O galo Bin Laden e outras cronicas bem-humoradas

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Junqueira Ayres

O galo Bin Laden e outras crônicas bem-humoradas

1a Edição

Salvador-BA Edição do autor 2009


© Junqueira Ayres 2009

Ilustração da Capa Valtério

Revisão Junqueira Ayres (autor) (Com base no novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa)

Editoração Eletrônica Empresa Gráfica da Bahia Impressão e Acabamento Empresa Gráfica da Bahia

A98g

Ayres, Junqueira, 1945O galo Bin Laden e outras crônicas bem-humoradas / Junqueira Ayres. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 2009. 110 p. O autor também se assina: Carlos Eugênio Junqueira Ayres. ISBN: 978-85-909233-0-5 1. Crônicas brasileiras. I. Título. CDD - 869.93 CDU - 869.0 (81)-3


Agradecimentos: Aos amigos e a todos os que, de uma maneira ou de outra, colaboraram ao longo desses anos com seus exemplos usados em muitas dessas crônicas.

Agradecimento especial À Empresa Gráfica da Bahia e a todos que tornaram possível esta edição

Homenagem especial A Célia Tourinho Ribeiro (in memoriam), tia que me criou como filho e que foi a mais ardorosa fã de tudo o que eu escrevia. Por ela, eu já teria merecido o Prêmio Nobel de Literatura desde o primeiro livro que publiquei, em vez de esperar o fim da vida para ganhá-lo pelo conjunto da obra. Ela é que merecia o Prêmio Nobel de Otimismo.



Prefácio A crônica: arte engajada com a vida Gênero de fronteira entre a literatura e o jornalismo, a crônica sempre intrigou os estudiosos dos gêneros jornalísticos. Há autores, como José Marques de Melo, que não têm dúvida de que a crônica pertence ao chamado “jornalismo de opinião”. De fato, diferente da reportagem factual e até mesmo da grande reportagem, no Brasil, a crônica sempre vem eivada das impressões de quem a escreve. Com o capixaba Rubem Braga, ela ganhou seu definitivo status literário, seu poético mergulho na subjetividade do mundo e na sensibilidade do cronista. Que outro gênero em jornal ou revista poderia realçar como tema fatos simples e corriqueiros que dificilmente figurariam na pauta dos jornais e revistas, como o prosaico nascimento de um pé de milho, assunto de famosa crônica do Velho Braga? Pois, o que, em geral, não é preocupação do jornalista ou refugo no jornalismo informativo pode servir de matériaprima para a crônica. Em “Um pé de milho”, Rubem Braga despreza o fato mais importante da semana – os americanos, através do radar, terem entrado em contato com a lua, “o que não deixa de ser emocionante” – para despejar lirismo sobre o nascimento de um pé de milho em seu quintal; uma planta trigueira que, numa noite de luar, mais parecia “um cavalo empinado, de crinas ao vento, e em outra madrugada parecia um galo cantando”. Um pé de milho, que no milagre vegetal de seu florescimento o fez sentir-se, não mais “um medíocre homem que vive atrás de uma


chata máquina de escrever, mas um rico lavrador da rua Júlio de Castilhos”, em plena Copacabana. A crônica, portanto, transcende a trivialidade do cotidiano e valoriza o fortuito, o que pouco se faz notar, tudo aquilo que, entre o Céu e a Terra, extrapola a nossa vã filosofia, segundo o outro cronista, William Shakespeare. Essa transcendência do gênero não espaçou à aguda percepção do jornalista e escritor baiano Carlos Eugênio Junqueira Ayres, que depois de um romance (O mistério do engenho) e uma coletânea de contos (A rede do coronel), apresenta, agora, ao leitor, um livro de crônicas (O galo Bin Laden e outras crônicas bem-humoradas). São, ao todo, 42 crônicas, rigorosamente selecionadas de textos publicados, desde o começo dos anos 90, em jornais como A Tarde, Correio da Bahia (suplemento), Tribuna da Bahia (suplemento), Soterópolis e O Candeeiro, este do município de Candeias. Com humor, simplicidade e concisão, virtudes do jornalista-escritor que não se contenta apenas com o texto destinado a perecer no dia seguinte, Junqueira Ayres (sua atual assinatura artística) também sabe que a crônica, como a vida sem mistificação, mas a vida como ela é (um vertiginoso carrossel de surpresas) está em todo lugar: na frustração de morrer sem aprender alemão, na perseguição a um galo que atormenta a vizinhança e tem o temível nome de Bin Laden, na adolescente que não sabe identificar a própria gravidez, na estressante fila do banco, na algazarra do aniversário de crianças, na cafonice das dentaduras postiças, sorrindo toscamente dentro de um copo de água, no velório das pessoas simples, na nefasta prática do empreguismo de parentes e tantos outros ambientes que não escapam do olhar perscrutador e crítico do cronista, esse artista debruçado sobre o cotidiano. E até (que cronista, profissional ou aprendiz, não vivenciou este drama?) na torturante falta de assunto para a crônica, pingada a ferro e fogo, na página que teima em não se completar diante dos olhos atônitos do cronista.


Junqueira Ayres tem a própria receita para o dilema da página em branco: “Diferente do romancista e novelista, que trabalham mais com a ficção, o cronista tem um grande manancial de assuntos à sua disposição, a qualquer hora do dia ou da noite: a própria vida que se desenrola ao redor. Seja nas páginas dos jornais, em frente a um aparelho de TV, no meio da rua ou até dentro do ônibus entupido no horário das seis. As situações se colocam, as idéias aparecem. Naturalmente que há a necessidade de se abordar o interesse público, se não, ninguém lê o raio da crônica.” Não necessariamente o interesse público, porque dificilmente veremos interesse público no nascimento de um pé de milho no quintal da casa de um poeta ou na pujante e quase solitária comemoração do aniversário de uma negrinha pobre, assunto de conhecida crônica de Fernando Sabino. No mesmo texto “Escrever uma crônica”, Junqueira Ayres aponta que “o importante é saber escrever. Fazer com que as ideias saiam fluidas, claras, de fácil percepção e que interessem ao leitor”, prendendo-o até o final, pois, se “o artista plástico se expressa através da pintura e da escultura, o músico toca o seu instrumento, a bailarina dança, o cronista escreve, (...) mesmo naqueles momentos quando nenhuma inspiração pessoal se apresente, quando dá um branco na cabeça e não se sabe sobre o que se vai escrever”. Neste caso, receita o cronista, “o jeito é pegar um assunto qualquer e tentar fazer a crônica da melhor maneira possível, desde que a leitura seja agradável”. Debochar, inclusive, da falta de assunto, porque assuntos vicejam em toda parte. Foi o que fizeram, com maestria, Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Stanislaw Ponte Preta (o saudoso Sérgio Porto) e Nelson Rodrigues. É o que vem fazendo Junqueira Ayres, “com disciplina


bastante para aprender e praticar”, como ele próprio recomenda. E ponto final. Passemos às histórias bem-humoradas de Junqueira Ayres que, juntamente com o romance e o conto, também sabe esgrimir esta difícil arte engajada com a vida, vida que se desenrola ao redor: a crônica. Elieser Cesar Salvador, janeiro de 2009


Sumário 1. Segunda-feira ........................................................................ 2. Minha fila predileta .............................................................. 3. Festa de aniversário ............................................................... 4. Pauta de entrevista ................................................................ 5. Falhas de memória ................................................................ 6. Desligão geral ........................................................................ 7. Remédios na ficção ............................................................... 8. Prisão de mente..................................................................... 9. País verde-amarelo ................................................................. 10. Secretária, momentinho! ....................................................... 11. Mecânico de ouvido .............................................................. 12. Conversas ao lado .................................................................. 13. Ócio de aposentados ............................................................. 14. Falar alemão .......................................................................... 15. Cassação da cozinheira .......................................................... 16. O impíxima........................................................................... 17. Dormir em pé ....................................................................... 18. Política em família................................................................. 19. Vovô é seu avô! ...................................................................... 20. Questão de fase ..................................................................... 21. Viagra e outras mezinhas ...................................................... 22. Sissi, a enjeitada .................................................................... 23. Escrever uma crônica ............................................................ 24. Garotinha inocente ...............................................................

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25. A flauta de Bastião ................................................................ 26. Idade, um caso sério.............................................................. 27. Dentaduras a granel .............................................................. 28. Enfim, férias! ......................................................................... 29. Estranha febre ....................................................................... 30. Foguetório na cidade ............................................................. 31. Esquecendo nomes ................................................................ 32. Feliz Milênio Novo! .............................................................. 33. Pesquisa indiscreta................................................................. 34. Velórios e enterros ................................................................. 35. Gases poluentes..................................................................... 36. Santos anônimos ................................................................... 37. O bar de Nenzinho............................................................... 38. Mudanças em casa ................................................................. 39 Sonhos e pesadelos ................................................................. 40. Carnaval na avenida .............................................................. 41. Tabuleiro de xadrez ............................................................... 42. O galo Bin Laden ..................................................................

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Segunda-feira “Pois é, aqui estou eu de novo”, digo ao abrir os olhos para um novo dia. Como sempre, acordo com disposição para enfrentar a vida. Exceto às segundas-feiras, porque o humor, já no domingo à noite, me dá insônia até altas horas, fazendo-me acordar troncho, o corpo todo quebrado, como se a cama tivesse dormido em cima de mim, sem colchão. E justo nas segundas-feiras, quando tenho compromisso cedo fora de casa. Confesso que até tento me levantar com uma dose de boa vontade, um certo otimismo. “O dia vai ser bom, tudo vai dar certo”, digo eu, com um olho aberto e o outro fechado, desconfiado. Embora às vezes ao ir ao banheiro eu tropece no pé da cama e bata a cabeça na quina do armário, acho isso bobagem em relação ao que acontece depois, que dá vontade de voltar pra cama e rasgar o dia da folhinha. Já começa que na manhã de segunda-feira não tem pão fresco em casa. Só aqueles pedaços dormidos do sábado, duros que nem pau, que só servem para acender churrasqueira. Eu não tenho churrasqueira, então não servem pra nada. Vou ao fogão passar o café, adoro o cafezinho de manhã cedo. Quando aquele cheiro maravilhoso toma conta da cozinha, descubro que o açúcar acabou. E eu só tomo café com açúcar. Desolado, acendo um cigarro com a boca com gosto de pasta de dentes e vou me vestir. Alguém de vocês já passou pela experiência de, em pleno mau humor, casar um par de meias numa gaveta toda desarrumada, entupida de meias, cuecas e lenços, numa segunda-feira de manhã? Acaba tudo

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espalhado em cima da cama, e quando encontro o pé que quero o outro já se perdeu. Ligo a TV para ouvir o noticiário enquanto me visto. Desgraceiras, mortes, rebeliões, assaltos e desastres do fim-de-semana. O Vitória perdeu mais uma... no Barradão! E o Bahia ganhou... na casa dos outros (raios!). O Flamengo entregou o ouro ao Madureira. Troco de canal. A CPMF volta a ser cobrada a 0,38% nos bancos; últimos dias para pagar meu IPVA; lá no Sul um Cavallo passa selado e o argentino monta; a crise portenha deve elevar ainda mais o valor do dólar no Brasil e baixar o do real. E, claro, o do meu salário. E é segunda-feira! Bom, pelo menos o Serviço de Meteorologia diz que vamos ter sol por todo o dia. Taí uma boa notícia. Vou até a janela para comemorar. Me deparo com uma nuvem enorme e cinzenta, pronta para descarregar água, vindo na direção aqui de casa. Mais que depressa, boto debaixo dos braços (que de um só não dá) meus trecos diários – pastas, livro, jornais não lidos que sempre vão e voltam, agenda, caixa de óculos, celular e mais um terno enrolado para levar à lavanderia – e vou chamar o elevador. – Elevadôô! O elevador não responde. Nem sequer acende a luzinha. Ainda deve estar dormindo. Volto pra casa e ligo o interfone. – Tá quebrado. Só tá funcionano as escada – responde o zelador. – Obrigado. Equilibrando aquela zorra toda sob os braços, desço devagar os degraus desde o oitavo andar. Lá pelo quinto, me deparo com o meu vizinho que vem subindo, encostado na parede, o nariz espumando, a boca e as pernas abertas e a língua batendo no umbigo. Chega do seu cooper matinal. Ele sempre se gabou de ir do Farol da Barra ao Rio Vermelho três vezes, em marcha batida. Dou bom dia e passo rapidamente, sem condições nem tempo para prestar os primeiros socorros. 12


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Lá embaixo, ao me aproximar do carro olho para cima, para gozar com a tal nuvem carregada que chega depois de mim. Escorrego o pé em uma coisa mole. Algum cachorro já havia passado por ali. Para não piorar a situação, deixo as coisas dentro do carro e vou mancando lavar o sapato na área de serviço do prédio. Aí, a nuvem chega. Vinte minutos de chuva torrencial depois, consigo entrar no carro. Ligo a ignição com dificuldade. Carro frio e molhado fica mais preguiçoso. O zelador passa, aponta para uma das rodas e faz um sinal negativo. Pneu furado. Levo uns cinco minutos sentado, estático, sem querer acreditar no que está acontecendo. Chamo o zelador. – Dois paus pra trocar o pneu. – Cinco. – Três. – Cinco. – Tá bom. Pago quando voltar, tô sem dinheiro agora. Saio do carro e piso de novo no cocô, ou no que resta dele. Recomeça a chuva. Uma profunda desesperança toma conta de mim. Desisto da segunda-feira e volto para casa. Pego minhas coisas no carro, boto tudo debaixo dos braços e enfrento os oito andares de escada acima. Lá pelo quinto andar, meia hora depois, encosto na parede, o nariz espumando, a boca e as pernas abertas e a língua batendo no umbigo. Meu vizinho já não se encontra, deve ter subido de quatro. Ao entrar em casa, quase não me aguento de pé. Só penso na minha cama, de onde não deveria ter saído. Chego no quarto, a cama junto à janela aberta está encharcada da chuva, assim como os travesseiros, as meias, cuecas e lenços que eu havia deixado por ali. Passo o resto do dia secando roupa no varal e o colchão na frente do ventilador. Grande segunda-feira! 13


Minha fila predileta Dentre as coisas mais desagradáveis que conheço a fila ocupa lugar de destaque. Qualquer uma, principalmente aquelas das quais você não pode fugir, senão perde o prazo para pagar, receber, felicitar, dar pêsames, conseguir autógrafo, se inscrever, comprar acarajé e por aí vai. Mas a pior, sem sombra de dúvida, é a fila de banco, aquela que dá voltas em frente aos caixas. Com pouco tempo, a coluna começa a entortar para um lado, repuxando os músculos dos quadris para o outro. Carregando uma pasta pesada, começo o rodízio nas pernas. Cinco minutos me apoiando em uma, cinco minutos na outra, mais cinco nas duas. Observo o ambiente à procura de lugar pra sentar e não encontro. Os poucos já estão ocupados, inclusive por gente bem mais jovem. “Cambada de mal-educados!” É o primeiro pensamento que me ocorre, olhando com cara enfezada para os que dividem aquele pequeno sofá tão confortável no canto. Então, como num passe de mágica, vaga um daqueles benditos assentos e corro para ocupá-lo, não antes de pedir ao meu vizinho de trás da fila para guardar o meu lugar na dita. Sentado, relaxo o corpo, espicho as pernas, a coluna e os pés agradecem, os músculos das costas entram em orgasmo, e sinto um grande alívio! Vejo na fila, mais à minha frente, uma senhora, quase anciã, a me olhar como se estivesse pensando: “Cambada de mal-educados!”. Disfarço, viro o rosto para o lado, é como se não fosse comigo. Mas, sinto aquele olhar penetrar, queimar, e aí me envergonho. Faço um ligeiro sinal para a tal senhora. Ela entende, abre um sorriso de felicidade, fala alguma coisa com o vizinho de trás, e se encaminha para cá. Levanto14


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me, cedo-lhe o lugar e volto com a pasta para a fila, agradecendo ao vizinho de trás a reserva do meu espaço. Mais cinco minutos, a coluna entorta para o outro lado, as costas começam a doer, recomeço o rodízio das pernas. Vejo a senhora retornar à fila, pois já está na sua vez de ser atendida. Só que ela se esqueceu de mim e deixou o lugar no sofá para um rapaz forte e saudável, aquele desgraçado! Uma eternidade depois, chega a minha hora de ser atendido. Graças a Deus! Mas o caixa diz que o sistema caiu e que pode demorar a voltar. Tiro o revólver da pasta, dou um tiro no sistema, todo mundo se joga no chão, só eu de pé sob a mira das armas dos seguranças. Acordo suado, apavorado com o pesadelo. Olho o relógio, já estou atrasado. Pulo da cama, tomo um banho de gato, visto a roupa, saio correndo de casa, sem tomar café, carregando uma pasta pesada. Preciso ir pagar umas contas que estão vencendo. Então, chego ao banco e entro na fila, que dá voltas em frente aos caixas. No canto, um sofazinho confortável, já ocupado. E começa tudo de novo.

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Festa de aniversário Todo mundo gosta de festa de aniversário... dos outros. Quando se chega ao local, já se encontra tudo arrumado nos seus devidos lugares. Salgadinhos e docinhos na mesa, bebidas na geladeira, os garçons com suas bandejas servindo os convidados, uns sentados, outros de pé, pois chegaram tarde e não encontraram lugar para se abancar. Os grupos se formam, as conversas são as mais variadas. Nas rodas das mulheres, os assuntos mais frequentes são empregadas, crianças e a novela das oito. Já entre os homens, o perfil do papo muda. Fala-se sobre futebol, mulheres e... a novela das oito. Tenho predileção especial por festa de aniversário de crianças. Aquela zoada infernal, os meninos correndo por entre as mesas, tropeçando no pé da gente, derrubando refrigerante no nosso colo, segurando nossa roupa com a mão melada de doce, de preferência brigadeiro. É um evento animado, as pessoas tentando conversar, as bolas espocando, as crianças gritando e, nas caixas de som, músicas de pagode e da Xuxa para a turma dançar. Mas, é isso mesmo, a festa é da criançada. Nós, os adultos, é que somos os penetras. Um casal amigo meu leva isso tão a sério que nos aniversários de seus filhos não serve nem uma cervejinha aos adultos. Eles que entrem no espírito da festa e se contentem com refrigerantes. As mães se acomodam, mas os pais vez por outra dão uma escapadinha até o bar da esquina. Soube que na festa deste ano tinha até vendedor de cerveja em lata estacionado na porta de casa. Esse pessoal não perde oportunidade para faturar em cima do mercado carente. 16


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Agora, vamos ver a coisa pelo outro lado. Organizar uma festa de aniversário de criança é muito complicado. E às vezes faz mal à saúde. Quando minhas filhas eram pequenas, era eu quem soprava as bolas, e depois tinha que entrar num balão de oxigênio para me recuperar. E a animação da festa? Certa feita, a filha de um primo meu fez questão de Branca de Neve e os Sete Anões. Ele telefonou para contratar os figurantes. – A Branca de Neve é cem reais e os anões, trinta cada. Meu primo fez as contas, coçou a cabeça e propôs: – Dá pra mandar só dois anõezinhos? – Pode ser, mas sua filha não vai gostar. – Não tem problema, eu digo pra ela que os outros cinco ficaram doentes. No ano seguinte, a família melhorou de vida, meu primo subiu de posto, casa nova, carro novo na porta, a filha se entusiasmou: – Pai, este ano eu quero Ali Babá e os Quarenta Ladrões... pai... pai! Mãe, corre aqui que o papai teve um treco!

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Pauta de entrevista Os preparativos

para minha entrevista com Tereza Collor começa-

ram no dia anterior. O editor do jornal me chamou no aquário. – Amanhã você terá uma missão espinhosa. Todo mundo aqui na Redação vai estar ocupado. Me lembrei de você. Fez uma pausa, puxou a fumaça do cigarro e espalhou-a pelo ambiente fechado. Eu pensei: “Xi, sobrou pra mim!” Ele continuou: – Você sabe que admiro muito seu trabalho... E eu pensando: “Lá vem vaselina!” – Bom, mas vamos ao que importa. Amanhã você vai fazer uma reportagem difícil, com entrevista, que pode ser a mais importante de sua carreira. Peguei a caneta e rabisquei no papel, desalentado: “Pauta: lixão de Canabrava – entrevistar garis...” O resto, eu deixei em branco, esperando os complementos. O chefe continuou, ignorando meus rabiscos: – Você vai entrevistar... Nessa hora, entrou o boy com vários faxes. O chefe leu todos, anotou alguma coisa em alguns, riscou partes, amassou outros, jogando no lixo. Acendeu outro cigarro e me olhou com um ar de carrasco. – Como estava lhe dizendo, você vai entrevistar... Tereza Collor. Escorreguei na cadeira até quase o chão. Ele deve ter reparado, porque continuou: – Sei que preferia fazer a matéria de Canabrava, mas você é um profissional. 18


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Puxou do bolso da calça um lenço e me entregou. – Só porque lhe peço uma coisa difícil você fica babando... então, vou passar a tarefa para outro, mais interessado! – Não, não! – consegui reagir. – ‘xá comigo que eu mesmo faço. Não rejeito trabalho. Saí do aquário e atravessei a Redação, pisando forte, cabeça erguida, sentindo os olhares que pareciam invejosos de meus companheiros que, coitados, se ocupavam de suas matérias rotineiras, jogando para as telas dos computadores o que batucavam com raiva nos teclados. Ao chegar em casa, fui pesquisar o tema de minha pauta. Desencavei alguns números de “Caras”, “Veja”, “Isto É”, “Playboy”... não, “Playboy” não. Aí não iria encontrar nada. Me instalei na mesa da sala e levei horas recortando fotos da Musa das Alagoas, vestida, de maiô, de biquíni, em close e em plano geral, colando-as em folhas de cartolina, com as respectivas legendas, citações, depoimentos etc. Afinal, sou um profissional. Precisava saber tudo sobre a minha entrevistada. Lá pelas tantas, minha mulher saiu do quarto. – Benhê! Você não vem dormir? – perguntou, com a voz lânguida. – Há horas que você está aí na sala. – Estou organizando uns dados sobre uma pessoa que vou entrevistar amanhã – respondi, compenetrado. Ela se achegou, vestindo o beibidol rosa transparente, e encostou-se em mim. – Quem será? – Bateu os olhos no mosaico de fotos. Nem se dignou a ler as anotações. – Você vai entrevistar QUEM?!!! Eu devia estar com o ar abestalhado daquele paciente de hospital do anúncio de um banco, porque o cacete comeu solto. Naturalmente que a aquela minha pauta do dia seguinte furou, porque eu não ia entrevistar Tereza Collor com a cara toda inchada como estava. Fui para o lixão de Canabrava. 19


Falhas de memória Irado, olhei bem na cara dele e lancei: – Você é um calhorda, idiota, imbecil! Ele ficou me olhando com cara de babaca. – Irresponsável, incompetente, inepto, esclerótico! – continuei, vociferando, esperando que ele reagisse. Se ele o fizesse, eu lhe metia a mão na cara. Continuou me fitando apalermado, como se aquilo não fosse com ele. – E além de tudo é um cara-de-pau, que fica aí parado como se não fosse com você. Nada de resposta, nenhuma reação. – Seu banana! Como é que você senta no vaso sanitário com a pulseira do relógio frouxa? Imperdoável! Imagina quem é que vai ter que meter a mão ali para pegar, no meio dessa imundície toda? – Você – respondeu ele, curta e diretamente. Resignado, saí da frente do espelho do banheiro e fui resgatar meu Seiko importado, que jazia nas profundezas malcheirosas do vaso, em companhias nada agradáveis. Pelo menos, tive mais coragem que os russos com o submarino Kursk, que levou um bocado de tempo para ser resgatado. Com a idade, a gente vai tendo certos lapsos de memória, esquecendo-se de tomar providências preventivas para que não aconteçam coisas desagradáveis. Um bom exemplo disso é não cuidar de se olhar no espelho antes de sair de casa. Outro dia fui ao shopping aqui perto. Deixei o carro no 20


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estacionamento superior e entrei no elevador. Desde aí percebi as pessoas me olhando de maneira curiosa. Achei que talvez estivesse nos meus melhores dias, quando pareço estar irradiando simpatia, charme, essas coisas. Depois, pelos corredores, a coisa continuou. O mulherio todo me olhando. Ao passar por uma vitrine espelhada, descobri o motivo de tanta atração: eu tinha esquecido de me pentear, e o cabelo, todo desalinhado, formava um topete bem mais avantajado que o de Itamar. Parecia a Torre Eiffel. Quanta gente que encontro por aí que sei que conheço mas esqueço os detalhes. – Como vai, fulano? Há quanto tempo! – Meu nome é sicrano, e nos encontramos anteontem. – Desculpe. Mas, você ainda está escrevendo para aquele jornal? – Eu não sou jornalista, sou o gerente do seu banco. Por sinal, tem um buraco lá em sua conta que você precisa resolver. Tem sempre alguém lembrando o que a gente não quer lembrar! Um amigo meu está num processo terrível de esquecimento. Outro dia, ele chegou em casa e encontrou a mulher no quarto com outro cara. Ficou uma fera, quis bater em todo mundo, quebrar tudo. Mas acabou saindo com o rabo entre as pernas. Eles haviam se separado há dez anos e ambos já tinham constituído outras famílias. De outra feita, ele foi pegado numa blitz da polícia dirigindo um carro que havia vendido há tempos e que encontrara num estacionamento no centro da cidade, no mesmo local onde deixara o seu atual. Deu trabalho para desatar o nó, pois o carro já tinha mudado de dono algumas vezes. Apavorado com o processo de arteriosclerose, resolveu procurar um geriatra.

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– Doutor, eu quero voltar a ter a memória que tinha antigamente. – Meu caro, a medicina ainda não descobriu uma maneira de fazer plástica no cérebro – respondeu o médico, apresentando-lhe, pelo sim pelo não, o recibo antes de continuar a consulta. Pior do que isso só minha sogra, que é quem cozinha lá em casa. Perdeu a memória gustativa e agora deu pra botar açúcar no lugar do sal e vice-versa, além de pingar pimenta no meu cafezinho. Desconfio que faz de propósito, pois ela me “adooora!”. Quando chego em casa, ela entreabre a porta e pergunta: – Deseja alguma coisa? Um dia ainda vou preparar para ela um caruru de jiló! No condomínio onde moro tem a maior concentração de aposentados idosos por metro quadrado que conheço. É um tal de entrar no edifício do outro e meter a chave na fechadura errada que o síndico até instituiu para eles o uso de crachá com o nome do prédio e do apartamento. O problema é que eles esquecem o crachá em casa. Eu mesmo tenho umas vizinhas, três irmãs solteiras, na casa dos sessenta, que moram juntas. Outro dia, estavam sentadas na sala, conversando amenidades. Uma delas, a mais velha, pegou um pano no colo. – Engraçado, estou com essa toalhinha aqui mas não me lembro o que quero fazer com ela. A do meio se manifestou: – E eu peguei a chave do armário, mas esqueci do que queria procurar lá. A mais moça se indignou: – Mas vocês também estão demais! Eu jamais vou chegar a esse ponto – e bateu três vezes os dedos na madeira da mesa. Parou um instante, levantou a cabeça e disse: – Acho que estão batendo na porta.

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Desligão geral Desliguei

a geladeira, desliguei o chuveiro, desliguei o fogão, desatarraxei as lâmpadas – que já eram de 15 velas –, só dou descarga no banheiro de dois em dois dias. O telefone, arranquei da tomada e escondi na despensa. Botei o aspirador de pó na garagem e estou jogando a poeira para debaixo do tapete. A roupa eu passo espichando-a sob o colchão e deitando em cima. Televisão, nem pensar! Para que notícias? Meu contato com o mundo se resume hoje à janela aberta na sala. Pelo menos, alguma fofoca ou boato pode entrar por ali, trazido pelos ventos. Para que novelas? Já bastam as brigas dos vizinhos e o namoro tórrido de minha empregada com o guarda-noturno, ao pé do muro da frente. Está emocionante! Na verdade, tenho um radinho de pilha “made in China”, mas que só fala chinês e eu não entendo nada mesmo... E-mail eu já não recebo há muito tempo. O computador está em cima do armário e a memória dele já deve sofrer do “mal de Alzheimer”, por falta de uso. Quem quiser falar comigo tem que ser pelo correio, que eu respondo através da carta social, que custa 1 centavo. Meu carro já não sente o cheiro de gasolina há um tempão. Está lá parado, com o pneu baixo e a bateria descarregada. Minha casa parece um santuário, cheia de velas por cima dos móveis. À medida que acendo uma na frente, apago a de trás. Minha mulher fez as malas e se mandou de casa. Reclamava que eu estava desligado na grana e na cama. 23


Junqueira Ayres

Minha empregada, o guarda-noturno levou embora. Perdi minha novela das oito. Tenho comido sanduíche de pão com banana, que não precisa esquentar. Banana-dog. Avisei lá no trabalho que estava tirando um mês de licença, para não ter que sair de casa e gastar a sola do sapato. Responderam que não precisava mais voltar, que já tinha outro cara na minha mesa. Enfim, tô desligadão! Eles não querem que a gente economize energia? E então? A gente tem que fazer esses sacrifícios para ajudar o país, ajudar o governo e as classes menos favorecidas lá em Brasília a cuidar dos destinos da nação. Por mim, eles podiam até desligar aquelas duas bacias, que uma fica de boca para cima e a outra de boca para baixo, que não faziam falta e a economia ia ser bem maior. Ou será que estou errado? Cartas para... para onde mesmo? Tá tudo escuro, daqui não dá para ver o nome da rua.

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Remédios na ficção Enquanto o governo briga com os grandes laboratórios sobre a obrigatoriedade dos remédios serem designados por nomes genéricos, em vez de fantasia, os consumidores vão engolindo suas pílulas sem saber muito o que estão tomando. Confiam nos seus médicos, que estudam para receitar, ou nos balconistas de farmácia, que ganham para empurrar. Não se quer aqui entrar no mérito da questão que, como se diz por aí, é briga de branco, e não se deve meter a colher em briga de marido e mulher. Mas que nomes de fantasia de remédios são interessantes, lá isso são. E, se acabarem, vai se perder uma importante fonte para o imaginário popular. Querem exemplos? Vamos imaginar o encontro de dois grupos pertencentes a civilizações primitivas milenares. O chefe de um deles, Pankreon, se adianta e, com o braço levantado, saúda os visitantes: – Salonpas! Os visitantes podem ser de um país do sudeste asiático, a Colchicina, ou habitantes da cidade chinesa de Xantinon, pouco importa. A associação de ideias é fonte de inspiração para os artistas e principalmente escritores, como a falecida poetisa goiana Cora Coramina. Os loucos também estão utilizando a imaginação na arte como meio de cura em vários Nasalcônios do país.

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Os nomes de fantasia dos remédios estão em todo lugar, inclusive na literatura brasileira. Como é o caso do mais famoso livro de Machado de Assis, Dom Casmurro, que trata de problemas de ciúme entre Bentyl e Capitosse. Mas fantasia mesmo a gente encontra é no Carnabol, aquela confusão, uma Butazona! Por sinal, ano passado, de tanto ver bundas em cima dos trios nos circuitos da cidade, um conhecido meu teve um Espasmoplus e ficou Ciclopégico. A gente não deve ser Dogmatil, como dizia o filósofo grego Hipoglós. Em todo o caso, um bom exercício de imaginação é ficar olhando o céu à noite e tentando identificar uma estrela-anã, ou Rubranova, na constelação de Omcilon. De astros entendiam muito bem os egípcios, que há milhares de anos já desenhavam mapas do céu, como o que foi encontrado na tumba do faraó Krinohepat. Por sinal, essa tumba só foi descoberta recentemente pelos arqueólogos, após anos de escavação. É que a área onde se encontra, no Alto Egito, havia sido soterrada por uma devastadora Terramicina. Depois de muita discussão sobre o local das escavações, Furacim, fura não, os egiptólogos chegaram ao ponto certo. Coincidentemente, um mapa parecido foi encontrado na pirâmide de Trimexazol, no sul do México, junto a um antigo instrumento musical de cordas maia, a Xylocaína. No mais, quem está certa é minha mulher, a Ismelina, que prefere se recolher ao jardim lá de casa e observar a revoada de Passiflorines, em vez de ficar indo para fila de bancos, como fazem os Estafilóides. Os outros que se Foldan!

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Prisão de mente Hoje eu estou “naqueles dias”, período mensal em que você tem que escrever alguma coisa para publicar e não sai nada. Constipação mental, a popular “prisão de mente”. O cronista senta no computador, se esforça, fica vermelho, faz careta... e não sai nada. Ainda bem que escrevo em casa, sozinho. Imagine se é na Redação do jornal, o pessoal batendo na porta, querendo o computador, e você tendo que responder: “Tem gente!” A falta de assunto é um dos temas mais explorados pelos cronistas. Já li várias crônicas sobre isso e até, confesso, já o cometi uma duas ou três vezes. Companheiros, é uma tristeza! Você ali sentado em frente a uma tela vazia, por horas a fio, um cigarro atrás do outro, a cabeça se recusando a ligar a ignição. Você a imaginar que o jornal já está todo fechado, diagramado, restando somente um buraco em branco onde justamente deverá entrar o seu texto. E o editor pacientemente esperando que você lhe mande por e-mail “o maldito texto para que possa enviar o material para rodar na gráfica, porra!” Em épocas de inspiração, o espaço lhe parece pequeno, você merecia até uma página inteira. Mas na “prisão de mente” aquele espaço é um despropósito, um imenso sertão que precisa ser conquistado à custa de muito sangue, suor e lágrimas. Pois é, já li e reli os jornais de hoje, já folheei umas tantas revistas velhas, visitei até a janela para ver se o mundo me mandava alguma luz. Telefonei para amigos que ocasionalmente me servem de fonte, passei o 27


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rabo de olho na área de serviço da vizinhança, onde às vezes pode acontecer algo interessante, abri gavetas, olhei debaixo da cama e de outros móveis aqui de casa, contemplei tristemente a desarrumação de papéis, livros e outros objetos sobre a minha mesa de trabalho. Cheguei até ao ponto de ligar a televisão para ver se algum prato de comida que estivessem ensinando a fazer pudesse dar o ar da graça para uma crônica. Nada, absolutamente nada que possa servir de inspiração. Peguei meu equipamento fotográfico, revi algumas fotos. Nas horas vagas, gosto de sair por aí fotografando paisagens, prédios antigos, igrejas e ruínas. E me lembrei que é um esporte solitário, que não tem charme, e que quem vê as minhas fotos sou eu mesmo. Charme têm os fotógrafos que frequentam a alta sociedade, clicando as dondocas e dondocos para as colunas sociais dos jornais. Mas, voltando ao tema desta crônica... aliás, qual seria o tema mesmo? Ah! Carnaval! Mas que Carnaval? Estou escrevendo antes do Carnaval e esta crônica vai sair depois do Carnaval. Então tenho que escrever sobre este Carnaval no número seguinte, que aliás deve sair perto da Micareta. E sobre a Micareta eu escrevo no São João. Que loucura! É melhor parar por aqui. Vou tomar um laxante, ou melhor, um porre para ver se as ideias fluem e acaba esta prisão de mente antipática.

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País verde-amarelo A comissão de notáveis estava reunida há horas quando Sua Excelência entrou na sala. – Então, já resolveram o problema? – Já, Excelência. Não é muito fácil vestir todo um país de verdeamarelo no próximo domingo, como o senhor quer. O tempo é muito curto. Mas, parece que chegamos à única fórmula possível. Nós vamos fazer o sol nascer com as cores da bandeira brasileira. O plano é o seguinte: uma enorme bandeira, com faixas amarelas e verdes, será erguida por vários helicópteros na direção do nascente. Quando o sol aparecer, todo o país será inundado com as gloriosas cores do nosso amado pavilhão. Não vai adiantar ninguém usar preto ou outra cor na roupa. Será inútil. – Excelente ideia! Mas, como vocês pensam em conseguir tanto pano para a tal bandeira? Vocês sabem que o caixa do Tesouro, além de raspado, já está comprometido... – Simplesmente vamos convocar as empreiteiras. Aquele nosso amigo careca, o senhor sabe, vai nos dar uma mãozinha. Deixe com a gente. A comissão continuou com os planos, solicitando a ajuda de técnicos competentes de vários setores. Um dos membros da equipe, que fora indicado por um senador do partido do governo, de vez em quando colocava um senão nas decisões. Um dia, ele não se conteve: – Tenho uma proposta. Sugiro se confeccionar duas bandeiras, uma para o leste, outra para o oeste. Vá que as oposições consigam fazer alguma sacanagem e o sol resolva nascer no poente... a gente já estaria prevenido. 29


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Em vista de tanta sabedoria, o notável foi dispensado no ato pelo presidente da comissão. Os contatos começaram a ser feitos. Especialistas em diversas áreas foram convocados, inclusive um expert em orientação geográfica. O plano exigia se saber o local exato onde a bandeira deveria ser erguida pelos helicópteros para cobrir o sol nascente. Ao se apresentar, e sendo questionado sobre seu método de definir o ponto exato, o tal técnico explicou a infalibilidade do seu processo: – Desde pequeno que aprendi: dando a direita para o nascente e a esquerda para o poente, o norte fica na frente e o sul, atrás. Como ninguém na sala entendia mais do que isso sobre os pontos cardeais, o especialista foi aceito. Na madrugada do tão esperado domingo, ainda escuro, é claro, a Praça dos Três Poderes regurgitava de gente. Todas as cadeiras das repartições e escolas públicas do Distrito Federal foram requisitadas e dispostas na área, viradas para o lado onde o sol nasceria, de acordo com a orientação do tal especialista. Lá estavam autoridades dos diversos escalões, parlamentares, governadores, ministros, diplomatas, prefeitos, turistas estrangeiros e nacionais, além de cientistas, jornalistas, equipes de TV e o povo em geral. Um assessor se achegou às cadeiras da frente. – Excelência, acaba de chegar uma comitiva de cientistas da Inglaterra. São sócios da Associação Científica de Londres, sob a liderança de um tal Mr. Pickwick. – Mande os secretários nacionais darem seus lugares a tão importantes personalidades – ordenou Sua Excelência. No meio da multidão, um senhor barrigudo, careca, bigode preto, óculos fundo-de-garrafa e olhos apertados, se movimentava com desenvoltura, vendendo bandeirinhas e óculos de papelão com lentes de celofane verde-amarelas. 30


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Os helicópteros alçaram vôo, erguendo a grande bandeira. O dia clareou, mas o sol não nascia. Todo mundo em silêncio, com os olhos no horizonte. De repente, um grito: – O sol tá nascendo do outro lado! Foi um rebuliço, uma zorra total. Sua Excelência, roxo de raiva, punhos cerrados, gritava: – Isso é coisa da oposição. Cambada de miseráveis, querem me derrubar! Descobriu-se então que todo o mundo estivera virado para o poente, em vez do nascente, e que a culpa seria do tal especialista em orientação contratado pela comissão de notáveis. Sua Excelência, irritado, reuniu seus assessores e exigiu: – Quero saber de quem é a responsabilidade da indicação de um orientador canhoto. – Bem, pelas iniciais de quem assina o telex que recebemos, parece ter sido da... Associação Cristã de Moços, Excelência!

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Secretária, momentinho! Todo mundo tem, já teve, pretende ter ou, pelo menos, já se bateu com uma secretária. Aquela que atende telefone e pergunta “Quem deseja? Momentinho”, toma recados, redige correspondências, senta no colo do patrão para fazer anotações. Na maioria das vezes, são pessoas fidelíssimas aos seus chefes, e os defendem com unhas e dentes contra os que querem incomodá-los, inclusive as respectivas esposas. – Doutor Fulano foi almoçar com uma cliente e só volta no fim da tarde – diz expeditamente, como se essa fosse a desculpa mais certa para se apresentar à mulher do chefe. Tem aquelas que passam horas ao telefone, falando com as amigas ou namorados, ocupando a única linha do escritório, sem saber que o chefe está com o carro quebrado no meio da rua, tentando ligar desesperadamente do orelhão para saber o telefone do mecânico, já que esqueceu o celular no escritório. Outras exultam com a mudança daquelas horríveis máquinas de escrever, que estragavam as unhas pintadas e faziam um barulho ensurdecedor, pelos silenciosos e elegantes computadores. E passam a maior parte do tempo jogando paciência no vídeo. Existe aquele tipo de secretária que se julga mais inteligente do que seu chefe e troca os termos da correspondência por ele ditada, resultando a empresa receber, dias depois, uma encomenda com padrões completamente diferentes dos que as suas atividades exigem. Na outra ponta, estão as mais humildes, não pensam muito, não trocam uma vírgula nas orientações do chefe e anotam, letra por letra, sem filtrar, os recados para o patrão. 32


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Um dia, um amigo muito brincalhão do chefe o procurou. – O doutor Eustráquio não está. Quem deseja? – Aqui é o Quebra-Esquina, o pai-de-santo dele. Para o “trabalho” que ele me encomendou vou precisar de material. Quer anotar, por favor? – Momentinho! Deixe eu pegar a caneta... pode dizer. – Um galo preto velho, meio quilo de farofa de azeite de dendê, três charutos... – Devagar, por favor... três cha-ru-tos... pois não! – Dois metros de fita de cetim azul... – Que largura, senhor? – De dois dedos basta. Três acarajés, três abarás, um prato grande de barro e duas velas. – O senhor prefere da branca ou colorida? – Daquelas de sete dias, vermelhas. A senhora poderia mandar comprar logo esse material, colocar tudo dentro do prato e botar na mesa dele para não esquecer de me trazer? E pode acender logo as velas para irem fazendo efeito. Quando o chefe voltou ao escritório e viu aquilo tudo armado sobre a sua mesa, despachou no ato a secretária e a macumba. E, pelo sim, pelo não, tratou de tomar um banho de água benta na igreja mais próxima. Depois, ligou para uma empresa de mão-de-obra para conseguir outra secretária. De lá, atenderam: – Quem deseja? Momentinho.

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Mecânico de ouvido A tecnologia automobilística a cada ano fica mais desenvolvida, com novidades que facilitam a vida dos proprietários de carros. Entretanto, por um desses mistérios inexplicáveis, as pessoas continuam dirigindo e tratando seus automóveis de maneira bem peculiar, incapazes de entender o funcionamento das máquinas ou identificar os defeitos. Muita gente se orienta pelos ruídos diferentes que ouvem. Aubérico (sic), o mecânico lá da rua, já está acostumado com este tipo de coisa. Toda hora chega alguém na oficina com uma queixa diferente: – Meu carro tá fazendo tréc-tréc-tréc! – Vem do lado esquerdo ou do direito? – pergunta Aubérico. – Acho que vem aí de baixo. – Deve ser o diferencial – diagnostica o experiente mecânico. Mais tarde, aparece uma motorista, desolada: – Quando paro na sinaleira ele faz giiiiiiiiiigue. – Há quanto tempo a senhora não troca as pastilhas de freio? Um outro disse que a roda deu para fazer chlép-chlép-chlép. – O senhor não deve usar pneu recauchutado. Depois de certo tempo, ele começa a soltar a borracha – orientou Aubérico. Já uma madame, gordinha, bem vestida, a bordo de um carro importado modelo antigo, chegou toda coquete: – Meu automóvel está fazendo pum-pum. Aubérico coçou a cabeça. Essa era nova, mas não improvável. – Quando a senhora desliga e sai do carro, o pum-pum continua? 34


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– Claro que não! Só faz quando eu passo a marcha, que tenho que fazer força. – Talvez o problema não seja no carro, minha senhora – respondeu educadamente o mecânico, sabendo que iria perder a cliente. Ela deu um muxoxo indignado, entrou no carro e foi embora. A experiência do mecânico com esse tipo de atendimento é tão grande que ele resolveu escrever um livro: “Guia de Conserto de Carro pelo Ouvido”. – Vai vender adoidado! – disse-me ele, com os olhos brilhando. – Mas, em compensação, você vai perder a clientela. Até frentista de posto de gasolina vai virar consultor de motorista. – É, mas só quem sabe consertar é o mecânico. Quando o cliente chegar aqui na oficina, ele já vem sabendo qual o problema com o seu carro. Vai economizar meu tempo. E ainda vou ganhar muito dinheiro com o livro – respondeu Aubérico com o argumento final irrefutável. E se apressou a atender um cliente que chegava dizendo que o carro estava fazendo cróque-cróque-fiiiiiiiiu-cróque-cróque-fiiiiiiiu. Infelizmente, não pude ficar para saber que raio de defeito era aquele.

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Conversas ao lado Tem gente que gosta de escutar os papos que rolam nas mesas vizinhas nas praças de alimentação de shopping. O cara chega, pede um chope ao garçom, abre o jornal e finge que está lendo. Mas, as antenas estão ligadas no que se fala e se passa ao redor. Um amigo meu adora esse esporte, quando não tem ninguém para conversar. Quando não lê, fica com o olhar distante, como se estivesse pensando profundamente, mas com os ouvidos abertos. Anota tudo no guardanapo de papel para se lembrar depois. – Garçom, esta conta está errada – dizia um freguês, já com a voz meio embolada e a vista embaralhada. – Errada por quê? Tudo o que o senhor consumiu está aí – responde o garçom, ressabiado, apontando os itens da nota. – Isso aqui mesmo eu não comi! – Não comeu, nem vai comer! Isso aí é o meu nome – responde o garçom, dando uma rabeada para atender outra mesa. Amigos reunidos numa mesa. Bebem, conversam, olham as mulheres bonitas que passam. De repente, na mesa ao lado senta-se uma morenaça, com os seios enormes querendo escapulir do decote pra lá de generoso. A visão é deslumbrante. Um dos rapazes faz uma aposta com os companheiros. Ele se levanta, e com elegância chega à mesa do “avião”. Curva-se à sua frente, segurando uma cadeira vazia. – Posso pegar? – Claro, está à sua disposição – sorri a morena. 36


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O rapaz então estica o braço e pega no peito da moça, que fica estatelada, sem reação. – Ganhei! – diz ele de volta à sua mesa, recolhendo o dinheiro dos amigos e botando no bolso. Em outra ocasião, um casal de certa idade está sentado com amigos do marido. Pelo lado passa uma babá daquelas, mulata bem fornida, de minissaia apertada, levando um bonito garotinho pela mão. Perto da mesa ela para e se debruça sobre o menino para limpar seu nariz, propiciando ao pessoal um panorama traseiro espetacular. Depois, segue caminho. A mulher vira-se para o marido: – Interessante aquele garoto, não? – Que garoto? – responde alheio o marido, e toma um beliscão por baixo da mesa. Para disfarçar, ele pergunta aos companheiros. – Vocês viram aquele garotinho? – Que garotinho? – respondem os outros, em uníssono. E o marido toma um segundo beliscão. Em um restaurante, o garçom serve o cliente com o dedão dentro do prato da sopa. – Isso é um absurdo! Como é que você faz um negócio desses?! – Desculpe, senhor. É que estou com unheiro, e o médico mandou eu deixar o dedo num lugar quente – responde, humildemente, o garçom. – Por que você não mete ele no rabo? – retruca violentamente o freguês. – E onde o senhor acha que ele estava? Em outra ocasião, um amigo encontra o outro no restaurante. – Ué, você não estava internado no hospital?

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– Fugi. Já não agüentava mais a comida de lá. Sem graça, sem graça! Todos os dias, ensopado de galinha com chuchu. Eu quero carne! – Sua mulher vai virar na zorra quando souber dessa escapada! – Que nada! Ela só me visita de dois em dois dias. Amanhã de manhã é que ela vai lá. O amigo chama o garçom e pede um filé ao molho de madeira, com batatas sauté. – E você, o que vai pedir? – Ensopado de carne com chuchu. No bar, duas mulheres conversam: – Eu agora só saio sem o Arlindo. Perdeu o romantismo, não quer mais sair de casa. Ainda mais depois que inventaram essa tal de TV a cabo. – Coitado, ele é que era farrista e você sempre o acompanhava... – Pois é, pra você ver. No dia do nosso aniversário de casamento ele me convidou pra jantar fora de casa. Levei uma hora me produzindo no banheiro. Quando cheguei na sala, ele tinha puxado a mesa de jantar para o quintal. – Nossa! E aí, vocês brigaram? – Que nada! Ele havia contratado um garçom muito simpático, que trouxe a comida do restaurante e decorou a mesa com velas, champanhe e tudo. Ganhei até um anel de diamante. – Ah! Então foi tudo romântico. Jantar a luz de velas, pedra faiscando sob as estrelas... – ... e Arlindo de bermuda e chinelos. – Mas só pelo anel deve ter valido a pena. – Pois eu o levei pra avaliar depois. Era imitação. A partir desse dia, passei a me vingar. – Não diga que arranjou um amante!

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– Claro que não! Mas, quando a gente vai fazer amor, ele pensa que sou eu quem está ali, mas não sou. Fecho os olhos e penso que não é ele quem está ali. – E em quem você pensa? – No tal garçom simpático.

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Ócio de aposentados Cidadão aposentado, que não tem o que fazer, pela manhã fica em casa de pixoxorte, sem cueca, os quimbas balançando, enchendo o saco de todo mundo. Acorda cedinho, acende a luz na cara da mulher e vai ao banheiro, que é único. Leva mais de meia hora para escovar os dentes, tomar banho, fazer a barba e outras coisas mais. Senta para o café e reclama que o leite está frio, a manteiga, rançosa, e o pão, dormido. Depois, dá uma geral na casa. Passa o dedo na poeira da mobília, com um ar de reprovação. Conserta a posição de um quadro na parede, com ar de marchand. Espalha folhas do jornal e cinzas do cigarro pela sala, com um ar de intelectual. Mexe nas panelas e dá palpites sobre o tempero, com um ar de gran chèf. Belisca a bunda da cozinheira, com um ar de sedutor, com um olho na porta da cozinha para não ser surpreendido pela mulher. Ao meio-dia em ponto, o aposentado almoça. A manhã é comprida e ele não tem mais nada o que fazer. Depois do arroto costumeiro, recolhe-se ao quarto para uma soneca, desarrumando a cama que a mulher já tinha feito. Liga a televisão para se embalar com a voz do apresentador do telejornal insosso do horário. No meio da tarde, acorda, veste uma bermuda larga, camiseta regata, chinelos e sai para uma bordejada nas redondezas. Na pracinha da esquina sempre tem uma roda de dominó, todo mundo aposentado. Se ele chega atrasado, fica em pé peruando e dando palpites até que alguém se levanta irritado ou a dupla perdedora seja substituída. Ao anoitecer,

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volta pra casa, para tristeza da mulher, que quer assistir às novelas e não pode porque ele reclama do princípio ao fim, quer ver os telejornais. Porém, há aposentados que de vez em quando fazem coisas diferentes, mais interessantes. Como os dois amigos que uma vez se encontraram no bar do Dique do Tororó no início da noite para tomar umas cervejas. Olhavam o movimento e inventavam apostas para passar o tempo. – Aposto cinco garrafas que a circunferência da lagoa, se medida a partir do lado direito, não é a mesma que se medida pelo outro lado. Discussão, bate-boca; puxaram a física, a geofísica, a astrofísica e até astronomia. Nenhum dos dois entendia nada daquilo, mas uma das capacidades da bebida é fazer as pessoas ficarem entendendo de tudo. Um deles elegeu até uma estrela que brilhava mais que as outras pra servir como ponto de referência em uma triangulação. O seu reflexo na água do Dique seria o segundo ponto. – E o terceiro ponto é a casa de sua mãe! – irritou-se o outro. – Não meta mãe no meio, seu ignorante. A minha já é morta, foi cremada e suas cinzas espalhadas ao vento – respondeu o outro, cruzando os dedos atrás das costas. O primeiro se desculpou, visivelmente arrependido. Afinal, chegaram a um acordo. Chamaram dois moleques que perambulavam por ali atrás de uns trocados dos turistas. Mandaram eles circularem a lagoa, cada um por um lado, contando os passos. Quando voltassem, receberiam uma grana. No fim, feitas as contas, multiplicados os passos por metro, divididos por centímetro, noves fora os desvios com o pessoal do cooper, deu uma diferença de dois metros e meio na circunferência do Dique a favor do lado direito. – Eu não disse? Você perdeu. – Perdi nada! Você é sacana, vivo pra cacete! Chamou de propósito um garoto com uma perna mais curta que a outra, aqui tá baixo, aqui tá alto. Daí a diferença. 41


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– Então vamos nós dois contar. – Você é maluco? Se a gente se levantar, a gente perde a mesa. E não vendem cerveja no percurso. – Nem de lata? – Nem de lata. É proibido. – Então, vamos pedir ao garçom pra tomar conta da mesa enquanto a gente mede a lagoa. – E você acha que ele vai deixar a gente sair sem pagar a conta, com essa fieira de garrafas aqui em baixo da mesa? – Quer apostar quanto? Não vê o sorriso simpático com que nos atende? – Fale com ele e veja os dentes arreganhados que ele vai mostrar... e já reparou o tamanho do bicho? – Tá bom, então eu aposto que você é quem vai pagar esta conta. Eu não trouxe dinheiro hoje. – Xi! Nem eu. Fiquei fiado em você... – Então vamos nos mandar, cada um por um lado do Dique. O garçom não pode se dividir em dois. Eu vou primeiro, depois você vai, pra não dar na pinta. – Nada disso! Eu sou gordo e ando mais devagar. Vou primeiro. – Tá legal, mas não se esqueça de contar os passos. Essa aposta eu ainda vou ganhar. Foi quando o garçom se aproximou. – Eu lamento, mas o bar já está fechando – e botou a conta em cima da mesa, esperando o pagamento.

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Falar alemão Amanheci hoje com um pensamento: vou morrer sem aprender alemão. Parece uma grande besteira a gente acordar com uma idéia dessas. Tem gente que já abre os olhos com uma musiquinha chata na cabeça, que lhe acompanha por todo o dia. Mas o fato de que jamais irei aprender alemão me inquieta. “Ora”, alguém pode dizer, “bilhões de pessoas não sabem alemão e nem vão aprender nunca! Só na China e na Índia...”. Então, eu não seria o único. Outros também podem pensar: “Se ele não aprendeu e ainda não morreu, ainda está em tempo de aprender, tomar um curso”. Devo reconhecer que acho muito difícil. A língua alemã a mim parece um conjunto de grunhidos duros que ferem os ouvidos – favor não confundir com Grunhildes, que era como eu chamava uma empregada que vivia resmungando na beira do fogão, nada wagneriana, portanto – e palavras compridíssimas e impronunciáveis pelos brasileiros. Peço perdão ao povo teutônico, mas é o que acho. Entretanto, gostaria de aprender a ler a língua de Thomas Mann, Goethe, Wittgenstein, Nietzsche, de Günter Grass, o mais recente Prêmio Nobel alemão de literatura, e outros com nomes difíceis de pronunciar para a maioria dos mortais, para poder ler seus livros no original. Saber realmente o que eles escreveram sem passar pelas interpretações, versões e vícios dos tradutores. As obras de autores alemães, nós, no Brasil, as lemos em português a partir de traduções de outras línguas mais acessíveis, como o inglês e o francês. O que significa um texto de segunda mão. Algo acrescentado, muita coisa omitida, interpretações equivocadas, traduções ao pé da letra etc. 43


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Gostaria também de entender o que Hitler berrava em seus discursos. A mim pareciam latidos de um cão raivoso, e a turma toda levantando a mão, como dizendo: “Ave, Caesar, morituri te salutant”. E haja morituri: milhões de judeus, ciganos, poloneses, russos e inclusive alemães, intelectuais, homossexuais, opositores políticos, soldados, que pereceram nos campos de concentração e de batalha, tudo em nome de uma visão distorcida das lendas e tradições germânicas que Richard Wagner soube muito bem transpor para a música. Aliás, ainda hoje o compositor alemão sofre preconceito com o fato de ter sido o predileto de Hitler e seus nazistas. Mas muita gente boa também aprecia de sua obra, como, por exemplo, eu. Da língua alemã, só sei aquelas palavras que todo mundo sabe: volkswagen, porsche, diesel, bier, chucrute e franquefurte. Para aprender mais, terei que nascer na Alemanha na próxima encarnação. De outro jeito, negativo. Vou continuar analfabeto na língua de Goethe, a não ser que faça um pacto com Mefistófeles. Mas aí já seria outra história, eu não sou Fausto e prefiro não me meter com esse tipo de gente. Vou ficando por aqui mesmo, abaixo da linha do Equador, onde tudo que se diz e se escreve eu entendo.

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Cassação da cozinheira Lá em casa quem cozinha é minha sogra. Mas está em processo de cassação, apesar de ter pedido licença do cargo para se defender e evitar o afastamento. A turma não está gostando da comida e, além do mais, ela anda beneficiando umas tantas pessoas, botando mais comida para elas que para outras. Constituiu-se um conselho de ética para analisar as acusações e estudar as punições cabíveis. O mais irritado com o afastamento é um dos meus concunhados, que, desconfio, seja o mais favorecido. O mineirinho come como um jegue e aparece lá nos fins de semana para tirar a barriga da miséria. Durante a semana, ele almoça no centro da cidade, gastando os parcos tíquetes-refeição em seu restaurante a quilo predileto. Mas, no sábado ele tira o pé do freio e aperta o acelerador, no circuito lá de casa. De Barrichello a Ayrton Senna. E haja comida! Para tristeza de minha cunhada, sua noiva, que come como um passarinho e fica lhe aplicando uns pontapés por baixo da mesa. Ela também almoça fora durante a semana, mas, embora seus tíquetes sejam mais alentados, prefere os restaurantes a grama. “Quem quer casar tem que economizar”, costuma dizer. Meu outro concunhado, que mora em alto mar, passa os fins de semana no Rio de Janeiro e aparece aqui de vez em quando, prometeu votar a favor da cassação. Ele não gosta da comida de minha sogra, tanto que, quando está aqui, é ele quem cozinha. Não porque seja esse chèf todo, mas acha que tempero de navio é o melhor do mundo. Joga-se tudo dentro da panela, e o balanço do mar se encarrega de mexer a comida. 45


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Sua noiva, minha outra cunhada, que é conciliadora como ela só e não gosta de brigas, está propondo um acordo para evitar a cassação. Em troca da sua manutenção na cozinha, a minha sogra melhora a gororoba e desiste de esconder a comida para os seus favorecidos. Aliás, para essa cunhada tanto faz como tanto fez porque não é de sentar à mesa como os outros. Ao contrário, vive visitando a geladeira o dia inteiro, beliscando isso e aquilo, sem qualquer compromisso com a excelência do que come. Já eu não faço concessões. Defendo a minha sogra, exijo que se respeite o seu passado à beira do fogão e o que ela já fez pela casa, essas coisas que se ouve muito por aí. O pessoal me chama de puxa-saco, que somos farinha da mesma mandioca etc. Não ligo. E ainda vou mandar minha mulher pedir vistas ao processo de cassação no conselho de ética, adiando a votação. Preciso de tempo para tentar reverter a situação e, quem sabe, entrar na lista de protegidos de minha sogrinha do coração.

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O impíxima O povo é quem faz a língua e a mantém dinâmica através dos tempos, embora tenha gente que pense o contrário. Através da televisão, que cobre praticamente todo o território nacional, os falares regionais são incorporados à linguagem da maioria e isso, salvo melhor juízo, é um aspecto positivo para que a língua-pátria se mantenha única e indivisível. Porém, em certas épocas, geralmente em tempos de crise, quando a atenção da população está voltada para um assunto de interesse geral, ressurgem certas palavras que, de tanto serem pronunciadas, acabam servindo para definir situações das mais diversas. Ontem mesmo, enquanto eu esquentava o carro a álcool para sair, o zelador do meu prédio se acercou para dois dedos de prosa, como faz todas as manhãs. Félix começou a filosofar e a contar suas histórias diárias. Todo dia eu prometo que vou trocar por um carro a gasolina, que esquente e saia mais rápido antes que Félix apareça. – Pois é, doutor! As coisas não tão indo bem, não. Ninguém tá satisfeito com a situação do país. Agora, o sinhô vê. A gente vota num cara que tava do nosso lado, que chamava a gente de descamisado, pensando que ele ia dar camisa pra gente, e veja só... ele comprando camisa pro pessoal dele. E pra gente, nada. – É, parece que ele enganou todo mundo – respondi. – Doutor, e esse dinheiro todo que tão falando que o amigo dele conseguiu, Deus sabe como, e ainda passou um tanto pra ele... é dinheiro que eu acho que nunca vou imaginar na vida, quanto mais ver na mão. É muito dinheiro, mas pra gente, nada. – Fez uma pausa, cuspiu 47


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no chão e continuou – E esse tal de impíxima, doutor, que tão querendo botar pra cima dele? É alguma mandinga? – Não, Félix. Impeachment quer dizer impedimento, como no futebol. Ele fica impedido de continuar a ser presidente e volta para casa. – E por que ficam chamando impedimento de impíxima? Tudo hoje é impíxima. Impíxima pra lá, impíxima pra cá. Todo mundo só fala nisso. Ontem mesmo, quando fui pra casa de noite, passei no boteco de um primo meu pra tomar uma gelada e estava fechado. O vizinho me disse que a mulher de meu primo tinha passado lá cedo e dado um impíxima nele, mandando fechar porque ele já tava bebo. Aí, fui numa vendinha mais adiante, que não gosto de ir porque fica perto lá de casa. Mas fui e tomei umas duas. Deu vontade de ir no banheiro, mas não pude porque o vaso tava de impíxima até a boca. O carro esquentava, já quase no ponto de sair sem soluçar. Félix continuou: – Segurei minha vontade, doutor, e tomei mais duas. Me lembrei que a minha nega tava me esperando em casa pro chamego, e comecei a ficar animado. Quando eu chego em casa, olhe a surpresa! A distinta disse que não podia porque tava de impíxima. Aí, eu me retei, mandei a nega à merda e disse a ela que quem ia dar um impíxima nela era eu. Mas depois me arrependi, porque ela é uma descamisada que nem eu, e até que gosto dela. – Félix, você vai me desculpar, mas eu estou impiximado de ficar aqui ouvindo a história. Tenho que ir trabalhar. O carro já está quente. Engrenei a primeira, o carro soluçou e morreu. – Doutor, será que vão conseguir botar o impíxima em cima do home? Respirei fundo, para ter mais paciência. – Acredito que sim, Félix. As pressões estão muito fortes e o pessoal que apoiava ele começou a abandonar o barco. E como este é ano de eleição, está todo mundo querendo dar uma porrada no homem. 48


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– Mas é assim mermo. Todo mundo gosta de dar uma bicuda em cachorro doente. Bem que ele merece. Não que eu tivesse dinheiro no banco pra ele tomar quando entrou no governo. Mas ele dizer que ia melhorar a vida da gente, dos descamisados, que era contra os marajá... e veja o sinhô no que deu. Finalmente o motor pegou, para meu alívio. Quando eu já ia saindo, Félix botou a mão na porta, encostou a cabeça na janela e arrematou: – Olha, doutor. Se eu pudesse, eu dava um impíxima nesse cara que ele ia parar nos quintos dos infernos e nunca mais ia querer baixar por aqui. Bom dia, doutor. Deixe eu voltar pro impíxima do meu trabalho.

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Dormir em pé Quando eu era adolescente, sem maiores compromissos com o mundo, costumava dormir doze, quatorze horas por dia. Inconformado, meu pai me acordava e me censurava, sabiamente: – A vida está passando lá fora e você está perdendo o espetáculo! Eu abria o olho, dava uma olhada no espetáculo e voltava para o travesseiro. Naquela época, é bom que se diga, eu praticava esporte nas minhas poucas horas vagas e traçava dois pratos de comida no almoço e no jantar. Não tomava café da manhã porque já levantava ao meio-dia. Mais tarde, homem feito e com responsabilidades de pai de família, as horas disponíveis para dormir reduziram-se a menos de um quarto das 24 horas do dia. Quanto mais velho se vai ficando, diz a medicina, menos tempo de sono o organismo da gente precisa para se restabelecer. Desconfio que essa redução não é um fenômeno de origem fisiológica, e sim decorrente das preocupações que se vai adquirindo e acumulando pela vida afora. Com o trabalho, os filhos, os compromissos sociais, as contas de fim de mês etc. Alguns anos atrás, eu trabalhava fora da cidade e estava sem carro. Vivia dormindo nos ônibus, na ida e na volta. Minha mulher se indignava. – Quem dorme em ônibus é pobre, é peão de obra. Que vergonha!

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Eu não dava atenção a essas manifestações de quem só andava de carro. Enquanto encontrasse o ombro do vizinho para encostar a cabeça, eu ia cochilando na estrada. Por sinal, nessas horas é que eu via a solidariedade humana. A gente revezava a cada dez minutos. Ninguém sabe, só pobre e eu, que era pobre com cara de rico, o que é você se sacolejar todos os dias por uma hora, uma hora e meia, em um ônibus entupido de gente que para de cem em cem metros para renovar o estoque. E me dava por satisfeito quando encontrava um lugar para sentar. Na maioria das vezes, dormia em pé mesmo, apoiado no companheiro ao lado. Em mulher eu não encostava, poderia parecer sacanagem. Aliás, venho dormindo em pé muito amiúde nos últimos tempos. Trabalho durante a noite, que nem guarda-noturno, vigia de farol, gari, revisor de jornal, por aí. Mas acordo cedo com a movimentação de minha mulher saindo para o trabalho. Então, passo o dia caindo pelas tabelas. Quando estou dirigindo eu não durmo. Só duas vezes: uma, quando um poste me acordou, e outra, parado na sinaleira, com os carros buzinando atrás de mim. Em fila de banco eu chego a sonhar. Na empresa, dou cada cochilo elegante em frente ao computador que o pessoal pensa que estou prestando uma atenção enorme ao texto em minha frente. Outro dia, fui almoçar em um restaurante a quilo. Uma senhora na minha frente demorou tanto em escolher o que iria se servir que dormi na fila com o prato vazio na mão. Quando acordei, não encontrei mais nada. Tinham passado na minha frente e comido tudo. E ainda me cobraram a solitária azeitona preta que me coube com um dedo de farofa. Ando muito preocupado com o meu futuro. Quanto mais velho vou ficando mais em pé vou dormindo. Uma madrugada dessas, ao voltar do trabalho, fui acordado por um vizinho quando estava parado frente à porta do apartamento, segurando a chave no buraco da fechadura. 51


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Outro dia assisti a um vídeo na internet onde uma velhinha atravessava na sinaleira e de repente parou no meio da faixa de pedestres para dormir. Espero não chegar a esse extremo. De qualquer forma, de agora em diante vou ter que sair na rua com uma tabuleta pendurada no pescoço: “Cuidado, sujeito a dormir em qualquer lugar”.

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Política em família O prefeito almoçava em casa quando vieram lhe chamar. Era preciso a sua presença urgente no Paço Municipal, pois os vereadores da oposição tentavam votar uma lei que proibia a contratação de parentes no executivo. O projeto deixava de fora a câmara. – Isso é uma descaração! – gritou o alcaide. – Ou vale pra todo mundo ou não vale pra ninguém. Ato contínuo, levantou-se da mesa, não sem antes dar uma última garfada na comida que lhe preparara sua mulher, aliás secretária de cultura do município. Seu filho mais velho, que também estava à mesa, apressou-se a ir esquentar o carro na garagem. Acumulava o cargo de motorista da prefeitura com o de chefe de gabinete. Era ele quem atendia e filtrava as pessoas que queriam falar com o prefeito. Em grande parte dos casos, ele mesmo resolvia os problemas trazidos pelos munícipes junto às secretarias, ocupadas quase todas por parentes do alcaide. Ao descer do carro na porta do paço, o prefeito encontrou uma comissão de vereadores de seu partido, todos alvoroçados e apreensivos. O alcaide tinha fama de violento e sempre andava com um 38 pendurado na cintura, por baixo do paletó. Dias antes, ele havia perdido a maioria na câmara, pois um dos partidos que lhe davam sustentação passara para o outro lado. Seu líder e único componente, um primo em segundo grau, se desentendera com o prefeito porque este havia demitido sua mulher da direção do ginásio

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local, onde nunca pisara os pés, obrigando-a a voltar à sala de aula. “Uma falta de respeito!” – O que vocês estão fazendo aqui, seus imbecis? Por que não estão lá dentro tentando atrapalhar a sessão? – vociferou o prefeito frente aos vereadores da comissão de recepção. Ato contínuo, embarafustou-se escada acima em direção ao salão da câmara. Parecia um furacão. No caminho, as pessoas encostavam-se nas paredes, receosas do humor do homem. Atrás dele vinha o filho, que nessas horas fazia as vezes de guarda-costas, e os vereadores da situação. A sessão da câmara realizava-se a portas fechadas. Sem tomar conhecimento dos dois seguranças postados na frente, o prefeito meteu o pé na porta, já com o revólver na mão. Assustados com aquela entrada intempestiva e à vista do treizoitão na mão do prefeito, os vereadores que participavam da sessão procuraram se abrigar, uns atrás das cadeiras, outros sob as mesas. O líder da oposição se levantou para enfrentar o invasor. – Como Vossa Excelência ousa... Foi quem levou o primeiro bofetão. Os outros foram distribuídos pelos que o pai e o filho iam encontrando pelo recinto. Depois de três ou quatro tiros para cima, um dos quais ricocheteou no teto, na parede do fundo e veio bater na campanhia da mesa da presidência, o prefeito decretou: – Está encerrada a sessão. Projeto rejeitado por maioria absoluta! Dito isso, deu mais dois tiros para cima e se retirou do recinto, com seu séquito. Só mais tarde ele veio a saber que, com receio das reações do alcaide quanto ao projeto contra o nepotismo, já aprovado, os vereadores estavam naquela hora votando um outro projeto que daria o nome da falecida mãe do prefeito à principal praça da cidade.

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Vovô é seu avô! Ainda

não de todo restabelecido do choque de ser tratado por “Meu tio”, já começaram na rua a me chamar de “Vô”. Isso é uma desgraça! No meu tempo, o pessoal tratava os mais velhos com respeito: – Patrão! Senhor! Doutor! Depois, o tratamento começou a esculhambar: – Barão! Meu tio! Coroa! – Coroa é o raio que o parta! Já “coroa enxuto” dá para levar. E agora, “Vô”! Outro dia, um molecote de uns 17 anos me chamou na rua de vovô. Irritado, retruquei: – Vovô é seu avô! Logo eu que tenho três filhas solteiras que ainda não me deram netos. Minha mulher tenta me acalmar, dizendo que a vida é assim mesmo, vai passando sem que a gente queira. E que a gente tem que se acostumar com a idade. Que os outros veem a gente como a gente é, ou aparenta ser. É fácil para ela dizer isso, já que eu não pinto o cabelo. Por outro lado, o fato de se aparentar mais velho tem lá suas vantagens. Por exemplo, ainda estou longe de adquirir o direito de frequentar fila de idosos. Mas, quando estou no banco e entro na fila geral, às vezes encontro uma boa alma que me sugere ir para a especial. Geralmente, quem faz isso é quem está atrás. Desconfio que é para fila andar mais um pouquinho. Como a iniciativa não parte de mim, eu vou, sob o beneplácito de todos os presentes. 55


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Mas, outras vezes, é aquela moça bonita, simpática, com sorriso de aeromoça, que o banco bota do lado de fora do guichê para filtrar os clientes e que me manda para a companhia dos velhinhos. Aí, me dá uma tristeza... Quando estou no supermercado, com aquelas filas imensas, tem dias que me deixam eu passar na frente. Tem outros que não. Se tenho umas três ou quatro coisas na cesta, só encontro gentilezas: – O senhor pode passar, faça o favor. – Não, ele passa aqui comigo. – Não senhora, eu falei primeiro! Mas, se meu carrinho está entupido até a boca, o pessoal faz que não me vê, vira a cara e assovia para o outro lado. Já me aconteceu estar com pressa e fazer a viagem umas três ou quatro vezes com a cesta na mão, aproveitando a gentileza alheia. É claro que em filas diferentes, para não dar na pinta. Minha mulher ficava lá fora, escondida, tomando conta do carrinho, que ia se enchendo a cada incursão que eu fazia lá dentro. Outro dia, eu já meio azedo por um problema qualquer, levei minha mãe, 84 anos, à farmácia para ela comprar uns remédios que o geriatra lhe receitara. Na saída, a moça do caixa, querendo ser simpática e com um sorriso debiloide no rosto, perguntou-lhe: – É seu marido? Fui eu quem respondi, ressabiado: – Não, sou o amante dela! E estou querendo aumentar o harém. Se habilita? A caixa fechou a cara, mas minha mãe se sentiu lisonjeada e reclamou comigo por ter tratado mal “uma moça tão gentil”. Pois é, as coisas estão se complicando para o meu lado. O pior foi quando eu estava desempregado. Ainda pretendo ter muito tempo de vida útil pela frente, mas o mercado de trabalho na época 56


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andava brabo. Quando me candidatei a um posto vago numa empresa, ouvi: – Desculpe, não contratamos aposentados. – Mas eu ainda não me aposentei! A moça do recrutamento me olhou dos pés à cabeça e retrucou: – Pois devia. Saí de lá arrasado, menos por não ter encontrado emprego e mais pelo olhar de desdém com que a garota me contemplou. Ao chegar em casa, fui para o espelho, que acho que também não me faz nenhum favor. Depois de longa observação e análise profunda da figura ali em frente, resolvi tomar uma providência: arrancar uns três ou quatro fios brancos do meu bigode. Quem sabe as coisas poderiam melhorar dali pra frente?

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Questão de fase Pois é, tem certos dias em que a gente está inspirado e acerta a mão ao escrever uma crônica interessante. É como atacante de futebol: há fases em que qualquer chute seu a bola vai em direção às redes. Faz gol até sem querer, a bola bate na canela, no nariz, na orelha e entra. Mas, há outras em que a redonda, como se dizia antigamente, insiste em passar ao largo. O cara domina a bola na pequena área, chuta e a dita escorre para a lateral do campo, isso quando ele não fura em cima da linha de gol, sem goleiro na frente. No último jogo da seleção contra a Venezuela, o Marcelinho Paraíba me deu um drible de costas, metendo a bola no meio das pernas do goleiro e pegando do outro lado, que, se eu fosse o juiz, teria dado um cartão amarelo ao atacante brasileiro por tentativa de desmoralização do adversário. E um vermelho ao venezuelano por incompetência e falta de vergonha. Aliás, se eu fosse o goleiro abandonaria o futebol naquela hora e nunca mais calçaria uma chuteira na vida. Eu tenho vergonha na cara. No dia em que escrever um texto chinfrim, esculhambado, meto a viola no saco, peço minhas contas e vou-me embora. Mas, há fases e fases. “Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”, como bem dizia o comentarista de futebol Gerson Canhotinha de Ouro em uma das suas famosas elucubrações filosóficas. Por exemplo, quando a minha cozinheira está de TPM, eu almoço na rua. Já saio de casa pela manhã e deixo ela resmungando sozinha, quando não resolve discursar para a vizinhança. No fogão, ela não acerta a 58


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mão de jeito nenhum. Seus bifes me lembram aquela sola de sapato que Charles Chaplin saboreia no filme “Em busca do ouro”. Quando o arroz está pronto, dá para se ouvir saindo da panela o conhecido refrão das aglomerações: “Arroz unido jamais será comido!” No resto do mês, nada tenho do que me queixar, a não ser um feijão ou outro que pega na panela ou um suflê que ela esquece na geladeira enquanto o forno fica ligado horas a fio sem nada dentro. Coisas de somenos importância. Meu carro mesmo não é muito chegado a um banho. Por mais que eu reclame, que lhe faça preleções sobre a necessidade de asseio, por questões estéticas e higiênicas, que não fica bem um veículo ancião e descorado como ele ficar desfilando pelas ruas da cidade com aquele aspecto bodoso, ele sempre vem com uma desculpa esfarrapada, que sofre de carência pois eu não tenho tempo para lhe dar atenção. Ele sabe muito bem que o problema não é esse, pois todo fim de mês eu o levo para tomar um banho de balde e flanela na beira do Rio das Tripas. E que depois ainda dou umas borrifadas de Bom Ar por dentro para ele ficar bem cheiroso. A questão é de fase, é econômica. Tem épocas que ele só anda nos trincos, brilhante e orgulhoso. É ou não é? Aliás, nós estamos passando por uma fase bem estranha e complicada. O chefe da casa faz sucesso na rua, mas dentro das quatro paredes sua atuação é pífia. Após anos de seca braba e de rezas a Alá três vezes por dia, um povo recebe chuva de bombas. O nosso vizinho não cuida de suas finanças, gasta mais do que ganha, e fica botando a culpa na gente. E o timinho deles já passou o nosso! O custo de vida está pela hora da morte, os produtos de supermercado aumentam de preço toda semana. A coisa está tão séria que já é grande a fila de carros importados estacionados às sextas-feiras na Feira de São Joaquim. Pois então, é uma questão de fase. Deixem eu pegar minha viola. 59


Viagra e outras mezinhas Quanto mais velho vai ficando, o homem só pensa em sexo. Só

vê mulher na frente, e já não faz tanta exigência quanto quando era mais jovem. O que passar na frente é peixe para a sua rede. Pode ser uma gatinha, uma coroa arrumada ou, dependendo das horas, até uma trupizupi daquelas. Bastou a mulher olhar, o cara já fica todo assanhado. Um caixeiro-viajante vivia pelo interior, pulando de cidade em cidade. Numa daquelas, pequena e atrasada, que não oferecia muitas opções aos viajantes, a única mulher que ele conseguiu foi a dona da pensão, viúva septuagenária que vivia com saudades do finado marido. O bom papo do rapaz teve o dom de lhe abrir as portas do quarto da senhoria. Toda vez que dormiam juntos, no dia seguinte a viúva acordava troncha e não cozinhava para ninguém. Revoltados, os outros pensionistas acabaram expulsando o rapaz da pensão. Hoje, as conversas nas rodas de idosos só giram em torno de mulher e de Viagra, que já virou sinônimo de “levanta defunto”, “guindaste de velho” e “arranca saia”, termos que o pessoal usava antigamente para os afrodisíacos de então. Diz um conhecido meu que para identificar se um cara está ficando idoso existe até um simples check list: careca, olhos vermelhos, óculos de grau, dentadura, hemorróidas, mija de cinco em cinco minutos e tem dores no pescoço de tanto virar a cabeça de um lado para o outro para ver quem vem passando. Parece que assiste a uma partida de tênis. Mas, há aqueles que ainda se mantêm fortes e ativos. Um amigo meu, que se gaba de ainda ser muito laborioso nos exercícios de alcova, 60


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e até demais, segundo a esposa, foi outro dia ao geriatra e levou a mulher. O médico o examinou minuciosamente e, no fim, perguntou: – E como vai sua vida sexual? – Ah, doutor, tô derrubado! – Então vou lhe receitar Viagra. A mulher se levantou. – Eu não vou aguentar! – e se retirou indignada do consultório. Mas, a verdade é que são muitos os problemas da vida hoje em dia que afetam a cabeça e, por consequência, a libido dos homens. E das mulheres também, diga-se de passagem. Tem marido que divide uma pílula de Viagra com a mulher para não haver uma descompensação sob os lençóis e ele ficar chupando o dedo a maior parte do tempo. No último Carnaval, uma mulher, animadíssima, tanto fez que conseguiu levar o marido borocoxô para assistir ao desfile dos blocos e trios elétricos na avenida. Deu-lhe red bull com uísque, power up com catuaba, cerveja com guaraná em pó, ginseng, esperma-de-zangão, tremendão, essas coisas todas que vendem por aí. O cara ficou doidão. De madrugada, voltaram para casa. Cansadíssima, a mulher caiu na cama e dormiu. E o marido ficou aceso o resto da noite, os olhos grudados no teto, contando mulheres pulando cordão de bloco. A ânsia da turma por afrodisíaco é tão grande que muita gente não verifica mais a procedência do produto. Até camelô vende a pílula azul na rua. Um outro amigo meu tomou um desses, pirata, e foi para o motel com uma garota. Lá, espichou todo, os braços, as pernas, a língua ficou dura, os olhos arregalaram. O mais importante, porém, jazia inerte. A garota se mandou e ainda levou a roupa do parceiro e todo o dinheiro de sua carteira. Mais tarde, ele foi encontrado pela moça da limpeza, nu, sem poder levantar da cama, todo cagado e mijado, incapaz de qualquer reação. E ali ficou exposto à curiosidade e risotas dos funcionários do motel até o médico chegar. 61


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Mas, ainda tem gente que se recusa a lançar mão desses expedientes, crente da compreensão divina. Um senhor que conheço, já virados os sessenta, quando vê passar um “avião”, costuma dizer: – Com aquela ali eu não quero que Deus me ajude. Eu só quero que Ele não atrapalhe!

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Sissi, a enjeitada – Vagabunda! Foi assim que Nicolau recebeu em casa a sua gata Sissi, que esteve desaparecida por uns meses. Chegou acompanhada de três filhotes, cuja pelagem bem mostrava a origem humilde do pai. Sissi era raciada com angorá, peluda e branca, apenas tinha uma faixa escura ao redor do pescoço, como um colar. Mas os filhotes, como bem dizia Nicolau, parecia uns “filhos do puto!” – Gata é assim mesmo. A gente leva um tempão criando com amor, mimando, alimentando, e um belo dia ela resolve dar umas voltinhas por aí. Quando retorna, ou vem de barriga cheia ou puxando uma fieira de filhos. Indignado, Nicolau relutou em recebê-la em casa. Bateu-lhe a porta na cara. Zizi, sua esposa, chorava pelos quatro cantos, implorando que Nicolau reconsiderasse a decisão. Afinal, eles criavam Sissi desde que ela era um “bolinho de lã” que dava na palma da mão. Rejeitada, a gata andava com seus filhotes por sobre o telhado, miando que dava dó. Miava Sissi em cima, chorava Zizi em baixo. Toda noite aparecia no canto do pátio uma tigela com leite. Um dia, Nicolau descobriu, mas Zizi, com medo, jurou que não fora ela que colocara. Zizi não dormia, acompanhava da cama o passeio de Sissi e seus filhos pelo telhado. O coração apertava, lágrimas lhe vinham aos olhos e soluços lhe subiam pela garganta.

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Às vezes, ela ouvia um arranhar de leve na porta dos fundos. Sabia que Sissi a chamava, implorando guarida, pedindo comida para si e sua ninhada. E aí, o choro lhe vinha aos borbotões. Nicolau via e ouvia aquilo tudo, mas seu coração empedernido o impedia de perdoar o erro de Sissi e recebê-la de volta ao seio da família. Passado um mês, um vizinho procurou Nicolau. Propôs-lhe comprar um filhote de Sissi, pois ficara encantado com a beleza da ninhada. – Ouro puro, seu Nicolau! – E ofereceu-lhe uma boa grana por um dos gatinhos. Surpreso, Nicolau aceitou a venda e a partir de então passou a encarar Sissi com outros olhos. Abriu-lhe as portas de casa, para alegria de Zizi, comprou ração para a turma, e toda vez que Sissi entrava no cio, ele a mandava dar “umas voltinhas por aí”. Hoje, Nicolau é outro homem. Vive de criar e vender gatinhos. Comprou outras fêmeas da mesma raça, que lhe dão várias ninhadas por ano, e agora anda pelas redondezas escolhendo parceiros. Preparou um quarto nos fundos de casa com motivos da belle époque para as “meninas” receberem seus convidados. E na porta pendurou uma placa: “Bourdoir da Sissi”.

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Escrever uma crônica Muita

gente tem me perguntado como é que consigo temas para escrever crônicas, de onde é que saem as ideias que boto no papel. Prometi que algum dia escreveria sobre isso e hoje é a oportunidade ideal. Mais embaixo vocês vão saber por quê. Diferente do romancista e do novelista, que trabalham mais com a ficção, o cronista tem um grande manancial de assuntos à sua disposição a qualquer hora do dia ou da noite: a própria vida que se desenrola ao redor. Seja nas páginas dos jornais, em frente a um aparelho de TV, no meio da rua ou até dentro de um ônibus entupido no horário das seis. As situações se colocam, as idéias aparecem. Naturalmente que há a necessidade de se abordar um tema de interesse do público, senão ninguém lê o raio da crônica. Por exemplo, não adianta se sentar em frente à máquina e escrever sobre a “influência da mecânica quântica no estudo da teoria da relatividade geral de Einstein quanto à curvatura do espaço/tempo”. Ninguém vai entender bulhufas, só os físicos ou os astrônomos, Mas, se por acaso, você pega uma situação tipo uma garota, seus 14 anos, chegando em casa e dizendo: “Mamãe, tem uma coisa se mexendo em minha barriga”, dá para fazer uma crônica bem divertida, porque é um assunto que muitas vezes atinge as pessoas, e as pessoas gostam de rir dos seus próprios problemas. O importante de tudo é saber escrever. Fazer com que as ideias saiam fluidas, claras, de fácil percepção e que interessem ao leitor, prendendoo do título ao final. Tem gente que tem o dom de escrever, mas é neces65


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sário também aprender. Ler os grandes mestres da crônica na língua portuguesa, como Rubem Braga, Sérgio Porto (o inesquecível Stanislaw Ponte Preta), Fernando Sabino, Millôr Fernandes etc. Saber como eles utilizam a palavra para expressar suas ideias, a sua maneira de ver as coisas, traduzindo o cotidiano ou transformando-o em ficção. O artista plástico se expressa através da pintura, da escultura. O músico toca o seu instrumento. A bailarina dança. O cronista escreve. Como todo artista, há que ter uma disciplina constante para aprender e praticar. Mesmo naqueles momentos quando nenhuma inspiração especial se apresente, quando dá um branco na cabeça e não se saiba sobre o que se vai escrever. Aí, o jeito é se pegar um assunto qualquer, tipo “escrever uma crônica”, e tentar fazer da melhor maneira possível, agradável à leitura. Pior do que começar uma crônica é terminá-la. A maioria das pessoas pensa que é fácil, é só colocar um ponto final e pronto. Ledo engano. Se não houver consistência no final, tudo o que se escreveu acima pode desmoronar. Mas, não é o caso atual porque, se o assunto é como escrever uma crônica, como terminá-la se insere perfeitamente no presente texto. E ponto final.

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Garotinha inocente A menina, doze anos, shortinho curto e ar angelical, brinca no chão da sala com a boneca. Levanta a cabeça e fala para a mãe, que está costurando na poltrona: – Mãe, tem uma coisa se mexendo na minha barriga! A mãe vira-se para o pai, que lê o jornal deitado no sofá: – Arnaldo, eu já lhe falei que essa menina tem vermes, ela precisa ir ao médico. O pai levanta a cabeça, tira os óculos, olha atentamente para sua filha e percebe que ela já não é a criancinha que sua mulher acha que é. – Clara, você devia levar sua filha a um ginecologista. Como ela diz que a “coisa” está se mexendo, a “coisa” já deve estar bastante grandinha para ser um simples verme – e queda-se pensativo, observando a filha. Ao entender o alcance das palavras do marido, o rosto de Clara fica vermelho. Depois passa para amarelo, verde e, por fim, se torna pálido, descorado, exangue, como queira o verbete do dicionário para esse tipo de reação. Gagueja, balbucia algo inteligível e por fim deixa de lado a costura, dirigindo-se ao quarto. Na passagem, com a voz seca, metálica, afiada que nem punhal, chama a filha pra conversar lá dentro. Dez minutos depois, a porta do quarto se abre e a mãe, com os olhos inchados e vermelhos de chorar, chega-se ao sofá onde está o marido. – É, Arnaldo. Estamos com um problema e tanto – soluça. – A nossa filha já não é mais aquela garotinha que a gente pensava... – Que você pensa, e assim trata ela... – corta o pai.

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– Não jogue a culpa em cima de mim! Você também trata ela como uma menininha. A nossa menininha... – e cai de novo no choro, não sem antes lançar um olhar furioso à sua filhota. A garota, coitada, com a marca vermelha de uma mão no rosto branco, está encostada à porta do quarto com os olhos esbugalhados, testemunhando o bate-boca entre seus pais. A mãe volta-se para a filha e exige: – Quem foi? Diga o nome do responsável! – Quem foi o quê, mãe? – responde ela, com a expressão chorosa e idiota. – Quem foi que botou isso aí dentro! – Isso o quê, mãe? – Isso... isso... isso aí que está se mexendo em sua barriga – insiste Clara, gaguejando rispidamente, apontando para a barriga da filha. O pai continua deitado no sofá, olhando pensativo para a garota. – Sei não, mãe. – Como não sabe? Como não sabe? Você acha que isso aí ia entrar assim sem mais nem menos? Sem a ajuda de ninguém? A menina, coitada, cai num choro convulso, como se estivesse sendo acusada por um crime que não cometeu. O pai então resolve entrar em cena. Levanta-se do sofá e recrimina a mulher calmamente: – Você não está vendo que a pobrezinha está assustada? Primeiro, se acalme, depois converse numa boa com ela. Afinal ela é sua filha, não é nenhuma cadela! Irritada pela tranquilidade do marido, ela grita: – Você não percebe a extensão do problema, Arnaldo? – Claro que percebo. Mas, não é bom torturar a menina. Deixe ela ir dormir, amanhã a gente conversa melhor.

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Com uma careta de raiva no rosto, os dentes trincando, os punhos fechados, Clara dá uma reviravolta e sai da sala, pisando forte em direção ao quarto. Uma porta bate. A menina pega sua boneca, aperta-a ao peito e sai correndo da sala. A porta do quarto é encostada sorrateiramente. Arnaldo volta ao sofá e ao jornal, sem entretanto conseguir ler uma linha sequer. No refúgio do quarto, a menina pega o telefone e disca um número. – Alô, Nandinho? Pronto, está feito. Eles já sabem. Não, não disse ainda que foi você. Eles não iam acreditar que um garoto de onze anos... (pausa para ouvir). O quê? Você não tem só onze anos? Você é o quê?... Anão?!!!

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A flauta de Bastião A cidade

era uma animação só. Aproximava-se o dia da sua festa tradicional, a procissão do Senhor Morto, e a população estava em intensos preparativos. Além disso, era tempo de eleição e o prefeito anunciara que iria receber a visita de políticos e autoridades da capital. O padre não gostou muito da notícia, pois aquela era uma festa religiosa e não se devia misturar as coisas. Mas, devido às doações anuais da prefeitura à igreja, as críticas do monsenhor se restringiram ao ambiente da sacristia, junto ao sacristão e às beatas. Estas, por sinal, se desdobravam, em suas casas, na confecção e conserto dos paramentos e peças que iriam enfeitar os componentes da procissão e as ruas por onde o cortejo passaria. Janjão, o sacristão, todos os anos fazia o papel do Senhor Morto, e era carregado deitado sobre a cruz de madeira por todo o percurso. Mestre Sinfrônio, maestro da retreta local, convocou os quatro ou cinco músicos locais ainda vivos para os ensaios. Todos os dias os velhinhos se reuniam na sede da furiosa para afinar os instrumentos. Bastião, um antigo aguadeiro da cidade, sempre assistia aos ensaios da janela, fascinado que era com música. Os olhos brilhavam, o coração batia mais forte e o desejo de fazer parte da banda lhe corroia o espírito. Mas ele não sabia tocar nada, e isso o entristecia bastante. Mas naquele ano iria ser diferente. Bastião havia encontrado, no fundo de um baú de sua família, uma velha flauta transversa que havia pertencido a seu bisavô. Entusiasmado, ele passou dias polindo e tentando desentupir o pequeno instrumento que antes fora dourado e agora estava descascado e rachado. 70


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Um dia, apresentou-se ao mestre Sinfrônio, que ficou horrorizado com os sons que Bastião conseguia extrair da flauta. Entretanto, resolveu aceitar o aguadeiro no grupo para fazer número na procissão. Mas com uma condição: Bastião não emitiria uma só nota! Apenas botaria a flauta na boca e fingiria que tocava. De tanto frequentar os ensaios, Bastião decorava a música que seus colegas tocavam. Principalmente um certo refrão para ser executado exatamente quando a banda passasse em frente ao palanque das autoridades. No dia da festa, os sinos da igreja matriz amanheceram badalando alegremente. O povo da cidade corria de um lado para outro, dando os últimos retoques na ornamentação das ruas e da praça. O prefeito disparava ligações telefônicas, tentando, de última hora, se certificar da presença dos ilustres convidados. Enfim, ao meio dia, sol a pino, saiu a procissão. Na frente, o padre todo paramentado, rodeado pelos coroinhas. Em seguida, vinha Janjão, o Senhor Morto, equilibrando a espinha na madeira estreita da cruz, carregada pelos fiéis e cercada pelas beatas. Logo atrás, a furiosa de mestre Sinfrônio executava o dobrado. Um tanto desafinada, mas a banda cumpria seu papel. Bastião, com a flauta do bisavô na boca, fazia que tocava. Na rabada, cantando e rezando, vinha o povo da cidade. Quando o cortejo passou em frente ao palanque repleto de autoridades locais e visitantes, Bastião se animou e resolveu mostrar a todos que também sabia tocar. No exato momento do refrão, o suor a pingar pelo rosto e a boca cheia de saliva pela excitação, Bastião atacou com o seu “FI-RI-FI-FIU”. Um horror, um alvoroço geral, a flauta rouca e rachada destoando do resto da banda. Foi então que o Senhor Morto se ergueu da cruz, indignado, e gritou: – Bastião, vá tocar flauta mal assim na puta que lhe pariu! 71


Idade, um caso sério Esse negócio de idade virou um caso muito sério de trânsito. A certa altura da vida, as pessoas começam a pisar no freio, tentando diminuir a velocidade, principalmente quando a estrada já é de descida. Muita gente – e bote gente nisso! – prefere estacionar no meio do caminho, e fica comemorando a mesma idade até que os que vêm atrás começam a buzinar, reclamando que está atrapalhando o tráfego. Pelo que sei, os engarrafamentos têm sido grandes. Outros passam em desabalada carreira e, quando se dão conta, não dá mais para parar. Tem gente, entretanto, que não atrapalha ninguém. Uma amiga minha ficou cinquentona no ano passado. Então, resolveu virar no primeiro retorno e comemorar quarenta e nove este ano. Quando bater nos trinta, ela diz que volta. Minha sogra não gosta de dizer a idade pra ninguém. Eu sei, todo mundo conhece gente assim, mas deixem-me contar o caso. Um dia ela foi a uma clínica. Sala de espera cheia de gente, a funcionária no balcão perguntou, ao preencher a ficha: – Qual a sua idade? Ela respondeu, irritada: – A data de nascimento está aí na minha identidade, minha filha. É só fazer as contas. E escreva baixo pra ninguém ouvir, por favor! No outro dia, ela quase criou um caso com o médico com quem marcara a consulta. O doutor pediu sua idade. Ela se levantou e se dirigiu à porta de saída. 72


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– Já não há mais médicos cavalheiros hoje em dia. Onde já se viu perguntar a idade de uma jovem como eu? Depois dos 20, não se faz mais esse tipo de pergunta, meu rapaz – respondeu indignada, com o queixo levantado. O doutor contemporizou, dizendo que no exame que iria fazer necessitava usar um medicamento que, dependendo da idade do paciente, a dosagem poderia até trazer complicações. Em vista da necessidade do tratamento, ela resolveu ficar. Sentou na ponta da cadeira, com as costas eretas, bolsa ao colo, debruçou-se sobre a mesa do médico e sussurrou: – Se eu disser que tenho cinquenta e não tiver, o que acontece? – Bem, se eu lhe der uma dosagem pra cinquenta e a senhora tiver mais, poderá ocorrer o risco de ter uma indisposição cardíaca quando sair daqui. O remédio é forte. Ela pensou, pensou, passeou os olhos pelo ambiente, pelo médico, o suor porejando na testa. – E sessenta? – arriscou, esperançosa. O médico, de mãos cruzadas, esperava. – Setenta dá? ... Tá! Então bote aí setenta e quatro. Não cedo mais nenhum ano. E faça o favor de providenciar um cardiologista pra me acompanhar até em casa.

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Dentaduras a granel A primeira vez que vi um par de dentaduras – eu era pequeno – foi na mesa de cabeceira de minha avó. Dentro de um copo d’água, elas ficavam sorrindo pra mim e eu pra elas. Um barato! Ficamos assim até que vovó acordou assustada com meus dedos em sua boca. Eu queria ver como era uma boca oca. Com o passar do tempo, fui me acostumando a ver dentaduras, como a que caiu da boca de um então conhecido ator de teleteatro, durante um chupão com a atriz, quando as peças na TV eram apresentadas ao vivo e ainda não havia o videoteipe. Hoje, o uso de dentaduras está disseminado pelo Brasil, país de desdentados. Nas cidades do interior, vendem-se peças usadas em feiras livres. O cidadão necessitado chega junto da banca, olha aquele mar de dentaduras e experimenta uma a uma até achar aquela que lhe encaixe certinho. Uns só precisam da de cima, outros, da de baixo, alguns preferem mobiliar os dois andares. O vendedor das ditas cujas já têm à mão um alicate de dentista, o boticão, para o caso de ter que arrancar um caco renitente que atrapalhe o encaixe perfeito da peça. Como complemento, ele vende ao cliente um pó feito de amido de mandioca que, misturado à água, substitui muito bem a corega. E as dentaduras de campanha eleitoral? O candidato enche os bolsos e sai distribuindo as peças entre seus eleitores. Primeiro as de cima, as de baixo só se ele vencer as eleições. Hoje, esta prática virou crime, mas a turma deve estar estudando uma maneira de burlar a lei. Vamos aguar74


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dar o próximo pleito para ver quais as soluções encontradas. Esse pessoal é muito criativo e não vai deixar que seus eleitores se apresentem de boca chupada para votar. Nas cidades, o uso dessas peças está se sofisticando. Tem gente que possui kits de dentaduras: uma para casamentos, outra para coquetéis, uma terceira para aniversário de criança. Tem a de jantar fora e aquela que só se usa em casa, pra quê não sei. As de comer fora variam de acordo com a comida. Dentadura para churrasco, para ensopado de galinha, outra especializada para comer milho no São João e mais uma para bobó de camarão. Por sinal, uma vizinha minha portava uma dessa última quando foi a uma comemoração de Cosme e Damião. Gente fina e educada, ao provar do prato que lhe foi servido, ela chamou a dona da casa reservadamente num canto e pediu: – Por favor, dava pra trocar por vatapá? O caruru está muito duro pra mim!

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Enfim, férias! Férias é uma palavra mágica, que não é apenas uma palavra, é um estado de espírito. Daí o sinal de exclamação – aliás, deveria haver um sinal de exaltação. O sujeito leva o ano inteiro correndo de um lado para o outro, trabalhando, cumprindo compromissos e obrigações, acordando cedo e dormindo tarde, sem tempo para se dar um tempo. Uma vida rotineira. Então, o cara entra em férias, ou melhor, sai de férias. Passa de um mundo oficial, corrido, sempre tendo em vista agradar, servir ou atender os outros, para um ambiente particular, ocioso, pode-se dizer até egoísta. – Oba! Vou poder dormir até tarde, desligar o telefone, fazer o que eu quiser sem ter compromissos com ninguém – exceto a família, é claro. No primeiro dia de férias, o cidadão, excitado, abre os olhos logo à primeira claridade da manhã. A ideia de férias lhe bate à cabeça, e ele fica curtindo a preguiça sob os lençóis. Lá fora o mundo pode esperar, o tempo que passe. Aguarda que alguém venha lhe trazer o café na cama. Afinal, está de férias. Doce ilusão! A mulher entra no quarto, abre as cortinas, puxa o lençol e despacha o marido para o banheiro, pois a empregada precisa fazer faxina. – Não pense que vamos viajar e deixar a casa como está. E aproveite pra levar o carro para o mecânico regular. Depois, vá ao banco pagar essas contas. E não se esqueça de passar no supermercado pra comprar o que vamos levar.

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Com os olhos estremunhados de preguiça, o marido se rende à realidade e vai resolver os problemas que tem que resolver, sob pena de não viajar. No banheiro, a descarga está vazando, ele prometera à mulher consertá-la assim que saísse de férias. Terá que cumprir a promessa. Após o banho, o cidadão vai à cozinha tomar café. Nada encontra pronto. Segundo sua mulher, não há tempo pra essas coisas, precisa arrumar a casa e a empregada está atarefadíssima. Abre a geladeira... nada de interessante. A mulher manda ele se vestir e o põe para fora de casa, para não atrapalhar. Nas horas seguintes, resolve problemas, cumpre compromissos, tudo como antes. De férias, mesmo, só na ideia. Volta para casa, ainda não pode entrar, a faxina não acabou. – Mas eu estou de férias... – E daí? A casa tem que ser arrumada. Já consertou a descarga do banheiro? Ele esquecera a bendita descarga. Pega o carro de novo e vai comprar as peças na casa de material de construção mais próxima. – Pois não, senhor. Qual a marca e o tipo? Ele não se lembra. Tenta explicar ao vendedor, mas não consegue. Volta para casa. A mulher, zangada, só o deixa entrar porque é preciso. Ele pega o papel, faz um desenho tosco da descarga e volta para a loja. O vendedor pega o desenho, franze a sobrancelha e pergunta: – Tô entendendo. Mas, qual é a marca? Ele havia se esquecido de anotar. – Sabe, é que estou de férias e... – tenta uma explicação fajuta. Só de pensar em retornar à casa e ter que dizer à mulher o que acontecera já lhe dá um suor frio. Resignado, pediu: – Me dê qualquer uma. Se não encaixar, eu quebro a parede. Estou de férias mesmo...

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Estranha febre Apesar dos tempos bicudos, com direito a recessão, inflação disfarçada e outros bichos de sete cabeças, o brasileiro está consumindo. E como! Os shoppings estão sempre cheios, as ruas comerciais congestionadas e os supermercados botando carrinhos de compras pelo ladrão. A verdade é que os apelos para se consumir são muito fortes. As lojas oferecem crédito “de pai pra filho”, os anúncios de TV mostram produtos importados “da mais alta tecnologia do mundo”, os artigos comestíveis são apresentados em embalagens tentadoras. Um primo meu confessou-me que, de tempos em tempos, era acometido de uma estranha febre consumista. Saía do escritório, entrava em um hipermercado e enchia três carrinhos com tudo o que gostaria de levar para casa. O tempo maior era gasto na seção de importados, onde pegava tudo do bom e do melhor. Depois, quando se sentia plenamente satisfeito, largava os carrinhos e ia embora para casa. Um belo dia, essa prática lhe causou um sério aborrecimento. Esse meu primo sofria de um outro problema, aliás hereditário: quando metia a mão no bolso ela entrava em espasmo e trancava. O Barão de Itararé, de saudosa memória, costumava dizer que “pobre quando mete a mão no bolso só tira cinco dedos”. Meu primo, coitado, nem isso. Só saía um punho crispado. Voltando àquele dia fatídico, quando, em pleno surto consumista, o meu primo havia enchido, e bem, os três carrinhos, notou uma movimentação diferente entre os fiscais do tal hipermercado. “Fui descoberto!”, pensou ele. 78


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Dois dos fiscais se aproximaram e, fingindo gentileza, se ofereceram compulsoriamente para empurrar os carrinhos em direção à bateria de caixas. Não houve jeito, as mercadorias foram registradas. Na hora da assinatura do cheque, a mão de meu primo teve um espasmo e trancou. Ele não conseguia segurar a caneta. O fiscal-chefe rangeu os dentes. Meu primo fez uma expressão de dor e disse, agoniado: – Não vê que não posso assinar? Minha mão não consegue abrir. – Não tem problema. O senhor assina nem que seja em cruz ou com o dedão. O banco paga. Há muito tempo que a gente tava de olho na sua pessoa. A gente ia mandar o senhor devolver tudo nos lugares, coisa por coisa... – Eu até prefiro! – Prefere nada! Agora, já tá tudo registrado – replicou o fiscal-chefe. Virou-se para a moça da caixa e ordenou: – Me dê a almofada de carimbo, rápido! Para encurtar a conversa, meu primo acabou levando aquilo tudo para casa. Pagou com o cartão para fugir da humilhação de botar o polegar no cheque. Ao abrir a porta, sua mulher arregalou os olhos, surpresa, e abraçou-se a ele, chorando. – Você se lembrou do meu aniversário! Quanto presente... Chorava ela, chorava ele, embora por motivos diferentes. A partir daquele dia, esse meu primo ficou inteiramente curado da tal febre consumista. Porém, o problema com a sua mão se agravou: hoje, ela sofre o espasmo antes mesmo de entrar no bolso.

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Foguetório na cidade A cidade

de Bom Caminho amanheceu debaixo de foguetório. Às quatro da matina, o céu clareou de vez e parecia estar caindo na cabeça da população que ainda dormia. Portas e janelas se abriam, pessoas saíam de casa, de pijamas e camisola, para saber o motivo de tal barulheira. Afinal, não era dia de festa de santo, nem data cívica local ou nacional, nem o prefeito nem a mulher do prefeito fazia aniversário. Alguns, ainda zonzos de sono, pensaram na volta de Lampião, em ataque de guerrilheiros, tiroteio de assaltantes, e procuraram se abrigar debaixo das camas, dentro dos armários, essas coisas. Outros, naturalmente militantes da oposição política, vislumbraram a esperança de que tropas do governo estivessem a sitiar e metralhar o prédio da prefeitura para “arrancar de lá a súcia de corruptos e ladrões”, capitaneada pelo prefeito Zé da Manga, “aquele safado!”. Parentes e correligionários do prefeito acharam que ele estava comemorando o fato de, no dia anterior, a Câmara dos Deputados em Brasília ter derrubado a emenda que acabaria com o nepotismo no país: “Nossos empregos estão salvos!” Dona Genoveva, a mulher do prefeito, quando abriu os olhos assustada e viu o outro lado da cama vazio, achou que aquilo era coisa de seu marido, que ele tivesse levantado bem cedinho para providenciar o foguetório. Mas não entendeu nada quando Zé da Manga apareceu correndo e segurando as calças do pijama, vindo lá dos fundos de casa, onde ficava o quarto da empregada. Um pouco mais adiante, na mesma rua, seu Peroba, o alfaiate, ao acordar com o pipocar dos rojões, sorriu: “Alguém se lembrou do meu 80


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aniversário”. E tratou de se vestir decentemente para sair e receber os parabéns dos vizinhos. Na delegacia, o carcereiro de plantão pulou da maca onde dormia, já com o revólver na mão. Pelo sim, pelo não, soltou os dois ladrões de cavalo que estavam presos e cuidou de se fechar na cela. Por obra do sacristão e para desespero do vigário, os sinos da igreja matriz começaram a tocar, fazendo coro com os foguetes e aumentando mais a confusão na cidade que acordava assustada. Tudo isso aconteceu em menos de dez minutos. De todas as ruas de Bom Caminho os moradores, alguns vestidos, a maioria ainda em roupas de dormir, foram chegando para a praça do mercado, de onde vinha o barulho todo. Um caminhão ali estava estacionado, e de cima da carroceria uns homens soltavam os fogos. Quando a população se acercou, os foguetes silenciaram e um alto-falante começou a tocar “Parabéns pra você”. Ainda de pijamas, Zé da Manga se adiantou da turma e foi interpelar o pessoal do caminhão: – Eu sou o prefeito. Que diabo está acontecendo aqui, acordando todo mundo dessa maneira? – Ué, não foi o senhor que encomendou? A cidade não está fazendo aniversário? – rebateu Bié, o fogueteiro e motorista do caminhão. – Zorra nenhuma! Quem faz aniversário hoje é Barro Branco, a quinze quilômetros adiante daqui. Arrasado com o fora que deu, o motorista desligou o som, deu partida no caminhão e tratou de sair da cidade, o dia já clareando. Não adiantava mais ir a Barro Branco, o estoque de rojões tinha acabado e o prefeito de lá não iria querer pagar pela barulheira que derramara sobre Bom Caminho. Resignado, Bié aceitou o prejuízo e tocou o carro de volta pela estrada.

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Esquecendo nomes Eu

ando mesmo meio esquecido. Às vezes, estou conversando, ou escrevendo, e esqueço a palavra que quero usar. Nomes de pessoas, então, são meus fregueses. Já fui a alguns médicos. Doutor fulano me receitou um remédio conhecido e muito usado ultimamente que agora não me lembro o nome. Depois eu digo. Já o doutor sicrano disse que iria me passar uma fórmula especial para ativar as funções cerebrais, muito receitada hoje em dia para quem sofre do Mal de Alzheimer. Indignado, abandonei o consultório e nunca mais voltei. Um terceiro, o doutor beltrano, me aplicou uma série de testes de capacidade mental. Acertei tudo. Só perdi no item “pagar” na saída da consulta. Mas, dias depois ele me lembrou, mandando a conta pelo correio. Há meses venho tomando um tal de... de... deixa pra lá! Não é importante. Não adianta dizer o nome porque não sou de recomendar remédio para ninguém. Mas esse é bom! Pelo menos, não tenho esquecido o nome de minha mulher e os de minhas filhas. Já o da empregada... Ela, uma senhora de meia-idade, até que tem gostado, pois quando quero chamá-la, apelo para “Ô, menina!” Ela fica toda fagueira e me elogia para todo mundo: – Gente fina, esse meu patrão! Tenho passado vexames fora de casa. Olho para uma pessoa que conheço e esqueço o nome. Outro dia, fui procurar um conhecido para lhe pedir um favor de que muito precisava. O nome dele é Pedro, bastante comum até. Mas botei na cabeça que ele se chama Arnóbio. Comple82


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tamente diferente. Quando o tratei de Arnóbio, ele emendou, incontinente: – Pedro. – Desculpe, sabe como é, às vezes a gente troca os nomes. Toda vez que olho para você, o Arnóbio me vem à cabeça (ele tinha uma fisionomia característica de Arnóbio). Com você não é assim, Arnóbio? – Pedro!. – Me desculpe mais uma vez. Preciso me policiar. – Eu não aguento mais esse “Arnóbio” – respondeu Arnóbio, isto é, Pedro, já meio aborrecido. – Que tal variar, me chamar por outro nome? Por exemplo, Oliveira, meu sobrenome? – Mas eu já estou tão acostumado a chamá-lo de Pedro que não conseguiria tratá-lo por outro nome. Vá perdoando, Arnóbio. – Pedro, porra! – Ih! Vai começar tudo de novo... Certa vez, fui à livraria. Queria comprar um livro que um amigo havia lançado muito recentemente e cujo título eu tinha esquecido. A vendedora me atendeu muito gentil e pacientemente. – Bem, é um livro assim... e assim... –, expliquei, usando as mãos para mostrar uma forma. – Quase todos os livros têm essa forma, senhor. Uns maiores outros menores. – Eu sei, eu sei. Mas esse ... eu sabia o nome hoje de manhã, depois esqueci. Eu anotei lá em casa. Se eu olhar para a cara dele eu reconheço. – Claro, claro – respondeu a vendedora, desconfiando que tratava com um débil mental. – O senhor fique a vontade – e fez um gesto com o braço, abrangendo toda a loja. Eu insisti: – Peraí que lhe digo já. Ele tem uma lua na capa deste tamanho – e juntei as pontas dos dedos indicadores e dos polegares para mostrar o tamanho da lua. 83


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Só que a lua não ficou muito bem redonda, e a moça de morena ficou amarela, depois vermelha. Eu continuei: – A capa é assim, uma lua enorme sobre uma cidade adormecida e tem o nome em cima. A vendedora se recompôs, já agora com a certeza de que tratava com um débil mental. – Meu senhor, com essas indicações só um milagre... – É isso mesmo – gritei, eufórico – “Um milagre na lua”. – Desculpe, senhor. Não temos nenhum livro com esse título. Pensei um pouco. – Nem “Um milagre no rio”? – arrisquei de novo. – Não, senhor. É melhor o senhor voltar para casa, anotar o nome do livro e me trazer. O senhor conhece o autor? – É meu amigo. A moça abriu um sorriso, que eu não sei se era de alívio ou de sarcasmo. – Ora, pois! E como é o nome dele? – Esqueci.

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Feliz Milênio Novo! Embora este texto esteja sendo publicado em fevereiro, ele foi parido e cuspido nos primeiros dias de janeiro, ainda sob os eflúvios das festas do início do novo milênio e antes do autor sair em férias – da cidade, é claro, porque escritor nunca tira férias. Ultimamente, temos, minha mulher e eu, passado o Réveillon no asfalto do Farol da Barra. Festa concorrida, democrática, tranquila, alegre e, principalmente, barata. A gente não precisa gastar horrores para sentar o rabo ao redor de uma mesa de bar e receber, de cortesia, quatro caranguejos e uma garrafa de sidra. Na rua, as latinhas de cerveja abundam, como também as bundas redondas das gatinhas e as chapadas das gatosas. A cerveja sai a um real e as bundas são de graça. Claro que pra olhar, não pra pegar. Há quem não se contente com a cerveja e leva para a rua garrafa de champanhe. Descobri depois que não era para beber, mas para fazer chuveirinho nas cabeças vizinhas. O pior é a mistura da qualidade. Recebemos, minha mulher e eu, muito respingo de champanhe seco, de suave e até de meio doce. Porém, fiquei indignado quando um casal bem vestido, de quem eu pensei poderia partir um bendito chuvisco de Möet Chandon, nos aspergiu com sidra. De qualquer maneira, é melhor do que receber uma chuva de cerveja, que deixa o cabelo da gente duro como se tivesse aplicado um fixador. Meia-noite, as luzes da rua se apagam, a música para. Lá em cima, fogos coloridos espocam, iluminando o céu, a praia, o mar, e a massa de boca aberta, como se nunca tivesse visto espetáculo igual! 85


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A turma se abraça, se beija, desejando um Feliz Milênio Novo, como se todos ali fossem viver durante os próximos séculos. Alegria contagiante, todo mundo em congratulações... e recebendo chuvaradas de champanhe e cerveja. Na confusão, agarrei minha morenaça, levantei-a, beijei-a longamente na boca, desejando-lhe mil felicidades, aproveitando o clima reinante para lhe dar uns amassos, coisa que raramente faço em público. Quando a deixei no chão, descobri que não era a minha mulher. Ela é loura e estava ao lado, mãos na cintura, cara de quem não comeu e não gostou. – GRUMPFF! Quem é essa dona? – Oh, meu bem, foi um eng... – Engano nada ! Você sabia muito bem que eu estava aqui do outro lado. – É que estava escuro... – Escuro nada, descarado – e me puxou pelo meio da multidão para longe dali, não aceitando meus argumentos e pedidos de desculpas. Moral da história: o barato sai caro. Para aplacar sua ira, tive de levá-la a um restaurante chique fora da orla comemorante, onde ela pediu o prato mais caro e champanhe francês. – Meu bem, não serviria uma sidra? Pelo olhar que ela me passou deu pra ter uma ideia do estado em que meu cartão de crédito vai ficar durante este novo milênio.

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Pesquisa indiscreta A maioria das pessoas de minhas relações nunca foi entrevistada em pesquisas de qualquer natureza. É como enterro de anão e cabeça de bacalhau, ninguém conhece. Mas eu já respondi a uma pesquisa sobre hábitos, aliás, de triste memória. Estava um dia todo ensaboado no banheiro quando o telefone tocou. Não havia mais ninguém em casa. Minha mulher, Ofélia, e a empregada tinham ido ao supermercado, de forma que sai nu para a sala. – Alô! – atendi, meio ressabiado, o sabonete caindo nos olhos. – Muito bom dia, senhor... senhor... senhor... – Olegário – respondi, mentindo, obviamente. Era uma tremenda gata do outro lado do fio. – Senhor Olegário, pelo timbre de sua voz o senhor deve ser um galã de televisão. – Obrigado – respondi, a água e o sabão escorrendo pelo corpo e pingando no tapete, imaginando o que minha mulher iria dizer quando voltasse. Já passei dos cinqüenta, e não me considero esse balaio todo. Mas se a garota achava que eu era um galã, por que decepcioná-la? Pelo menos, um galã ensaboado. Como o papo poderia render, sentei no braço do sofá de pano, não mais pensando no que minha mulher iria dizer quando voltasse. – Posso lhe fazer uma pergunta íntima, senhor Olegário? A esta altura, a natureza começou a agir um tanto indecorosamente. Mas, como estava sozinho, deixei o barco correr. 87


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– Qualquer uma que você quiser, meu bem – meu grau de intimidade já estava passando dos limites. – Muito bem, o senhor não se importaria de responder sobre particularidades suas... – Imagina! – respondi, com a voz de locutor de motel. – Então lá vai: quando o senhor se veste diariamente, calça primeiro a meia direita ou a esquerda? – Por que não vem ver com os próprios olhos? Isso é lá coisa que se pergunte a um cara todo ensaboado no meio da sala? Decepcionado, ia desligar o telefone quando me virei e dei de cara com a empregada, que tinha entrado pela porta dos fundos e estava estatelada. – Seu Olegáááário! Para maior infelicidade, minha mulher vinha atrás. Quando viu a cena, o marido peladão e armado, o telefone na mão, o tapete e o sofá molhados, ficou uma fera. Corri para o banheiro. – Com quem você estava falando? – gritou ela, acompanhando a entonação com murros na porta. – Com sua mãe, meu bem. As últimas coisas de que me lembro foi a porta desabando, um saco de batatas vindo em minha direção e a voz irada de Ofélia: – Minha mãe já morreu há dois anos, seu descarado!

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Velórios e enterros Por

incrível que pareça, um dos eventos sociais mais interessantes, onde acontecem coisas inesperadas, é o funeral. Apesar da comoção e tristeza de se perder um parente ou um amigo, é geralmente no velório onde se consegue renovar as novidades e até o estoque de piadas. Sempre há um grupinho reunido num canto do lado de fora, contando histórias entre um cafezinho e outro. Quando o som dos risos ultrapassa o nível aceitável, tem sempre alguém que lembra o finado. Então, as fisionomias ficam sérias, com olhares comovidos para o lado da câmara ardente. Mas, logo em seguida, as piadas continuam. Há casos de enterro engraçados. Um conhecido meu, o Juvêncio, caixeiro-viajante, hospedava-se um dia numa pensão de cidade do interior quando seu companheiro de quarto teve um treco e morreu. Após as providências médicas e legais de praxe, o corpo foi embarcado de tecoteco para a capital a pedido da família. Como os sapatos do defunto estavam velhos, sujos e furados, Juvêncio resolveu emprestar os seus, de cromo alemão, caríssimos, e levou nos pés os sapatos esburacados do amigo. Mais tarde, trocaria. No velório, aquele monte de gente chorando ao redor do finado, Juvêncio olhava o relógio e os sapatos, apreensivo com a hora do fechamento do caixão. – Com os meus ele não vai! Depois do corpo encomendado, tomou coragem e resolveu trocar os sapatos com o defunto ali, à vista de todos. Foi um vexame! Protestos, 89


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reclamações, discussão. O cunhado do defunto quis partir pra briga, o padre ameaçou Juvêncio com a excomunhão, um berebedê! Ele ainda quis argumentar, propôs enfiar umas flores nos buracos da sola. Nada de acordo! Final da história: o falecido foi enterrado com os sapatos novos de Juvêncio, que chorava até mais que o pessoal da família. De outra feita, o enterro já ia adiantado, todos observavam os coveiros lacrarem a lápide com argamassa, quando um celular tocou... lá dentro. No empurra-empurra das despedidas, alguém deixara o telefone cair dentro do caixão. Os coveiros pararam o trabalho, os familiares discutiam, “foi o meu”, “foi o seu”, “abre”, “não abre”, “abre que é importado!” Um engraçadinho aproveitou e mandou lá de trás: – Deixa que ele atende! Abriram a sepultura e o caixão, o telefone insistindo em tocar. O dono atendeu. Era engano. Mas até hoje ele acha que foi o finado que ligou, avisando do celular esquecido. Na maioria das cidades do interior não há velório no cemitério. Os mortos têm suas vigílias em casa, e na hora do enterro o caixão vai carregado pelas ruas até o campo santo. Quando Bonifácio morreu, seus poucos amigos de farra pegaram o caixão na mão grande, acompanhados da viúva e dos filhos menores. No meio do caminho, pararam num bar para umas cervejas. Afinal, o bicho era pesado e o calor estava demais. E o defunto na porta, guardado pacientemente pela família. De vez em quando, um dos amigos dizia: – Bonifácio, calma aí, calma aí que você já vai. Não vai demorar! Vexada, a viúva chorava, pois além deles não havia mais ninguém para carregar seu marido. Teve de esperar esvaziarem um engradado antes de completar o percurso. Na volta do cemitério, já de noitinha, a turma passou de novo no bar para comemorar. Outro engradado esvaziado. E um deles desabafou: – Rapaz, Bonifácio deu um trabalho da porra. Mas ele foi! 90


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Conheci um cara, já aposentado, que morava sozinho no bairro da Federação. Solteiro, tímido e reservado, não tinha amigos. Para driblar a solidão, quase todas as tardes ele ia ao Cemitério do Campo Santo, ali perto, e ficava peruando os velórios, observando o movimento, encostando-se nos grupos para ouvir as conversas. Chegava ao ponto de decorar o nome dos defuntos para o caso de alguém comentar alguma coisa e ele não ser pego no contrapé. Certo dia, o movimento era fraco e apenas uma capela estava ocupada. Só tinha mulheres. E poucas, umas quatro ou cinco. O único homem no recinto estava lá deitado, com um ramo de flores nas mãos, sendo acariciado pela viúva. Intrigado, Bonifácio ficou por ali, como não quer nada, esperando que aparecessem os homens da família para levar o caixão. Foi a sua desgraça. Não chegou mais ninguém, e ele, convocado pelas mulheres, teve de ajudar a carregar o caixão. E pelo lado da cabeça, o mais pesado, tropeçando nas pedras irregulares e escadas do Campo Santo. Naquele tempo não havia carrinhos de empurrar, quanto mais os motorizados de hoje. Resultado: Bonifácio entortou a coluna e saiu envergado direto para uma clínica ortopédica. Jurou que nunca mais voltaria ao cemitério, a não ser quando fosse a sua vez.

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Gases poluentes Estava eu a meditar na privada sobre o efeito que os gases liberados pelas vacas provocam na atmosfera da Terra, conforme alguns cientistas europeus descobriram, aumentando terrivelmente o buraco de ozônio na Antártida (como se houvessem vacas na Antártida, ora me deixe!), quando me dei conta de que nós, baianos, devemos poluir mais que as pobres ruminantes, coitadas, que não comem moqueca, feijoada, sarapatel, mocotó, buchada de bode, só para citar uns alimentos mais leves. O presidente George W. Bush disse outro dia que os americanos são, sim, os maiores poluidores do ar no mundo, mas que os EUA não iriam apoiar o Acordo de Kyoto, assinado pela maioria dos países, que se obrigava a reduzir a emissão de gases por parte dos seus habitantes. O argumento do governo americano é simples: como os Estados Unidos são o país mais rico do mundo, seria uma grande dificuldade conseguir que sua enorme população diminuísse o consumo de hotdogs, batatas-fritas e pipocas, aliado à ingestão desmesurada de cocacola que, como se sabe, é usada também para turbinar os motores dos carros de Fórmula 1. Entretanto, alguns cientistas contra-argumentam, dizendo que a medida reduzicionista nos EUA seria importante, pois descobriu-se que o grande consumo daquelas besteiras pelos ianques é a principal causa da formação de ciclones e tornados que devastam, todos os anos, centenas de cidades no Meio-Oeste do país, provocando inúmeras mortes e enorme prejuízo econômico. 92


O galo Bin Laden

Técnicos climáticos explicam melhor o fenômeno: no verão, com o calor, a baixa pressão atmosférica e o aumento de consumo alimentar, há uma grande concentração de ácido sulfídrico pairando sobre os EUA. Como esses gases tendem a se expandir para o Sul e para o Norte, o pessoal que mora na América Central e no Caribe começa a soprar para cima, e os canadenses, para baixo, formando assim correntes contrárias de vento e ocasionando os furacões. Defensores do meio-ambiente estão preocupados com o futuro dos Estados Unidos, e citam o exemplo da África, que em priscas eras foi o celeiro do mundo. Tinha tanta floresta, tanta comida, e tanta gente e tanto bicho comendo por lá que seus gases provocaram uma destruição geral, daí surgindo o deserto do Saara, no norte, e as vastas savanas, no sul do continente africano. No Egito a coisa foi tão braba que a Esfinge de Gizé teve o nariz carcomido pelas ondas de mau cheiro, e o pessoal de lá, que só tirava retrato de perfil, preferia se esconder todo enrolado sob pirâmides. Nós, aqui em Salvador, não temos esses problemas. Durante quase todo o ano somos abençoados com a brisa generosa que vem do oceano e que espalha nossos gases por sobre as águas da Baía de Todos os Santos. E graças a isso é que temos o privilégio de, no verão, apreciar um pôr do sol maravilhoso, todo vermelho, da cor do azeite de dendê do acarajé que tanto se come por aqui na alta estação.

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Santos anônimos Um amigo meu confessou outro dia que, quando a coisa aperta, ele apela para um santo. Mas não um santo qualquer para quem todo mundo reza, cuja igreja já não tem onde botar tanta vela e ex-votos. Ele disse preferir um santo sem prestígio, que ninguém conheça nem dê atenção. Um santo cuja agenda não esteja tão carregada ao ponto de só lhe poder atender o pedido no próximo mês ou no ano que vem. Não, ele prefere um santo anônimo, de quem ninguém se lembre, pois este está sempre desejoso de ajudar alguém, mas ninguém lhe pede nada. Meu amigo diz que, nesse caso, a graça sai rapidinha, sem muita burocracia. E não precisa ser um santo especialista, como há muitos por aí: Santo Antônio, para as solteiras; Santa Edwiges, para os endividados; São Cristóvão, para os motoristas; São Judas Tadeu, para os desesperados; São Cosme, para os que não sabem onde largaram os óculos, e por aí vai. O santo a quem ele apela resolve qualquer problema, numa boa. Não se aperta. É como aqueles médicos clínicos antigos que entendiam de tudo. Hoje tem até médico especialista em cabeça de dedo! Tudo começou quando esse meu amigo estava com um problema medonho para resolver. Virava, mexia, botava a cabeça para funcionar... nada! Não conseguia ver a saída. Noites muito mal dormidas! Morador das redondezas desde menino, chegou a dar um pulo na Igreja de Santo Antônio da Barra para ver se Toinho se lembrava dos tempos em que ele frequentava as missas das terças-feiras levado pela mãe. Mas, quando viu aquela multidão na escadaria, bateu em retirada: “Ele deve estar muito ocupado”. Voltou para casa, a cabeça mais quente ainda, e abriu um velho livri94


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nho religioso que fora de sua mãe. Nele havia uma lista de santos desconhecidos, dos quais ninguém havia sequer ouvido falar. Vinham juntas as respectivas orações para se conseguir uma graça. Fechou os olhos, abriu numa página qualquer e, contrito, fez o pedido. Batata! Pela tarde, seu problema já estava resolvido. Em outras vezes ele testou outros santos, sempre desconhecidos. Não falhou um. E de lá pra cá, sempre quando precisa, pede uma mãozinha a seus amigos anônimos, que ele se recusa a nomear. – Não é por egoísmo, não. Mas se a turma ficar sabendo, as salas de espera desses santos vão ficar coalhadas de gente, e eles só vão poder atender meus pedidos depois de 2002, que, aliás, é ano de eleições.

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O bar de Nenzinho Todo fim de tarde a turma se reunia no bar de Nenzinho para jogar conversa fora e botar umas geladas para dentro. Pouco maior que uma biboca, o bar de porta de arriar ficava na praça do mercado, e duas das suas mesas eram reservadas ao pessoal. Ninguém mais se aventurava a ocupá-las depois das cinco, sob pena de receber uma repreensão de Nenzinho. Ali há anos era ponto de encontro do juiz dr. Peroba, do alfaiate Zé da Linha, de Cunegundes, dono do armazém, de Malaquias, chefe da coletoria estadual, de Olegário, funcionário público aposentado e ilustre pescador e caçador, mentiroso como ele só. Também mantinha cadeira cativa um vereador de nome Barbosa, sempre na oposição para, dizia ele, “poder esculhambar com a situação”. Às vezes, o vigário Teobaldo aparecia para um dedo de prosa, mas sempre depois de noite fechada, protegido pelas sombras dos olhos das beatas. Havia mais uns dois ou três frequentadores assíduos, de posições mais modestas na sociedade, porém não menos importantes na roda. Nas demais mesas sempre havia movimento, clientes normais como as “meninas” do Buraco Doce, nos fundos do mercado. No bar de Nenzinho, discutia-se sobre tudo, desde política e filosofia barata a economia do município, a vida dos outros, contava-se mentiras e, naturalmente, piadas. Umas leves, outras mais pesadas. Aí então o barulho das risadas se espalhava pelas ruas próximas. A democracia imperava na roda de amigos, embora o dr. Peroba, o mais velho e chefe natural do grupo, fosse quem coordenasse as discus96


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sões. Isso até a terceira garrafa de cerveja. A partir daí, o juiz arriava a cabeça no peito e só acordava quando todos iam embora. Nenzinho também participava das conversas, mas sempre atrás do balcão, fumando seus charutos ordinários, cuja fedentina ninguém aguentava. Na parede do fundo, em meio a várias propagandas de bebidas, cigarros e um calendário de mulher nua, havia um letreiro bem original: “Proibido simbalançar nas cadeira, cujas não é balanço.” Ao lado, um outro bem lúgubre: “Fiado só por cima do meu cadáver!” Tonho Bebão, o bêbado mais chato da cidade, vez em quando tentava, mas não dava sorte. Um dia, aborrecido com a recusa, pegou a faca para enfiar em Nenzinho, mas caiu dormindo por cima do balcão. Jogaram-no na rua, e ele ficou proibido de adentrar o recinto para o resto da vida. Até morrer, ficava do lado de fora, encostado no poste, olhando para dentro com cara de cachorro em porta de açougue. Mesmo com alguns fregueses importantes, o bar de Nenzinho era considerado um “antro de perdição”. As senhoras mudavam de calçada e as autoridades municipais jamais chegavam perto com receio da língua da turma, que espalhava boatos e maledicências pela cidade. O prefeito principalmente, porque morria de medo do juiz, que sabia de suas maracutaias e que, por dever de ofício, despachava intimações mensais à prefeitura. Um dia, o bar não abriu: Nenzinho havia morrido. A notícia correu pelas ruas da cidade, descendo e subindo as ladeiras, entrando e saindo das casas, passando de janela a janela. Na prefeitura, ouviu-se um pipocar de foguetes. O prefeito baixou um decreto fechando o bar por “interesse de saúde pública”. Mas a turma não se intimidou. À tardinha, depois do enterro, pegaram a chave na casa da viúva e foram prestar as últimas homenagens a Nenzinho no local de reunião. Entraram, sentaram nas mesas e se serviram das cervejas que estavam a gelar desde o dia anterior. Discursos e mais discursos, lembranças de 97


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casos passados, piadas antigas. Outros fregueses apareceram, mas foram logo embora. As cervejas apareciam nas mesas e os cascos vazios logo eram retirados No meio da noite, todos bêbados, deram-se conta de que era a assombração de Nenzinho que servia as bebidas. A debandada foi geral. Entre gritos de pavor, derrubaram mesas e cadeiras, quebraram copos e garrafas, e na saída ainda tropeçaram na alma de Tonho Bebão, que também viera para as homenagens a Nenzinho. Nunca mais o bar abriu. Não por causa do decreto municipal, mas por falta de quem quisesse ser seu freguês. A viúva tentou vender, mas ninguém quis comprar. Quem iria querer ser dono de um bar com um fantasma dentro?

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Mudanças em casa O

mundo vive hoje um período de mudanças quase que vertiginosas. As transformações são diárias. O que hoje é uma coisa, amanhã já será outra. E amanhã elas serão horárias: uma hora é uma coisa, na hora seguinte, já mudou. Sei disso, tenho plena consciência de tudo. E procuro me adaptar aos novos tempos. Mas o que ainda não consegui entender é como os objetos lá em casa mudam de lugar, assim, num piscar de olhos. Tudo por causa de uma faxineira que vai uma vez por semana dar uma geral. É uma excelente funcionária, mas tem uma péssima memória. Em algumas horas ela varre a casa, lava os banheiros e cozinha, passa a roupa, limpa os móveis, o que está por cima e por baixo, enfim, faz tudo o que uma boa faxineira faz. O seu diferencial, entretanto, é um toque plus que as outras não oferecem: ela muda tudo de lugar. Outro dia, cheguei em casa, abri a porta da frente... e fechei rápido. Aquela não era a minha casa! Eu havia me enganado de porta. Qual seria a desculpa se me pegassem entrando no apartamento errado? Suando frio, o coração batendo, voltei para a entrada do edifício. Conferi o nome e o número, eram os mesmos. O pavimento de casa era o mesmo, térreo, não tinha como errar. Me voltei e tirei uma reta pelo corredor em direção à porta lá no fundo. Era a porta lá de casa, sempre foi, desde que me mudei. Pelo sim, pelo não, toquei a campanhia. A faxineira abriu a porta. Era lá, mesmo. Olhei para a sala. Os móveis e os quadros estavam todos trocados. Como ela conseguiu colocar a cristaleira onde sempre ficava o 99


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sofá e as poltronas, que foram para o lugar da cristaleira? A mesa de jantar ela botou encostada lá no fundo, de maneira tal que, se eu quisesse chegar à janela, teria que pedir licença às cadeiras. A mesinha de centro virou de canto, e as fotografias que ficavam sobre ela foram parar em cima da cristaleira. O enorme retrato de minha sogra estava de frente ao quadro sobre candomblé que ela detestava, e que a gente sempre teve o cuidado de deixá-los lado a lado. Apavorado, olhei para ver se ela tinha mudado de lugar a escada em espiral que dá acesso ao segundo andar. Graças a Deus, ainda estava lá. De qualquer maneira, subi, bem atento. Ela poderia ter trocado os degraus que sobem pelos que descem, quem podia saber? Antes, fui olhar a cozinha, com medo dela ter colocado a geladeira no lugar do fogão e ligado a geladeira no bujão de gás. Já lá em cima, corri ao escritório. Nos meus livros ela não mexe, está proibida! Desde o seu primeiro dia de serviço, quando fiquei até meianoite rearrumando os volumes nas estantes e tentando entender que zorra de ordem bibliográfica ela havia inventado. Do computador também nem chega perto. No máximo, um paninho seco na área ao redor. Mas, nessa área, a bancada que é o meu território imperial, onde ficam pastas, papéis, anotações, agendas, portas-canetas e outros objetos pessoais de uso rápido e constante, ela faz um carnaval pra ninguém botar defeito! Fui olhar o banheiro. Tudo bem. Era capaz dela ter botado o vaso sanitário no box e abrir o chuveiro para dar descarga. Fui inspecionar o quarto para ver se a cabeceira da cama ainda estava no lugar ou se tinha passado para o pé. Tudo bem. Mas a colcha de cobertura estava ao avesso, e os travesseiros, trocados como sempre. Nunca acerta. Enfim, ela é uma ótima faxineira, mas a gente tem que ir atrás botando tudo nos seus devidos lugares. Agora, nos dias de faxina, antes de chegar em casa eu tenho que telefonar para saber se ainda moro lá ou já mudei de endereço. 100


Sonhos e pesadelos As pessoas sonham e têm pesadelos com coisas que fazem parte de suas vidas, seus trabalhos. Há profissionais – são poucos – que conseguem dormir como passarinhos. Mas a maioria se vale dos dormonides, loraxes e programas de TV da vida para poder descansar a cuca após um dia de labuta. Outros contam carneirinhos a pularem a cerca. Dizem que caixa de banco, quando sonha, conta dinheiro e cheques que passam pelo guichê. Quando é pesadelo, as notas são falsas e os cheques não têm fundos. Psicólogos e psicanalistas são mais felizes. Sonham com os problemas dos outros, e para relaxar ficam vendo almofadas passarem. Dentistas contam obturações e acordam assustados quando a sala de espera está vazia, as revistas do ano passado ainda bem arrumadas na mesinha de centro. O pecuarista dorme feliz ao se imaginar comprando gado pelo relógio: “Vinte minutos de garrote!” E garrotada toda entrando no curral para ser ferrada. O sono fica mais profundo com o cálculo das arrobas no fim da engorda, aqueles baitas bichos saindo para o frigorífico. Mas acorda berrando com a seca que esturrica os pastos: “Como é que vou pagar a Pajero e a viagem de minha mulher a Miami?” Já o compositor se embala com notas musicais dançando pela pauta, em perfeita harmonia com lindos versos. E desperta assustado quando sonha que aquela melodia que gravou na semana passada é plágio da obra de um antigo autor.

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Com o jornalista, a coisa é diferente. O sono só vem depois que as letras vão pulando da máquina de escrever para o papel (que coisa mais antiga!) – ou das teclas do computador para a tela do vídeo – formando frases conexas, um belo texto. No meio do segundo parágrafo, o cara já está ressonando. Mas, se após o fechamento do jornal ele passou no barzinho para tomar umas e jogar conversa fora, já deita roncando. Pesadelo de jornalista é terrível. Uma noite ele sonha com o contracheque: “Saldo líquido: negativo”. Na outra, acorda gritando, apavorado com uma manchete que ele lembra ter dado no cabeçalho da primeira página com um bestial erro de concordância. De pijamas e chinelos, cabelos desalinhados e ainda com o mingau das almas na boca, corre de madrugada para a banca de revistas da esquina. – O jornal ainda não chegou? Foi a minha manchete. Valha-me, Deus, estou despedido!

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Carnaval na avenida Antigamente, o Carnaval em Salvador era mais tranquilo. Sentava-se em cadeiras no passeio ao longo da avenida para ver os corsos de carros alegóricos passarem. Uma vez, perguntei a um tio qual a graça da folia naqueles tempos. E ele respondeu, com os olhos brilhando: – Ah! Era muito animado! Eu jogava confetes na boca dos meus amigos, eles jogavam confetes em minha boca, todo mundo jogava lança perfume nos olhos dos outros... Mais tarde, vieram as levadas, as batucadas, os blocos de instrumentos de sopro – os famosos chupa-catarro –, e os trios elétricos independentes, que passavam de quando em quando. Aí, o pessoal das cadeiras se levantava, dançava um pouco e se sentava de novo, esperando a próxima atração. Uma animação só! Hoje em dia, a coisa está mais movimentada. Bandas e bundas percorrem os dois circuitos oficiais do Carnaval na cidade, arrastando multidões. Mas há um bloco no qual a gente sai, um chupa-catarro – não vou dizer o nome nem o seu percurso para não dar na pinta – cujos componentes já não têm, vamos dizer, tanto pique assim pra sair atrás de um trio elétrico. A turma hoje prefere uma “Bandeira branca” a um “Corre, corre, lambretinha”. “Cabelo raspadinho a Ronaldinho”, nem pensar! A preocupação dos diretores do bloco é que, a cada ano que passa, a faixa etária está aumentando a olhos vistos. Tanto por crescimento vegetativo quanto por novas adesões. Já se pensa até em colocar atrás do bloco, no ano que vem, um carro de apoio da Samu. 103


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A idéia está sendo estudada com carinho, mas pode ser uma faca de dois gumes: ou esculhamba logo com o prestígio do bloco ou se aproveita o limão para fazer uma limonada, abrindo inscrições para torná-lo “O maior bloco geriátrico da Bahia!”. Mas a mania agora é criar moda, principalmente em termos de música: “Pega na bundinha”, “Abaixadinho”, “Joelhinho, joelhinho, cabeça”, com suas respectivas coreografias. As garotas de certo bloco muito procurado resolveram fazer competição entre elas, colecionando beijos de rapazes. A graça era percorrer o bloco, agarrando os garotos pelo pescoço e lascando-lhes um beijo na boca. Depois, anotavam num caderninho e, no fim do desfile, confrontavam os respectivos resultados. Ordália, que já não era tão gatinha, mas uma gatosa (gata idosa), se deu mal. No afã de aumentar sua lista de beijos, pegava todos os gatinhos que passavam na sua frente. Até que um deles, após se debater em seus braços por longos dois minutos, conseguiu se desvencilhar e gritar, indignado: – Titia!!! Outra que nunca mais pretende entrar no tal bloco é Maria das Dores. Saiu do Carnaval com as pernas doendo de tanto correr. Deu um chupão tão forte num turista bonitão, mas de certa idade, que lhe arrancou a dentadura. Quando sentiu o volume na boca, Dora cuspiu a prótese no chão, e o pessoal que vinha atrás a pisoteou até estraçalhar. Com a boca fofa, o cara, coitado, se encolerizou: – Forra! O que foxê fez, xua futa?!!! E partiu para pegar Dora, que passou o resto do desfile na avenida correndo ao redor do trio, fugindo do turista. O resto da turma, pensando que ela puxava uma fila de ‘trenzinho’, aderiu à brincadeira e saiu atrás. Estava inaugurada mais uma coreografia no Carnaval da Bahia. 104


Tabuleiro de xadrez Eu não sei jogar xadrez. Quer dizer, jogar, eu jogo, mas não me aventuro muito nos seus fundamentos. Na verdade, fico aqui em minha casa observando a movimentação do pessoal. É mais interessante, tem-se uma visão mais abrangente do campo de batalha. Só saio em última instância. Se tenho gente para se mexer por mim, por que vou me abalar? Aqui, eu sou o rei, mas querem me tirar do posto. Desconfio do bispo. Aquele papo mole, de confessionário, tentando vender a idéia de que o pecado pode ser perdoado. O bispo nunca vai direto ao ponto, sempre anda enviesado, e aí mora o perigo. Puxei um bispo de minha paróquia para junto de mim. Para todos os efeitos, na hora H eles que se entendam. Falam a mesma linguagem. O outro, deixei de sobreaviso. Disse para minha rainha ficar atenta, não permanecer parada. Deilhe total liberdade: sempre andar para um lado e para o outro, para cima e para baixo. E, vez em quando, dar um chega-pra-lá em quem aparecer na frente. Da mesma maneira que eu coordeno a movimentação da tropa daqui do meu posto de observação, ela tem a obrigação de me defender no front, pois o futuro e a reputação de um dependem do outro. Espalhei peões ao redor de casa para barrar as investidas. Eles, coitados, embora em maior número, são limitados. Não têm muita liberdade de ação. Só dão um passo de cada vez, no máximo dois, e geralmente são os primeiros a serem sacrificados. Não podem recuar. A cavalaria inimiga comporta-se de maneira estranha. Quando eu penso que um cavalo vai para lá, ele pula de banda e muda de direção, posicionando-se pelo flanco. Escorregadio! Insidioso! Convoquei os meus 105


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cavalos para barrar os adversários, mas eles ficam girando em estranha coreografia. Parece um carrossel quadrado. Desconfio que sejam gays. Mandei uma torre encostar em mim. Às vezes, preciso de um ponto mais elevado para observar a situação e avaliar o campo de batalha. À certa altura da refrega, a minha rainha bobeou e se viu encurralada entre a outra rainha, invejosa, que vinha irada pra cima, e um bispo, que se aproximou lépido, babando na batina. Ela preferiu o bispo, pois não era lésbica. O bispo a comeu, sem dó nem piedade. Bem, foi-se o anel, mas ficou o dedo. Achei-me, então, sozinho, desprotegido. Junto a mim só a torre, que não podia fazer nada, pois só anda numa direção de cada vez. Do outro lado, o meu bispo já tinha sido assediado pelo congênere inimigo, e estavam em conciliábulo. Ao fim da negociação, quando o clérigo predador chegou de banda às portas de minha casa, exigiu a prenda: – Vou lhe comer! Assustado, negociei: – Aceita cheque ou quer que eu me mate?

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O galo Bin Laden O terrorista mais procurado lá em casa foi um galo velho que minha sogra me presenteou como se frango fosse, que logo descobri não ser verdade. Vocês já viram frango com a crista grisalha? Nem eu. Mas, por educação, aceitei o presente. Foi o meu erro! Na primeira noite que passou lá em casa, o sacana do galo velho, que logo botei o nome de Bin Laden, dormiu na área de serviço. Às quatro da madruga, ele acordou o condomínio inteiro com o seu cocorocó. Um vexame! Logo, uma comissão de irados moradores, à frente o síndico, bateu na minha porta pedindo para que eu lhes entregasse o galo, que eles dariam um jeito nele. Recusei, exigi que me apresentassem provas consistentes de que o autor do atentado realmente teria sido o Bin Laden, que àquela altura já estava de bico amarrado e escondido dentro de um saco na despensa. Argumentei que o canto poderia ter sido da araponga de uma casa que fica nas imediações, impedi eles de entrarem, mandeios dormir e bati-lhes a porta na cara. Na segunda noite, Bin Laden dormiu solto mas trancado na cozinha. Às três da manhã, acordei com uma barulheira enorme. Pensei que o céu me caía na cabeça. Lembrei-me logo do Afeganistão de dias atrás. Seria um ataque de mísseis, bombas dos aviões aliados? Um verdadeiro escarcéu, panelas derrubadas, pratos quebrados, copos estilhaçados. Não tive dúvidas: o culpado era o Bin Laden. Levei um tempão para conseguir botar as mãos no galo. No escuro total – a luz havia sido cortada no dia anterior, eu havia esquecido de 107


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pagar a conta –, saí do quarto engatinhando para não ser detectado, passei pelo corredor, me arrastei pela sala e mergulhei na cozinha, de olhos e narinas abertas. Só esqueci das luvas anti-cocô. Quando eu pensei que Bin Laden estava sob o fogão, ele voou e se escondeu lá em cima dos armários, me bombardeando com as latas de mantimentos. Quando armei e escalei a escada, ele cacarejou lá embaixo dentro da máquina de lavar. Afinal, ao amanhecer, depois de uma luta exaustiva, ajudado pelo síndico que pela segunda noite bateu na minha porta de fuzil Kalashnikov ao ombro, consegui encurralar o galo no banheiro de serviço, escondido no vaso sanitário. Devagar, me aproximei e puxei a descarga, que parecia ali ser a melhor maneira de me livrar dele. Eis que Bin Laden pulou todo molhado, se sacudiu como se fosse cachorro, deu um rasante por nossas cabeças e voou em direção ao varal onde secavam as roupas limpas da casa. Não tive dúvidas: antes que o síndico fizesse a mira com o fuzil, passei a mão na vassoura – primeira arma que encontrei, bastante convencional, diga-se de passagem – e o abati em pleno vôo. Para terminar e não chatear mais o leitor, no dia seguinte mandei de volta para a minha sogra o tal do Bin Laden, de pernas para cima, devidamente assado e temperado, com o pescoço no lugar da cloaca e a cloaca no lugar do pescoço. Explico: é que minha sogra adora comer um pescoço de frango, e não tem exergado muito bem ultimamente. Junto, mandei um bilhete com a conta de duas horas e meia de gás para assar o galo velho Bin Laden, de crista grisalha e a carne mais dura que já vi, com uma recomendação: mais duas horas de forno alto, senão ele volta! E acrescentei embaixo, agradecido: “A senhora é muito gentil!”

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Rua Mello Moraes Filho, nº 189 – Fazenda Grande do Retiro CEP 40.352-000 – Tels.: (71) 3116-2850/2806 Fax: (71) 3116-2902 Salvador-Bahia E-mail: egba@egba.ba.gov.br




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