram tantas que podemos atender toda comunidade com presentes. Apesar da situação adversa que vivemos, todos se adequaram e as necessidades mais urgentes foram garantidas com sucesso.

Lucas Gonçalves.

Rosi Voltolini e Sonia Maria Regado.

255


Dia 03/02/2009 :: Depoimento de

Ruth Kath Passold

Moradora do Alto Baú.

E

u estava em minha casa nesse dia, chovia já há mais de três semanas. Estava sozinha, porque meu rapaz (Ivam Passold), oito dias antes ele saiu de casa, alugou uma quitinete, em Blumenau, lá no bairro Fortaleza, porque não conseguia passar sempre o rio, que estava sempre cheio e baixava, então ele alugou lá e ficou lá fora. Rui deixou a moto do outro lado e passou pela pinguela, e foi pelo meio do mato, pra chegar ao serviço dele, trabalha em Blumenau. E meu outro rapaz, (Rui Passold), está morando do lado da minha casa, Mas daí choveu, e nunca aconteceu isso que aconteceu naquele dia. Sexta pra sábado estourou o gás em Gaspar, e de sábado para domingo foi no Arraial. Então daquela sexta pra sábado tremeu tudo dentro de casa, dias antes, antes de chover já tinha cheiro de gás, sempre de noite, fazia um barulho tipo um assovio, aí aquele cheiro forte de gás. E ninguém se lembrou disso, mas eles têm que saber também. Aí foi indo, foi indo, daquela sexta pra sábado, sábado já começou a cair barreira lá. E foi indo aquela chuva, domingo caiu mais, aí eu tirei só um pouco de roupa, levei lá no meu rapaz, televisão, levei um colchão pra lá. Eu tenho uma casa de madeira, meu rapaz tem uma de material, aí eu disse ‘Se a minha casa vai cair, mas a tua é de material a água não carrega, é mais firme.’ Mas o que adiantou, não adiantou nada, porque, caíram duas barreiras, e fechou o rio. Aí a água chegou até na laje. Domingo de noite nós saímos e subimos o morro, fomos lá no meu primo, o Alex Arndt, é mais alto. Lá nós dormimos. Segunda feira de manhã quando nós olhamos pra nossa casa, estava tudo debaixo da água. Minha casa está caindo, e o meu rapaz perdeu tudo também. Tudo que a gente tinha, perdemos. É triste, muito triste! Na minha casa não posso mais morar, porque os pilares estão saindo tudo! Lá de onde a gente ficou a uns cem metros da nossa casa, dava pra ver tudo, minha mesa parou na estrada. Minha máquina foi embora, tudo saiu fora da casa. Lá nós ficamos com medo, porque tinha um morro do nosso pasto que desbarrancou já um pouco no lado do meu primo. Lá nós dormimos, eu meu rapaz e eles lá, nós estávamos em quatro famílias assim, como o meu rapaz e a mulher com as crianças, eu sozinha então, e o rapaz do Alex que estava morando junto lá, e o Alex com a mulher. Mas nós não tíinhamos saída. Nós ficávamos olhando pra fora pra ver se o morro não ia cair, mas é triste, nunca passei por isso! Nasci lá, nunca aconteceu. Meu pai estava morando lá há tantos anos e nunca, nunca aconteceu. O rio enchia, mais baixava, nunca chegou água, porque nós temos a várzea na frente da casa, plantamos aipim, milho, feijão, tudo isso e verdura, e nunca chegou água lá. E agora está tudo cheio de lama, madeira e pedra. Ficamos lá do dia vinte e três até dia vinte e quatro, quando nós saímos com o helicóptero. Nós pegamos uma toalha branca ali, abanamos, daí eles passavam três, quatro vezes, pra pousar não tinha lugar. Daí tinha um cantinho no pasto lá, onde ele pousou, mas era difícil. Daí ele nos levou até o campo do Quinha, daí pegamos o helicóptero grande com trinta pessoas e viemos pra Ilhota, paramos no campo de futebol. Então fomos pro salão paroquial da igreja matriz, lá fiz o cadastro, e ficamos três dias. Precisaram do salão, pra por roupas e tudo (donativos que iam chegando), aí viemos pra cá, que era um lugar mais seguro. E até hoje estamos aqui. A explosão foi domingo à noite, o fogo era tão alto que lá na Fortaleza (bairro de Blumenau) mora a minha irmã, eles bateram foto de lá,

Ruth kath Passold.

256


e a minha prima mora na escola agrícola, (bairro de Blumenau) ela disse que assoviava que nem quando vinha um avião a jato. A minha filha também escutava, fazia assim’ vummm’. E eu escutava isso sempre de noite, dois três dias antes, o cheiro do gás, ninguém imaginava, essa catinga de gás. E a nossa sorte é que estava chovendo, senão nós tínhamos morrido tudo, por causa do gás. E eu quero minha terra paga! Porque eu perdi! Meus filhos perderam tudo que era meu. Eu sou viúva. Perguntei a ela se havia perdido alguém da família. Não, graças a Deus não! Segunda feira meu primo passou lá, queria buscar sal para salgar a carne, aí ele foi mais pra cima, passou no meio do mato, aí quando ele voltou, ele contou as notícias, que tinha morrido muita gente lá pra cima. Nós não tínhamos rádio, porque ficou na água lá, nem o telefone não ia, não tinha luz, não tinha nada, era tão triste. Meu primo disse que morreram os nossos quase vizinhos, os Harbes, aquela família toda, que eles sempre faziam feira, vendiam nata, queijo, tudo. Coitadas dessas pessoas! Eu tenho tanta pena! Perguntei para onde eles iriam Tem que sair essa semana daqui da escola por causa da aula, o meu rapaz queria alugar uma casa lá na Itoupavazinha (bairro de Blumenau) até que possamos voltar pro Baú outra vez. Perguntei se ela gostaria de voltar para o Baú. Não sei, meu rapaz disse que não queria mais voltar, mas eu gostaria de voltar, se tem estrada macadame, e luz tudo. Eu quero porque eles vão fazer uma casa pra mim, ou reformar essa, ou fazer outra noutro lugar, e ficar lá só para ir pra plantar lá e pra passear, porque a gente pode plantar e morar em outro lugar! Mas acho que isso vai ficar tudo tranquilo, porque já aconteceu em outros lugares isso, mas principalmente era do gás!

Casa de Ruth Kath Passold.

257


Dia 13/02/2009 :: Depoimento de

Scheila Maria da Silva Annater

Moradora do Alto Baú.

D

ia 23, domingo, o rio já estava transbordando e não dava mais para passar para a casa de meus pais. Atrás da casa da minha irmã Kátia, já havia caído uma pequena barreira, eu e meu marido João ficamos muitos preocupados e assustados, sem saber notícias. Minha vizinha, tia Kica, Cenilda, estava em casa com o filho Gustavo e meu tio João Galdino, irmão do meu pai tinha ido à Blumenau com a filha Carol e não deu mais para voltar, já estava tudo alagado, sem acesso.De repente eu vi minha fazendo gestos que mostravam que ela estava assustada e que não saíssemos de casa. Naquele domingo de manhã, meu marido João estava irrequieto, deu várias voltas pelos morros e cada vez que chegava a casa, estava mais assustado, mas não me falava nada. Como estávamos preocupados com meus pais, fomos até a casa da tia Kica, para ver se dava para atravessar, pois João, meu tio já havia atravessado. Carol, minha prima tinha ido para casa de uma amiga. Peguei Joana no colo e fui com tia Kica e Gustavo, meu primo, até perto do rio para ver como estava, então o Luizinho, filho de uma vizinha gritou do outro lado que meu pai daria um jeito de nos fazer atravessar e que era para todos irem para lá. Pegamos um pouco de roupa para as meninas e fomos para o rio, meu pai jogou uma corda que meu marido amarrou numa palmeira e do outro lado os homens seguraram. Naquele momento não me preocupei comigo, eu só queria poder atravessar minhas filhas, já que na casa da minha família estaríamos em segurança, queria que elas fossem salvas. Chegando lá, minha mãe, Iolanda Miranda da Silva, estava chorando, desesperada, muito preocupada comigo e os outros irmãos que estavam fora e com meu sobrinho, Paulinho que estava no Belchior. Minha mãe ainda tirou leite, fizemos uma sopa e jantamos. Quando acabamos de jantar, subimos para os quartos, para dormirmos. Não tinha energia elétrica. Colocamos os colchões no chão, nos ajeitamos para dormir e escutamos o Juliano Bayer e o Paulinho chegando do Belchior. Juliano foi para casa do Gil, Gilberto Schimidt, e Paulinho entrou, contando que já tinha visto muita destruição até chegar em casa, que passou pelo mato e achava que não mais veria os pais, os abraçou e chorava muito. Depois trocou a roupa molhada, jantou e levou o colchão de tio Nelson para cima. Antes de dormir, fomos rezar o terço e vimos um clarão na rua, muito forte e ficamos assustados, não sabíamos o que estava acontecendo. Minha tia Kica e meu tio João ficaram muito preocupados com a filha Carol, que estava no Belchior. Sem saber o que havia acontecido, continuamos a rezar e em seguida, fomos para os quartos. Lembro que fui para meu quarto e fiz o que fazia todas as noites, fiquei olhando para minha filhinha Joana, agradecendo a Deus, por ter duas filhas tão lindas, e tão saudáveis.No quarto ainda estavam minha filha Dani, meu marido João e minha irmã Isabel. Eu estava abraçada com minhas filhas, a Isabel estava conversando com o João, quando ouvimos um forte barulho. Olhamos pela janela e vimos que todo o morro estava caindo. Meu marido saiu gritando para que eu corresse e pegasse Joana! Dani saiu correndo atrás dele e acredito que isso o salvou. Quando eu pensei em pegar a Joana, vi que Isabel estava no colchão abraçada à menina e a chamou de meu anjo. Continuei olhando para fora e vi que o caminhão estava entrando debaixo da casa. Assustada, abracei as duas e só lembro do momento em que a laje estava caindo, não consigo esquecer e pensei: chegou a nossa hora! A laje continuou caindo, e uma forte pancada nos arrastou para o fundo da casa. Após um instante de silêncio, todos começaram a gritar ao mesmo tempo, pedindo por socorro, enquanto eu gritava que Joana iria morrer. Fiquei trancada debaixo da laje, minha nuca doía, minha perna ficou presa e achei que tivesse quebrado minha coluna, mas só pensava que minha pequenina

Danyele com a irmã Joana, filhas de João Goulart Annater e Scheila Maria da Silva Annater não conseguiria sobreviver,mas que a Dani estava viva, pois chorava. Minha irmã pedia socorro, gritava e me dizia: Scheila, eu não vou aguentar, eu não estou mais conseguindo respirar. Eu só conseguia mexer uma mão e dizia para ela: calma Isa, calma! Pensava em Deus e que nossa hora havia chegado e que a Dani eu escutava, mas a outra, não. Ela estava no nosso lado e, não se ouvia nada, quando a Isa me disse que ela estava respirando e acredito ter sido aquele seu último suspiro. Ouvi que a Débora já havia saído com a Kátia, que, pediam por socorro. E pensava: mas para quem? Acreditava que o Baú inteiro havia sido destruído. A Isabel continuava gritando e no quarto ao lado, estavam tia Kica, tio João e o Gustavo, que chorando, chamava pela mãe. Minha tia gemia, reclamando da coluna. Isa pedia socorro para o tio que estava ali ao lado e ele disse para o filho: Guto, vai até lá, que o pai não consegue. Havia machucado a clavícula. Corajoso, Gustavo foi e primeiro encontrou o pé da Isabel, dizendo para ela ficar calma, que a salvaria, que ainda seria um bombeiro. Mas a parede era muito pesada, pelo menos uns de uns dez homens seriam necessários para tirá-la de cima da gente. Ele tentou arrastar um pedaço de laje que pressionava a cabeça da minha irmã, enquanto ela pedia que ele parasse. Pedi que fosse procurar

258


João, meu marido, que tentava ajudar Paulinho. Conseguiu ainda, ergueu um pouquinho a parede e Isabel foi se arrastando e conseguiu sair dali. Depois que ela saiu eu vi Joana deitadinha e pedia que pelo amor de Deus, fizessem respiração nela, que fizessem alguma coisa para salvar minha filha, já que eu não podia fazer nada. Minha irmã logo constatou que ela havia falecido, e João pegou-a no colo, saindo desesperado e ainda fez respiração boca a boca, mas viu que não havia o que fazer. Ele entregou nossa filha a algum familiar e veio me ajudar a sair dali. Quando pude abraçá-la, entrei em desespero. Os vizinhos vieram nos ajudar e tia Kica levou Joana para casa do Gil, pois todos estavam indo para lá. Não vi mais minha Joana. Rodrigo, eu, Dani e Isa saímos juntos dali. A dor era tanta que quase não podia andar. Eu estava desesperada, não sabia como os outros estavam, além de que, minha filhinha estava morta. Minha vontade era de ficar ajudando, mas estava chovendo, o corpo praticamente enterrado na lama e a dor na perna era imensa. Segui chorando com Isa na minha frente, que dizia: meu Deus Scheila, o que foi que fizemos para que isso acontecesse? Vamos Scheila, vamos. Tentava seguir, mas nos enterrávamos no barro. Fomos primeiro até a casa de nosso irmão Xande, Alexandre Daniel da Silva e sequer sabíamos direito para onde as pessoas estavam indo, depois fomos para casa do Gil. No caminho encontramos alguns homens e pedimos ajuda para salvar nossos pais, mas responderam que não podiam, que tinham problemas de saúde. E ali ficamos, com nossa tristeza. Eu não via mais a Joana, não queriam me deixar ver. Não dia seguinte, minha irmã contou que ela estava em um quartinho e novamente pedi para vê-la, mas ela não deixou, dizendo que era muito triste, que eu deveria guardar a imagem dela viva. Mas eu gritava que queria ver a minha filha, ao menos pela última vez e fui ao lugar onde ela estava, sobre uma pequena mesa, completamente inchada. Naquele dia achávamos que outra barreira cairia, que não conseguiríamos tirar os feridos a tempo e resolvemos subir o morro.Quanta tristeza! Levamos lona, tábuas, colchões e continuava chovendo muito. Fizemos uma barraca e buscamos os feridos. Minha mãe estava muito pálida, com o rosto sangrando, meu pai não podia se mover, sentia fortes dores. Luís Antônio, meu sobrinho, chorava e gritava, devido também às dores que sentia. Calinho, marido de Kátia, também estava muito ferido. Quando os helicópteros começaram a chegar, fomos até a casa do Gil para buscar Joana e fiquei com ela no colo. Nesse momento, caiu outra barreira e todos começaram a gritar, subindo o morro e sequer sabia onde Dani estava e saí gritando em busca de minha filha, quando me avisaram que estava com Silene. João estava com Joana nos braços e como foi triste vê-lo subindo o morro naquela hora, levando nossa filha morta. Quando o socorro chegou, disse para ele que eu queria levar minha filha e João seguiu para pedir autorização aos bombeiros. Depois que os helicópteros levaram todos os feridos, deixaram que eu fosse com Joana. Levei

Batizado de Joana, com padrinhos e tios Carlos e Kátia Tatiana Hostin e Frei Pedro, irmão de Daniel

também a Dani, mas João ficou. Quando o helicóptero passou por cima dos escombros, pensei nos meus sobrinhos e tio que ficaram lá, enquanto eu seguia para sepultar o bebê. Fomos levados para o hospital, onde eu, Isabel, Kátia e Luis Antônio ficamos internados. Meus pais, tia Kica, tio João, Calinho e Débora foram levados a outro. Fizemos muitos exames e fomos os primeiros do Alto Baú chegar, embora eu achasse que encontraria mais conhecidos. As enfermeiras, muito atenciosas, conversavam conosco e contávamos o que tinha acontecido, Contei que estava preocupada com minha filhinha, a Dani, de apenas 5 anos e queria saber onde estava meu marido. Comprometeram-se a me trazer notícias, logo que soubessem e encontraram Dani, que ficara com os bombeiros, no mesmo hospital. Depois me chamaram para reconhecer o corpo de Joana, embora eu a tivesse trazido, eram as normas. As enfermeiras me informaram que teriam que tomar as providências referentes ao óbito, mas eu não tinha condições para isso e sequer sabia do paradeiro de meu marido. Trouxeram Isabel para o mesmo quarto e logo chegaram meus tios e o namorado de Isabel que me disseram para ficar tranqüila que a Dani estava em um abrigo na igreja matriz, também em Blumenau, e que já estava com João. No dia seguinte, pela manhã, saímos hospital, com o namorado e a sogra da Isa, que vieram nos buscar. Minha tia telefonou e disse que teríamos que teríamos que enterrar Joana imediatamente. Aquilo foi muito triste, para mim, porque foi tudo muito rápido e sequer tive tempo para me despedir da minha menina. Fomos para o cemitério e não tive tempo de velar minha menina, pois logo que cheguei, o caixãozinho foi levado à sepultura. Quem sabe um dia eu volte ao Baú Baixo, mas agora não. É muito triste voltar para lá, a gente olha e só vê destruição. Cada cantinho lembra minha filhinha. Lembro que todos os dias de manhã, ia com as meninas buscar o leite na minha mãe e quando chegava em frente à serraria meu sobrinho o Paulinho, que também faleceu, ele vinha brincar com as meninas. Passar na frente da casa da Débora e do Xande também é muito sofrido, pois lembro do meu sobrinho João Pedro, que também morreu. Por enquanto, não quero voltar!

Escombros da casa 259


Dia 03/02/2009 :: Depoimento de

Sidney Adão (Ney)

Morador do bairro Alto Baú, ficou algum tempo em alojamento. Quando deu a entrevista estava morando de aluguel em Ilhota.

D

ia vinte e dois, sábado, eu estava em casa no Alto Baú, resolvi ir para o Belchior arrumar o carro. Levei minha filha Carolina (sete anos) comigo. Em casa ficou minha mulher Neli e meu filho Douglas de doze anos. Assim que o carro foi consertado fui à casa da minha mãe. Por volta de duas e meia, três horas eu voltei, mas não consegui mais passar. Dei carona para um grande amigo, o José Lins, ele ia passear na minha casa. Tentei passar por várias ruas e não consegui. Então dei a volta pelo Arraial, não deu, voltei pelo bairro Tribess, porque ali tem uma rua que sai no lado de um restaurante famoso, dando acesso pra lá. Ali nós ficamos trancados e tinha muitos, uns setenta carros querendo passar e não podiam também. Tinha gente de Luís Alves, de todo o lugar, porque era o Belchior. Ficamos ali trancados até umas oito horas da noite. Empurramos meu carro, liguei e fu,i só que ele morreu na água, eu pensei: o vou fazer o que agora? Empurramos de novo, até na frente de uma casa. Nisso eu ia descer até o descascador de arroz, passou uma mulher e me disse: _ Olha! eu não desceria, eu ficaria aqui, se fosse tu. Eu disse: _ Não, tudo bem, eu vou ficar por aqui. Já tinha um monte de gente na água. Encostei o carro e ficamos ali aquela noite. Dormimos dentro do carro, eu, minha filha e meu amigo. Estava muito preocupado com minha mulher e meu filho lá no Alto Baú, mas achava que lá não ia acontecer nada, porque era só água. Naquela noite era só chuva, chuva! Era uma meia-noite e não tinha dormido ainda, mas como a minha menina e meu amigo dormiram, eu disse: _ Vou dormir também. Uma hora da manhã, eu senti que estava frio, gelado nos pés, aí olhei, parecia um barro vermelho, assim, era tudo água, já tinha água dentro do carro, já estava tampando meus pés. Então acordei meu amigo e minha menina e disse: _Olha vamos sair! Está entrando água no carro, então nós saímos, na rua já tinha um metro, um metro e vinte de água. A sorte foi ainda que eu consegui sair dali de dentro do carro. Dai ficamos na casa onde estava o carro mesmo, fiquei ali junto com minha menina, uns rapazes me ofereceram hospedagem. Eu queria ir pra casa, a minha mulher estava em casa com meu menino, daí eu disse: _Poxa! O que ela vai pensar da menina? Que está morta? Vai pensar o quê? Eu até podia ter ido pra Blumenau, tenho bastante parentes, mas a preocupação era demais, e não imaginava tudo isso. Falei: _ Eu vou a pé para o Alto Baú. Meu amigo falou: _ E eu vou é para Blumenau. Ele ia voltar pra casa, disse pra ele: _ Pode deixar que eu me viro. Fomos andando, pensei que ali pelo Belchior eu conseguiria chegar no Santana (bairro), e ir pelo Baú Seco, mas quando eu cheguei ali no morro do Belchior ele já tinha caído. Mesmo assim, passamos por ali, meu Deus! Olha! Era morro, lama e barreira vindo, aí nós nos abaixávamos às vezes, e eu dizia: _ Ó filha, agora vamos correr, tu agarra no pai, agarra bem, não solta! Aí saía correndo e as barreiras vindo. Fomos até chegar no topo do morro. Minha menina só chorava e eu dizia: _ Calma filha nós vamos chegar, hoje ao meio-dia nós vamos chegar em casa. Então eu conheci um casal ali, nós tomamos um café, queriam que a gente ficasse ali, estava todo molhado, ela me deu uma roupa. Continuamos, quando chegou lá no Belchior Alto, ali tinha um senhor, e me pediu pra ficarmos na casa dele, mas eu só pedi pra ele me ajudar a atravessar o rio, porque não tinha mais ponte. Ele me disse: _ Olha não vai dar! Eu então até tentei, fui até a metade do rio e pedi para que ele passasse a menina, só que daí eu desisti mesmo, porque era muita correnteza, estava vindo muita pedra, daí eu disse: Não, não

vou atravessar não, vou esperar um pouco, de repente baixa. Isso era meio-dia quase, esperei mais de uma hora, daí não baixou. Então apareceu outro senhor conhecido por Dique e me falou: _ Olha! Eu estou indo pra baixo, lá pelo meu pasto dá pra chegar na estrada. Ele me ajudou a atravessar o rio, até fomos na metade por um pasto lá, mas não deu, já tinha caído um pedaço das barreiras. A gente voltou pela estrada, mas a estrada era só água, fomos por dentro da água mesmo, ele me deu a mão, fomos eu ele e a menina por dentro da água até no Santana. Nessa noite, o Sr. Dique nos deu um pouso em sua casa. E minha filha sempre pedindo para ir pra casa e eu sempre dizia: _ Amanhã cedo nós vamos, filha. No outro dia ele queria me botar na estrada que ia pro Baú Seco, para de lá ir para o Alto Baú e chegar em casa. Então o Sr. Dique falou que não sabia se ia dar pra passar, as pontes estavam caídas. Tentamos atravessar um rio, não deu, então ele sugeriu ficarmos ali em sua casa naquela noite, mas naquela noite... Começou a pegar água na casa dele também. Então nós saímos, bem na hora que explodiu o gás, era um clarão, e aquele fogaréu todo, porque era perto dali. Nós corremos e fomos na casa da mãe dele, que era num lugar mais alto, passamos aquela noite ali. Tinham ao todo seis pessoas na casa. No outro dia de manhã cedo é que ele me ajudou a atravessar o rio. Disse para ele: _ Está vindo um monte de gente lá de cima, não é por aquela rua que eu tenho que ir? Ele me respondeu que sim. Então ele gritou com o pessoal, perguntado se dava pra subir, disseram que não dava mais, que tinha caído tudo, falavam assim: _ Lá morreu esse, morreu aquele, eram conhecidos deles, eu não conhecia porque lá já fazia parte de Luiz Alves. Eu pensava: O que eu vou fazer? Resolvi ficar por ali. O pessoal montou um abrigo em uma marcenaria que tem ali no Santana, o dono cedeu. Ficamos por ali, tivemos que ficar, isso já era segunda-feira. Eu tentava muitas vezes ir embora. Apareceram uns bombeiros, eu queria ir junto pro Alto Baú, mas com criança não deixavam, só se eu deixasse a menina. Eu falei: _ Não! Eu prefiro ficar! Ficamos nesse local até na terça-feira. Na terça de manhã apareceu o Marcelinho, que eu conhecia bem, nós jogávamos bola juntos. Falei: _ Ô Marcelinho! Tu vais subir lá pro Baú Seco? Ele me respondeu: _ Olha, está difícil! Não dá mais pra subir, não tem como! Daí ele ficou por ali, depois ele até foi lá no Baú Seco e voltou, dizendo que era difícil, mas “dá pra gente ir”. Perguntei se ele ajudaria a levar a menina. Ele disse que sim. Levamos menos peso possível, porque já tinha a minha filha pra carregar, só levamos corda e facão, caso houvesse alguma necessidade. Marcelinho convidou sua esposa, mas já alertou que teriam que caminhar por dentro da mata por quatro a cinco horas. Fomos então. Chegamos por volta de cinco e pouco da tarde, muito cansados, não via a hora de descansar. Lá soube notícia da família, que estavam bem e que haviam sido regatados por helicóptero, não sabiam se para Blumenau ou Gaspar. Na quarta de manhã fomos para o Alto Baú, Marcelinho e outro amigo me acompanharam. Queria ir lá ver a minha casa e também até que ponto era mentira ou verdade o que o povo falava das pessoas que haviam morrido. Chegando lá, meu Deus do céu! Estava tudo revirado, irreconhecível, tudo caído, postes, casas... Passamos por tudo lá, estava muito diferente do que era! Passamos na casa onde morreu a família de Calinho (Carlos Hostim) lá ele perdeu dois filhos e mais parentes. Minha casa estava inteira, só entrou água. Voltamos para o Baú Seco, chegamos às quatro horas, fiquei por lá, pretendia ficar no abrigo até conseguir uma carona para Blumenau, fiquei um tempo por ali. De repente desceu um helicóptero, pensei

260


‘Poxa! Vou é pedir uma carona, se ele me leva até Blumenau...’. Eles falaram que iam para Indaial³, “lá nós podemos te deixar” disseram. Respondi: _ Ta bom! Lá eu pego uma carona e venho. Quando entramos no helicóptero o piloto disse: _ Está bom pra ti em Blumenau? Falei: _ É ali que eu quero ir mesmo! Eles eram de Minas Gerais e não conheciam. Nos deixaram no aeroporto em Blumenau. O interessante é que quando desci, não reconheci mais nada, isso que eu morei em Blumenau dezoito anos, sempre andava por ali, até poucos dias eu estava ali, me deu um branco, eu dizia: _ Meu Deus! Deixaram-me em outro lugar, fiquei fora (confuso). Falava pra minha filha: _ Meu Deus filha acho que não nos deixaram em Blumenau não! Vamos ver em que cidade estamos. Então perguntei a uma moça, ela disse realmente que ali era Blumenau, mas, no entanto eu não sabia mais onde era a casa da minha mãe. Deu uma amnésia acho eu! (risos).

Não conformado perguntei pra outra pessoa e ela confirmou que era Blumenau, perguntei o local de um posto de gasolina que conhecia e ela me falou. Andei uns duzentos metros, aí eu reconheci uma rua lá e com isso minha memória voltou, falei: _ Meu Deus! Estou aqui! Continuei andando até o posto, sempre com a minha filha nos braços, às vezes ela caminhava, mas pouco. Encontrei um amigo, o Antônio, que falou: _ Meu Deus! Eles estão todos doidos atrás de vocês, procurando aqui, ali... Falei que estava sem comunicação, nada. Então ele ligou pra casa da mãe e eles vieram nos buscar. Veio minha mulher com meu filho, estavam lá, coitada... Ela estava há cinco dias sem comer, só tomando remédio, não dormia, tinha perdido uns seis quilos, mais ou menos. Ainda bem que chegamos bem! Eu e minha menina. Ela chorou bastante, mas depois já se confortou ao lado da mãe e do irmão.

Sidney e sua filha Carolina.

261


Não foi fácil! Foram cinco dias sem saber o que podia acontecer, quando ia chegar em casa... Se íamos nos reencontrar mesmo... Porque... Um dava uma notícia, outro dava outra... Teve horas em que eu pensei: Meu Deus! Será que nós vamos chegar em casa, será que eles estão vivos? Minha filha sempre perguntando sobre a mãe e o irmão. Teve uma hora que ela me perguntou: _ Pai, se a mãe morrer?. Respondi: _ Não, ela não morreu, se morrer... O pai vai cuidar de ti. Falava assim por que não sabia o que ia encontrar pela frente, tinha que me preparar para o pior. Depois de Blumenau, fomos para o abrigo de Gaspar, uns quatro dias, depois viemos para Ilhota, no abrigo do colégio Marcos Konder, onde ficamos uns sessenta dias. Agora saímos porque as aulas vão começar. Alugamos uma casa aqui em Ilhota mesmo. Já estou trabalhando, sou pedreiro. Vamos ficar por ali até baixar a poeira e ver o que vai acontecer! Perguntei sobre voltar a morar no Baú. Não, eu não quero! Minha mulher não quer. Eu prefiro morar aqui, já negociei uma casa por aqui, para morar mesmo, definitivo.

¹ Bairro de Gaspar, município vizinho a Ilhota. ² Luiz Alves, município vizinho a Ilhota. ³ Indaial, município vizinho a Blumenau.

Meu relato após ter tomado o depoimento de Sidney que essa criança de apenas sete anos passou nesses dias de tantas agonias, tantas lágrimas e tantas saudades da mamãe Neli e do irmão Douglas, foi um verdadeiro pesadelo. Dentro dela havia um grande medo, o medo de nunca mais poder vê-los e de nunca mais poder abraçá-los.

Emocionei-me muito com este depoimento. Cercado de perigos, emoções, medos e saudades. Diante deles só havia perigos, mas não no ponto de vista de Sidney, para ele, não havia obstáculos, só existia a saudade e a vontade de reencontrar e poder abraçar toda a família. Essa é uma história real, um relato de mais um pai heroi, pai guerreiro! E Carolina! “Grande pequena menina”, de cabelos cacheados, de sorriso encantador! Também uma guerreira. O

Sidney e sua família, a esposa Neli, e os filhos: Carolina e Douglas.

262


Dia 30/03/2009 :: Depoimento de

Thiago Brassanini

Bombeiro voluntário do município de Ilhota.

Thiago Brassanini e Adriana Conink, dia 20/12/2008 no Alto Baú, pilotando o tobata.

T

odo amor, toda dor, todo ódio, todo pavor, toda a angústia, toda alegria, todo desespero, toda rebeldia! São todos sentimentos que vieram à minha cabeça em meio a tanta destruição, só me restava a única saída, era a fé! Nunca esquecerei, em nenhum instante, que para aquelas pessoas éramos anjos em forma de bombeiros, e naqueles momentos eu conseguia tirar forças do inexistente com cada vez mais vontade infinita de continuar... Continuar...

263


Dia 13/02/2009 :: Depoimento de

Urbano Kleine, Maria Madalena Kleine e Guilherme Kleine

Moradores do Alto Braço do Baú.

U

lama. Fomos para o vizinho para ficarmos mais no meio do povo. Fomos um pedaço de trator, e depois caminhado um bom pedaço, o Opa foi andando e a Oma carregamos dentro de um cobertor em quatro pessoas, cada um segurava em uma ponta. Urbano: Fomos até a chácara de um vizinho, o Rui Vitti, lá não tinha perigo. Ficamos duas noites lá. Quando caiu a barreira que destruiu tudo que tínhamos, era de noite e não vimos nada. Guilherme: Ainda na segunda de noite voltamos para tentar tirar alguns documentos, quando escutamos o barulho da barreira vindo, corremos até a lagoa, foi aí que caiu tudo. No outro dia fui lá para tentar tirar alguma coisa e não tinha mais nada! Perdemos tudo, tudo enterrado, não sobrou nada, casa, conservas, trator, carro, ficamos só com a roupa do corpo. Meu carro ainda está lá, tentamos depois tirar com o guincho, amarramos uma corda no gancho atrás, quebrou o gancho e está lá enterrado. O trator encalhou na lagoa, mas já tiramos.

rbano: Naquele fim de semana estava com toda família em nossa casa, no Alto Braço do Baú, minha esposa Maria Madalena, meus filhos, Guilherme, Jeferson, Lúcia e Maxsuel. E ainda meus pais Ernesto Kleine, de 89 anos e Eli Kleine de 91 anos. Eu tinha uma pequena fábrica de conservas, e lá a família trabalhava reunida. Plantávamos verduras e legumes e depois fazíamos conservas,vendíamos nos mercados. A família sobrevivia do próprio negócio, não precisávamos trabalhar fora. Chovia muito naqueles dias, estávamos sempre olhando as barreiras que já estavam caindo longe, mas quando começou a cair as barreiras grandes mais próximo da nossa casa e fábrica ,fomos obrigados a abandonar tudo. Toda a família saiu, debaixo de chuva, muita água na rua,mato, um acesso muito difícil. Não foi nada fácil. Maria Madalena: Eu, Lúcia e Maxsuel fomos correndo para o rancho de mudas de verduras, o Urbano, Guilherme e Jeferson ficaram lá ainda com o Opa e Oma, e logo já foram, quando passávamos por trás do rancho a barreira vinha atrás de nós, e aquele barro vermelho chegou a pegar nossos pés, e vimos ainda o rancho caindo. Se ficássemos ali, teríamos ficado soterrados. Foi por pouco! Guilherme: As barreiras não vinham de uma vez só, fomos correndo, estava ficando tudo isolado, a estrada estava fechando com água e

Família Kleine, Jeferson, Maria Madalena, Urbano, Guilherme, na frente, Lúcia e Maxsuel.

264


Local onde havia a morada da família Kleine.

Local onde havia a fábrica de conservas e ao fundo a barreira que soterrou todo o local.

Depois fomos para um rancho, que os irmãos Elias e Geraldo Bressanini nos emprestaram, Geraldo é pai de Maria Madalena. Fomos da casa do seu Rui de trator, tinha que desviar por dentro do bananal, e um pouco andando, não tinha mais estradas, carregando meus pais em carrinhos de mão. Guilherme: Depois, como estava ficando muito feia a situação porque não parava de chover, fomos para onde todos estavam indo, no campo de futebol, lá para cima no nosso vizinho Zeno Espig, para tentarmos pedir ajuda e sair com helicóptero, de novo fomos um pouco de trator e levando Opa e Oma, coitados, naquela idade passarem por isso tudo, foram novamente deitados, cada um num carrinho de mão, íamos empurrando, foi muito difícil mesmo, nem tinha mais estrada, era só lama e muita água. Lá então fomos todos resgatados e levados para Luís Alves, ficamos na casa da minha tia Terezinha, e o Opa e a Oma foram levados para Gravatá. Nós ficamos durante uma semana na casa da tia Terezinha. Perguntei se pretendiam reconstruir casa e fábrica no mesmo terreno. Guilherme: Para lá não vamos mais voltar, porque também não existe mais nada. Vamos ficar nesse rancho que Elias e Geraldo nos emprestaram para morar, e a fábrica vamos continuar, vamos construir aqui perto num terreno também cedido por eles. Aqui é um lugar mais seguro, quer dizer acho que não sabemos onde é mais seguro, qualquer chuva que der, qualquer barranco que descer assusta a todos, também, depois que tudo que todos nós passamos...

Lado direito da estrada era a casa e no lado esquerdo ficava a fábrica de conservas da família Kleine.

Perguntei a situação de seus avós, o Opa e a Oma. A Oma viu quando uma das barreiras caiu, estava na porta, eles já não estão tão lúcidos. No início ela chorava bastante, pedindo pelas coisas dela, mas agora já está se conformando mais. Eles não entendem quase o português, só falam em alemão. Ficamos com muita pena dos dois, na idade que estão, passar por isso tudo que passaram, não é fácil, só quem viu é que sabe como sofreram, e nós vendo tudo também sofríamos.

Os pais de Urbano, Ernesto e Eli, Opa e Oma. 265


Dia 31/01/2009 :: Depoimento de

Valdemiro Rünkos (Quinho)

Morador do Alto Baú. Quando o encontrei, estava tentando recuperar as madeiras que sobraram da casa.

N

o dia vinte e três de novembro eu estava em casa com minha mulher Elda e minha filha Juliana. Nesse dia era aniversário de minha mulher. Quando começou a tragédia, a gente estava em dezenove pessoas na minha casa. A gente esperava mais ou menos oitenta pessoas nesse dia, o pessoal não pôde vir porque tinha água no caminho, no Belchior. Depois de todo mundo ter jantado, era quinze para as nove eu fui me deitar, estava no meu quarto, na frente. Então quando escutei o barulho, tinha uma cortina blackout, eu vi um clarão vindo do canto da janela. Ainda pensei, quem seria o doido passando de carro ali uma hora dessas, porque lembrei que estava sem energia, porque ninguém podia passar aqui aquela hora, tinha água no caminho, daí eu puxei a cortina e vi o clarão, então me levantei. Pensei, alguma coisa está acontecendo! A impressão é que estava acabando o mundo, por conta do clarão, a noite virou dia! A gente estava aqui, e começou a desabar umas nove, nove e meia da noite, então começou a cair tudo. O clarão era do gás que explodiu. Dentro de uma meia hora começou a descer tudo isso daqui. Na minha sala estavam dormindo o seu Osnildo Bollmann, a mulher Clenice e a filha, a Micheli, então os chamei e disse que estava acontecendo alguma coisa estranha. Então identificamos realmente que era o gás! Que havia explodido! Então eles se levantaram, voltei para meu quarto, e fiquei sentado no lado da cama, olhando na janela. Tinha dois ranchos ali, um grande aqui no meio e vi que a água estava transbordando entre os dois ranchos. Então quando olhei pra cima, vi que vinha aquele mato descendo, falei pro pessoal ‘Agora corre que vai cair tudo’! Vinha entulho com madeira aqui pra frente, começamos a correr aqui pelos fundos, fomos pra cima, então vieram os eucaliptos de encontro ao portão, jogou pra dentro, aí passou! O rancho grande foi embora, na hora não atingiu a casa, minha casa caiu na segunda à noite. Então, desde domingo à noite a partir das nove horas começou a correr entulho, com madeira aqui pra baixo e foi até terça feira correndo. E o gás queimando. Ficamos duas noites ali em cima na casa da minha filha Daniela, a gente ficava debaixo do pé de laranja, com as crianças olhando tudo, quando via que vinha barreira, corríamos lá pra cima do morro pra poder se defender. Estávamos em dezenove pessoas entre adultos e crianças pequenas. Muitos amigos e parentes. Comida a gente tinha, mas fome... Ninguém conseguia comer do nervosismo, o medo, o alvoroço da família era muito grande. A gente procurava sempre se proteger, eu tentava dizer para as pessoas assim, ‘cada marido cuida de sua mulher e seus filhos, porque não dava pra socorrer todo mundo, tinha que cuidar, porque podia se perder, a água podia arrastar’ Negócio nosso era de cada marido então cuidar de sua família! Eu tenho uma filha que fazia apenas três dias que fez uma cirurgia, e que estava junto, andadando na chuva, e ela não podia se molhar. Nosso negócio era se defender para sobreviver! Era se salvar quem pudesse. E nós achando que só nós estávamos ilhados no perigo, quando havia pessoas muito pior que a gente, pessoas mortas e feridas, ali pra baixo. Graças a Deus não perdi ninguém da família, todos se salvaram. Na terça feira passavam os helicópteros, começamos a acenar com um pano, eles rondavam, mas primeiro iam para baixo, porque nós não sabíamos o que estava se passando pra lá, depois eles contaram que primeiro eram os feridos, depois mulheres com crianças. Então às onze da manhã, o helicóptero pousou aqui atrás da casa da minha filha

Valdemiro Rünkos.

266


numa roça de capim, foram as mulheres e as crianças, nós homens ficamos. Quinze para as cinco da tarde nós saímos. Fomos para um campo em Blumenau. Lá encontramos as famílias. Eles perguntavam para onde a gente queria ir, se pro abrigo ou casa de família. Eu fui pra casa de uma irmã com a família, minha filha Daniela, casada foi com o marido Márcio Zimmerman e o filho Felipe de 2 anos e 7 meses, pra casa do cunhado Ademir. Hoje estamos morando de aluguel. Estou morando no Belchior Alto. Nós moramos em seis pessoas em uma kitinete. Perguntei para Sr. Valdemiro sobre os móveis e pertences. Perdemos bastante, alguns móveis estragados, um pouco nós tiramos, e um pouco está amontoado em um canto da cozinha, um pouco ainda dá para aproveitar. Algumas jóias da família, DVD coisas assim foram roubadas. Eu saí terça feira, na quinta feira voltei aqui para ver como estava tudo, já tinham roubado. Entraram por trás, porque a casa partiu e ficou aberta. A aliança que a gente fez, especial pra bodas de prata, completamos 25 anos de casados há 4 anos. Perguntei se pensava em voltar para o Alto Baú. Olha! Eu estou indeciso ainda! A família não quer voltar mais, o genro quer voltar, a mulher e a filha não querem mais voltar. O meu problema é que fico inseguro, a família se dividir, era uma coisa que eu não queria, eu queria tudo junto! Como era antes. Estou vindo aqui para salvar um pouquinho de madeira, arrancar um pouquinho que sobrou, pra ver qual é o caminho que eu vou tomar. Não sei hoje o que vou inventar, porque isso aqui na verdade era casa do meu pai, eu cuidei dele, e ele faleceu faz dois anos, tinha noventa e um anos. Esse ano iria reformar toda a casa, fazer também uma cerca nova, comprar um carro novo pra mim, ainda bem que investi o dinheiro, senão teria ido tudo de água abaixo. Eu doei um pedaço de

terra pro meu irmão o Dodo (Reinoldo), que perdeu tudo. Do meu terreno sobrou um pouco e do pouquinho que sobrou vou doar pra ele. Esse é o caminho que nós vamos tomar. E se eu construir de novo aqui eu não faço mais no mesmo lugar, vou fazer minha casa mais no alto, numa área mais segura, agora o nível da água ficou mais alto do que a casa. Vou ver que caminho vou tomar!

Valdemiro Rünkos tentado recuperar as madeiras que sobraram de sua casa.

Morada de Valdemiro Rünkos após a tragédia.

267


Dia 20/02/2009 :: Depoimento de

Vânia Schimitt

Moradora do Baú Seco.

D

ona Idélia, viúva do Sr.José Schimitt possuía uma granja no Baú Seco, administrada pelos filhos Andréia e Dirceu, marido de Vânia, possuindo nesta granja dois aviários, comportando 35 mil aves. No fim de semana que aconteceu a tragédia eu estava em casa com a família, meu marido Dirceu Schimitt, e meus filhos João Paulo (8) e Débora Cristina (4). Chovia muito nesses últimos dias e no domingo pela manhã, por volta de 11 horas, caiu uma barreira e derrubou o primeiro aviário, depois de uma hora veio outra barreira e derrubou o segundo aviário. No momento que caiu o primeiro aviário, meu marido e meus filhos estavam passando em frente à granja, conseguiram correr, eu vendo tudo comecei a gritar e eles não me escutavam, mas o João Paulo viu e disse para meu marido ‘O pai, que barulho é esse?’ Daí Dirceu olhou para cima e viu a barreira descendo, e só disse ‘Corram!’ Então conseguiram sair a tempo, a barreira chegou até a estrada, foi por pouco! Na granja tinha 35 mil pintinhos de quatro dias, não se salvou nenhum. Naquela noite ficamos em casa, mas com muito medo, bem apavorados. Na segunda feira, dia 24 fomos para casa da minha mãe (Florentina) que fica um pouco mais para frente, próximo à igreja do Baú Seco. Lá ficamos com muito medo, principalmente quando chovia, não aconteceu nada, mas sempre ficávamos apreensivos, porque já tínhamos visto cair dois aviários, então qualquer chuva, qualquer barulho assustava. Todo o pessoal da redondeza estava ali na igreja que serviu de abrigo. No outro dia eu e meu marido voltamos para nossa casa só para ver o nosso grande prejuízo. Foi desesperador ver tudo no chão. Para reconstruir a granja, a família terá que gastar muito, já começamos há uns 15 dias, vamos recomeçar aos poucos, primeiro erguer e fechar a parte que ficou de pé, e com o tempo a gente vai melhorando até deixar do jeito que era.

Aviários depois da tragédia.

Aviários já erguidos, quase prontos para recomeçar novamente a produção de aves.

Dirceu Schimitt, tentando reerguer a granja da família.

268


Dia 03/02/2009 :: Depoimento de

Vera Lúcia Fauro Zabel

Moradora do Alto Baú.

E

stava em casa com o marido, Narciso Zabel e meus filhos, Rafael e Gabriel. Estava chovendo muito no domingo de manhã, e às horas da noite, a noite virou dia, começou desabar o morro. Antes da noite virar dia eu só lembro daquele clarão, deu um tremor de terra, minha casa tremeu, pensei que era o fim do mundo. Se era Jesus, eu disse, aparece! Na hora que começou a desabar o morro, eu fiquei com medo, sei que meu cabelo ficou em pé, sei lá, duro assim do susto, passava a mão assim para baixar o cabelo, meu corpo tremia todo. Chamei meu marido, comecei a gritar! ‘Narciso, pelo amor de Deus! O que está acontecendo?’ Ele e meu filho mais novo estavam dormindo! Eu e meu filho mais velho estávamos acordados, aí meu filho se agarrou comigo aqui na cintura e disse ‘Mãe! O que é isso? O que está acontecendo?’ Aí ele queria ver, a noite clareou,virou dia, e eu pensava que era o fim do mundo. Aí comecei a chorar. Que se fosse Jesus que desse um sinal! Eu caí de joelhos, e disse ‘pelo amor de Deus! O que está acontecendo!’ Comecei a gritar, tremeu tudo e começou a desabar o morro. Meu marido saiu na rua, deu uma volta, botou as duas mãos na cabeça, andava em redor de casa, ficou desesperado. E eu corria de um lado pro outro, ele disse ‘Tu estás louca mulher!’ Quando ele levantou da cama porque desesperado, então ele disse ‘seja o que Deus quiser! Eu não quero ver mais nada! Vou deitar.’ Eu amanheci, fiquei acordada três dias e três noites. Eu não tinha mais sossego, corria pra cima e pra baixo. O pai queria passar a ponte, não dava, eu também queria ir lá ver como ele estava, mas não tinha mais a ponte, meu Deus! Fiquei desesperada, queria descer! Meu pai estava na casa aqui no Alto Baú, que ele mora em Blumenau, só que minha mãe faleceu há nove anos, aí ele arrumou outra mulher, a Alma, e se deu bem, foi morar em Blumenau com ela, mas ele tem a casa dele aqui, daí ele vem de vez em quando na casa dele. No dia ele estava com as minhas irmãs em casa , a Tina e a Jack, e também o Anderson. A noite toda escutando estalaceira, barulho, pedras... Aquele morro. Depois que deu o tremor que a noite virou dia, a gente só escutava o barulho daí parou de chover, parecia o fim do mundo. Eu tampava os ouvidos, assim com os dedos pra não escutar mais nada, porque estalava tudo quanto é lado. Era horroroso! Lá da minha casa escutávamos pedidos de socorro lá da casa do seu Daniel, eram duas hora da manhã, eu ouvindo tudo, a Débora aos gritos, escutando tudo lá de baixo. Homem, mulher gritando, eu me lembro a voz, dizia, socorro, pelo amor de Deus ajudem! Assim, um gritava com o outro, era o Juliano... Era o pessoal todo! Não dava pra entender direito, mas dava para entender o pedido de socorro, eu queria correr pra baixo (emocionava-se demais quando falava a respeito desse fato) ia até em baixo, eu corria, queria ajudar, mas não dava pra fazer nada, não dava pra passar por causa do ribeirão. Olhava, rezando a noite inteira, pedindo a Deus que desse uma luz, que olhasse, e que os socorresse! É... Eu vi a casa do seu Daniel cair, lá de casa. Agora, quando eu vejo a Débora, digo pra ela ‘eu queria ajudar, mas não tinha como passar pra lá’. Amanheceu o dia que já estava dia, sei que eu não dormi mais, aí olhei ali pra baixo, vi a casa do Marcílio, tudo... Uma catástrofe, não dava pra passar pra lado nenhum, ficamos ilhados lá em cima. Eu queria ver os vizinhos, só quem estava perto eu via, porque não tinha passagem, não tinha ponte. Para quem estava no outro lado, eles cortaram um pau e passavam se arrastando por cima das árvores, o Jorge e a Sula, pra chegarem junto a nós. A tia Teti já estava na minha casa com a perna machucada,

a Zilda com aquela menina deficiente... Estava também lá em casa a Neli, com o filho Douglas de doze anos, o marido dela, o Sidney Adão, conhecido por Ney, tinha ido com a filha Carolina de sete anos para Blumenau buscar o carro na oficina, e ele não voltou mais, não teve como ele passar, eu corria com ela pra cima e pra baixo, ela queria escutar notícia no rádio, porque nós estávamos sem energia, ela queria passar por toda lei para ir atrás do Ney e da Carolina, queria atravessar o rio, e eu só cuidando pra ela não sair de perto de mim,eu sei que eu queria ajudá-la ela, até arrumei um radinho de fone de ouvido e procurava pilha pra ela botar no rádio, aí ela vivia com aquilo no ouvido para saber notícia do Ney, daí eu queria ajudar, ela estava desesperada. Mandava ela se alimentar, e esperar que o Ney viria, ela queria saber notícia do Ney. Eu dizia ‘calma, Neli, porque é uma coisa que era pra ser, como tu estás aqui preocupada com ele e com a Carolina, ele está preocupado contigo também, com vocês aqui! Tem que se cuidar, tem que botar na mão de Deus, fazer o quê? Eu falava, só que me doía, eu queria confortá-la. Daí começou a chegar mais gente de manhã lá em casa. Havia umas cinquenta pessoas, porque não tinha pra onde eles irem. Nós vamos nos reunir, se é pra morrer, vamos morrer todos juntos. Daqui ninguém sai! Ninguém queria deixar ninguém, sabe! Todos se abraçavam, era um desespero só! Então começamos a fazer comida, era aipim, arroz, carne, galinha, o que tinha no freezer a gente fazia... Ia chegando mais gente, e quando chegou de meio-dia, ninguém mais comia, meu primo Sebastião só botava as mãos pra cima, e andava assim, com os braços levantados, estava muito nervoso. Daí um pedia água, um pedia café, era uma loucura assim. Eu queria ajudar todo mundo e no fim eu me apavorei. Eu só corria na rua ao redor de casa. Daí começou a chegar os helicópteros lá no campo, em frente à casa do Gil, todo mundo pedindo socorro, todos no meio do mato, com colchão, nós todos víamos daqui de casa, estávamos em cinquenta pessoas lá em casa e no campo tinha umas cento e vinte, Eles nos viam no morro e nós, eles lá. A gente se apavorou porque era muita gente, e eles de lá pediam socorro e nós de cá. Eles viram o morro caindo atrás de nós, daí eles mandaram os helicópteros vir nos socorrer, porque achavam que o nosso morro ia cair antes, estava desabando. Aí na hora que estávamos rezando, fazendo corrente de oração, na varanda, a gente estava na metade do Pai Nosso, todos pararam, ficamos todos parados escutando cair lá no morro do meu pai, assim que desviou lá pra igreja protestante,

269


porta!’ Quando disseram isso, eu quase morri, meu Deus! Dali em diante eu não vi mais nada. Meu marido ficou ajudando o pessoal, ele foi o último a sair, a hora que ele entrou, foi naquele helicóptero que cabiam vinte pessoas, no que eu fui só cabiam seis pessoas por vez. Quem estava na minha casa, os helicópteros resgataram ali mesmo... Depois que chegamos no abrigo, meu menino, o Gabriel de cinco anos, pedia todo dia para voltar pra casa eu disse, ‘um dia nós vamos voltar! Cinco dias antes da catástrofe, eu já sentia o cheiro do gás, forte, e falava pro meu marido, ele olhava o botijão pra ver se estava vazando, e não era dali. Eu insistia, e dizia pro Narciso olhar o gás e ele dizia que não estava vazando daquele botijão. Perguntei se gostaria de voltar para o Alto Baú, para sua casa. Eu penso em voltar, eu tenho vontade de voltar só que tenho muito medo, que aconteça isso tudo de novo. Que eu peço a Deus pra nunca mais ver o que eu vi! Eu tenho saudade de lá. Só que eu tenho medo do morro, eu tenho medo, porque eu vi tudo, a noite toda naquele terror... Na hora que chove também... Se eu escutar um barulho, bater uma porta, uma coisa assim... Agora temos que sair daqui porque vai começar as aulas, já é o terceiro abrigo que nós estamos. Agora temos que sair de novo, pro alojamento do Baú Baixo. Só que eu estou tão cansada, estou com meus filhos faz dois meses e pouco... Estou pensando em sair para pagar aluguel, dá vontade de voltar, é o medo e também porque não está nada liberado. Tudo o que eu pude fazer, eu fiz, só que na hora de sair eu fiquei apavorada, tive que deixar tudo, sabe. Eu nem dava mais conta de mim... Eu sei dizer que foi triste pra nós lá.

lá pra trás. Era uma barulheira, estalaceira, aí ninguém mais rezou, porque todo mundo se apavorou, e começamos a gritar ‘Nós vamos morrer, vamos morrer, ninguém vai sair daqui! Aí, esperávamos os helicópteros e não vinham, daí o Marcílio falou assim ‘nós vamos fazer o quê? Vamos botar na mão de Deus, se for pra morrer, vamos morrer todos juntos.’ Eu dizia, ‘vamos nos juntar todos aqui em casa!’ Tinha muitas crianças, mais ou menos umas vinte, e elas queriam que os helicópteros viessem para poderem passear de helicóptero, mas tinha muitas com medo também. Todo mundo chorava, parecia o fim do mundo. Os helicópteros chegavam ao lado da minha casa, tinha um chão de casa que meu sobrinho tinha feito, parece uma coisa por Deus, assim! Aí o helicóptero pousou. Na hora que eles começaram a pousar, eu comecei a ficar nervosa, vou falar a verdade, eu andava engatinhando dentro de casa pra procurar o banheiro, não sabia o que queria, de desespero do helicóptero, medo não sei, eu queria... Porque eu tinha deixado todas as panelas em cima do fogão, as coisas todas, estava preocupada, eu sei que queria ir no banheiro, eu sei que... Quando eu via o helicóptero eu corria pra dentro de casa, me desesperei! Eu não queria sair e queria, não sei, fiquei apavorada! Em estado de choque! Eu urinava de cinco em cinco minutos, quando eu voltava do banheiro não dava tempo, tinha que correr de volta, no fim eu já andava engatinhando dentro de casa procurando o banheiro, de desespero, e até hoje eu sofro com esse problema, não dá quinze minutos, chego no quarto, e já tenho que voltar, acho que é do sistema nervoso. Daí, sei dizer que estavam as galinhas presas, então meu marido abriu o viveiro, pra soltar os bichos todos, tinha também um cachorro e foi solto, soltamos todos, daí eu disse ‘deixa tudo na mão de Deus! E meu pai dizia, ‘vamos, minha filha, pelo amor de Deus!’ E eu dizia, ‘pai, vamos sair porque tem que sair’. A hora que o helicóptero parou, parecia que o chão de casa ia se arrancar todo. Foram tirando aos poucos. Primeiro levaram as mães grávidas e com crianças, aí chegou a minha hora, eu disse ‘eu não saio sem meus filhos, porque é tudo que eu tenho, meus filhos e meu marido.’ Aí meu marido ficou, quando eu entrei, disse, ‘e meu marido?’ O helicóptero já estava levantando, daí eu gritei ‘fecha a porta!’ Daí alguém falou, ‘não tem

Depois de uma semana, Vera, Narciso e os filhos Rafael e Gabriel mudaram do abrigo do colégio Marcos Konder em Ilhota, para uma casa no Arraial Alto. Vera estava feliz por estar mudando e também porque naquele mês ela teria feito uma boa venda nos produtos de beleza que revende. E me convidou para que em breve a visite... Com certeza a visitarei. Vera é uma pessoa encantadora!

270


Dia 14/03/2009 :: Depoimento de

Zeno Espig

Morador do Alto Braço do Baú.

H

á meses já estava chovendo e isso foi se agravando cada vez mais, principalmente nos meses de outubro e novembro. Eu trabalho com horta orgânica e convencional e também com aviário de frangos de corte, e essas chuvas só atrasavam meu trabalho, principalmente nas hortas. Nos dias 22 e 23 foram os dias que mais choveu, estava com minha família em nossa casa. Passou-se uma semana e o pessoal dizia que tínhamos que sair todos dali, que iria ficar cada vez pior. O povo dizia que no morro do Baú surgiu uma rachadura e que iria cair. E eu dizia para esse povo ‘Eu nasci e me criei aqui, isso é uma rocha, e se cair será uma das maiores tragédias.’ Eu não me assustei com isso, a minha preocupação eram as barreiras e a água. Então os helicópteros começaram a pousar no campinho de futebol em frente do meu aviário. Todas as pessoas vinham até ali para serem resgatados. No início ficávamos acenando, depois eles já sabiam o local, e vieram várias vezes. Edwin, meu genro, ajudou muito nas buscas de pessoas que precisavam ser resgatadas, indo junto com as equipes de salvamento de helicóptero. Nós fomos resgatados dia 28, eu, minha esposa Ethla, a filha Mariane e o noivo Vilmar Altenhofen, minha filha Elizabeth e o marido Edwin Schill e os netos Cristian, Jonas, Franklin e Benjamin. Meu filho Hilson, a esposa Roseli com seus filhos Frank Willian e Sara Cristina saíram uma hora antes de carro, mas com muita dificuldade, para Luís Alves, para casa de outra filha, a Cristiane, casada com Sidnei Guesser e tem dois filhos, Élisson e Daniel. Fomos todos levados para Ilhota, descemos no campo de futebol, e de lá nos levaram de ônibus para o abrigo no colégio no bairro de Ilhotinha. Ficamos lá por duas semanas. Minha horta e granja ficaram abandonadas, deixei por conta, não tinha o que fazer, não tinha mais acesso para colher e nem para transportar. O que eu tinha para colher estragou tudo, e o que tinha para limpar também foi se estragando por conta de muita chuva, não tinha mais ninguém para cuidar. E no aviário também tive prejuízo, não tinha como trazer rações, e os 40 mil frangos ficaram dez dias sem ração. Então 50% dos frangos morreram de fome e o restante foi sacrificado e enterrado, porque não tinha mais como sobreviver. Depois de alguns dias no abrigo, voltamos aqui para enterrar os frangos, para eliminar o restante.

Dia do resgate, Zeno descendo no campo em Ilhota.

Zeno Espig e sua esposa Ethla indo para o abrigo em um microônibus da prefeitura. Vim de helicóptero com o pessoal da defesa civil, Cidasc e uma equipe de uma empresa terceirizada. Usamos uma máquina para abrir a cova e enterrar os frangos. Depois de duas semanas então voltamos com condução própria, as estradas já estavam liberadas, com muita dificuldade, porque a estrada estava muito precária. Nessa semana vão alojar novamente, vou ter novamente os 40 mil frangos, o total para abastecer os três aviários. Foi uma aventura, apesar de tudo. A família é o mais importante para mim, se eles estão bem é o que importa!

Zeno Espig em sua horta, depois da tragédia, parte já recuperada, em meados de fevereiro.

Zeno Espig e seus aviários, depois da tragédia, em meados de fevereiro.

271


Homenagem uerido e idolatrado Baú! Salve, salve o seu regresso. Com amor e esperança que a paz seja refeita. Paz neste futuro e apenas lembranças deste passado. Terra adorada, terra querida. Povo! Sejas forte, sejas esperançoso! Virá o dia em que teus risonhos lindos campos terão mais flores. A própria natureza é gigante, o verde virá e resplandecerá. Seus bosques terão mais vida. O sol iluminará essa terra adorada. Os filhos deste solo são gentis, são guerreiros! Nossa vida em nossa terra tem mais calor. Somos filhos dessa Pátria, e nossos filhos vencem essa guerra! Retornamos agora dessa batalha. Terra adorada e desafiamos nosso peito à própria morte.

Bandeira hasteada pelos bombeiros voluntários de Navegantes, comandados por Ricardo Luiz.

272


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.