Tradução do livro de bill

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1 THE AMERICAN ETHNOLOGICAL SOCIETY Verne F. Ray, Editor Uma Monografia do Programa de Pesquisa e Treinamento para o Estudo do Homem nos Trópicos

Village and Plantation Life in Northeastern Brazil (A vida em uma vila e em uma fazenda de cana-de-açúcar no Nordeste do Brasil)

Harry William Hutchinson

1957 University of Washinton Press Seattle

Copyright 1957 da University of Washington Press Biblioteca do Congresso Catalog Nº 57-8753 Impresso nos Estados Unidos da América

Tradução: Carlos Eugênio Tourinho Junqueira Ayres

Agradecimentos

O trabalho de campo no qual este estudo é baseado foi desenvolvido como parte da parceria do Estado da Bahia com o Projeto de Estudos de Comunidade da Universidade de Colúmbia, de julho de 1950 a junho de 1951. A Secretaria da Educação do Estado da Bahia, Brasil, a Fundação para o Desenvolvimento da Ciência na Bahia e a Universidade de Colúmbia são as organizações responsáveis pelo patrocínio e financiamento do projeto. Minha participação tornou-se possível através de subvenção da Fundação de Caridade Henry L. e Grace Doherty e ajuda financeira adicional do Departamento de Antropologia da Universidade de Colúmbia. Aos homens e mulheres dessas organizações, meu profundo débito de gratidão.


2 Sou especialmente grato ao Dr. Charles Wagley, diretor do projeto, pelos seus cuidados, orientação e encorajamento antes, durante e depois dapesquisa de campo, e sua paciênciacomo também pelos inestimáveis conselhos quando da elaboração do trabalho. Ao Dr. Anísio Teixeira, ex-secretário de Educação do Estado da Bahia, cuja crença nas ciências sociais tornou este estudo possível, fico profundamente agradecido pelo alto grau de cooperação e estímulo intelectual que foram os fundamentos em minha visita à Bahia. Também desejo agradecer ao Dr. Thales de Azevedo, da Universidade da Bahia, pela sua persistente amizade e conselhos científicos como por suas sugestões durante a elaboração deste trabalho. A pesquisa na Vila Recôncavo foi realizada em coordenação com outros três estudos de comunidades do estado da Bahia. Sou muito agradecido à cooperação do Dr. Marvin Harris, de Benjamin Zimmerman e Anthony Leeds, que conduziram esses estudos correlatos. Aos diversos membros das famílias Tourinho, Junqueira Ayres, Ariani Machado e Albuquerque Porciúncula, que abriram suas portas para mim, estendendo a tradicional hospitalidade baiana ao longo de toda a minha estada tanto em Salvador quanto no interior, sou muito grato. A sua inteira cooperação, compreensão e boa vontade contribuíram imensamente para este estudo. Àqueles que me possibilitaram estender o âmbito do trabalho de campo para outras áreas do Recôncavo, os diretores de Magalhães & Cia, o diretor da Usina Terra Nova, Dr. Themístocles Monteiro, o diretor da Usina Aliança, Dr. Helenauro Sampaio, o engenheiro químico da Usina São Carlos, Dr. Augusto Vilas Boas, e Eugênio Santos, que me deram ajuda inestimável, meus sinceros agradecimentos. A Frei Miguel Marcinkowski, Frei Pacífico Weismann, Dona Maria Pinto, Eliza Almeida Ferreira e a todos os meus amigos da Vila Recôncavo (*), onde o estudo foi realizado, a minha profunda gratidão. Por último, e mais profundamente, fico agradecido a minha mulher, Carmelita Junqueira Ayres Hutchinson, por sua inestimável assistência no campo e constante encorajamento durante a preparação deste trabalho. H. W. Hutchinson Faculdade de Filosofia Universidade da Bahia Setembro de 1956.

(*) Embora a Vila Recôncavo seja uma localidade real, os nomes de todas as pessoas e locais foram mudados para o propósito deste estudo. (Nota do Tradutor: os nomes depessoas-chave e das localidades serão realmente identificados ao longo do texto pelo tradutor, que viveu grande parte de sua vida na região e conheceu a maioria das pessoase todos os locais citados no trabalho.)


3 (Vila Recôncavo: na época, Vila de São Francisco do Conde, hoje cidade, mas doravante nesta tradução chamada de Vila Recôncavo ou simplesmente Vila. O autor desta monografia usou na época duas denominações para se referir às cidades de Santo Amaro da Purificação (Centro e Purificação) e de Candeias (Milagres e Conselho) ― NT) Conteúdo Introdução 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9.

Terra do açúcar História da Vila História da zona rural Vida na fazenda Vida na Vila Classe e raça A família Religião Mudanças recentes na Vila Recôncavo

Bibliografia Índice

Ilustrações MAPAS A Comunidade de Vila Recôncavo A Vila Recôncavo DIAGRAMAS 1. Diagrama hierárquico da fazenda 2. Diagrama hierárquico no sistema usina FOTOS Trabalhadores de cana-de-açúcar migrantes Casa grande e capela Puxada de rede de fundo Esperando o navio Mãe-de-santo idosa “Salão de beleza”, Vila Recôncavo


4 Introdução

A cultura da cana-de-açúcar― e a produção de açúcar, aguardente e melaço – foi um dos primeiros empreendimentos comerciais no Novo Mundo logo após a descoberta e exploração das Américas. Na maior parte das várzeas da costa leste, onde os portugueses, espanhóis, ingleses e franceses não encontraram o metálicoElDorado que procuravam, eles se estabeleceram para a extração do ouro branco por meio da agricultura. A cana-de-açúcar foi considerada a planta ideal para os ricos solos e o clima tropical e semitropical das terras baixas e pantanosas do Brasil, das Ilhas Caribenhas, das Guianas e, mais tarde, da Louisiana e da Flórida. O açúcar ganhava, naquela época, popularidade por toda a Europa, e nos primeiros dias da exploração europeia do Novo Mundo houve um rápido crescimento do seu mercado na Europa, proporcionando retornos extraordinários para aqueles que tinham açúcar para vender. Onde quer que houvesse cana-de-açúcar no Novo Mundo, lá surgia um padrão socioeconômico distinto. Esse padrão, seja nas colônias portuguesas, espanholas, inglesas ou francesas, era marcado por certas características. A primeira delas era o grande latifúndio. Plantadores de cana possuíam extensos tratos de terra, normalmente recebidos como concessões pelos seus respectivos governos coloniais. A cultura da cana-de-açúcar se estendeu em larga escala, e raramente envolvia pequenos fazendeiros ou camponeses. Por onde a cana-de-açúcar se desenvolveu, sua cultura foicenário do crescimento de grandes e aristocráticas famílias cujos membros se dedicavam e participavam do governo colonial, da política, das profissões e da igreja. Os plantadores de cana construíram grandes mansões em suas fazendas e criaram a tradição de vida aprazível, de literatura e de aprendizado, de opulência, hospitalidade e ostentação. Os europeus não se dedicaram eles mesmos ao trabalho agrícola, e logo usaram os indígenas como mão-de-obra. Quando estes se mostraram mal sucedidos como trabalhadores no campo, os plantadores escravizaram africanos, o que se tornou a terceira característica do modo de vida da cultura canavieira. Ao acrescentar os africanos ao cenário, uma outra tradição se incorporou entre os plantadores de cana-de-açúcar, a do paternalismo e noblesseoblige (*) com relação aos escravos negros. A cultura da cana-de-açúcar, por um período de mais de duzentosanos, se expandiu em meio a um modo de vida consideravelmente estável e, apesar de uma longa história de bons tempos mesclados com grandes crises, fixou-se firmemente onde era possível se cultivar. Durante séculos, foi um empreendimento familiar, com base na escravidão, e gerações após gerações exploravam a mesma plantation(**) com a mesma monocultura, à qual devotavam uma forte fidelidade. Foram poucas as ocasiões quando, uma vez a cana plantada, deu-se oportunidade para outras culturas, ainda que ela nem sempre proporcionasse os retornos financeiros extraordinários que dois ou três séculos atrás.

(*) “A nobreza obriga” - NT.


5 (**)Plantation: como os norte-americanos e ingleses chamam a grande fazenda de cana-deaçúcar― NT.

No século XIX, várias mudanças importantes aconteceram por todas as Américas que afetaram este modo de vida estável e modificaram os padrões culturais tradicionais que foram fortalecidos por longo período de tempo. Primeiro foi o grande movimento, durante o século, para acabar com a escravidão, a verdadeira base da cultura da cana-de-açúcar no Novo Mundo. Após a abolição, houve mudanças nos governos coloniais, e então a posição dos aristocráticos plantadores de cana foi desafiada. A sequência exata dos eventos e de seus resultados políticos foi diferente de colônia para colônia, mas no geral os mesmos contornos foram observados onde a cana-de-açúcar era cultivada. A mais importante de todas essas mudanças, entretanto, foi atransformação da própria indústria do açúcar no fim do século XIX, a qual, em grande escala, dependeu das mudanças sociais e políticas já mencionadas. Além disso, a competição entre as várias regiões açucareiras levaram a experimentos com novos tipos de maquinário e técnicas de refino, com a esperança de assegurar um produto melhorado e, consequentemente, uma maior participação no mercado mundial de açúcar. A introdução de máquinas a vapor tornou possível a criação de uma grande usina de açúcar central, processo acelerado pela perda do trabalho escravo e pela necessidade de mecanizar a fim de compensar a diminuição da mão-de-obra. Assim, a “fábricano-campo” tornou-se a indústria da cana-de-açúcar e deflagrou uma série de mudanças no antigo modo de vida da cultura da cana-de-açúcar que ultrapassaram as plantações canavieiras e chegaram à economia regional, à estrutura de comunidades locais e ao sistema de classes sociais. Isso implicou uma estrutura de capital mais moderna e muito maior para a indústria do açúcar, diferentes tipos de relações entre empregadores e empregados e o crescimento de um corpo de trabalhadores especializados e funcionários de escritório. Finalmente, no século XXhá mudanças perceptíveis em vários lugares no mundo ocidental que alteraram os antigos padrões tradicionais nas áreas de cultivo da cana. Cidades crescem com rapidez notável; os transportes se aperfeiçoamenormemente;o rádio, o cinema, jornais, revistas, escolas, postos de saúde e a ação governamental mais eficiente nos âmbitos nacional e estadual ―,todas essas e muitas outras influências e tendências modernas atingiram profundamente a economia, a estrutura social, a vida individual e familiar, a religião e a política nas áreas produtoras de cana. Desde o início do século XIX, dois cenários podem ser identificados na mudança da organização da cultura da cana-de-açúcar no Novo Mundo. O primeiro foi o engenho (no Brasil) ou ingenio (nas colônias de língua espanhola), uma combinação de propriedade e direção familiar da fazenda de cana e da moenda(1)(*). A cana era cultivada e moída na mesma fazenda não mecanizada, onde se utilizava a mão-de-obra de escravos negros, algumas vezes sendo empregada a força animal e da água nas moendas. O paternalismo, direitos e obrigações mútuos, e o sentimento de noblesseobligedistinguiam as relaçõesentre os plantadores e os seus trabalhadores escravos.


6 (1) Daqui em diante, o termo plantation será usado para designar o engenho; deve-se entender que, em cada instância, a referência é para a combinação da plantation com a fábrica de propriedade familiar. (Nota do Editor). (*) Na tradução, os termos “fazenda de cana” e simplesmente “fazenda” serão usados para se referir a “plantation” no Brasil ―NT.

O segundo cenário da organização da cultura da cana-de-açúcar é caracterizado pelo oposto a todos esses aspectos, e foi bem representado em Porto Rico(2). A propriedade da terra se transferiu de mãos familiares para grandes corporações, os reais proprietários que estavam sempre ausentes. A administração era tocada por empregados da corporação e por especialistas. Os trabalhadoresrurais e dafábrica eram empregados de uma grande e impessoal organização, que baseava os direitos em leis trabalhistase acordos sindicais, mais do que no paternalismo e nas obrigações familiares tradicionais. A usina corporativa, centralizada e mecanizada, que é o âmago de uma grande empresa agrícola, era maior que qualquer dos tipos dos velhos engenhos e muito mais eficiente. Suas operações se baseavam nos esforços cooperativos de especialistas agrícolas, mecânicos e químicos. Os sistemas de transportes e comunicações eram melhores, e as vilas das fábricas com essa nova conformação sentiam mais forte o empuxo dos padrões urbanos modernos do que os núcleos dos antigos engenhos.

(2). Sidney W, Mintz, Cañamelar: The Contemporary Culture of a Rural Puerto Rican Proletariat (Ph.D. dissertation. Columbia University, 1951). Essas influências do século XIX e do século XX não foram sentidas com igual intensidade nas regiões canavieiras nas Américas. Em certas áreas, podem ser encontradas grandes usinas de propriedade e operadas por poderosas corporações com autênticas vilas fabris. Em outras regiões, a transição é menos concretizada, e muitos padrões fora do passado tradicional dessas regiões persistem e têm sido ajustados às novas condições. A costa nordeste do Brasil participou da tradição de difusão do cultivo da cana-de-açúcar. Primeira região do Brasil a ser colonizada, a costa nordeste é considerada o berço da civilização brasileira. Por muitos anos, foi a parte mais importante da colônia portuguesa, econômica, social e politicamente. A cana-de-açúcar foi introduzida logo após a primeira colonização bem sucedida, em meados do século XVI, e tornou-se a base econômica, social e política da região. A época de ouro da cultura da cana-de-açúcar na região ocorreu durante os séculos XVI e XVII e constituiu-se em um período exuberante, de grande nostalgia para muitos brasileiros. Esta cultura regional tem sido admiravelmente descrita por vários autores brasileiros. Nos anos de 1700, o padre jesuíta Antonilfez uma descrição detalhada da aparência física das primeiras fazendas de cana e engenhos, das técnicas de cultivo da cana e moagem e do modo de vida opulento de seus proprietários(3). Mais recentemente, Gilberto Freyre nos forneceu uma brilhante descrição da vida nos engenhos nessa região durante os períodos colonial e imperial,descrevendo as relações entre os senhores das casas-grandes e os escravos das


7 senzalas(4).Além dele, outros historiadores brasileiros, como Wanderley de Araújo Pinho(5) e Manuel Diegues Jr.(6)enriqueceram bastante o retrato do modo de vida na região durante os primeiros tempos. Desses materiais históricos emerge o retrato de uma sociedade estável, bem integrada, baseada na riqueza do açúcar, na qual as famílias aristocráticas, proprietárias de terras e de escravos, eram econômica, social e politicamente dominantes. (3) Andre João Antonil, Cultura e opulência do Brasil( Bahia, 1950). (4) Gilberto Freyre, The Masters and the Slaves (New York, 1946). (5) J. Wanderley de Araújo Pinho, História de um engenho do Recôncavo, 1552-1944 (Rio de Janeiro, 1946). (6) Manuel Diegues Jr., O banguê nas Alagoas (Rio de Janeiro, 1949). A cultura da cana-de-açúcar na costa nordeste brasileira andou no mesmo ritmo do desenvolvimento na indústria por toda a América. Em 1888, a escravidão foi abolida no Brasil, afetando implacavelmente a situação do trabalho. Um ano depois, o Império brasileiro caiu e proclamou-se a República. Já nesse sistema, Igreja e Estado se separaram, e a posição da nobreza do Império, que nessa região era formada por plantadores de cana, foi confrontada. Por volta de 1900, os engenhos centrais foram introduzidos na região, causando assim uma série de vastas transformações na cultura da região. Entretanto, no Nordeste do Brasil há regiões específicas que sofreram diversos graus de mudança entre os dois maiores cenários delineados acima, isto é, entre a fazenda de propriedade familiar e o sistema de usina altamente industrializada, corporativa, de propriedade impessoal. A região do Recôncavo, no estado da Bahia, onde este estudo foi realizado, por exemplo, abriga várias usinas,mas mesmo nas maiores ainda existem tradições familiares e de paternalismo ao extremo. Aqui, a fazenda de propriedade particular ainda é um elemento importante. Na comunidade focada neste trabalho há uma moderna fábrica ou usina, mas o controle pela fábrica de todo o processo, desde a plantação da cana e a colheita até a moagem, está longe de ser completo. Embora a usina, neste caso uma corporação familiar, tenha comprado seis fazendas de cana na sua vizinhança, pelo menos metade de seu fornecimento vem de outras fazendas de propriedade familiar. Os donos dessas fazendas, que conservaram seus limites originais, são descendentes de proprietários de terra aristocráticos do passado, e muitos dos seus trabalhadores são descendentes de escravos que viveram nas mesmas fazendas. Nessa comunidade, as mudanças na tecnologia da produção do açúcar não se igualam às do cultivo da cana nas fazendas. A ênfase se dá no aperfeiçoamento de técnicas de moagem, na purificação do caldo da cana e na cristalização do produto final pela usina. Mas os métodos agrícolas ― plantação, cultivo, corte e transporte ― permanecem relativamente imutáveis. Mais importante que tudo, com a continuação dessas técnicas antigas veio a manutenção em alto grau do sistema social que as acompanha. O sistema social presente tende a acompanhar o complexo escravista antigo, tradicional, orientado à família. O padrão de relações interpessoais face-a-face, desenvolvido durante séculos de monocultura da cana-de-açúcar baseada na escravidão, persiste de uma forma modificada. Embora as relações entre trabalhadores e proprietários nessas fazendas familiares sejam agora de empregados e empregador, e não de escravos e senhor, ainda há uma relação altamente pessoal, íntima,


8 baseada em direitos mútuos e deveres e um sentido de obrigações de nobreza. Mesmo o sistema usina perpetua este paternalismo em alto grau. O presente trabalho é um “estudo de comunidade” em todo o sentido do termo, como é reconhecido hoje na antropologia social. É principalmente uma análise descritiva de uma comunidade na região produtora de açúcar do Nordeste brasileiro, mas é concebido dentro do quadro da sequência delineada acima.

1. Terra do Açúcar A região do Brasil onde este estudo foi realizado é uma pequena área no estado da Bahia chamada Recôncavo. É a terra ao redor da Baía de Todos os Santos, uma fértil bacia que se estende terra adentro por não mais de 40 quilômetros no máximo. Situada no alto de uma grande escarpa, contemplando a entrada da Baía de Todos os Santos, está Salvador, a capital do estado da Bahia, geralmente chamada de Bahia, ou “a capital”, ou simplesmente “a cidade”. Após a fundação de Salvador, em 1549, a colonização do Recôncavo se procedeu rapidamente. Desde o início do período colonial, o Recôncavo foi dividido em três áreas distintas: a região sul, ocupada com a cultura da mandioca, alimento básico na maior parte do Brasil; a região oeste, onde se dá a cultura do tabaco; e as partes norte e leste, destinadas quase que exclusivamente à monocultura da cana-de-açúcar. A região, que se pode chamar de “Recôncavo açucareiro”, participa do tradicional cultivo da cana-de-açúcar, que serviu de base para a colonização inicial do Brasil. Uma estreita faixa de terra ao longo da costa nordeste do Brasil, onde hoje se localizam os estados de Pernambuco, Sergipe, Alagoas e Bahia, foi o foco da vida econômica, política e social de toda a colônia. Esta região, sob a colonização dos portugueses, produziu uma grande parte do suprimento de todo o açúcar mundial quando este produto era considerado um grande luxo na Europa. A costa nordeste brasileira tornou-se extraordinariamente próspera na história da colônia. Salvador, na Bahia, e Recife, em Pernambuco, tornaram-se os mais importantes centros da vida colonial, e até 1763 Salvador foi a capital da colônia portuguesa. O Recôncavo ajudou a fazer do Brasil parte incomparável do império português no século XVI. O país era diferente de qualquer outra colônia portuguesa,pois sua riqueza era baseada mais na agricultura que no comércio, como foi o caso na Índia e na África. A Baía de Todos os Santos, com uma circunferência de 200 quilômetros, é na verdade um mar interior, e a sua entrada é protegida a partir dascumeadas onde a cidade de Salvador está situada. Há um grande número de ilhas pitorescas por toda a baía, com boas praias e locais de desembarque. Muitos rios pequenos deságuam na baía, e diversos riachos navegáveis na maré alta entram terra adentro ao longo de suas margens. A existência dessa grande rede de águas navegáveis foi importante fator no rápido desenvolvimento do Recôncavo, proporcionando o transporte fácil e barato do açúcar até o ponto de embarque para a Europa. O clima é semitropical, com duas estações. O verão, de setembro até mais ou menos março, é relativamente seco, entremeado de aguaceiros e trovoadas, e refrescado pelas brisas frescas


9 que sopram do Atlântico. O inverno começa em abril, permanecendo até agosto ou setembro, o tempo exato da mudança diferindo de ano para ano. Esta estação é marcada por chuvas contínuas, usualmente garoa ou chuvas leves constantes, intercaladas de aguaceiros pesados vindos do Atlântico, deixando bastante umidade antes de serem empurradas para as terras mais altas que circundam o Recôncavo. De acordo com estatísticas do período de 1914 a 1938, os meses de menos chuvas foram outubro, novembro e dezembro; nesse período, a média de chuva foi de 299 milímetros. O período de mais chuvas foi de abril a junho, com a média de 910 mm. A média anual de 1914 a 1938 foi de 1.674,6 mm(1). A variação da temperatura é de 70 a 90 graus Fahrenheit (21 a 32 graus Celsius – NT). (1) Atlas Pluviométrico do Brasil (Rio de Janeiro, 1914-1938). O solo do Recôncavo, especialmente a da zona açucareira, é extraordinariamente fértil. É uma terra preta pesada, conhecida como massapê, com aproximadamente 6 polegadas a 2 pés de espessura (15 a 60cm – NT)), que cobre um subsolo de argila, conhecido localmente como tauá. Aqui e ali há afloramentos de areia e misturas de areia com argila. A cana-de-açúcar provou desenvolver-se especialmente bem com a combinação de calor, chuva e massapê, e o solo vem produzindo a mesma cultura por quase quatrocentos anos. A área de massapê é bem definida, pois em seus limites a terra sobe para regiões de matas de caatinga arenosa e desértica que bem caracterizam o que é chamado de o “outro Nordeste”(2), ou o sertão. A paisagem do Recôncavo açucareiro é caracterizada por campos ondulados cortados por baixadas. Embora o massapê não sofra erosão, os outros solos, quando expostos, a sofrem. Durante a estação chuvosa do inverno há muito estragos, especialmente nas estradas, que em sua maior parte seguem por solos que não são de massapê. Abaixo do solo do Recôncavo açucareiro foram descobertos recentemente depósitos de petróleo. A quantidade ainda não foi determinada, pois as sondagens continuam. Entretanto, o governo federal já começou a extrair o óleo que está mais perto da superfície. Pelas leis brasileiras, as reservas do subsolo pertencem ao governo federal e não aos proprietários das terras. Como resultado, tem havido uma pequena invasão de petroleiros nas terras dos plantadores de cana. Até agora isso não tematrapalhadomuitoa rotina agrícola, pelo menos na Vila Recôncavo). EmConselho (ver mapa da comunidade) (Candeias ― NT), onde a perfuração começou por primeiro, o governo comprou terras de particulares e da empresaproprietária de umausina e transformou campos verdes de canaviais em áreas nuas, pontuadas aqui e ali de poços de extração. Os exagricultores tiveram que abandonar a área ou tornar-se empregados nos campos petrolíferos e na refinaria. O Recôncavo é uma das regiões mais populosas do Brasil. Abrange uma área de 6.500 quilômetros quadrados, com uma população de 683 mil habitantes, em 1940, distribuídos em 14 municípios, incluindo a capital. Apresenta uma densidade média de 106 habitantes por quilômetro quadrado(3), em comparação com a densidade média do estado da Bahia, de 7 pessoas por quilômetro quadrado, e com a densidade média nacional de 5 pessoas por quilômetro quadrado(4). Deveser lembrado que esses números incluem a capital, cuja população é de cerca de 450 mil habitantes. Se isso for subtraído da população total do Recôncavo, a densidade média da região é de aproximadamente 27 pessoas por quilômetro quadrado.


10 Vila Recôncavo, a comunidade deste estudo, é parte de um município (São Francisco do Conde ― NT) localizado a 41 Km através da baía desde Salvador. A comunidade inclui a cidade de Vila Recôncavo, sede do município, e a zona rural ao redor. Ao longo do estudo vamos lidar com esses dois componentes da comunidade deplantações de cana-de-açúcar, às vezes separadamente, às vezes conjuntamente. (2) Preston James, Latin America (New York, 1942), p. 411. (3) Aroldo de Azevedo, “Recôncavo da Bahia”, Revista da Universidade de São Paulo, (1950), 14. (4) Lynn Smith, Brazil (Baton Rouge, 1947), p. 131.

O único transporte público para a VilaRecôncavo é ovapor, a partir da capital, em viagem de três horas através da baía, serpenteando por numerosas ilhas. A maior parte do trajeto é feita em águas notavelmente azuis, normalmente serenas, mas às vezes agitadas violentamente, principalmente no inverno. Barcos a vela de um, dois e três mastros e ocasionalmente grande canoas a vela, os meios centenários de transporte na Bahia, navegam em direção à capital, levando frutas, vegetais, cerâmicas, lenha, frutos-do-mar, tabaco, farinha de mandioca e açúcar para mais de quatrocentas mil pessoas que moram na cidade, como acontece desde o início da colonização do Recôncavo. O único novo elemento no cenário é o pequeno vapor a diesel que vai e volta através da baía, saindo num dia para o interior e voltando no outro com a maré vazante. Quando o navio se aproxima do verde exuberante do coqueiral das ilhas, parando várias vezes para entregar correspondências, desembarcar passageiros e “mercadorias da cidade”, percebese o sentimento de se voltar ao passado. Crianças descalças vendem laranjas, amendoim e peixes, além de papagaios e periquitos, às vezes dopados com cachaça para parecerem domesticados. O carteiro na ponte recebe o saco de correspondências e entrega a um ajudante para carregar até o posto do Correio; o padre da ilha pode receber uma carta ou pacote confiado ao capitão do navio ou até pode embarcar para viajar até a igreja de uma outra ilha. Os demais na ponte chamam por conhecidos no navio e trocam notícias ou simplesmente observam a atividade de embarque ou desembarque. As pessoas nas ilhas são de pele clara, embora bem bronzeadas. Muitas delas são veranistas da capital, vestidos de roupas de cores vivas, pois as ilhas são balneários famosos. Os outros, descalços, vestindo calções e largos chapéus de palha, são moradores permanentes: pescadores, estivadores e comerciantes. Quando as ilhas ficam para trás, o cenário começa a mudar. A cor da água se transforma do claro e profundo azul para o cinza lamacento. Grupos de canoas são avistados, seus ocupantes manejando redes de pesca, pois esta parte rasa da baía é ótimo local para a pesca. Mais uma vez, o continente se aproxima, com colinas e morros cobertos de inúmeros tabuleiros verdes de cana, a cultura que centenas de anos atrás substituiu as florestas virgens. As costas em forma de delta desta parte da baía são cobertas pelo manguezal, área de lama onde crescem pequenos arbustos que, nas marés cheias, ficam submersos. Sobre uma colina ao fim da enseada está a Vila Recôncavo, com 1.462 habitantes. A primeira coisa que se vê é o enorme convento franciscano(5) com suas grande torres e palmeiras imperiais. Já próximo à longa


11 ponte de atracação(*) que avança pela água pode-se ver quase toda a Vila, construída sobre três colinas, com vales entre elas. A chegada do vapor de Salvador a cada dois dias é uma sensação num dia monótono. Quase todos os homens da Vila descem para a ponte para receber o navio, para ver quem está viajando, para ver o que está sendo trazido para alguém na Vila, para receber cartas e encomendas, para cumprimentar amigos e para bisbilhotar. A chefe do posto do Correio está lá, e com ela o carregador do saco de correspondências, mas que tem um ajudante para carregar para ele. Após alguns minutos, o vapor continua viagem, e o povo da Vila volta pela ponte, dispersando-se em pequenos grupos na praça principal, cada um pegando o seu destino.

(5) Deve-se explicar que “convent” neste caso é uma tradução direta do Português. Em Português, convento não tem a conotação de ser um estabelecimento religioso só para mulheres. A palavra convento é aplicada àmorada dos franciscanos porque eles não são monges; se fossem, seria chamadademosteiro (monastério). Em Inglês, os fransciscanos são conhecidos como “friars” (frades), e suas moradas são chamadas de “friaries”. Entretanto, ao longo desta monografia será usada a tradução direta, convento. (*) Na época desta monografia, a ponte de atracação na Vila era feita de pranchões e toras de madeira ― NT. Na praça ao fim da ponte, no pé da ladeira principal que leva à colina do meio e à saída da cidade, há um grande prédio colonial, com dois andares ― a prefeitura, centro oficial da administração do município. O térreo, com janelas fortemente gradeadas, também serve de cadeia. No alto da colina, há uma grande igreja, a matriz da paróquia de São Gonçalo. À direita, no topo de outra colina, encontra-se o imponente convento franciscano. A rua principal da cidade é estreita, pavimentada com paralelepípedos e ladeada por antigas casas coloniais, em diversos estados de conservação. Para a esquerda avista-se a “praia” que, com a maré vazia, se transforma em um grande lamaçal, típico do litoral desta parte do fundo da baía. As compridas canoas dos pescadores ficam lá ancoradas e assentadas na lama quando a maré vaza. Quando o navio de afasta e as pessoas vão cuidar da vida, as ruas esvaziam, e um silêncio peculiar e característico local cai sobre a Vila. Há uma atmosfera não só de sonolência e inércia quando de decadência, como se a vida já tivesse passado por ali. As poucas pessoas que permanecem de alguma forma parecem ser sobras de algo no passado. As casas da rua principal são sombrias, suas fachadas sobem dois andares rentes à rua, as janelas fechadas. Algumas delas estão desmoronando, a argamassa caindo, expondo as pedras com que foram construídas; outras estão em completa ruína. Todas elas estão ficando pretas como resultado da constante exposição ao ar salitroso úmido, e o musgo cresce nas paredes onde não bate o sol. Do alto da colina, em frente à igreja matriz, tem-se uma magnífica vista da Baía de Todos os Santos, e é fácil entender porque este local foi escolhido há 332 anos como sítio para um novopovoado. Esta parte da cidade é a velha Vila Recôncavo (ver mapa da cidade), datada de


12 um tempo em que o local era o único centro administrativo no interior da Bahia colonial. Sobre esteouteiro e no que fica o convento, a elite das terras açucareiras construiu suas casas chamadas de sobrados. Foi na época em que estas ruas com seuspasseiosforam o cenário da opulência colonial, das liteiras carregadas por escravos de libré e de soldados uniformizados, de senhoras usando luvas e carregando sombrinhas. Hoje, nesta parte antiga da Vila Recôncavo moram pessoas mais simples, a classe alta da cidade, que ganham a vida na burocracia local ou como comerciantes ou como funcionários estaduais ou federais. Eles são tranquilos, gentis, tentam manter uma aparência de dignidade, uma proeza que se torna cada vez mais difícil. Para o oeste, no terceiro outeiro, ao longo da “praia” e nas pequenas baixadas, há uma atmosfera diferente. No Caquende, Boqueirão, Curtume e Rua Nova (ver mapa da cidade), não há sobrados, nenhum sinal da antiga grandeza. As casas são de outro estilo ― pequenas, de um andar só, com nenhuma aparência de antiguidade. Algumas são feitas de tijolos, mas a maioria é de lama em armação de bambu ou de pau de mangue (de taipa ou pau a pique – NT). Muitas são revestidas de cal, algumas recentemente, outras há mais tempo. No topo da terceira colina, o Oiteiro, estão as casas mais pobres de todas, de taipa, com um e dois quartos, cobertas de palha. Recentemente, nesta área se tem construído algumas residências em novo estilo, tipo bangalô, e há sinais de crescente prosperidade entre uns poucos comerciantes. Essas áreas de pescadores, de comerciantes e de artesãos, como carpinteiros, pedreiros e sapateiros, são as mais populosas da Vila hoje. De acordo com antigos moradores, esta zona se deteriorou há sessenta anos e, para os mais velhos, a Vila Recôncavo ainda está lá em cima da colina, na área dos sobrados. Entretanto, a maioria daslojas está na parte baixa da Vila, que tem sua própria capela. É aqui que as crianças brincam, embora tenham que subir para ir à escola. É aqui que os homens se reúnem para conversar e beber cachaça. É aqui que prevalece uma atitude aberta de amizade, e há rostos amigáveis nas janelas. É aqui onde os tambores tocam quando os deuses africanos (orixás – NT) são festejados. O posto do Correio, localizado na parte de cima da Vila, também tem telégrafo. As mensagens vão por telefone especial para a vizinha cidade de Centro (Santo Amaro da Purificação ― NT), de onde então são enviadas por fio de telégrafo. Há também um telefone público na Vila com duas extensões, uma para a casa do prefeito e outra para a casa do médico. As outras pessoas têm que ir ao posto telefônico para fazer ou receber ligações. O telefone é muito incerto; não só às vezes é impossível de se conseguir uma ligação como também quase nada pode ser ouvido quando a conexão é feita. Da Vila é possível se falar para Salvador através de Centro. Também é possível se falar para a usina de açúcar (Usina Dom João ― NT) e, através de sua mesa de distribuição, para várias fazendas na redondeza. Ultimamente, a energia foi trazida até a Vila, e, além da iluminação pública, 78 das 408 residências possuem energia. Dessas, vinte e uma têm rádios e três têm ferro elétrico. Somente o médico, o posto de saúde e o bar possuem geladeiras. Aos sábados e domingos há cinema, o mesmo filme passando nas duas sessões. Há somente duas estradas ligando a Vila. Uma vai para Centro, a noroeste, seguindo uma serra que corre ao longo do rio (Rio Sergipe do Conde ― NT) através de uma zona de solo pobre onde se planta mandioca e bananas. A cavalo se leva mais ou menos duas horas de viagem. A outra estrada segue para nordeste pelos canaviais e terras da usina de açúcar, e então continua


13 para leste, em direção aos campos de petróleo de Conselho (Candeias ― NT) e à maior rodovia baiana, que liga Salvador à cidade de Feira de Santana, no interior. A viagem de Vila Recôncavo até a rodovia principal leva cerca de quatro horas a cavalo. Embora a estrada local, construída durante o império e parte de domínio público, seja chamada de “estrada real”, é apenas um caminho estreito e poeirento. No verão, proporciona uma superfície dura porque o sol quente cozinha a terra, mas durante o inverno ela se transforma em um rio de lama. Na estação chuvosa, a camada de argila sob o solo segura a água, transformando as estradas em atoleiros praticamente intransitáveis. A situação fica pior logo após o término das chuvas, quando a superfície seca, pois quando um homem ou animal rompe a superfície e atola na argila a sucção criada torna difícil desatolar. Um percurso que durante o verão leva meia hora a cavalo pode levar de três a quatro horas no inverno. O cavalo deve escolher, com o máximo cuidado, cada passo que vai dar. Nesses meses, a viagem é extremamente fatigante para cavalos e mulas, e trocas frequentes de montaria são necessárias. Durante esta parte do ano se evita viagens para o interior, se possível, preferindo-se vias navegáveis. Da usina a Conselho (ver mapa da comunidade), a estrada foi recentemente coberta de óleo, areia e brita pelo Conselho Nacional do Petróleo (antecessor da Petrobrás – NT), na tentativa de manter um caminho para todas as estações. A pavimentação provou ser satisfatória, porém muito cara. Embora esta estrada siga a velha “estrada real”, é de propriedade do CNP. Quando um fazendeiro da região deseja percorrê-la em seu carro ou jeep, deve pedir permissão ao escritório do Conselho em Salvador. Todavia, no último ano esta estrada proporcionou benefícios aos proprietários de fazendas, que agora podem ir e voltar para suas casas na capital em cerca de duas horas em qualquer época do ano, acabando com as longas viagens a cavalo ou em canoas para ir à Vila Recôncavo pegar o navio. A estrada de ferro de Salvador para o interior passa a cerca de 15 quilômetros a leste da Vila Recôncavo, e os fazendeiros situados perto dela experimentam as mesmas dificuldades em uma viagem a cavalo quando querem ir de trem para a capital. Não há transporte público no município. O trem fica tão longe da Vila Recôncavo que não é usado pelos seus moradores. A maioria da população anda a pé para qualquer lugar aonde esteja indo, exceto para Salvador. Poucas pessoas na Vila têm cavalos ou mulas, pois há pastos insuficientes nas vizinhanças. Como resultado das estradas miseráveis, a população é dependente da navegação, fator que ajuda a orientá-la a procurar outras cidadesà beira-mar, e desencoraja as comunicações entre a Vila e as fazendas no interior do município. Em qualquer estação, há poucos acontecimentos na área de lavoura que atraiam o pessoal da Vila. Por outro lado, as pessoas das fazendas vêm à Vila especialmente para ver o médico, para assistir a uma missa especial ou tomar o vapor para Salvador. Eles raramente vêm para ver cinema, exceto aqueles poucos lavradores que moram perto, pois a viagem é muito difícil. Durante a estação de estio, quase todo o transporte de mercadorias é realizado por carro de bois, com duas grandes e sólidas rodas de madeira, puxado por uma junta de oito bois. O carro é dirigido por um homem, e os bois seguem um garoto que vai andando à frente deles. A comunidade de Vila Recôncavo compreende uma área de 80 quilômetros quadrados, na forma de um semicírculo, delimitada de um lado pelo mar e do outro por uma serra. Esta área, que inclui a Vila, forma uma unidade natural e cultural. Os restantes 100 quilômetros quadrados do município constituem duas sub-regiões, uma muito pequena, no sentido de


14 Centro e Cana-Ubá (Santo Amaro e Usina Santa Elisa ― NT) (ver mapa), e outra na direção a Salvador. As três zonas são assistidas conjuntamente pela administração local: polícia, sistema escolar, coletoria e levantamento de dados estatísticos ― em outras palavras, pela estrutura formal da administração municipal. Os 80 quilômetros quadrados da comunidade de Vila Recôncavo quase inteiramente são ocupados por treze grandes fazendas, onze das quais dedicadas ao cultivo da cana-de-açúcar. As outras duas, uma planta cana em pequena área e arrenda a maioria das terras para plantadores de culturas de subsistência, enquanto a segunda é casa de veraneio, nada produzindo. Das onze que plantam cana, seis pertencem à usina, que fica localizada à beira d’água, em uma das seis fazendas (a Dom João ― NT); três pertencem a diferentes membros de outra família, parentes por casamento dos proprietários da usina(Engenho de Baixo, Engenho D’Água e Guaíba ― NT); uma pertence individualmente a um membro da família do dono da usina (Gorgainha ― NT); e a última pertence a um não parente, um mestiço (pessoa de descendência racial mista), socialmente reservado mas considerado um astuto negociante (Tenente Sá Barreto – NT). Dentro da zona há também uma escola federal que possui uma extensa área de terras não cultivadas (em São Bento das Lages ― NT). O padrão de assentamento nas fazendas é o de povoado. As casas dos trabalhadores são aglomeradas em uma área fora das terras cultivadas, sendo a casa do proprietário da fazenda o ponto de referência. “Embora o assentamento em povoados representado pelas casas dos pequenos agricultores não seja muito encontrado no Brasil, a maneira de arranjar a população nesses povoados é largamente usada nas grandes propriedades no interior brasileiro. Na grande maioria, as fazendas e usinas no Brasil utilizavam esta forma nuclear de assentamento em ‘alojamentos’ ou ‘colônias’ para os lavradores.”(6)

(6) T. Lynn Smith, Brazil (Baton Rouge, 1947), p. 396.

A população da zona rural da comunidade Vila Recôncavo é de 2.800 pessoas, das quais 500 vivem nos núcleos da usina; em cada uma das fazendas de cana vivem entre 150 a 200 pessoas. Ao se ir de um povoado de fazenda a outro não se vê sinais de habitantes, pois o campo é dedicado ao cultivo intensivo da cana. Tabuleiros de cana, cada um com 10 a 20 acres (40 mil a 80 mil metros quadrados – NT) de área, alternam-se com pastagens ― campos que descansam por três ou quatro anos. Cada fazenda particular tem uma área de mata para produzir lenha e madeira. As fazendas da usina, entretanto, são na maior parte inteiramente desmatadas, mas os donos possuem outra fazenda no outro lado do Recôncavo (Fazenda Santa Catarina, em terras de Santo Amaro ―NT) usada exclusivamente para criação e pastagem de gado e para fornecer lenha para as grandes fornalhas da usina. As divisas entre elas (linhas de rumo ― NT) são geralmente grandes fileiras de graciosos bambuzais que fornecem estacas para cercas. Em cada fazenda podem ser vistas ruínas de antigos sobrados ou de engenhos ou de capelas, e em alguns casos o sobrado ainda se encontra de pé, porém abandonado pelo proprietário.


15 O Recôncavo não é favorecido com água doce abundante. Os rios são poucos e pequenos, propensos a secar na estiagem do verão. Entretanto, na maioria das fazendas há cisternas construídas de tijolos onde os moradores se abastecem de água potável. É comum se ver ao longo das estradas e caminhos do Recôncavo mulheres e crianças carregando latas d’água de cinco galões na cabeça e burros transportando em barris de madeira. Para o gado e outras criações das fazendas, tanques são escavados onde há possibilidade de se encontrar bastante água. Mas às vezes esses tanques também secam no verão, especialmente durante períodos de estiagem prologados que ocorrem ciclicamente no ritmo das secas no sertão. Nesses tempos, o gado morre, exceto em fazendas localizadas junto a riachos. Uma linha elétrica de alta voltagem passa por esta zona, vinda da estação geradora mais para o interior (Usina de Bananeiras, no Rio Paraguaçu, em Conceição de Feira ― NT),indo em direção à capital. Recentemente, a maioria das fazendas pôde fazer ligações com esta linha, de forma que pelo menos as casas dos proprietários possuem luz elétrica. As casas dos trabalhadores ficam de fora, exceto na usina de açúcar, que tem seu próprio gerador suprindo suas próprias necessidades e fornecendo energia para a maioria das casas dos seus trabalhadores. Há quatro escolas estaduais e uma municipal distribuídas entre as fazendas. A escola principal na Vila não é frequentada por crianças do campo. Duas das fazendas têm suas próprias capelas, visitadas em intervalos irregulares por padres da Vila. Nas outras fazendas, um pequeno altar é montado nas casas dos proprietários em ocasiões especiais, como pelo Natal, quando um padre da cidade é convidado para celebrar a missa. Na Vila há um posto de saúde com um médico visitante, um dentista e várias enfermeiras em treinamento, administrado por um irmão franciscano leigo e sustentado com verbas federais, fundos do município e doações particulares. Este posto é recente, e sua influência está se estendendo lentamente para a área rural. Também na Vila tem um pequeno posto atendido por um médico residente. A usina tem um dispensário com uma enfermeira, e é visitado pelo médico da cidade. Quase todas as fazendas têm material de primeiros socorros, geralmente nas casas dos proprietários. Não há feiras na comunidade. Há armazéns na Vila e um bem abastecido na usina, administrado pela empresa, e em cada fazenda há a sua própria pequena venda. Na maioria das vezes, as compras são feitas nafeira semanal de Centro (Santo Amaro -NT), no município vizinho. Há também vendedores ambulantes (mascates – NT) que percorrem a região no verão, vendendo pentes, fitas, bijuterias e perfumes. Um dos mais importantes fatores que influenciam a riqueza da cidade de Vila Recôncavo é a diversidade de atitudes em relação a ela mantida por diferentes segmentos de sua população. O grupo mais poderoso, embora em pequeno número, é o dos donos de fazendas e da usina. A orientação deste grupo é polarizada entre a capital, Salvador, e as fazendas. Não há nenhum morador da Vilaque esteja incluído no mesmo estrato social dessas pessoas, e assim a Vila não tem o mesmo desenho social da região de plantações do Sul dos Estados Unidos. A Vila não representa um centro de compras para eles, e não é um ponto de venda do açúcar Uma vez que estão perto da capital, os negócios são feitos lá mesmo, em vez de em uma pequena cidade rural com suas comunicações escassas. Este grupo como um todo considera a Vila como lugar decadente e atrasado. Há pouco ou nenhum sentimento entre essas pessoas que


16 deveriam “fazer alguma coisa” para desenvolver a Vila, pela qual elas sentem pouco ou nenhum apreço. Ao contrário, sua consideração é primeiro com a capital e com a sua própria classe social no estado, e em segundo lugar com o Recôncavo, onde estão as raízes originais da classe. Também os trabalhadores das fazendas e da usina menosprezam bastante a Vila, geralmente não a considerando digna de chegarem até lá. Para essas pessoas, a feira de Centro e o armazém da usina são as maiores atrações locais. Sua vida social está centralizada quase que inteiramente nas fazendas ou na usina. Os próprios moradores da Vila têm uma atitude de ambivalência quanto a ela, pois, enquanto acham também que ela é atrasada e sem oportunidades para o progresso pessoal, consideramse eles próprios um grupo urbano que contrasta com os trabalhadores do campo. Melhorias recentes na cidade, como as instalações de eletricidade e a introdução do rádio, cinema e outros utensílios elétricos, como também a pavimentação de ruas de terra com paralelepípedos, têm sido de grande ajuda para aliviar o ar de degradação da Vila, antes conhecida como “cidade abandonada”. A população local ainda fala bastante do estado anterior com receio assustador de que tais condições possam voltar. As verbas para as obras públicas vieram de fora do município, isto é, de recursos repassados pelo governo do estado na época dos interventores, administradores nomeados durante o regime ditatorial de Getúlio Vargas. Um dos últimos era filho da terra, que desejou deixar uma lembrança permanente de sua família na Vila. Grande parte das obras foi realizada com mão-de-obra local, o que trouxe uma certa prosperidade para a cidade. Naturalmente que a sua aparência mudou. Muitas casas alteraram suas fachadas; outras foram pintadas de cores alegres; e algumas pessoas construíram passeios de cimento em frente de suas casas. À noite as ruas estão mais claras por causa da iluminação pública (desligada à meia-noite) e pela claridade das lâmpadas das casas que passa pelas frestas das janelas e portas fechadas. Quase toda tarde, ao anoitecer, a eletricidade do campo é desligada por pelo menos uma hora em razão das inadequações das instalações da usina geradora de energia, deixando o campo e pequenas cidades no escuro. Nesta hora, a Vila volta ao passado, e parece se estar em uma época cem, duzentos ou trezentos anos atrás. Pequenas lâmpadas a óleo (fifós) são acesas, ou um candeeiro, cuja claridade suave e de curto alcance mal penetra a densa escuridão da casa nem chega à rua. Um silêncio cai sobre a cidade durante a magia da escuridão. Todos os velhos medos de sombras, da maldade e de lobisomens afloram. A família se reúne em uma sala, pois ninguém quer ficar sozinho, falando baixo para não quebrar o encanto. As ruas de repente ficam vazias, e o silêncio é quebrado somente pelo zurrar de um jegue vagueando lá fora. Sem luz não há vida na Vila Recôncavo. O serviço religioso noturno é adiado; a sessão de cinema é adiada; o bar fecha. Pensa-se na inconstância da nova prosperidade, lembrando-se de como o salitre pode rapidamente escurecer as cores alegres das casas, de como as chuvas pesadas podem solapar as fundações de uma casa de taipa, de como rapidamente as sementes podem crescer nas fendas da pavimentação, e de como um simples acionar de um botão em algum lugar distante pode apagar as luzes mágicas. Uma melancolia pesada cai sobre a Vila e permanece, até que, tão repentinamente como foi embora, as luzes voltam. A vida engrena de


17 novo, os rádios estrondam em altíssimo volume, e a Vila Recôncavo mais uma vez agradece pela luz e pela vida, porém inconstantes. Embora esta seja uma região tradicional, poucas pessoas conhecem sua história. Só muitopoucos podem citar dados históricos por mais de uma geração para trás, e também muito poucos sabem alguma coisa do “passado glorioso” da Vila Recôncavo, expressão muito ouvida mas sem maiores explicações.Há muitas ruínas de casas antigas urbanas e de fazendas, e mesmo nas ruas da Vila, mas poucas pessoas podem contar algo sobre elas ou sobre seus ilustres proprietários. Quase não há documentos históricos que possam ser encontrados na Vila, a maioria dos registros antigos foi destruída por insetos e pela umidade, ou queimados quando não havia mais salas para guardá-los, ou mesmo passaram para mãosde particulares em pequenas quantidades. Muitos dos registros eclesiásticos do convento e da igreja matriz da paróquia sumiram, embora alguns estejam guardados nos arquivos da Cúria em Salvador e em Olinda (Pernambuco). Alguma informação foi obtida no escritório do juiz de paz, onde os registros retroagem a 1800 e consistem, na maioria, de testamentos, inventários e registros de ações judiciais envolvendo propriedade, incluindo de escravos. A comunidade de Vila Recôncavo dá a impressão de ser uma imensa reserva particular. A Vila serve de ponto de contato com o exterior. Embora os habitantes da comunidade sempre saiam para negócios ou visitas, quase nunca um estranho entra em sua área. Não há instalações na Vila ou na área rural para receber alguém que não tenha ligações familiares na comunidade. Ao longo de suas estradas pode-se identificar praticamente qualquer pessoa com quem se encontre, se não pelo nome mas pela procedência. Quanto mais alta a posição da pessoa na escala social mais provável ser conhecido pelo nome por grande parte da comunidade. Estranhos são, provavelmente, hóspedes. Mas a aparição de uma pessoa sozinha não identificada dá causas à especulação.

2. História da Vila Um estranho recém-chegado à cidade de Vila Recôncavo deve questionar justificadamente as razões de sua existência, uma vez que parece ser uma ilha no meio de um vasto canavial. A vida do dia-a-dia dos seus moradores, que são pescadores, artesãos e funcionários municipais, aparentemente tem pouco a ver com a área rural. A fim de entender a separação entre a cidade e a zona rural é necessário investigar a história de ambas. Embora a Vila agora pareça divorciada da vida das fazendas e da usina, no passado ela foi intimamente ligada à riqueza dos proprietários de terras e é ainda diretamente afetada pela zona rural. A história desta região começou no governo de Mem de Sá, de 1557 a 1574. Ele foi o terceiro governador geral da nova colônia portuguesa no Brasil. A capital da colônia era a cidade de Salvador, fundada com sucesso em 1549 na segunda de duas tentativas. No tempo de Mem de Sá, restava a parte de trás da Baía de Todos os Santos para ser tomada aos indígenas e completar a colonização do Recôncavo, tarefa à qual se dedicou e que realizou em poucos anos. Quando as novas áreas foram conquistadas, a terra foi dividida entre poucos favorecidos,


18 em forma de sesmarias. Mem de Sá tomou como sua concessão três léguas e meia de litoral, estendendo-se por quatro léguas terra adentro e mais duas ilhas. A ponta leste desta concessão é agora a Vila Recôncavo, e o remanescente se estende até o município de Purificação (Santo Amaro da Purificação – NT). Mem de Sá implantou aqui uma das maiores e melhores fazendas de cana da colônia, que “ele estimou tanto por seu valor e rendimento quanto por orgulho e amor por tê-la feito surgir de matas selvagens”(1). Após sua morte, a terra passou para seu filho, que morreu logo depois, deixando a propriedade para sua irmã, a Condessa de Linhares e esposa de Fernando de Noronha. Noronha faleceu não muito depois, e sua mulher se casou de novo, e mais uma vez ficou viúva, perdendo também seu próprio filho. Por ocasião de sua morte, em 1618, o que não havido sido vendido da terra foi doado a várias organizações religiosas(2). Foi relatado em 1587 que havia quatorze fazendas na região que depois se tornou o município de Vila Recôncavo(3). Em 1591, os franciscanos entraram no Recôncavo à procura de um local onde pudessem erigir um convento. Instalaram um “pequeno hospício” em 1618 onde agora é a fazenda “N” (ver o mapa da comunidade). Este hospício (albergue – NT) durou somente dois anos, pois em 1620 os frades retornaram para Salvador(4). Em 1624 os franciscanos voltaram para a Vila, escolheram um sítio elevado na costa com vista para a Baía de Todos os Santos, e começaram a construir uma capela e convento. Nessa época, Gaspar dos Reis Pinto entrou de posse da fazenda “N”, que incluía a área escolhida pelos franciscanos para suas construções. Em 1633, Gaspar doou 143 braças quadradas (1 braça = 6 pés) à ordem religiosa(5). Com a fundação do convento, a Vila recebeu um maior impulso, tornando-se um núcleo de desenvolvimento posterior.

(1) J. Wanderley de Araújo Pinho, Testamento de Mem de Sá (Rio de Janeiro, 1941), p. 33. (2) Ibid., p.19. (3) Gabriel Soares de Souza, Notícas do Brasil (São Paulo, n.d.), I, Livri I, 289. (4) de Araújo Pinho, Testamento de Mem de Sá, p. 54. (5) Ibid.

O século XVII foi um período de grande expansão no Recôncavo ― o surgimento de muitas fazendas de cana e aumento de população, principalmente devido à importação de grandes contingentes de escravos africanos. Durante esse período, as primeiras duas divisões administrativas formais do Recôncavo foram organizadas. Na Vila Recôncavo, um distrito militar criado em 1668 foi a primeira unidade formal. Problemas com os holandeses no início do século e as contínuas invasões e saques de piratas levaram à necessidade de fortificar locais apropriados no Recôncavo, tais como bocas de rios que desembocavam na baía, para proteger as fazendas situadas em suas margens, locações em todos os aspectos ideais para um engenho. Vila Recôncavo foi escolhida como sítio para uma bateria em 1668, e lhe foram dados armas e homens. Um dos lados do outeiro do convento, que tem vista para a baía e fica diretamente na


19 boca do rio que vem desde Centro (Santo Amaro ― NT), ainda é chamado de Bateria, lembranças dos dias quando fazia parte das antigas fortificações. A segunda unidade administrativa formal instituída foi o município de Vila Recôncavo. Até 1693, Salvador era o único centro judicial e legislativo na Bahia. Em vista do desenvolvimento do Recôncavo, tornou-se necessária naquela época a criação na região de três vilas, termo aplicado às sedes administrativas de municípios. Assim, em fevereiro de 1698, a então Vila Recôncavo tornou-se um dos primeiros municípios organizados no Recôncavo, transformação que a tornou centro de muita atividade já que era agora sede do governo rural local, coletoria de impostos e justiça. Desde a sua criação, o município de Vila Recôncavo diminuiu de tamanho com a criação de outros municípios na região. Vila Recôncavo perdeu parte de suas terras. Em 1945 possuía só 189 quilômetros quadrados, menos da metade de sua área original. Anteriormente às divisões militares ou civis, já existiam divisões religiosas, paróquias. A paróquia de São Gonçalo incluía a sede da Vila e grande parte do interior. A igreja matriz da paróquia foi construída na Vila em 1678 e reconstruída em 1887 pelo terceiro Barão de Vila Recôncavo (Antônio de Araújo de Aragão Bulcão, terceiro Barão de São Francisco – NT), pois naquela época estava quase em ruínas, e a reconstrução foi uma completa renovação. Foi realizada com grande despojamento, retirando-segrande parte da antiga ornamentação. Hoje, a igreja necessita mais uma vez de reparos, já que o estuque está caindo, expondo as paredes de três pés (quase um metro – NT) de espessura construídas com pedra e cimento. A madeira dos altares, dos assoalhos e das divisórias internas está apodrecendo. As paredes exteriores caiadas estão escurecidas pela ação do salitre. Por mais de 40 anos a paróquia ficou impossibilitada de manter um pároco, e os deveres de atender às necessidades espirituais dos paroquianos recaíram sobre os franciscanos. Hoje, a igreja abre só para as missas dominicais, em eventos ocasionais ou casamentos. Em 1718, a capela do convento franciscano foi substituída por uma grande e suntuosa igreja, rezando-se a primeira missa em 1722. A magnificência da igreja ainda está presente, embora os altares originais tenham sido substituídos por novos. Requintados azulejos retratando a vida de Santo Antônio, a quem a igreja é dedicada, se alinham nas paredes. O piso é de mármore, e o teto de madeira tem pintura a óleo. Dizem que o mármore e a pintura do teto vieram de Portugal. A madeira do coro e da sacristia é um belíssimo trabalho artesanal em pau-rosa. O sino na torre, que bate de meia em meia hora, ainda é o relógio da cidade, e ressoa longe por sobre a baía. Sob o piso de mármore, entre o altar e a grade de comunhão, existem sepulturas das primeiras famílias da Vila. Os nomes lá inscritos constituem umalista de famílias hoje dispersas por todo o país. Não se sabe exatamente quando a Ordem Terceira de São Francisco se estabeleceu na Vila, mas ela também deixou sua marca na cidade ao construir outra grande igreja e um prédio de dois andares ao lado do convento. O cronista do convento do início dos anos 1900 escreveu: “Da época da formação da Ordem Terceira e da construção da igreja e dos prédios nada resta, nem um documento existe, com exceção de um livro que registra eleições, ofícios e resoluções da Ordem. Este livro começou em 1853 e foi encerrado em 1866. No teto da igreja aparece a data de 1751, em tinta branca, que parece ser da construção original, e ao lado há a inscrição


20 em preto “reparada em 1844”. As terras da Ordem são apenas conhecidas através da tradição do povo, já que nenhum documento existe.”(6) (6) Tradução do autor.

Se a data de 1752 pode ser tomada como a da construção da igreja da Ordem Terceira, deduzse que a Ordem existia na Vila algum tempo antes desta data, pelo menos nos inícios de 1700. Esses acréscimos ao convento foram as últimas construções nobres na Vila e foram realizadas no fim do período de sua prosperidade. Foram as últimas expressões públicas de grandeza no município e estão entre as primeiras a declinarem e se extinguirem nos dias que se seguiram ao boom do açúcar. Os prédios remanescentes da Ordem são agora usados para diferentes propósitos, que serão discutidos adiante. A primeira metade do século XVIII presenciou o final do esplendor da Vila e o início de sua queda na obscuridade. Por volta dos 1700, a cidade era um centro urbano próspero ― a mais nova sede de governo local criada, posto militar, centro religioso altamente ativo e local de cortes de justiça. Além dos grandes prédios públicos, imponentes residências privadasespalhavam-se pelas ruas, pois muitos dos proprietários de engenhos construíam grandes casas na Vila, usadas como pontos de parada em suas viagens entre suas fazendas e Salvador. Então como agora, entretanto, a Vila Recôncavo não era o principal centro de atração dos fazendeiros e de suas famílias, a maioria tendo casas na capital onde ficavam durante as estações chuvosas. Todavia, a presença dos enormes e enfeitados sobrados dava um certo ar de distinção e prosperidade à Vila. A história do declínio da Vila Recôncavo é sintomática do que aconteceu com muitas outras cidades na região em épocas posteriores. Vilhena associa a decadência da Vila com a criação do centro administrativo de Centro em 1727(7). Até aquela época, Centro tinha sido um sítio (designação para uma pequena povoação), criado em 1608. Até o fim do século XVII as melhores terras do Recôncavo, situadas no atual município de Purificação (Santo Amaro da Purificação ― NT), foram utilizadas como resultado do término dos ataques dos índios e o melhoramento dos equipamentos usados nas fazendas. Engenhos movidos a água logo deixaram de ser grande vantagem como foram anteriormente; a fabricação de açúcar por uma centena de anos acabou no litoral com a lenha necessária à produção intensiva continuada; e nessa época as regiões costeiras já não tinham espaço para expansão. Ao se deslocarem mais para o interior a partir de Centro, os colonizadores encontraram uma abundânciade terras ricas de massapê e lenha suficiente para as necessidades de muitos engenhos.E logo o número desses engenhos no interior ultrapassou a quantidade dos existentes à beira-mar. (7) Luis dos Santos Vilhena, Notícias soteropolitanas e brasílicas, 1802, ed. Braz do Amaral (Salvador, 1922), p. 502. Centro, situada às margens de um rio navegável que desemboca na baía em frente à Vila(*), estava em boa posição para servir a toda região dofundo do Recôncavo. O município hoje se estende por 1.800 quilômetros quadrados. Como porto, Centro serviu a dois propósitos no início do século dezoito. Uma grande quantidade de produtos e muitas pessoas passavam por


21 ela, incluindo famílias de plantadores de cana-de-açúcar de outras regiões do Recôncavo; e também serviu como “portão para o Oeste” num tempo em que o Oeste da Bahia e o de Minas Gerais eram desbravados e a exploração do ouro e de diamantes estava em andamento. Centro era o fim das águas navegáveis e o início de uma das rotas terrestres em direção aos chapadões do sertão e às áreas de mineração do Oeste. À medida que Centro crescia, a Vila estagnava. Em 1833, Centro foi elevada a cabeça de comarca do distrito e a Vila se tornou parte desse distrito judicial, perdendo assim sua proeminência como centro de jurisdição para a zona do interior do Recôncavo. Comercialmente, Vila Recôncavo foi eclipsada por Centro. Em 1802, Vilhena escreveu: “...Em ‘Centro’ há um grande movimento de comércio por causa do volume de açúcar, tabaco e do número de destilarias e de Mineiros [garimpeiros e pessoas do estado de Minas Gerais]. Continuando ao longo da margem do rio encontra-se ‘Vila Recôncavo’, que, embora bastante açúcar passando por ela, sempre teve um comércio fraco, e a cidade é conhecida como a de menor tráfico entre todas as outras.”(8)

(8) Ibid, Letter I, p. 32 (tradução do autor). E diz adiante: Apesar de sua antiguidade, ‘Vila Recôncavo’ tem poucos habitantes, na maioria pobres, embora em todo o termo haja muitas boas famílias de pessoas nobres, ricas devido aos produtos de seus grandes engenhos, dos quais eles obtêm muito e excelente açúcar, o único comércio daquela cidade; nela há a pesca de uma pequena sardinha chamada xangó e uma grande quantidade de bons e grandes camarões, que é a única ocupação das pessoas pobres, que os vendem, depois de secá-los, na cidade de Salvador...(9).

(*) O Rio Subaé corta a cidade de Santo Amaro e desemboca no Rio Sergipe do Conde, um longo braço de mar em meio ao manguezal, cuja foz fica em frente à cidade de São Francisco do Conde ― NT.

(9) Ibid., Carta XIII, p. 501 (tradução do autor).

Em 1837, Centro tornou-se oficialmente uma cidade, e por outros cem anos continuou como o mais importante pontocomercial do Recôncavo açucareiro. Pouco a pouco, porém, caiu no mesmo padrão de declínio que se vê hoje em grande parte do Recôncavo. Nos anos de 1900, uma rodovia foi construída de Salvador a Feira de Santana, mas ela passou tão longe da Vila que não lhe serviu de qualquer auxílio. Embora cruzasse as terras de Centro, o ponto terminal, Feira, tornou-se o novo portal para o Norte, o Oeste e o Sul do estado e do país. Apesar de Centro ser agora uma grande cidade, com uma população de cerca de dez mil habitantes e uma feira semanal que atrai pessoas do campo e de cidades vizinhas, isso não é bastante para


22 sustentá-la. Seu porto é agora relativamente pouco usado para exportar o açúcar, o qual na maioria das vezes segue por via férreadireto das usinas para Salvador. A causa imediata para a decadência de Vila Recôncavo, e também de Centro e de muitas outras antigas cidades, foi a perda de funções após o período de crescimentoda fronteira. As cidades que tinham sido centros religiosos perderam esta função. Postos militares não foram mais necessários, e as atividades administrativas ficaram mais restritas quando os municípios diminuíram de tamanho e os governos estadual e federal assumiram mais funções, como escolas e programas de saúde. As estradas-de-ferro e os caminhões mais tarde reduziram a importância de cidades portuárias. As cidades rurais não mais interessavam à rica aristocracia rural que sempre as dominou e sustentou. Transportes mais rápidos tornaram possível esta classe ir e voltar das fazendas ou usinas para a Vila Recôncavo ou para capital em um dia, em vez de três, deixando de ser necessário manter uma casa na Vila Recôncavo para pernoite. Melhores transportes também permitiramàs outras classes a ida fácil para Salvador para compras, consultas a médicos, festas ou visitas a alguém. Então Salvador, por causa de sua proximidade e relativa facilidade de transporte, assumiu muitas funções das sedes municipais rurais, funções que estas poderiam ainda desempenhar se estivessem mais distantes da capital do estado. Finalmente, e talvez mais importante de tudo, tem havido um deslocamento populacional no último meio século. Novos centros populacionais e industriais surgiram no Recôncavo, havendo uma reorientação da atividade comercial sem, entretanto, a devida companhia da reforma administrativa. As antigas cidades, como Vila Recôncavo, permaneceram como sedes de município mantendo funções administrativas e a pretensão de ser o centro da atividade municipal. Estatísticas oficiais indicam uma grande predominância da população rural no Recôncavo. Na verdade, entretanto, muitas dessas pessoas moram em vilas. Embora esses centros não sejam oficialmente chamados de cidades, seu padrão de vida é urbano e não rural. Por exemplo, o distrito de Riachão, no município de Purificação, no censo de 1940 acusou 442 habitantes urbanos e suburbanos, e 9.369 habitantes rurais. Isso não dá indicação da existência de uma grande vila industrial com quase nove mil pessoas. As cidades mais antigas podem, em longo prazo, demonstrar serem mais duradouras do que os novos centros, que na maioria das vezes são cidades industriais, pois é possível que algum dia as fábricas possam fechar, causando um completo deslocamento. Entretanto, cidades como Vila Recôncavo ficam fora de novos desenvolvimentos, sem indústria ou comércio, exceto o que pode ser feito em pequena escala, como pesca ou feira semanal. Ainda reconhecidas como centros formais de seus municípios ou distritos, elas mantêm suas funções burocráticas locais. Até a segunda metade do século XIX, o município foi a principal organização da comunidade, e a cidade de Vila Recôncavo foi o maior centro de atração do município. Entretanto, em razão dosprogressos da indústria açucareira, esta velha estrutura de comunidade começou a mudar. Essesprogressos, que serão descritos no capítulo seguinte, tiveram o efeito de isolar posteriormente a cidade de Vila Recôncavo dos principais cursos de vida que giravam em torno da indústria do açúcar, que sempre foi a característica mais importante da vida no Recôncavo. Novos desenvolvimentos na indústria causaram novos alinhamentos comunitários, resultados finais do que tem sido deixar os centros administrativos formais, como a da cidade de Vila


23 Recôncavo, fora da vida comunitária rural.No próximo capítulo, a história da zona rural será discutida, interligando a cidade e a zona rural.

3. A história da zona rural A história do desenvolvimento da zona rural de Vila Recôncavo é mais ou menos representativa da maioria das zonas rurais nos estados da Bahia, Alagoas e Pernambuco, e consiste em dois aspectos principais. Primeiro que tudo, é a história da indústria açucareira no Brasil, e em segundo lugar o registro social, econômico e político das pessoas que lidavam com a cana-deaçúcar. O Recôncavo baiano ocupa uma posição única no Brasil, pois sua história é tão longa quanto a da que hoje é a nação. De 1549 até 1763, Salvador foi a capital da nova e próspera colônia portuguesa. O Recôncavo, em razão de sua proximidade com Salvador, e por causa das excelentes facilidades de transporte proporcionadas pela Baía de Todos os Santos, era a única parte do Brasil com fácil comunicação com a capital. Embora os governadores gerais estivessem ocupados com os assentamentos em outros lugares distantes na colônia e com a invasão e atos de pirataria por parte dos franceses, ingleses e holandeses, suas primeiras, ou pelo menos mais próximas, preocupações eram aquelas de colonizar e explorar a Bahia e suas cercanias imediatas. Ao fim dos primeiros cinquenta anos de atividade, a maior parte do Recôncavo foi conquistada da natureza selvagem; e, embora não livre dos ataques dos índios por muitos anos, a cana-de-açúcar foi rapidamente plantada. Como foi dito anteriormente, o açúcar nessa época era um item de luxo na Europa e atingia um preço bastante alto. No primeiro século de seu cultivo a cana-de-açúcar trouxe fortunas para muita gente: produtores, intermediários, traficantes de escravos e governadores da colônia. No início do período colonial, a terra era distribuída na forma de concessões que originariamente abrigava a ideia da responsabilidade dos titulares de colonizar e desenvolver suas áreas. As sesmarias eram extensas, constituindo-se mais em léguas de terra do que em acres. Uma só concessão podia ser feita a uma família. Assim, o filho de um homem que foi titular de uma sesmaria ou mantinha a terra do pai ou tinha que deixar a província e adquirir sua terra em outro lugar. A única alternativa restante era esquecer a terra e entrar para comércio ou abraçar uma profissão. Entretanto, já que as sesmarias eram muito grandes, os titulares originais podiam dividi-las, vender ou arrendar as partes, dando alguma para seus filhos ou filhas casadas, e até conservar e cultivar uma boa parte para sustento próprio. Assim, a sesmaria original era fragmentada, e em cada parte surgiam várias fazendas. Engenho era o nome dado à fazenda como um todo, bem como sendo a designação para a fábrica em si. Cada engenho, independente de estar mais para o interior ou à beira-mar, necessitava de duas coisas: solo de massapê e matas tão perto possíveis da fábrica para fornecer lenha usada na fornalha de cozimento do caldo da cana. A lenha logo se tornou um problema crucial, um dos que assombraram a indústria açucareira por séculos. Preservação nunca foi uma prática brasileira, e as florestas tropicais do Recôncavo logo foram devastadas para alimentar as bocas famintas das fornalhas. Com o passar do tempo, tornou-se necessário importar lenha por barco de onde fosse encontrada, o que aumentou significativamente os


24 custos de produção do açúcar. O engenho a vapor veio muito mais tarde e piorou ainda mais o problema. No início, a casa do senhor-de-engenho era uma verdadeira fortificação, cercada de amuradas e estacadas para resistir aos ataques dos índios, mas por volta do fim do século XVII a necessidade dessa precaução cessou e as casas dos engenhos assumiram proporções nobres. Muitas eram imponentes edificações de dois andares construídas com pedra e argamassa, o andar térreo sendo usado geralmente como depósito, e o senhor-de-engenho e sua família habitando o andar superior. Como regra, a casa grande do Recôncavo se situava onde pudesse se ter uma excelente vista das janelas, não só do engenho e das senzalas dos escravos, mas dos campos ao redor. Não havia visão mais querida para o coração do senhor-de-engenho do que os canaviais, as folhas de diversas tonalidades de verde balançando suavemente ao vento. Normalmente, havia uma capela anexa à casa ou construída nas proximidades. Não muito longe ficava o engenho e também as senzalas. Toda a unidade formava uma pequena aldeia, pois cada engenho necessitava de muitos especialistas ― carpinteiros, ferreiros, pedreiros, tanoeiros, marinheiros, pescadores, um barbeiro, alfaiate, vaqueiro, capelão ― além daqueles cujo comércio era ligado ao fabrico do açúcar. Pela manhã, os trabalhadores, cortadores de cana e condutores de animais saíam para trabalhar nos campos, retornando mais tarde. Em razão do tamanho da fazenda e do número de seus escravos ― que normalmente chegavam a duzentos ou trezentos ―, a casa grande, situada entre palmeiras imperiais e com vista para o engenho, as senzalas, a capela e outros prédios assumiam a aparência de nítida aldeia. O dono e absoluto soberano desses domínios era o senhor-de-engenho, título que se tornou um símbolo de riqueza e depois de nobreza. O senhor-de-engenho dominou a Bahia e também toda a região açucareira de Alagoas e Pernambuco, por muitos anos, social e politicamente, até o açúcar ser ultrapassado em importância por outros cultivos e outras atividades industriais. Mesmo muito mais tarde, quando o açúcar tornou-se menos lucrativo, e outras atividades ultrapassaram a sua produção em importância econômica para o país, o senhor-de-engenho continuou uma figura proeminente, pelo menos no Nordeste do Brasil. Cada unidade era uma entidade completa em si mesmo, com seu sobrado, capela, engenho, senzalas, escravos, canaviais, pastagens, bois e matas. O padrão para a fazenda no Recôncavo foi estabelecido nos primeiros tempos. Hoje, muitas das divisas (linhas de rumo ― NT) originais ainda existem, e as fazendas mantêm seus antigos nomes. Além de cultivarem várias unidades de 700 a 1.000 acres(2,8 milhões a 4 milhões m² ― NT) dentro de suas sesmarias, os proprietários também arrendavam parcelas menores de terra aos lavradores ― indivíduos livres que, com seus poucos escravos, cultivavam pequena quantidade de cana-de-açúcar que eles levavam para o engenho para ser moída e fabricar o açúcar. Essas pessoas eram as mais perto de serem consideradas como pequenos fazendeiros no Recôncavo; entretanto, elas não possuíam sua própria terra e eram completamente dependentes do senhor-de-engenho. Há vários casos tristes de pequenos fazendeiros que foram trapaceados pelo senhor-de-engenho e praticamente tornaram-se seus escravos. Eles tinham de fornecer suas canas para o engenho e frequentemente lhes era informado que a cana estava seca, ou ácida, ou que o fornecimento teria sido menor que o registrado. Em tudo isso era necessário se acreditar na palavra do


25 escriturário do engenho. Não havia tribunal de apelação ― somente o patrão, que representava a lei, a ordem e a justiça no Recôncavo. Com o passar do tempo, a feição da sesmaria foi perdida, e o complexoengenho tornou-se a principal característica. Os casamentos entre famílias de senhores-de-engenho trouxeram novos alinhamentos de propriedade, algumas famílias adquirindo mais terras e outras as perdendo através dos processos naturais de casamento e crescimento de partes de famílias e morte de outras. A família se tornou cada vez mais importante. Via de regra, a família conjugal era grande e aumentava enormemente; casamentos entre primos, tios, sobrinhas e outros parentes eram comuns. A vida social se desenrolava nos engenhos da vizinhança, e, é claro, muitos casamentos aconteciam como resultados desses contatos, de forma que não era raro se encontrar muitas fazendas, contíguas e dispersas, de propriedade da mesma família. Normalmente, cada grande família tinha a sua fazenda tradicional como base, e o chefe da família sempre residia lá, embora nem sempre. Ao patriarca eram concedidos grande respeito e prestígio por parte dos membros de sua família, tanto os mais distantes quanto os mais chegados Muitos dos que receberam concessões de terras eram nobres da província, e muitos deles componentes do governo. Desta maneira, o senhor-de-engenhose estabelecia com segurança não só no Recôncavo como também na hierarquia governamental, e sempre estava em posição de observar se a ação do governo não afetaria adversamente os interesses dos plantadores de cana-de-açúcar. De qualquer maneira, por muitos séculos a dominação social e política ficou sob a responsabilidade de um pequeno grupo que progressivamente promovia casamentos internos, sempre se fortalecendo. Seus membros formavam, em primeiro lugar, a pequena nobreza proprietária de terras; seguindo em importância, vinham os profissionais, como advogados, médicos, clérigos, professores e políticos. Membros desse grupo eram também soldados, e na Guerra da Independência, em 1822, os senhores de engenho de Vila Recôncavo desempenharam papel de relevância, tanto pessoal como financeiramente, pelo que depois foram agraciados com títulos reais que lhes foram outorgados. Quando as pequenas cidades rurais, e depois municípios, cresciam, também caíam sob a dominação de um ou de vários senhores-de-engenho. Não raro, surgia um conflito entre duas famílias para que fosse determinada a que seria a dominante. À medida que o senhor-deengenho prosperava, demonstrava sua riqueza e poder com um grau de ostentação que era comentado até pelos viajantes e cronistas dos séculos XVII, XVIII e XIX. As ruínas das casas construídas naqueles tempos ainda podem ser vistas hoje dispersas pelo Nordeste litorâneo. Essas casas (solares e sobrados) eram enormes, construídas de pedras e argamassa, com madeirame nos assoalhos e nos tetos. Pedra e madeira eram um sinal de riqueza, mesmo que fosse necessário trazê-las de longas distancias. As mobílias eram sempre de pau-rosa e feitas artesanalmente. A riquezaera especialmente demonstrada em serviços de mesa de prata, porcelana e cristal, na maioria importados da Europa. Membros das famílias frequentemente vestiam-se com finos tecidos de sedas de damasco, adornados com joias de ouro e pedras preciosas. Não era raro o senhor-de-engenho vestir alguns poucos de seus escravos favoritos quase como seus familiares para os exibirem nas igrejas como uma indicação de sua riqueza. Outro método de ostentação de riqueza era sustentar igrejas, especialmente as da Ordem Terceira de São Francisco.


26 O senhor-de-engenho finalmente perdeu sua importância. Quando a capital da colônia foi transferida da Bahia para o Rio de Janeiro, em 1763, ele deixou de ser poderoso na política, exceto localmente, pois passou a haver uma grande distância entre ele e a nova capital. O transporte era difícil, e as comunicações mais ainda. Também outros produtos agrícolas ― como o café, o algodão, a borracha e, finalmente, o cacau ― tornaram-se mais valiosos que o açúcar. A abolição da escravatura em 1888 foi o golpe final no poder do senhor-de-engenho. Admitia-se normalmente que a grande riqueza e a fonte de riqueza do senhor-de-engenho eram seus escravos. De início, os colonos portugueses tentaram escravizar os índios e os puseram para trabalhar nas plantações de cana, mas eles adoeciam e morriam facilmente. Havia também uma grande oposição, por parte dos jesuítas, à escravização dos índios. A importação de escravos africanos pereceu ser a solução. De meados do século XVI até meados de século XIX, navios iam da Bahia até a costa da África levando tabaco, couro e cachaça para serem trocados por escravos. O escravo africano sempre atingia um preço maior no mercado da Bahia em relação ao escravo indígena. Considerava-se que uma fazenda ou engenho de mil acres (4 milhões m² ― NT) precisaria de aproximadamente duzentos escravos, alocados nos trabalhos do campo, do engenho, em ofícios e na casa do dono. No século XIX, a aquisição de escravos se tornou cada vez mais difícil em razão da oposição à escravidão pelos europeus, norte-americanos e até por parte de opositores brasileiros. Em meados daquele século, o comércio de escravos foi oficialmente proibido e o tráfico tornou-se clandestino. Os preços de escravos subiram enormemente nessa época e permaneceram altos até que a lei de 1888 acabou com a escravidão completamente. Antes dessa época, a alforria já tinha sido usada em grande escala. De fato, era característico em toda a região que as relações entre os brancos e os escravos eram relativamente calorosas e íntimas. Gilberto Freyre descreve a intimidade entre o moleque (menino negro) e o filho do senhor como companheiros, entre a mulher do senhor e suas domésticas, entre babás negras e as crianças brancas de que cuidavam, entre negros e brancos em outras relações mais chegadas nos engenhos. Ocorreu uma grande miscigenação de raças. Ainda é uma anedota nesta região se dizer que um determinado senhor-de-engenho “povoou a área”. As crises sofridas pela indústria açucareira durante seus quatrocentos anos de história são interessantes e dignas de consideração. Durante os primeiros cinquenta anos de produção (até o início do século XVII), a indústria prosperou e se expandiu. Foi um “período de formação, proteção oficial, estímulos do governo, durante o qual as liberdades de produção, transporte, preços e comércio sofreram pouca ou nenhuma restrição.”(1) O século XVII, entretanto, vivenciou várias crises, sendo uma das maiores a guerra contra a Holanda. Em 1624, os holandeses tentaram capturar a Bahia, mas foram repelidos. Entretanto, eles navegaram pelas costas da Baía de Todos os Santos, queimando e saqueando engenhos e incendiando os canaviais. No norte, os holandeses tiveram sucesso na captura de Pernambuco, onde ficaram por vinte e quatro anos, também se dedicando à produção de açúcar. Em 1644, o governador holandês, Maurício de Nassau, foi chamado de volta à Holanda, e a colônia foi deixada sem direção. Os brasileiros se revoltaram e recapturaram Pernambuco.


27 (1) J. Wanderley de Araújo Pinho, História de um engenho do Recôncavo, 1552-1944. (Rio de Janeiro, 1946), p. 193. Os três parágrafos seguintes são uma condensação do material constante nas páginas 193-220 (tradução do autor). Em 1666, houve uma epidemia de varíola no Recôncavo que reduziu a população escrava e deixou muitos senhores-de-engenho sem mão-de-obra. Seguiu-se um período de quase fome por alguns anos, devido à falta de cultivo de alimentos. Enquanto a situação perdurou, os senhores-de-engenho hipotecavam suas propriedades a fim de comprar novos escravos e equipamentos. Então, começou uma longa série de hipotecas que continuou por vários anos. Agentes comerciais na capital, na maioria representantes de companhias portuguesas, emprestavam dinheiro aos senhores de engenho, usando a futura safra como garantia. Eles também cobravam altos juros. Quando a safra seguinte não se realizava, e nem a próxima, os senhores-de-engenho ficavam enredados em dívidas. Ao mesmo tempo, o mercado de açúcar em Portugal foi perdido porque o açúcar chegava lá deteriorado em razão do péssimo transporte, um carregamento levando até dois anos para ser entregue no destino. Além disso, os preços da maioria das outras mercadorias cresciam e, também, Portugal começou a taxar pesadamente os colonos. No início de 1700, houve uma fase próspera maior devido aos altos preços do açúcar na Europa. Muitos engenhos foram reconstruídos, ampliados e modificados, e vários novos construídos. Como resultado, muita gente voltou a se endividar. Durante o século XVIII, dois grandes fatores voltaram-se contra a prosperidade dos plantadores de cana-de-açúcar: a competição no mercado europeu com franceses, espanhóis e ingleses, que agora produziam açúcar em suas ilhas do Caribe,e a descoberta de ouro no Oeste brasileiro. O açúcar podia ser transportado para a Europa mais rápido do Caribe do que do Brasil. Estava sujeito a menor desperdício e havia, provavelmente, menos interferência governamental. Tão logo o mercado europeu foi inundado pelo açúcar, o preço caiu. Além disso, a descoberta de ouro em Minas Gerais desbancou a indústria açucareira do Recôncavo logo na época em que não podia permitir-se. O preço dos escravos, dos metais, de roupas, do gado, de cavalos e de tudo que se precisava na vida subiu. Muitos dos homens livres que trabalhavam nos engenhos em funções administrativas foram atraídos para as minas com a promessa de grandes riquezas. A necessidade de escravos nas minas era grande, e os mercadores que vendiam escravos preferiam vendê-los aos mineiros, que podiam pagar em dinheiro vivo, já que os donos de engenho frequentemente pagavam em açúcar. Nesse período houve também uma séria diminuição de gêneros alimentícios, pois muitos dos pequenos fazendeiros que normalmente produziam alimentos emigraram para Minas Gerais. Os agricultores ― aqueles que plantavam tabaco e os que plantavam cana ―ainda eram pressionados pelos altos impostos. Há muitas cartas e documentos de organismos governamentais da colônia, endereçados ao rei português, colocando-o a par da situação deplorável em que os plantadores de cana se encontravam, sem comida, seus escravos morrendo, o preço do açúcar caindo, perda de mercados e, especialmente, sobrecarga de impostos. Na maioria, os documentos que subsistiram no tempo são pessimistas, mas durante os tempos de prosperidade muito poucos foram escritos. De qualquer maneira, mais tarde, no


28 século XVIII, algumas medidas foram tomadas para aliviar os impostos e fornecer meios de transporte para a Europa melhores que o sistema irregular das frotas que frequentemente espaçavam suas viagens em dois ou três anos de diferença. Então, muitos donos de engenho tomaram coragem e se aplicaram no soerguimento da cana-de-açúcar. Foram ajudados depois pelo crescimento do mercado na Europa, do qual finalmente quase se apoderaram na virada do século como resultado das guerras europeias. Ao fim das Guerras Napoleônicas, a produção de açúcar estava em seus melhores dias, e a Bahia mais uma vez experimentava uma prosperidade desejável. Entretanto, o ano de 1822 trouxe a Guerra da Independência, travada principalmente no Recôncavo. A guerra foi apoiada em grande parte pelos senhores-de-engenho, tanto financeira quanto fisicamente. Emborativessem ganho um grande prestígio, perderam suas safras, e suasexportações de açúcar desabaram. Levou tempo para se recuperarem, e em 1855 sofreram outro violento golpe, uma epidemia de cólera. Uma indicação das dificuldades causadas pela epidemia é dada na seguinte passagem, traduzida de um documento do inventário do Barão de Caju (Barão de Cajaíba, Alexandre Gomes de Argolo Ferrão – NT) aberto após a morte de sua esposa, vítima do cólera: A família estava em bom estado de entusiasmo e prosperidade em 1855, quando a epidemia fatal de choleramorbus varreu esta província, invadindo a casa dos inventariados e causando neles danos horríveis e enormes perdas! A Baronesa foi vítima deste flagelo voraz! Oitenta e dois dos mais valiosos e úteis escravos tiveram a mesma sorte; os melhores expedientes, tratamentos e cuidados de vigilância não tiveram efeito! Quase que toda a safra daquele ano fatal perdeu-se com a completa ausência de mão-de-obra no campo, pois o número de não atingidos era pequeno, e os outros convalescentes eram verdadeiros espectros! As safras de 1856 e de 1857 também sofreram. Logo depois, iniciou-se uma nova fase quando a Guerra Civil começou nos Estados Unidos, jogando para cima o preço do açúcar e incrementando o mercado. Alguns anos depois, uma praga atacou a própria cana, e a produção caiu vertiginosamente. Ao mesmo tempo, o café começou a atrair a atenção em São Paulo e os poucos escravos à venda eram enviados para lá, onde eles conseguiam melhor preço, causando assim uma diminuição de mão-de-obra no Recôncavo. Em 1888, um golpe final: a abolição da escravatura. A produção desabou, e o século XX chegou com o que foi considerada a mais grave crise que a indústria açucareira jamais experimentou. No fim do século XIX houve várias tentativas de aprimoramento domaquinário usado na fabricação do açúcar. Novos métodos de fora foram introduzidos e na virada do século a usinafez sua primeira aparição em cena. A usina representa a fábrica central em larga escala, projetada para moer as canas de muitas fazendas, aumentando assim a produção total de açúcar(2) O governo estadual agiu e financiou a construção de três usinas que foram dadas a empresários como concessões. Houve um esforço para recuperar a indústria em bases diferentes e mais vigorosas. Ao mesmo tempo, entretanto, o Recôncavo, assim como outras partes do Brasil, sentiu o empuxo do boom da borracha na Amazônia e perdeu alguma mão-deobra. Porém, mais uma vez, a guerra europeia veio socorrer, e durante a segunda e terceira décadas do século a indústria açucareira prosperou. Muitas usinas foram construídas, e houve


29 um forte sentimento de otimismo, que terminou abruptamente em 1929 e 1930 como resultado uma prolongada superprodução. Em 1933, o Instituto do Açúcar e do Álcool foi criado pelo governo federal para regular a produção. As novas regras causaram insatisfação e disputas, e a produção caiu bruscamente, somente se soerguendo após a Segunda Guerra Mundial, quando muitas das restrições impostas pelo Instituto foram levantadas. Hoje, o Recôncavo parece experimentar uma leve fase de abundância. A introdução da usina central em grande escala é o nosso maior interesse nesse recital de crises, pois foi essa inovação que trouxe a maior quantidade de mudanças para a cidade e para toda a estrutura da comunidade. (2) Em seguida, a palavra “fábrica” será usada para designar a usina; onde quer que a palavra “fábrica” apareça deve ser entendida como significativa de fábrica de moagem de cana, salvo especificação em contrário. (Nota do editor). (Nota do tradutor: para efeito de melhor entendimento em Português e compreensão da realidade do Recôncavo, o termo “usina” será mantido, em vez de “fábrica”.)

A usina foi concebida como um grande engenho mecanizado localizado em um ponto em que pudesse moer a cana de muitas fazendas. Os dois aspectos da indústria açucareira, o agrícola e o industrial, foram separados. A cana seria plantada, cultivada e colhida por um grupo de pessoas; estas eram os ex-senhores de engenho que, com o novo sistema, passaram a ser simplesmente fornecedores de cana para a usina. A cana então era moída, processada e comercializada por outro grupo de pessoas, um corpo empresarial personificado no usineiro. Entretanto, esta divisão não perdurou muito, pois o moderno e avançado maquinário das novas usinas provaram ser capazes de moer mais canas que os plantadores forneciam. Em razão de suas condições financeiras miseráveis e a perda de trabalhadores devido à abolição da escravatura e à consequente relocação de ex-escravos, os plantadores não tinham condições de expandir suficientemente sua produção de cana para atender a demanda das usinas. Em outros casos, os plantadores se ressentiam das novas usinas e simplesmente recusavam a cooperar, continuando a operar seus engenhos fora de moda, apesar das condições adversas. Como resultado, as corporações começaram a comprar suas próprias fazendas, situadas tão perto das usinas quanto possível, a fim de assegurarem grande suprimento de cana e diminuição de sua dependência dos plantadores individuais. Houve uma época em que o apetite por terras parecia insaciável. Os usineiros não só dispunham de recursos para comprar terras como também de meios para forçar plantadores a vendê-las às corporações. Através da recusa de moer as canas dos fornecedores, ou receber as canas e deixá-las azedarem, além de vários outros métodos, os usineiros eram capazes de levar muitos fazendeiros à falência, após o que as corporações compravam as terras. Também muitos fazendeiros que continuavam a depender de seus próprios esforços, produzindo açúcar em seus velhos engenhos, entravam gradualmente em falência uma vez que não podiam competir com o produto melhorado das novas usinas. O sistema usina de Vila Recôncavo é uma grande combinação agricultura-indústria, um engenho aumentado muitas vezes. O padrão de propriedade mudou.Enquanto o engenho era


30 de uma família, e portanto sujeito a transferência por morte do dono, a usina é uma sociedade que continua apesar da morte de seus acionistas. Como será mostrado mais adiante, a companhia pode ser até uma família. O senhor-de-engenho, dono de terras e de escravos e soberano de pequenos impérios, desapareceu. Mas em seu lugar assumiu uma figura ainda mais poderosa, o usineiro, administrador da combinação terra-fábrica e representante do poder corporativo. Entretanto, nem todos os fazendeiros independentes sucumbiram à pressão das usinas ou ao colapso econômico. Há muitos que ainda continuam a plantar e cultivar cana-de-açúcar, mandando-as para as moendas da usina. Após 1933, o Instituto de Açúcar e do Álcool passou a estabelecer a quantidade de cana que cada fazenda, particular ou corporativa, poderia plantar, como também o montante de açúcar que cada usina poderia produzir, além da quantidade de cana que ela aceitaria de cada fornecedor. Como resultado dessa proteção, muitas fazendas particulares continuam a funcionar em harmoniacom a usina para a qual elas fornecem cana. Os proprietários de fazendas particulares também têm uma associação separada que cuida de seus interesses. Assim, o século XX tem visto a introdução e desenvolvimento do sistema de usina e em seu rastro uma série de mudanças fundamentais. O crescimento dos povoados nas usinas (os núcleosusina) tem criado competição com localidades rurais mais antigas, como a Vila Recôncavo, além de desintegração da antiga estrutura comunitária. Desde o seu descobrimento e colonização, a área rural de Vila Recôncavo tem sido cenário da plantação da cana e do fabrico de açúcar. A área rural foi colonizada antes da vila, e os núcleos engenho eram na verdade pequenos povoados autossuficientes. O padrão de propriedade nessa área rural fechava um ciclo completo. Primeiro foram as grandes sesmarias que então eram retalhadas em engenhos separados (após 1889, conhecidos como fazendas) através da divisão por herança, venda ou doação. Ao longo de trezentos anos o padrão da região foi o de engenho. Entretanto, ao fim do século XIX, esse modo de vida esgotou-se como resultado de crises financeiras e da abolição da escravidão. O século XX chegou com a introdução da usina, que levou de novo à concentração de terras em mãos de um único proprietário, embora desta vez uma empresa e não uma simples pessoa ou família. Durante a época dos engenhos havia a necessidade da existência de uma cidade para servir à conveniência da classe dos latifundiários. A comunidade era concentrada em grande parte no povoado rural.Mas, com a abolição da escravatura, o desaparecimento do senhor-de-engenho e de sua grande família e a chegada da usina, a antiga estrutura de comunidade começou a desmanchar. As corporações adquiriam gradualmente fazendas que se tornavam empresas comerciais. A casa grande não era mais a residência de um senhor-de-engenho nem o cenário da vida e das atividades sociais de sua família. A parte superior do estrato social parcialmente desapareceu, e aqueles que permaneceramno trabalho agrícola viravam-se agora para a usina,por suas ordens e pagamentos, para o novo armazém de suprimentos da usina, e para o chalet do usineiro, como novo senhor e patrão. Os fazendeiros individuais que aderiram à rede de usinas também começaram a procurar o núcleo usina atrás de vida social, compra de suprimentos, venda de suas canas e recebimento do seu dinheiro.


31 Assim, cada usina tornou-se gradualmente o foco de uma nova estrutura comunitária, composta do núcleo ― a usina, o armazém e as casas dosdiretores e dos trabalhadores ― cercado pelas fazendas da empresa,cada uma das quais ainda preservando o antigo padrão de plantio dacolonização, além das plantações privadas, pouco alteradas na aparência em relação à época do engenho. Os povoados das usinas, entretanto, não assumiram as funções formais de sedes de municípios. Muito raramente houve povoados de usinas que tenham recebido reconhecimento oficial pelo governo como cidades. Na maioria das vezes, os núcleos usinas aparecem em registros oficiais somente como fazendas de cana. Em razão do crescimento da usina e de suas redes de fazendas ao seu redor, as novas estruturas comunitárias do Recôncavo têm assumido aparências circulares. Vila Recôncavo demonstra bem isso. Nos espaços entre os círculos que representam os sistemas de usina podem ser encontradas cidades com antigas formas administrativas, com pouco da influência ou atração que tiveram algum dia. Mas ainda são importantes burocraticamente para o funcionamento do município. Como resultado do rompimento da velha estrutura de comunidade, processo que ainda continua, não há hoje um centro comunitário definitivo e nítido em Vila Recôncavo.

4. A Vida na Fazenda A era de ouro da indústria açucareira foi caracterizada pelo complexo do engenho, acompanhado por um modo de vida definido. A ruptura final do complexo veio no fim do século dezenove com a criação da grande usina central. Mudanças nas práticas agrícolas, entretanto, apenas começam a acontecer. Quase toda a ênfase de mudança no passado foi colocada no desenvolvimento dos aspectos técnicos do processamento da cana, e muito pouca atenção foi dada à parte agrícola da usina. Fazendas modernas continuam a ser relativamente unidades autossuficientes, como os engenhos o foram. As usinas não trouxeram nenhuma mudança aos padrões de colonização da terra na região. Uma vez estabelecidos nos locais de antigos engenhos, não criaram um novo núcleo; ao contrário, simplesmente aumentaram os velhos centros. Parte da população de exescravos se transferiu para essas usinas, que precisavam de mais trabalhadores. Mas, nos anos subsequentes, houve um gradual deslocamento dos ex-escravos para seus antigos engenhos, nas mesmas localizações e muitas vezes para as mesmas casas. O desaparecimento de pequenas chaminés de muitos engenhos e o surgimento de outras mais esparsas e bem maiores das usinas, juntamente com a chegada de redes de ferrovias de bitola estreita que se irradiam a partir das usinas, marcam as maiores mudanças na paisagem do Recôncavo. Os contornos das novas fazendas e seus limites permanecem quase os mesmos dos que existiam há cem anos ou mais. Os prédios dos pequenos engenhos são frequentemente usados como oficinas e galpões para carros de bois. A discussão seguinte irá examinar uma das cinco fazendas na comunidade de Vila Recôncavo e então descrever a rede de plantações da usina na mesma comunidade.


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A Fazenda Particular: Fazenda das Moças (*)

(*) Fazenda Gorgaínha – NT

A Fazenda das Moças (o “G” no mapa da comunidade) é uma típica propriedade privada em todos os aspectos, exceto em um. Sua proprietária é uma senhora que assumiu a direção ativa da fazenda após a morte de seu marido. A princípio, houve alguma dificuldade em convencer o administrador da fazenda a receber ordens de uma mulher, pois ele se sentia desprestigiado aos olhos dos trabalhadores e também dos demais administradores das fazendas vizinhas. Entretanto, após três ou quatro anos, Dona Sinhá (Ana Junqueira Ayres Tourinho,Nanita ― NT), em cooperação com “Seu”(1) Paulo, o administrador, alcançou um sucesso marcante em sua fazenda, e o atrito original entre os dois diminuiu sensivelmente. Abaixo, um inventário da Fazenda das Moças: Dimensão: 930 tarefas(2), na maioria de massapê, 450 das quais cultivadas com cana-deaçúcar, o resto consistindo de pastagens e pequenos roças; Água: 4 tanques para bebedouros do gado; 2 pequenos riachos de água doce. (Para beber, a água é trazida de uma fazenda vizinha cuja fonte é bem conhecida na região pelas suas qualidades de salubridade.) Casas: 45 casas dos trabalhadores; a casa da proprietária, com sala de estar, sala de jantar, 4 quartos, cozinha, banheiro, 2 quartos de empregadas, 2 outras dependências, varanda; arrodeada por um pomar; 1 casa do administrador; 1 casa mais tarde usada como escola; 1 nova escola rural, com salas de aula e dependências de moradia para as professoras, construída pelo Estado em terra doada por Dona Sinhá. Valor da fazenda: Cr$1.500.000,00 (3). Equipamentos: 1 trator Caterpillar, modelo D2; 1 arado John Deere; 1 Jeep; 2 carretasde quatro rodas de borracha; 9 juntas de bois (uma junta igual a dez bois, oito trabalhando e uma em descanso); 9 carros de bois de duas rodas ― o antigo e mais usado meio de transporte no Recôncavo; 30 burros para transporte de cana; 12 cavalos de sela; 35 vacas leiteiras e éguas reprodutoras;78 cabeças de gado para reprodução. A Fazenda das Moças é especial por possuir um trator, um arado mecânico e um jeep. (Mais recentemente, adquiriu-se um segundo trator e umaroçadeira mecânica.) Comumente é usado o arado chamado de “pai adão”, puxado por oito bois. Segundo (Wanderley) Pinho, esse arado foi introduzido no Brasil no fim do século dezoito. Antes disso, todo o cultivo era feito com enxada(4). Pelos últimos 150 anos o “pai adão” vem sendo usado principalmente para abrir os regos onde a cana-de-açúcar é plantada. Todo o resto do cultivo é feito a mão, com enxada e estrovenga. O “pai adão” é um arado com uma lâmina simples. Quando puxado por bois é necessário um guia, um garoto para ajudar e um homem para manejar o arado. Quando é


33 puxado por trator, só são necessários dois homens, o tratorista e o lavrador. Várias propriedades do solo, tais como seu endurecimento quando seca no verão, seu caráter enlameado durante a estação chuvosa, e o perigo de expor o tauá infértil que fica logo abaixo do solo raso do massapê, dificultam a aração no Recôncavo. Até agora somente o “pai adão” tem sido capaz de atender os requisitos de aração. Recentemente, entretanto, tratores de esteira foram introduzidos, e quando usados cuidadosamente com arados de disco obtêm excelentes resultados. Mas o antigo ainda está em uso, engatado a juntas de oito, dez, doze ou até vinte bois.

(1) “Seu” é corruptela de Senhor e é um título sempre dado a pessoas de algum prestígio. (2) Tarefa(*) é uma unidade de medição de terra usada na Bahia. Equivale a 900 braças quadradas. A braçaé igual a 6 pés, que dá à tarefa 32.400 pés quadrados. São 11.160 pés quadrados menores que um acre. (*) Tarefa: 4.356 m2 – NT. (3) O cruzeiro(Cr$) é a unidade monetária brasileira, equivalente a cinco centavos de dólar. Então, o valor da fazenda é de aproximadamente US$75,000,00. (4) (Wanderley) de Araújo Pinho, História de um engenho do Recôncavo, 1522-1944 (Rio de Janeiro, 1946), p. 243.

A casa da proprietária com seu parque fica em uma pequena elevação e é visível de longe por causa de suas palmeiras imperiais. Nas vizinhanças, em outra elevação, fica o povoado dos moradores, uma rua comprida com casas em ambos os lados, os barracões, um pequeno depósito e a sempre presente casa de farinha, onde a mandioca é moída, prensada e torrada para fazer farinha, o alimento básico da região. Na mesma rua está a casa do administrador, que fica afastada das outras em razão de ser maior e por causa de sua varanda. As casas dos trabalhadores são pequenas e construídas normalmente sob um mesmo telhado alongado. Cada casa é na verdade um apartamento, consistindo de uma sala na frente e um longo corredor, com um ou dois quartos laterais, seguindo até a cozinha na parte de trás. Outras casas, com telhados individuais, possuem a mesma disposição. Os telhados são de telha vermelha e o resto da casa é de taipa, lama de argila socada em ambos os lados de uma armação de bambu. Após a lama secar, aplica-se uma cobertura de cal. As casas são construídas e reparadas pela dona da fazenda e não pertencem aos trabalhadores. O chão é de terra batida, difícil de se manter limpo. À noite, quando somente uma pequena lâmpada a óleo fica acesa, as casas parecem sombrias e tristes. Após escurecer, tem-se a impressão de se ouvir mais do que se pode ver. O querosene é caro, não se lê, e as tarefas que requerem claridade só podem ser feitas à luz do dia. À noite, os trabalhadores e suas famílias sentam-se na escuridão para conversar, ou vão à casa de farinha onde um outrocompanheiro e sua família podem estar moendo a mandioca. O prédio é parcamente iluminado por um candeeiro a querosene e há uma agradável claridade vinda do forno sob o tacho de torragem. Mais recentemente na casa do administrador foi ligada a eletricidade, e agora está sempre bem iluminada à noite. Seu novo rádio tornou-se centro de atração e pequenos grupos se formam na varanda para ouvi-lo. Na outra ponta da rua, durante


34 a safra há sempre uma fogueira em frente aos barracões que abrigam os trabalhadores migrantes. Em ocasiões especiais, pode haver um samba, talvez na casa da dona da fazenda. Então, todos vestem o melhor e as mulheres dançam enquanto os homens batucam tambores e pandeiros e tocam cavaquinhos (instrumento parecido com o ukelelê) ou simplesmente ficam assistindo, tagarelando e “passando abranquinha” (o rum branco local). Há uma hierarquia de pessoal na fazenda que começa com a proprietária, Dona Sinhá, e sua família. Em outras fazendas o dono também é, às vezes, um advogado, médico ou engenheiro, cujos interesses principais, tanto econômicos como sociais, estão na cidade de Salvador. Não é sempre o caso, pois muitos deles são apenas proprietários, como é Dona Sinhá. Mas é considerado um sacrifício ser obrigado a passar o inverno na fazenda. É uma prerrogativa tradicional do dono da fazenda passar o inverno na capital, e é uma das tradições mantidas hoje pelos fazendeiros. Entretanto, tão logo as chuvas dão sinais de diminuição em agosto ou setembro, Dona Sinhá volta à cena, geralmente agradecida por sair da capital e do ciclo de aniversários, festas e compromissos oficiais que ela se sente obrigada a comparecer enquanto fica por lá. Esse aspecto de ausência parcial dá origem ao segundo degrau na escada hierárquica: o administrador. Como tal, ele é relativamente um novo fenômeno, mas na verdade faz parte do cenário há muito tempo. Na época do engenho, o feitor-mor, ou capataz, ocupava o lugar do administrador de hoje. Seu Paulo é o ponto focal para a maioria das atividades na Fazenda das Moças. É ele quem desenvolve os planos de Dona Sinhá, pois tem o contato mais direto com os trabalhadores no campo e em casa, no arruado (a rua onde as casas estão localizadas). Durante o tempo em que Dona Sinhá está fora, ele é o senhor da fazenda. Seu Paulo ascendeu das fileiras dos trabalhadores; está familiarizado com todos os aspectos da cultura da cana-de-açúcar e é capaz de gerenciar os homens e de tratar com a proprietária como com os trabalhadores. É um mulato escuro, com cerca de quarenta e seis anos, e tem uma família grande. É considerado pelos trabalhadores como um padrinho para seus filhos. Arrenda um pedaço de terra onde cultiva suas próprias canas. Tem seus próprios burros, bois e carros de bois que aluga a Dona Sinhá durante a estação de corte das canas. Embora não seja capaz de ler ou escrever, consegue fazer contas de cabeça de forma surpreendente. Veste-se bem, atitude que às vezes é vista como uma tentativa de imitar um dono de fazenda de épocas passadas, enquanto Dona Sinhá e sua família adotam uma vestimenta mais confortável para o campo ― “modo americano”. Ele passa a maior parte do dia na sela, cavalgando de um ponto de trabalho a outro; indo à usina para resolver este ou aquele assunto, tal como a ausência de vagões no ponto de embarque das canas da fazenda, cuidando dos problemas dos trabalhadores e olhando seus próprios interesses. Abaixo dessas duas figuras está um empregado que fica um pouco fora do corpo dos trabalhadores, o feitor Asclepíades. É sua obrigação acompanhar o andamento dos trabalhos de cada dia e por quem são feitos. Anda a pé por toda a fazenda, de tabuleiro em tabuleiro, medindo com uma vara de seis pés (1,8m ― NT) que ele carrega, anotando em seu caderno o total de serviço feito por cada homem. Os trabalhadores da fazenda são pagos de acordo com o que cada um capina, ou planta, ou quantas toneladas de cana cada um corta ou conduz para a usina.Asclepíades anota em seu pequeno livro preto, e isso aparece na folha de serviço diário que, em seguida, é transferida para a folha quinzenal de pagamento. Durante o corte da cana,


35 os registros de quem era o tocador ou quem era o guia de carro de bois, de quanta cana-deaçúcar foi cortada e por quem, são anotados nos “pontos” onde os carros passam para ser pesados antes das canas serem transportadas para a usina. É obrigação de Seu Paulo cada manhã fixar as tarefas dos trabalhadores, enquanto Asclepíades acompanha o quanto é feito mas não vê se é feito, pois isso é função do administrador. O feitor é pago com um salário mensal de mil cruzeiros, e embora não ocupe posição de prestígio que o administrador tem, há sempre a chance que ele se torne um administrador nessa fazenda ou em outra. Há um outro assalariado na fazenda, o vaqueiro João (João Faleta – NT), que recebe quatrocentos cruzeiros por mês, mais casa e comida. João toma conta do gado, das vacas de leite e dos cavalos de sela. Também inspeciona constantemente as cercas e conserta os danos, quando possível recupera animais que fogem do pasto e invadem os canaviais, o que causa grandes prejuízos. Normalmente, os pastos são cercados, assim como as novas plantações de cana, mas os canaviais já crescidos são deixados abertos. As cercas não duram mais que uma estação, pois as estacas apodrecem por causa do solo molhado, e o arame farpado enferruja rapidamente. João também é uma constante companhia da dona da fazenda quando ela está presente, acompanhando-a ou a seus filhos ou visitantes em passeios, para pegar o trem ou o navio, com cavalos para hóspedes ou negociantes, e pegando correspondências no posto do Correio na Vila Recôncavo. João mora na casa da proprietária, gozando de sua confiança em grau mais alto que qualquer outro, com exceção talvez do administrador. Isso causa frequentemente atritos entre o vaqueiro e o administrador, e esse fato não é ajudado pelacondição de João ser um sertanejo, verdadeiro vaqueiro, taciturno e independente, vindo das capineiras de gado do sertão ao norte do Recôncavo. Quando Dona Sinhá está fora, ele ocupa posição diferente, sujeito às ordens de Seu Paulo, a não ser que Dona Sinhá tenha deixado instruções específicas para ele. Quando Dona Sinhá está presente, ele recebe ordens diretamente dela, passando por cima do administrador. João está numa posição de observar as atividades da fazenda, chamando a atenção da dona sobre quaisquer serviços esquecidos por Seu Paulo. Abaixo da dona, do administrador, do feitor e do vaqueiro há o corpo dos moradores. Na Fazenda das Moças, há uma população de mais ou menos duzentos homens, mulheres e crianças, proporcionando uma força de trabalho entre sessenta e setenta homens e garotos, mais algumas mulheres que ocasionalmente fazem serviços leves no campo. Adiante, segue um resumo de uma folha quinzenal de pagamento. Uma breve explicação da lista, começando de cima, dará uma boa ideia de pelo menos parte do trabalho numa fazenda nesta comunidade. “Segunda limpa de um tabuleiro” indica que o homem trabalhou em um tabuleiro que já tinha sido capinado uma vez desde o plantio da cana. Dependendo da quantidade de sol e de chuva e da qualidade dalimpa feita, um tabuleiro pode às vezes ter sete limpas entre as safras. Um tabuleiro varia de dez a vinte tarefas, e cada um deles é numerado. Com isso, Seu Paulo pode mandar um homem limpar um determinado tabuleiro, e ambos saberão se foi a primeira, segunda, terceira ou qualquer outra limpa. As limpas ficam progressivamente mais difíceis, de forma que o montante pago por unidade aumenta com o número de limpas. A limpa constitui em uma das maiores despesas na Fazenda das Moças, pois é feito devagar, com enxadas. Como todos os outros serviços da fazenda, há um preço estabelecido para a sua execução.


36 “Transporte de semente” indica o transporte de feixes de olhos (pontas dos talos ― NT) da cana-de-açúcar de um tabuleiro onde foram cortados para outro onde serão plantados. O montante pago por viagem aumenta com a distância que o homem deve percorrer entre os tabuleiros. Normalmente, vários tabuleiros de cana são plantados para se usar exclusivamente como sementeiras. O item seguinte da lista, “corte de semente”, indica o serviço feito nesses tabuleiros. A ponta do talo logo abaixo das folhas é usada como semente. “Separação do gado” se refere à seleção dos animais do rebanho para serem usados no transporte do dia. “Viagem a fazendas vizinhas” significa que Malaquias foi enviado a outra fazenda em missão por Dona Sinhá ou por Seu Paulo para resolver algum assunto da fazenda, como pegar a folha de pagamento elaborada por um morador de outra fazenda. “Rego novo” significa a primeira plantação de cana, enquanto “replantio” significa o plantio de canas em áreas onde o primeiro plantio não pegou, ou por terem sido as sementes enterradas fundo demais ou terem recebido, após o plantio, sol ou chuva demais. Tais áreas são preenchidas quando a nova cana atinge a altura de várias polegadas. “Carpintaria”, um ofício, atinge um maior salário que o trabalho no campo. Às vezes uma fazenda mantém um carpinteiro com salário regular; outras vezes, ele é contratado da usina, como no caso aqui. Seu trabalho pode ser nos carros de bois usados para transporte ou em alguma das casas da fazenda. Uma ”estiva” é um tipo de ponte improvisada que cruza uma vala de drenagem ou um grande buraco na estrada onde a água fica acumulada durante a estação chuvosa. Usualmente, tem o comprimento de não mais de quatro ou cinco jardas (3,60m e 4,50m ― NT) e largura de uma ou duas jardas (0,90m e 1,80m ― NT). As peças longitudinais e as transversas são de bambu, bem juntadas. Então, a terra é colocada por cima e alisada. Essas pontes requerem constantes reparos. No auge da estação chuvosa, elas sempre quebram inteiramente e são levadas pela enxurrada. São sempre um perigo para cavalos, burros e bois, cujas pernas às vezes se enfiam pela treliça de bambu. “Captura de gado fujão” requer alguma agilidade por parte da pessoa quem a realiza. Normalmente é feita a pé, e se o boi ou a vaca está no meio do canavial é preciso se ter cuidado para não estragar muito os pés de cana. “Conserto de cercas” acompanha a captura do gado que foge, pois os animais sempre quebram a cerca que circundam os pastos. As estacas da cerca são feitas normalmente com bambu, que apodrecem rapidamente e devem ser inspecionadas e substituídas assim que dão sinais de enfraquecimento. “Corte de bambu” é feito para diversas finalidades. Na grande maioria,as linhas divisóriasentre as fazendas são marcadas por fileiras de bambuzais cuja madeira é usada como estacas de cerca e nas estivas, assim como nas armações em treliça das casas de taipa. Maria das Dores, cujo nome é relacionado a“recolher folhas de cana para ração animal”, realiza o único tipo de serviço na fazenda dedicado a mulheres, além de trabalhos domésticos e na horta. Quando um tabuleiro é cortado, as pontas das canas e as longas folhas são decepadas e deixadas no chão. A ponta da haste é usada como semente, enquanto a parte mais pesada é


37 carregada nos carros de bois e enviada à usina. Quando os pastos ficam escassos por excesso de uso ou por causa de secas, a dieta do gado é suplementada com as folhas verdes das canas recém-cortadas; quando as pontas (olhos)tenras não servem como sementes, elas também alimentam o gado. Recolher as folhas e os olhos da cana é relativamente um serviço leve, e se uma mulher da fazenda quer complementar a renda do marido, a tarefa é atribuída a ela. Nesta fazenda, poucas mulheres fazem isso, entretanto, pois é ponto de honra para qualquer marido ser capaz de manter sua mulher sem ela ter que trabalhar para ganhar dinheiro. Somente um pequeno número de folhas é recolhido, e o resto é queimado no chão do tabuleiro. A queimada do palheiro é feita à noite, quando há pouco ou nenhum vento. Frequentemente no verão o fogo se estende por vários pontos da região. A queimada é uma prática tradicional. Embora agrônomos profissionais insistam que isso prejudica as raízes das plantas e os novos rebentos, os plantadores continuam a queimar as folhas indesejadas com o sentido de que a cinza proporciona alguma fertilização. “Trabalho na horta” se refere ao serviço feito na horta que abastece de legumes a casa de Dona Sinhá. Essa horta contrasta com as roças, que são cultivadas pelos trabalhadores e por Dona Sinhá, reservadas para feijão, mandioca, milho e algum tabaco. Plantas como alface, tomate, repolho, cenoura e outros vegetais são desprezadas pelos trabalhadores e são cultivadas só para Dona Sinhá. “Transporte de água” é um serviço usualmente reservado a um garoto. Montado em um jumento, com quatro barris de madeira, ele vai até uma fazenda vizinha, Pedras (Fazenda Macaco -NT), que pertence à usina, enche os barris na fonte e retorna à Fazenda das Moças, onde derrama a água em vários porrões de barro na cozinha e nos banheiros da casa da dona. “Ó, Pedro, não tem água!” é um grito comum ouvido na casa de Dona Sinhá.

(Extrato da folha de pagamento - serviços)(*) Segunda limpa de tabuleiro

braça(**)

Cr$ 3,50

Cavação de vala de drenagem

metro

1,50

Transporte de sementes

viagem

0,80

Corte de sementes

cargas

0,80

Separação de gado

dia

Viagem à fazenda vizinha

viagem

Terceira limpa de tabuleiro

braça

3,70

Rego novo (plantio)

braça

2,20

Replantio

braça

1,50

15,00 Cr$ 10,00


38 Carpintaria

dia

23,00

Conserto de estiva

dia

12,00

Primeira limpa de tabuleiro

braças

3,00

Captura de gado fujão

(unidade)

10,00

Concerto de cercas

braça

0,15

Recolher folhas de cana para ração animal

carga

2,00

Enchimento devagãode trem com cana

meio dia

7,50

Corte de bambu

mão+

5,00

Condução de carga de madeira

carga

15,00

Conserto de barracões

dia

12,00

Trabalho na horta

dia

10,00

Enterro de um burro

dia

12,00

Transporte de água

dia

10,00

(*) Para efeito de curiosidade, informa-se aqui neste quadro apenas os valores unitários de serviço, não se citando nem os nomes dos empregados nem os totais recebidos – NT. (**) A braça é igual a 6 pés, e é a medida sempre usada localmente nos tabuleiros. + Mão(*) é um lote de 50 e é usada localmente quando se fala em estacas de cercas e espigas de milho. (*) Medida também usada em bananal; uma mão de bananas significa 50 cachos ― NT. Há poucas regras restringindo os trabalhadores. Seus serviços devem estar à disposição de Dona Sinhá quando requeridos. Exceto se, durante a entressafra, um homem encontra uma oportunidade de trabalhar em algum outro lugar, ele é livre para fazê-lo. Se tem um burro ou um boi, ele tem o direito de deixá-los pastando nas terras da fazenda, alugando-os a Dona Sinhá na época da safra para transporte. Frequentemente,um família possui um ou dois cavalos ou burros de carga que podem ser usados no transporte de cana ou, em outras épocas do ano, de água ou lenha. Um trabalhador também tem o direito a um arado para cultivar alimentos. Se um trabalhador morre ou abandona a família, a sua mulher pode fazer uma de várias coisas: vai ela própria trabalhar no campo, a menos popular das alternativas; manda seus filhos para trabalhar se têm idade adequada; encontra outro marido, o que não é muito difícil, já que há escassez de mulheres na zona rural; ou volta para a casa de seus pais.


39 Um grupo de trabalhadores essenciais ao bom serviço da fazenda, mas não são residentes, são os caatingueiros(trabalhadores migrantes de região de mata atrofiada (a caatinga – NT) que faz fronteira com o Recôncavo e se estende até o sertão ao norte). Centenas desses homens ficam disponíveis durante a estação de colheita, tempo em que não só as fazendas mas também as usinas necessitam de mais homens do que a população residente pode prover. A cidade de Vila Recôncavo, as outras pequenas cidades rurais e a capital não suprem trabalhadores para as zonas rurais. As fazendas então utilizam os migrantes do Norte. Desenvolveu-se um sistema em que cada fazenda ou usina tem um homem que pode contatar esses trabalhadores migrantes. Este homem é chamado de empreiteiro, um contratante que tem um sistema de contatos no sertão, normalmente por relações familiares ou de compadrio. Os trabalhadores migrantes são alojados em barracões, e geralmente se mantêm afastados dos moradores. Só os homens vêm, deixando suas famílias em casa para cuidar de suas pequenas fazendas e criações, enquanto ganham dinheiro no Recôncavo. Nenhum desses homens aparece na folha de pagamento da fazenda. É o empreiteiro que contrata com o administrador o serviço necessário a ser feito pelos trabalhadores migrantes. Normalmente, esse serviço é realizado somente no plantio, que deve ser constante, mas durante a safra os trabalhadores da fazenda não podem fazer. Na relação de ocupações e salários acima aparece o nome de Mario Adriano, que recebeu 921,30 cruzeiros por 249 braças de terceira limpa de tabuleiro. Este homem é o empreiteiro, que é pago pelo trabalho feito por quinze, vinte ou mais homens. Ele repassa aos trabalhadores migrantes, pagando a eles menos que o preço ajustado com o administrador para fazer o serviço. Dessa maneira, o contratante ganha a vida. Ao longo da estação da safra ele consegue trabalho para cerca de setenta e cinco a cem migrantes, que acampam nas barracas e têm pouco a ver com os moradores. Ao fim da safra eles podem ser vistos andando pelas estradas do Recôncavo em direção ao norte, cada homem carregando sobre os ombros uma vara onde pendura uma trouxa de pano contendo seus pertences. Aspectos proeminentes da relação entre as pessoas nesta hierarquia são a intimidade e a familiaridade que têm caracterizado o Recôncavo por longo tempo. Enquanto a escravidão não foi uma instituição benigna em qualquer lugar, houve uma suavização nas relações entre os brasileiros e seus escravos que parece ter estado ausente em outras regiões de escravos. Essa qualidade persiste hoje em fazendas privadas, como na Fazenda das Moças, entre a dona e os trabalhadores. Dona Sinhá conhece os moradores pelos nomes ou apelidos, conhece seus passados e suas condições atuais; o trabalhador conhece o passado da família de Don Sinhá, seus filhos e toda a sua família. O antigo senhor é agora a patroa. É ela quem arbitra quaisquer divergências entre os trabalhadores, ou entre um trabalhador e Seu Paulo. É de sua incumbência proteger o trabalhador contra injustiças, proporcionar cuidados médicos, ajudar nos casamentos e batismos, em suma, fazer todas as coisas que o trabalhador é incapaz de fazer por ignorância, medo ou por pobreza. As relações entre Dona Sinhá e Seu Paulo são bastante curiosas, pois nenhum dos dois pode fazer nada sem o outro. O papel do administrador surgiu por várias razões, sendo a principal o afastamento do proprietário. A fim de manter a fazenda funcionando adequadamente ao longo de todo o ano foi necessário alguém com conhecimento e autoridade estar presente todo o tempo; então, o antigo feitor-mor tornou-se conhecido como um administrador, com casa


40 maior e melhor do que qualquer outro na fazenda, exceto o proprietário. Com o passar do tempo, o administrador juntou mais e mais direitos e privilégios para si mesmo, até que hoje ele é o verdadeiro dono da fazenda em tudo, a não ser no sentido legal. Ele conta com a confiança e a lealdade dos trabalhadores, sem o que ele fracassaria. Eventualmente,se relaciona com todos eles pelo sistema de compadrio; de fato, ele é mais procurado que o proprietário para este propósito. Na Fazenda das Moças, o administrador tem o maior salário entre outros administradores na região ― Cr$1.500,00 por mês, em comparação aos Cr$1.000,00 ou menos dos outros. Além disso, ele recebe um bônus no fim do ano, um cruzeiro por cada tonelada de cana-de-açúcar que a fazenda tenha produzido durante o ano. Dona Sinhá e outros proprietários sabem que uma fazenda não pode ter sucesso sem um bom administrador, e eles sabem que um homem branco não é um bom administrador. Dizem que ele não pode aguentar o calor do verão, e a chuva e a lama do inverno, passando dias inteiros na sela supervisionando os trabalhos. Só o infatigável mestiço é capaz de se sujeitar a essa punição. O dono também diz que somente ele pode lidar apropriadamente com os trabalhadores mestiços ― que, sendo um deles, conhece suas “fraquezas e artimanhas”. Até certo ponto a população mestiça parece concordar com isso, pois as ordens dadas pelo administrador são mais prontamente obedecidas que as da proprietária, e a maioria dos trabalhadores prefere que o administrador explique o que quer. Também se crê que o mestiço seja mais forte. Por exemplo, se Dona Sinhá teve uma viagem difícil no inverno para ir à fazenda, os trabalhadores irão simpatizar com ela, dizendo: “A senhora veio com toda essa chuva e lama, e à noite!”, quando a mesma viagem pode ser feita diariamente pelo administrador, pelo vaqueiro ou por qualquer dos trabalhadores. Entretanto, a criação do cargo de administrador também ocasionou uma série de problemas para os proprietários. Todos eles agora suspeitam que seus administradores os estão logrando e o controle dos administradores é um assunto discutido frequentemente em encontros sociais. Se o proprietário se ausenta da fazenda por metade do ano, há muitas coisas que o administrador deve fazer sem consultar seu empregador. Os proprietários irão interpretar as ações independentes por parte do administrador como bom gerenciamento, ou trapaça, dependendo dos resultados das ações. Quando os resultados são duvidosos e há alguma suspeita de que o administrador pode estar ganhando dinheiro por suas ações, isso é considerado trapaça. Muitas vezes os proprietários reclamam que o administrador e o feitor são “sócios”, trabalhando juntos contra eles. Em uma fazenda na comunidade de Vila Recôncavo o proprietário decidiu que seria seu próprio administrador. Era jovem, nasceu e foi criado na fazenda. Em poucos anos, sua colheita caiu a quase zero, e depois trocou para criação de gado leiteiro, no que também não teve sucesso. Ele e todos os seus amigos culparam o insucesso pela falta de um administrador, dizendo que mesmo tendo o antigo o enganado e ajudado a si mesmo no que não lhe pertencia, a fazenda como um todo não sofrera tanto quando ficou sem ele. Como resultado, os proprietários têm que se contentar com custos mais altos do que eles acham necessários e menores lucros do que eles pensam ser possíveis, a diferença indo para os administradores,para não ver a completa falência da fazenda. Administradores, feitores, proprietários, todos são conscientes da situação, mas a educação, os padrões tradicionais de respeito e não desejo de competir abertamente mantêmdisfarçada a situação.


41 Entretanto, na Fazenda das Moças, em vez dessas dificuldades há uma considerável cooperação entre Dona Sinhá e Seu Paulo. As obrigações do administrador são restritas à própria fazenda ― visto que o trabalho é realizado, a cana plantada, cultivada, colhida e entregue à usina o mais prontamente possível. As obrigações de Dona Sinhá referem-se principalmente às finanças, a conseguir rapidamente recursos para as despesas da fazenda. A prática de hipotecar as safras não acabou com o fim da escravidão, e compete à proprietária fazer malabarismos para conseguir recursos, empréstimos e obter lucros, pois ela deverá ter o dinheiro necessário para melhorar e aumentar o rendimento de sua fazenda. Geralmente, os donos de uma única fazenda raramente têm recursos bastante para atravessar o ano. As folhas de pagamento são cobertas com adiantamentos da safra estimada feitos pela usina, por bancos ou pela Cooperativa dos Plantadores e Fornecedores de Cana-de-Açúcar. Assim, quando a estação da safra termina a proprietária está sempre em dívidas, parte das quais ela deve saldar a fim de financiar o ano seguinte. Há dois problemas sempre presentes na labuta de se aumentar a safra: o custo da produção e os métodos antiquados usados nas fazendas particulares, onde todo o trabalho é praticamente feito à mão. O Quadro 1 mostra a produção, os custos e os lucros das safras dos anos de 1947-48, 1948-49 e 1949-50 na Fazenda das Moças. A queda da produção e o crescimento dos custos nos anos 1948-49 foram atribuídos à falta de vigilância de Dona Sinhá e a um mau administrador. Foi no fim desse ano que Seu Paulo assumiu a função de administrador da fazenda. O ano seguinte mostrou um progresso que tem continuado, pois a safra de 1950-51 atingiu 6.000 toneladas, a maior produção de qualquer fazenda particular no Recôncavo. É esperado que safras futuras ultrapassem esse número. Além de trocar o administrador, e no ano seguinte o feitor, Dona Sinhá conseguiu empréstimos capazes de comprar o trator mencionado no início desta monografia. No ano seguinte, como resultado do evidente sucesso da nova combinação, foram compradas duas carretas de quatro rodas para serem puxadas pelo trator, diminuindo assim os custos de transporte. Recentemente, um jeep foi adquirido para puxar as carretas, além de um segundo trator com equipamentos para o cultivo dos tabuleiros de cana. Apesar disso, a fazenda está grandemente endividada, e qualquer lucro é imediatamente usado em melhoramentos ou para amortizar as dívidas. Além disso, o custo dos tratores, jeeps e do fertilizante é muito alto, uma vez que são produtos importados. Por causa da taxa de câmbio do dólar, os preços deles são extravagantemente altos no Brasil, comparados com os Estados Unidos. Além disso, a fazenda sofre com velhos equipamentos e a necessidade de pastagem para o gado, o que reduz a área disponível para o plantio. A tração animal não pode ser ainda inteiramente dispensada em razão da condição do solo no inverno. O problema de se QUADRO 1 Produção, custos e lucros: Fazenda das Moças 1947 - 1948 4.000 toneladas de cana vendidas a Cr$81,40 a tonelada Custo da produção

Cr$325.600,00 206.244,00


42 Lucro

119.356,00 1948 – 1949

2.500 toneladas de cana vendidas a Cr$88,90 a tonelada

222.250,00

Custo da produção

225.198,00

Prejuízo

32.948,00 1949 - 1950

5.000 toneladas de cana vendidas a Cr$107,40 a tonelada

537.000,00

Custo da produção

319.248,00

Lucro

217.751,00

manter o velho sistema de trabalho tanto quanto de se introduzir o novo, que só se paga lentamente, é considerável. Dona Sinhá enfrenta o dilema de condições naturais difíceis que, ao tempo em que se mostram boas para a cana-de-açúcar em vários aspectos, também impedem a utilização de técnicas modernas. Ela também enfrenta problemas pessoais em relação ao administrador. Uma solução é claramente aparente e tem sido adotada por Dona Sinhá: passa cada vez mais tempo na fazenda, dividindo os trabalhos com Seu Paulo. É claro que isso é uma mudança completa nas tradições do senhor-de-engenho do passado. É uma mudança difícil paras as duas partes envolvidas. Dona Sinhá se priva da sua vida na cidade e Seu Paulo se ressente da contínua presença da proprietária e da consequente perda de sua autoridade. Ao lado dos seus sentimentos de orgulho e amor para com o Recôncavo, muitos proprietários de terras reconhecem claramente as dificuldades que enfrentam. O trecho seguinte do diário de Dona Sinhá, a que tive acesso, ilustra bem a visão que um plantador de cana tem do Recôncavo: ... “Dona Sinhá, há um homem aqui lhe procurando.” “O que foi, meu filho?” “Estou com umas bolhas aparecendo no corpo todo.” Um pouco de sulfa e pomada resolvem o problema, e nesta hora aparece Seu Paulo, o administrador. “O gado de Pedras, a fazenda vizinha, invadiu o canavial ontem à noite. Também os bois de Seu Cosme.” “Vou telefonar logo para a usina.” “Também não tem vagões no ponto de embarque.” “Vou resolver isso também.” O tratorista chega, queixando-se de que não há mais óleo. Vou pegar no depósito. Agora há dois homens na varanda querendo saber sobre o último pagamento que, segundo eles, “veio errado”. Vou olhar as folhas de pagamento que estendo na mesa.


43 Agora, enquanto não tem mais ninguém, saio para passar a vista no campo. Olho os canaviais, sinto a terra que amo. Mas isso não me satisfaz. Algo está faltando. Estamos atrasados e regredindo passivamente. Este lugar coloca a gente em estado de apatia, um desejo de parar de lutar, encontrar tudo bem e como deve ser ― negros maltrapilhos, mal alimentados, ignorantes e rudes, suas crianças sujas com barrigas protuberantes, e os brancos fingindo que há progresso, suas casas cheias de convidados, eletricidade, rádio, telefone, passeios a cavalo, poesia de Beaudelaire, Verlaine, filosofia de Voltaire, Carlyle etc. ― mas, no fim, zero! Às vezes, sinto uma tremenda angústia, sinto que nada pode ser feito no Recôncavo e eu quero deixar esta terra estagnada, envenenada pela tradição, com seus sobrados arruinados. E nós nos apegamos a essas fantasias, revivendo o passado opulento. No fundo, há um conflito com esses incansáveis administradores, mulatos e negros, com suas botas, “senhores da fazenda”. Toda a safra foi colhida com grande sacrifício, minha cabeça cansou de fazer contas; 6.000 toneladas de cana, mais de Cr$600.000,00 ― um bocado de dinheiro, bastante para cobrir todas as despesas e ainda sobrar alguma coisa. Que engano! Os custos gerais, as despesas extraordinárias, consertos nas casas etc. vão levar tudo. Então, começamos tudo de novo ― novos plantios, tabuleiros maiores, tudo requer mais dinheiro. Mas não temos coragem de parar de plantar cana-de-açúcar e plantar milho ou café, qualquer outra coisa. Já nascemos ouvindo sobre senhores-de-engenho, sobre salvas e salvas de prata, sobre negros escravos, sobre tudo o que já desapareceu no passado. Mas ainda ferve em nosso sangue, e no fundo queremos possuir terras, queremos mandar e sermos obedecidos. Gostamos da vassalagem humilde e servil do negro, que nos faz sentirmos importantes, distribuindo favores. Penso nisso montada por aí no velho Saturno, passo a passo. Lá vem Paulo Santos pela estrada, com seu pequeno burro e dois caçuás, indo pegar mandioca para a farinha do dia a dia. “Bomdia, patroa!” Que afeição eu sinto por cada um deles! Pedro Manuel, com suas crianças pequenas; Zé Julião com a sua mulher doente. Conceição com seu ar de subserviência secular. Mas o afeto não resolve nada! Dinheiro e ação sim! Eu poderia derrubar esses casebres miseráveis e construir boas casas higiênicas. Uma vez em casa, deito na rede, lendo Proust e me esquecendo de tudo...

A Usina: Usina São Pedro(*)

(*) Usina Dom João, no município de São Francisco do Conde ― NT. A Sociedade Anônima, corporação que opera esta usina, representa o novo padrão do Recôncavo. Há agora nove usinas funcionando na região, pois a tendência tem sido fechar as pequenas que não podiam funcionar economicamente. Cinco delas pertencem a uma única empresa, que possui grande quantidade de terras e recebe a cana de muitos fornecedores. Vamos descrever uma das menores usinas das quatro independentes, que tem capacidade média de produzir setenta e dois mil sacos de açúcar, comparados aos duzentos mil sacos de uma das maiores usinas (um saco equivale a 60 quilos). A capacidade legal da Usina São Pedro


44 ― que nunca é atingida ― é de cinquenta e dois mil sacos, conforme determinação do Instituto do Açúcar e do Álcool. Hoje, entretanto, a usina está realizando uma reforma que irá aumentar a sua capacidade para mais de cem mil sacos, e a capacidade legal será reajustada. A Usina São Pedro, embora uma das menores, é representativa das outras e passa pelos mesmos problemas e dificuldades. Difere de algumas por ser uma empresa familiar. Os acionistas são todos membros próximos da família Conde(**), e as operações são dirigidas por dois membros dessa família. A usina foi uma das três construídas pelo governo do estado em 1900 em terras de marinha(5)(***) no fim da Baía de Todos os Santos, o que proporciona excelentes facilidades de transporte durante todo o ano. A usina foi comprada em 1909(****) pela família Conde com duas fazendas, às quais a família acrescentou mais quatro outras contíguas. O empreendimento possui uma área total de quatro mil acres (mais ou menos quatro mil e trezentas tarefas ― NT), a maioria de terras de massapê. A usina recebe canas da fazenda de Dona Sinhá, que também é membro da família Conde, por nascimento e por casamento. Também recebe canas de quatro outras fazendas da comunidade e de quatro fora da comunidade, que envia seus carregamentos em tradicionais saveiros. Além disso, a usina possui uma fazenda de 2.324 acres (mais ou menos 2.600 tarefas ― NT) no município de Purificação(Fazenda Santa Catarina – NT) que é usada como pastagem e criatório de gado e como fornecedora de lenha para as fornalhas da usina. Há ligação navegável entre a usina e a fazenda em Purificação. (**) Família Tourinho ― NT. (5) O litoral que margeia a água salgada, na distância de 33m para dentro, é controlado pela Marinha brasileira. (***) Na verdade, terrenos de marinha não pertencem à Marinha do Brasil e sim à União. São terras que margeiam a costa marítima, rios, lagos, lagoas, até onde sofrem a influência das marés ― NT (****) A Usina Dom João foi comprada em outubro de 1910, conforme cópia da escritura em poder deste tradutor, embora desde 1908 gerida por Rodolpho Gonçalves Tourinho, Dodô(NT) A designação “usina” têm vários significados, que são quase similares aos do antigo termo, “engenho”. No contexto mais amplo, usina significa a completa combinação terra-fábrica, que inclui a usina e as fazendas que pertencem à corporação. Mais especificamente, usina significa o prédio da fábrica. Em outro contexto, usina simplesmente indica o núcleo populacional, incluindo a fábrica, a casa do proprietário e os outros prédios. A usina ou núcleo da fábrica segue toscamente o mesmo padrão de assentamento dos antigos engenhos. O ponto de orientação é o prédio da fábrica, junto ao qual fica o chalet e outras casas da família proprietária, agrupadas em um parque com palmeiras imperiais e mangueiras. Uma pequena capela ou oratório está incluída em uma das alas do chalet, onde uma missa é celebrada para a família quando há um padre disponível. Perto do chalet há as casas do administrador geral, do gerente mecânico da usina, da maioria dos funcionários do escritório e do chefe do almoxarifado. Seguindo, há as casas do pessoal


45 técnico da usina. Na parte de trás e mais afastadas do centro estão as casas dos trabalhadores agrícolas que cuidam das plantações perto do núcleo usina. O administrador regional dessa fazenda também mora entre os lavradores. A escola e o armazém localizam-se fora do pequeno parque do chalet. O chalet substituiu o antigo solar (mansão) dos senhores-de-engenho. Seu estilo difere do antigo modelo e seu nome deriva do fato de que é uma cópia modificada de um chalet suíço. Mas é enfeitado como o velho solar, porém mais moderno, com água corrente e eletricidade. A característica pessoal e paternal da fazenda particular obviamente não pode funcionar na usina, que possui 1.350 pessoas morando em suas terras. Todavia, há uma tentativa de se manter tais relações. A família proprietária passa as férias no chalet. Lá também passam o Natal, o Carnaval e a “botada”(6), quando há festas para os trabalhadores, presentes de Natal para eles, suas mulheres e filhos, danças, partidas de futebol. O Coronel (título honorífico já em desuso, coronel da Guarda Nacional ― NT), o patriarca da família, agora incapacitado, ainda recebe visitas de trabalhadores mais velhos que mantiveram contato diário com ele. Seu filho e seu genro, diretores atuais da empresa, se fazem presentes na usina e nas seis fazendas da melhor maneira possível. Como em uma fazenda particular, a arbitragem final de qualquer problema recai sempre no usineiro, e qualquer trabalhador pode se dirigir a ele se não conseguir resolver um problema com o administrador. Entretanto, as relações mais fortes, tanto de negócios quanto pessoais, são entre o administrador e o trabalhador ― empregado e empregado ― , mais que entre empregado e empregador.

(6) A “botada” é uma festa para benzer o maquinário da usina, comemorada no primeiro dia de moagem da safra. É uma cerimônia tradicional anteriormente realizada nos engenhos. A fazenda particular apresenta um aparência muito melhor que qualquer fazenda que pertença à usina, pois ela é a “residência” do dono, que se interessa em mantê-la tão agradável quanto possível, enquanto uma fazenda da usina a cargo de um administrador é um simplesprojeto empresarial voltado para produzir cana-de-açúcar. Na Usina São Pedro, conforme citado anteriormente, a incorporação de terras pelaempresa não transformava toda a propriedade em uma grande plantação. Ao contrário, cada fazenda mantinha seusantigos rumos(linhas divisórias ― NT) etambém completa autonomia, só seguindo as determinações gerais da diretoria da usina. A Usina São Pedro está situada em uma localização central em relação às suas seis fazendas (Dom João, Marapé, Santo Antônio do Riacho das Pedras (Macaco), Engenho Novo, Quicengo e Conquista ― NT). Nem sempre é o caso, pois frequentemente as terras de uma usina ficam afastadas da própria fábrica, o que cria dificuldades de administração e transporte. Cada fazenda tem seu próprio núcleo, o arruado das casas dos trabalhadores orientado em direção à casa do administrador. Cada um desses pequenos povoados tem a sua própria venda, explorada normalmente pelo administrador. A maior fazenda, Pedras, tem uma igrejinha e uma escola. Nenhuma das fazendas possui eletricidade, mas cada uma tem telefone na casa do


46 administrador. O sentimento de isolamento e abandono é forte, como também em quase todas as fazendas da usina dirigidas por administrador. Há um sentimento geral de pesar, pois os moradores estão situados tão longe de seu patrão e seus primeiros contatos devem ser com o administrador, um homem como eles, com pouca ou nenhuma educação, e pouco interesse pelo povo a não ser mantê-lo trabalhando. Em outras palavras, a fazenda da usina se ressente da presença paternal do proprietário. Nos outros aspectos é parecida com uma fazenda particular, que tem um administrador, um feitor, um vaqueiro e os trabalhadores que lá moram. A maior parte da direção agrícola das fazendas da Usina São Pedro está nas mãos do administrador geral, Seu Pipiu. É sua obrigação dirigir e supervisionar as atividades de todas as seis fazendas. Não é uma pessoa de pequeno status. É praticamente independente em suas ações, pois os diretores da usina dizem a ele a quantidade de canas que se vai precisar para a próxima safra, e cabe a ele produzi-las. Os métodos e problemas para essa realização são deixados para ele. Seu Pipiu dá as ordens a cada administrador de fazenda, cujas obrigações são as mesmas de um administrador de fazenda particular. A única diferença é que ele lida com um empregado superior, em vez do dono em pessoa. O administrador geral tem os mesmos direitos e privilégios de qualquer trabalhador: uma casa, um pedaço de terra para plantação de subsistência e o uso dos pastos do proprietário pelos seus bois, burros e cavalos. Os cavalos usados em seu trabalho são fornecidos pela empresa, como acontece com os demais administradores. Seu salário é alto: Cr$2.000,00 por mês, mais um bônus de umcruzeiro por cada tonelada de cana produzida em todas as seis fazendas. Os demais administradores ganham Cr$800,00 por mês, mais um bônus de cinquenta centavos por tonelada de cana produzida nas respectivas fazendas. Seu Pipiu tem sido o administrador geral da Usina São Pedro por vinte e cinco anos, durante os quais adquiriu uma boa quantidade de posses. É um mulato, a pele um pouco mais clara que a dos demais administradores que chefia. Dois de seus filhos trabalham no escritório da usina, e um terceiro gerencia uma venda em uma das fazendas. Além disso, Seu Pipiu é um pequeno fazendeiro que arrenda uns quarenta acres (mais ou menos 37 tarefas ― NT) de terra da usina, onde planta cana-de-açúcar. Ele paga à usina 25% da safra pelo uso da terra. Os usineiros têm as mesmas queixas de seus administradores gerais que os proprietários particulares têm dos seus. Ao mesmo tempo, após muitos anos de serviço tal funcionário se torna indispensável, ou parece ser, e lhe permitem viver do seu jeito ― calmo, bem vestido, bem montado, soberano em tudo o que supervisiona ― enquanto o usineiro observa tudo isso e conjecturaconsigo mesmo. Até agora os proprietários rurais de usinas têm orientado as fazendas particulares para o campo da mecanização, uma vez que eles contam com grandes recursos para adquirir equipamentos e podem fazer melhor uso de cada um deles. A mecanização, entretanto, é usada apenas na preparação da terra para o plantio. O solo é arado duas vezes, e sulcos são feitos para receber os olhos da cana. Também ainda é comum o plantio em terras não aradas ― os sulcos são abertos para receber as sementes com um simples “pai adão” e não é feita nenhuma preparação da terra. A mecanização só vai até aqui, e os tratos posteriores, como o corte e a colheita da cana são feitas a mão. Trilhos de ferrovia de bitola estreita vão da usina aos pontos de embarque nas seis fazendas, onde a cana é transferida dos carros de bois para


47 os vagões para ser levada à moenda. Aproximadamente dois mil acres (mais ou menos mil e oitocentas tarefas ― NT) estão cobertos de canaviais; as terras remanescentes são usadas como pastagem ou para plantação de roças pelos trabalhadores, de acordo com o sistema de rotação. Financeiramente, as duas unidades ― usina e plantação ― são separadas. Um conjunto de livros é usado para registros da parte agrícola e outro para os da usina. Em conjunto, as seis fazendas produziram dezoito mil toneladas de cana em 1950, embora eles tenham planejado vinte e três mil. A queda na expectativa da safra foi devida a vários fatores. Primeiro, foram plantadas menos canas novas por causa das atividades dos petroleiros que invadiam os canaviais da usina e perfuravam poços de petróleo. (Na primeira vez que um canavial é cortado a porcentagem de cana é maior que a obtida nos cortes dos quatro ou cinco anos posteriores. A mesma quantidade de terra, portanto, produzirá mais cana se for plantada regularmente. A usina, entretanto, considerou mais sensato se contentar com as plantações mais velhas para o ano por causa da invasão dos petroleiros, pois novas plantações são sujeitas a mais danos do que um canavial já formado). Segundo, durante aquele ano houve uma seca braba que afetou bastante o crescimento da cana. Não há irrigação no Recôncavo, e durante as estações secas que acontecem periodicamente sempre ocorre uma perda parcial da safra. Além disso, um tabuleiro inteiro pegou fogo e queimou até a raiz, causando uma perda de muitas toneladas de cana. O ciclo agrícola e o trabalho no campo podem ser divididos em duas grande épocas, verão e inverno. O verão é a estação mais trabalhosa, pois é a época da safra e toda a mão-de-obra está ocupada, incluindo de trabalhadores migrantes. Os cortadores, com seus facões, cortam cada um, por dia, uma média de três a quatro toneladas de cana, que é rapidamente embarcada e levada à usina para a moagem, pois quanto mais tempo demora mais perde o teor de açúcar. Após um tabuleiro ser cortado, uma de duas coisas acontece: se a área for transformada em pasto, ela é cercada e os animais de serviço são soltos lá. Caso contrário, as folhas cortadas das pontas das canas e deixadas no chão são queimadas, e dentro de pouco tempo das raízes brotam novas plantas. A plantação antiga (soca) decresce de produtividade e rendimento a cada ano. É de praxe se cortar e queimar um tabuleiro três ou quatro anos antes dele virar pasto. No tempo das antigas fazendas, quando o solo era mais vigoroso, a cana de doze anos era considerada “cana nova”. Agora, o rendimento é tão baixo pelo empobrecimento crescente da terra que três ou quatro anos é o prazo ideal, dependendo da quantidade de chuva. Na estiagem, se a terra estiver preparada e houver perspectivas de chuvas fortes, são feitos “plantios de verão”. Nunca são melhores do que os feitos no inverno, pois o sol sempre mata os rebentos. Lá para o fim do verão, as pastagens e roças são preparadas para se transformarem em novas plantações (rego novo), pois este trabalho é feito normalmente mais de acordo com as condições da terra que com a época de plantio. Os novos plantios rendem uma média de trinta a quarenta toneladas por acre (4,04 mil m2 ― NT). O corte, o transporte, a queimada e o plantio são feitos pelos moradores da fazenda, enquanto que a limpa e o cultivo em geral são realizados por trabalhadores migrantes. O trabalho no inverno geralmente é realizado somente pelos empregados moradores. O plantio da cana é feito ao longo do ano, mas a época mais favorável são os meses de julho e agosto, quando as chuvas começam a diminuir e o sol aparece por mais tempo. As canas plantadas


48 nesse período são as que dão mais rendimento. A semente usada é a ponta da própria cana, o “olho”, que fica logo abaixo das folhas. Em regra, cada fazenda fornece a maioria de suas sementes. As que são plantadas no verão derivam do corte das que são enviadas para a usina, e as plantadas no inverno, das pequenas plantações feitas previamente para esse propósito. O governo estadual mantém uma estação agrícola na região, onde os plantadores podem também obter sementes. Durante o inverno, consertos são feitos nas casas, nas cercas e nos equipamentos, são cavadas ou reparadas valas de drenagem, e os serviços de cultivo sazonal e de limpa têm que ser realizados. Os usineiros sustentam que as operações agrícolas pagam mais do que a usina. As fazendas da usina vendem sua cana pelo mesmo preço dos fornecedores privados, fixado pelo Instituto do Açúcar e do Álcool. Esse preço tem subido gradualmente como todos os custos da fábrica. Mas o teto do preço do açúcar, que é de Cr$166,00 por saco, não subiu. Em 1951, o custo por saco de açúcar da Usina São Pedro foi de Cr$132,00. A cada ano o custo sobe, chegando cada vez mais perto do teto estabelecido. Enquanto os livros mostram que cada fazenda ganha mais dinheiro pelas suas canas, os livros da usina apresentam uma diminuição dos lucros. No momento, a maioria das usinas no Recôncavo está redefinindo seus processos a fim de conseguir uma porcentagem maior de açúcar por cada tonelada de cana. A Usina São Pedro é capaz apenas de atingir uma média de oitenta quilos de açúcar por tonelada, enquanto a maior usina consegue cem quilos por tonelada. A usina também perde dinheiro uma vez que paga pelo peso da cana e não pela porcentagem de sacarose que a cana contém. Como resultado, os plantadores estão mais interessados no aumento do volume da cana e crescimento de sua tonelagem do que no melhoramento da qualidade da planta. Há um movimento em curso para se mudar o método para pagamento por porcentual de sacarose, mas parece sem muito progresso.(7)

(7) Jayme V. B. Machado, Indústria açucareira na Bahia (Bahia, 1950).

A fábrica da Usina São Pedro é dirigida pessoalmente por dois membros da família Conde, enquanto a maioria das usinas tem um funcionário pago, um gerente geral, que é a contraparte industrial do administrador geral. Há aproximadamente oitenta empregados assalariados nesta usina que são pagos por dia e trabalham durante todo o ano. A usina funciona de setembro a fevereiro ― o período da safra ― em dois turnos de doze horas cada. Durante a safra, mais de cem trabalhadores migrantes são acrescentados à folha de pagamento, sob a direção do contratante, e normalmente fazem o serviço no caminho-sem-fim (*) e no desembarque das canas.

(*) Esteira rolante que funciona initerruptamente levando as canas do ponto de desembarque até a moeda ― NT.


49 O trabalhador residente da usina, além de receber uma casa, tem direito a luz elétrica e a lenha. Eles são treinados na usina, e muitos estão por lá há longo tempo. A Usina São Pedro muito se orgulha da lealdade de seus homens, muitos dos quais lá permaneceram durante a guerra quando foram tentados pelos altos salários oferecidos pelo governo federal para a construção de instalações militares. A Usina São Pedro não tem dificuldades com a sua mãode-obra como outras grandes usinas têm com desordens e greves causadas por sindicatos de trabalhadores. Isso se deve em parte ao reduzido tamanho de sua fábrica e em parte pelo ambiente constante de paternalismo ao qual muitas outras usinas estão agora determinadas a retornar. Portanto, o paternalismo destaca-se como um dos maiores fatores na complicada hierarquia organizacional da vida do campo. O antigo senhor-de-engenho é agora simplesmente o patrão, mas em seu papel ele desempenha quase as mesmas funções que o senhor tinha em relação ao bem-estar de seus escravos. O patrão de hoje tem as mesmas responsabilidades éticas quanto a seus trabalhadores como o antigo senhor-de-engenho. Em geral, essas responsabilidades incluem cuidar com o trabalhador além do simples pagamento de um salário, tratar dos doentes e dos idosos. Hoje o paternalismo é encontrado em alto grau nas fazendas particulares, dirigidas por famílias, e em baixo grau em fazendas de empresas dirigidas por administradores. No seu mais alto grau é uma forma de seguridade social verbal, que funciona bem, suplementando os baixos salários pagos por toda a região. Até nas fazendas da usina há uma forma moderada de paternalismo, que é mais forte nas fazendas localizadas nas vizinhanças da usina e da casa do usineiro. Os trabalhadores migrantes, entretanto, não são incluídos neste padrão de paternalismo, principalmente porque não o procuram. Indiretamente eles recebem seus benefícios, pois se um deles cai doente, se dirige ao contratante que irá, então, ao dono da fazenda ou ao usineiro procurar remédios ou o que seja necessário. Mas, geralmente os trabalhadores migrantes se viram sozinhos e pedem pouco ou nada a seus empregadores. Além da proteção fornecida pelo sistema paternalístico, os trabalhadores têm o direito pelo menos a um acre (quase um tarefa -NT) de terra (roça) na fazenda onde podem plantar para sua subsistência. Também muitas vezes cultivam fumo onde não há cana-de-açúcar plantada, por exemplo, nos cantos de tabuleiro onde o arado não pode chegar. O tabaco, ou fumo, é vendido para compradores viajantes que percorrem a região na estação de colheitadesta cultura. O dinheiro fica com os trabalhadores, e muitos deles dizem que o que ganham com isso proporciona, durante o ano, os “gastos extras” com o que eles gostam, como cachaça, cigarros, um par de argolas e até perfumes.

5. A vida na cidade As ocupações do povo de Vila Recôncavo diferem consideravelmente das do pessoal da zona rural. Os moradores da cidade ganham a vida dedicando-se a pequenosempreendimentos; a economia é monetária, e não aquela dominada por obrigações e direitos mútuos, como acontece em certo grau nas fazendas. Vila Recôncavo é a sede do município e carece de comércio organizado e de indústria. Pode ser considerada uma cidade administrativa, onde o


50 funcionalismo público é a vida da maioria das pessoas, especialmente da classe mais alta da cidade. As ocupações econômicas dos moradores podem ser divididas em quatro grupos: (1) burocratas e comerciantes; (2) o grupo que serve a eles, como cozinheiros e lavadeiras; (3) um grupo intermediário de artesãos cujo maior ativo, tanto quanto o passivo, é sua independência; (4) um pequeno grupo de pessoas que não se encaixam em qualquer dos grupos acima. De acordo com o recenseamento de junho de 1950, a força de trabalho da cidade totalizava 459 pessoas, entre homens e mulheres. Das 459, onze se declararam desempregadas. O restante da população foi registrado como donas de casa, estudantes, crianças e idosos aposentados ou incapazes. Nesta categoria, atingindo mil pessoas, há indivíduos que trabalham em tempo parcial, como carregadores de água ou de lenha ou costureiras ― em outras palavras, pequenas ocupações que, aos seus olhos, não merecem ser classificadas de emprego. As ocupações listadas podem ser assim decompostas conforme os quatro grupos citados acima: Grupo 1 (burocratas e comerciantes) – Funcionários públicos federais e estaduais 54; funcionários municipais 16; comerciantes 12 = 82 Grupo 2 (ocupações de serviços) – Lavadeiras 46; passadeiras 17; eletricistas 1, serviços gerais 29; costureiras 8; bordadeiras 1; caixeiros de lojas10; canoeiros 2; padeiros 4. Grupo 3 (artesãos) – Fazendeiros 24; pescadores 132; pedreiros 6; barbeiros 6; carpinteiros 4; alfaiates 3; vendedores ambulantes 3; marceneiros 2; tanoeiros 1; açougueiros 1; sapateiros 1; quitandeiras 1 (1) (1) Quitanda é uma pequena venda, normalmente tocada por uma mulher que vende vegetais e frutas pela janela. Os trabalhadores do Grupo 3 empregam o seguinte número de pessoas, tanto como empregados como aprendizes: pedreiros 17, trabalhadores na roça 13, pescadores 5, alfaiates 4, marceneiros 1, carpinteiros 1, barbeiros 2, aprendizes de pedreiros 1. Grupo 4 (diversos) – Desempregados 11, trabalhadores da usina 9, trabalhadores em fazendas 3, empregados do Instituto Vila Recôncavo (que será descrito mais tarde) 8. Os funcionários públicos federais e estaduais na cidade consistem das seguintes pessoas: 25 petroleiros 09 professores e funcionários de manutenção da escola federal nas imediações 06 professores de escola primária 03 coletores de impostos e secretaria 01 agente federal de estatística 01 agente postal e telegráfico


51 01 carteiro 02 secretárias do juiz de Paz 01 secretária do registro civil 01 secretária de polícia 01 tenente de polícia 02 policiais (este número varia conforme a ocasião) 01 um mata-mosquito (contra malária, chamado “José do DDT”)

O juiz de Paz, que não está incluído acima, não mora no município mas comparece ao tribunal uma vez na semana, ou em outras ocasiões conforme a demanda. Sua secretária, uma moradora local, faz a maior parte do trabalho e fica sempre a postos quando o juiz chega. Os vinte e cinco petroleiros acima listados representam a maior contribuição da cidade à indústria do petróleo. Eles recebembons salários, regulares e suficientes para contratarem os serviços de pelo menos uma empregada doméstica e uma lavadeira. Eles devem, portanto, ser incluídos no Grupo 1, mesmo que não sejam funcionários administrativos como os outros do grupo. Esses homens, em vez de morarem no acampamento dos petroleiros que fica perto da usina, trouxeram suas famílias para residir na Vila Recôncavo, e vão e voltam diariamente para seus locais de trabalho. Durante o verão essas viagens são feitas em caminhões, mas no inverno eles vão a pé ou, se possível, de canoa. A indústria do petróleo tem atraído pouca gente local até agora. Em vez disso, forasteiros têm vindo para a região como petroleiros. A conversa corrente entre os pescadores é uma discussão sobre se eles deveriam deixar de pescar e ir trabalhar nos campos de petróleo. O sentimento geral é que são melhores como pescadores. Como eles dizem, se eles pescarem pelo mesmo número de horas que um petroleiro trabalhapodem ganhar mais dinheiro que o petroleiro. Em sua profissão atual eles podem trabalhar mais ou menos, conforme queiram, sendo a maior determinante saber se há bastante em casa para comer e ainda sobrar para cigarros, coca-colas e, vez em quando, novas roupas. Eles formam um grupo independente e são frequentemente criticados como preguiçosos por não arrumarem um trabalho certo. Essa parece ser uma crítica injusta tendo em vista o rigor enfrentado na pesca. Os demais listados no grupo de funcionários federais e estaduais comparecem sempre a seus empregos e são moradores locais, exceto um e outro. O coletor federal de impostos e sua mulher, que é uma das professoras, são de fora da região, mas já estão bem integrados à cidade. Três outras professoras são de outras partes do estado e ficam na Vila Recôncavo apenas durante o ano letivo. Há uma diferença entre as professoras que fazem da Vila Recôncavo sua casa e as que não. As que ficam apenas durante o ano letivo têm pouco ou nenhum contato com a população local, aparentemente achando que são superioras a qualquer pessoa de lá. São mulheres jovens, mas não procuram marido entre os homens locais


52 e admitem abertamente não gostar da cidade. Formam no grupo que chama os pescadores de preguiçosos e incultos, e geralmente são antipáticas para os moradores da cidade. Há dezesseis funcionários municipais, todos eles gente da terra: o secretário municipal, o tesoureiro e seu assistente, o contador que cuida das despesas do município, o fiscal que supervisiona a cobrança dos recursos, três coletores de impostos municipais e outros que ocupam postos inferiores, como o porteiro do tribunal. Essas funções são preenchidas por nomeação, e como resultado da relativa estabilidade da política da região os nomeados raramente são trocados. O secretário é o homem que realiza a maioria dos serviços administrativos; ele entra em serviço com um prefeito e frequentemente permanece durante os mandatos de vários outros prefeitos. Portanto, ele conhece bem as obrigações e auxilia bastante o prefeito. Além disso, o secretário possui um pequeno armazém na cidade, com capital de Cr$10.000,00, que vende bebidas (cachaça e refrigerantes), carne seca (charque), cigarros, charutos, esteiras, leite condensado, tamancos de madeira e alguns outros itens. O principal cargo municipal é o do prefeito, que no Brasil é responsável por todo o município. O prefeito não consta da lista acima como empregado porque ocupa uma outra posição no recenseamento do qual esses dados fora retirados. Na Vila Recôncavo, o prefeito faz parte do nível social mais alto, dos proprietários de terra. O cargo é eletivo, com mandato de quatro anos, exceto nos anos 1930 e 1940, quando o prefeito era nomeado por indicação do governador do estado (interventor). Na Vila Recôncavo, de uma maneira geral, o prefeito tem pouco ou nenhum interesse na cidade ou, exceto em poucos casos, no cargo, que é considerado uma obrigação onerosa. Tradicionalmente ele não aceita seu salário. Quando da última eleição, houve consternação da parte dos fazendeiros, pois nenhum deles quis o cargo, mas alguém teve de aceitar. Quando a escolha foi feita, o candidato ― um dos diretores da usina ― foi eleito sem que tenha havido oponente. A maioria das obrigações é deixada a cargo do secretário, o prefeito apenas realizando um mínimo de supervisão, contribuindo um pouco com o que for útil.Geralmente, alguns assuntos importantes são discutidos na casa do prefeito, e suas ordens são transmitidas ao secretário por um mensageiro ou por telefone. O último prefeito, Dr. Aliança (Vicente Albuquerque Porciúncula ― NT), foi uma exceção à regra. Ele foi interventor em 1947 e eleito prefeito em 1948, servindo até as eleições gerais no outono de 1950. Engenheiro civil, dono de duas grandes fazendas, mantém em perfeitas condições a casa-grande da antiga fazenda, onde mora, assim como uma ampla casa em Salvador. As raízes de sua família estão no Recôncavo, mas ele veio do Norte (Nordeste, Alagoas – NT) e casou em uma família de fazendeiros da Vila Recôncavo (os Ribeiro). Embora a tradição de sua família seja a cana-de-açúcar, ele não hesitou em quebrar muitos dos padrões tradicionais da região. Em uma de suas duas fazendas experimentou outras culturas, como banana, arroz e mandioca, em grande escala, produzindo também leite e manteiga. Poucos anos atrás, após estabelecer que essas culturas não compensariam suficientemente, fez uma enorme plantação de cacau branco. Ainda é muito cedo para se falar no resultado desse empreendimento, pois os arbustos ainda não começaram a dar seus primeiros frutos, mas esse exemplo ilustra seu usual espírito enérgico. Dr. Aliança assumiu seriamente o cargo de prefeito e se dedicou bastante a ele. Suas realizações foram muitas no espaço de poucos anos: pavimentou a maioria das ruas, instalou


53 luz elétrica nos logradouros públicos, criou uma companhia para vender eletricidade a quem a quisesse, instalou comunicações telefônicas com a capital e construiu um pequeno mas moderno prédio escolar. Como resultado de seu empenho e administração pessoal, esses serviços estavam concluídos, ou quase, ao deixar o cargo. (De acordo com alei, o prefeito não pode ser reeleito.) Entretanto, com exceção da construção de uma ponte, nada foi feito nas áreas rurais do município. Por tradição, obras públicas no município são realizadas na sua sede. Muitos dos comerciantes no Grupo 1 são pequenos empresários. A capitalização dos estabelecimentos na Vila Recôncavo vai de Cr$100.000,00 a meros Cr$5.000,00. Entretanto, não importa quão pequeno é o estabelecimento, ele proporciona moradia para alguém, ou como se diz na Vila Recôncavo, “sempre dá!”. Ao cidadão comum é difícil conseguir juntar capital bastante para abrir uma loja, mas uma vez aberta raramente fecha por falta de negócios. Dos doze estabelecimentos na cidade, oito são propriedades de homens e por eles operados, e os outros pertencem a mulheres. O melhor armazém da cidade e o mais pobre pertencem ambos a mulheres. O “melhor” é o mais antigo, localizado na rua principal que leva à ponte dos navios. Atualmente é de propriedade de Dona Carmen, que herdou de seu irmão. É uma mistura de armazém geral com padaria, e seus preços são sempre um pouco mais altos que os praticados nos demais armazéns. Atende principalmente aos moradores da parte antiga da cidade. Além de possuir um grande estoque de alimentos comuns, o armazém também vende artigos melhor acondicionados, como vinhos, geleias e conservas. O pão é assado pela tarde e entregue de porta em porta aos fregueses, ainda quente e com um delicioso odor sempre associado ao pão fresco saído do forno. Os fregueses da padaria na maior parte fazem seus pedidos, recebendo os pães ou varas a cada dia antes do jantar. O que sobra é vendido nas ruas pelo entregador carregando um grande cesto redondo com seus gritos: “Pão, pão!”. O marido de Dona Carmem, Damião, também é comerciante. Seu negócio fica na parte baixa da cidade, perto dos pescadores. Os dois armazéns são separados, e o casal vai bem financeiramente. Além desse armazém, Damião também possui várias canoas e redes de pesca as quais são alugadas aos pescadores. Ele é o único negociante na cidade que dá crédito a pessoas que não podem pagar imediatamente, aceitando vender mediante contas que levam meses e até um ano para serem pagas. Ele também empresta dinheiro a fregueses para que possam comprar coisas fora de seu armazém ― por exemplo, peixe, com que ele não lida. Não cobra juros nesses empréstimos nem faz cobranças a quem ele empresta. Por outro lado, os devedores sentem uma espécie de lealdade em relação a ele e não esquecem suas dívidas, e procuram pagar quando podem. Três das menores vendas são de propriedade e operadas por mulheres, cujos maridos abriram para, segundo um deles, “dar a minha mulher alguma coisa para ela fazer”. Era considerado desejável para uma mulher cuidar de uma venda, e normalmente isso é o começo de algo maior, já que mais tarde, quando possível, o marido se aposentaria e ajudaria a tocar o armazém. No caso dasquitandas, o dono geralmente mora no mesmo prédio, ou mesmo ao lado ou nos fundos dele. Os maiores comerciantes, entretanto, têm casas separadas. À noite eles fecham os mercados, que às vezes são guardados por cães ou até por caixeiros que dormem por lá. Os donos de armazéns sempre são instados a colaborar com a igreja quando


54 da realização de festas especiais, e também se tornam politicamente ativos após se estabelecerem na praça. Nos armazéns, os estoques são quase os mesmos, variando mais na quantidade que na diversidade: bebidas (cachaça e refrigerantes), carne seca (o alimento básico da população), cereais, charutos, cigarros, estivas (que incluem feijão, arroz e farinha, três dos alimentos básicos da dieta local), assim como café, azeite de dendê, vinagre, azeite de oliva, alho, cebolas, tamancos, leite condensado e em pó, sal, açúcar, miudezas (pequenos itens como caixas de fósforos e fitas), artigos de toalete e sabão para lavar roupas, anil e amido de engomar, esteiras, querosene, e, em um depósito, utensílios de cozinha de alumínio, que não são vendidos sempre, como também pregos, parafusos, papel de embrulho e cordões. Um armazém na parte alta da cidade também vende roupas. Muitas lojas também têm pequenos suprimentos de chocolate (considerado indispensável em uma festa), chá, mel, doces enlatados como goiabada, e manteiga e queijo também enlatados. Normalmente, vegetais frescos não são vendidos nos armazéns, mas sim nas ruas, já que é consumido por pouca gente. É mais prático se encomendar, principalmente a alguém que vá à feira em Centro (Santo Amaro – NT). Quase todo mundo tem um pé de banana ou de laranja plantado em seu quintal, então poucas frutas são vendidas em armazéns. Outras culturas sazonais, como castanhas de caju, milho e abacaxis, são vendidas de casa em casa. Normalmente, o povo em Vila do Recôncavo compra seus alimentos em pequenas quantidades, já que não têm meios para conservá-los. Uma pequena garrafa é levada para o armazém para ser enchida com óleo ou querosene; e uma pequena lata é levada para o arroz, feijão ou farinha. A carne seca, chamada de charque, é comprada a quilo e deixada pendurada na cozinha, e tiras são cortadas quando se vai cozinhar. Embora o preço do charque seja tão alto quanto o da carne verde, e às vezes mais alto, o povo diz que é mais gostosa. O açougueiro na Vila Recôncavo mata dois novilhos por semana, às quartas-feiras e aos sábados. A carne é transportada pelas ruas sem proteção, pendurada por cordas. Não é raro se ver uma fila de cães seguindo o carregador. A carne é comida no mesmo dia para evitar que fique estragada, e o resultado é que normalmente fica dura e sem gosto. A maioria das pessoas incluídas no Grupo 1 leva uma vida de classe alta; na verdade, uma grande parte dessas pessoas é da classe mais alta da cidade, como será mostrado no próximo capítulo. São pessoas que desenvolvem pouco ou nenhum trabalho, exceto no funcionalismo público,onde ganham suas vidas. Os homens na cidade vestem roupas na maior parte do tempo ― camisa branca, gravata e paletó ― e as mulheres estão sempre bem vestidas com sapatos e meias de seda. (Os petroleiros são uma exceção, pois não são funcionários públicos e usam macacão e capacete). Há sempre ajuda nos trabalhos domésticos e nas compras. Às vezes, uma cozinheira é contratada, do contrário a dona de casa é quem faz sua própria comida, ajudada pelas filhas. As roupas são lavadas fora ou alguma lavadeira vem lavar em casa; a água de beber e de gasto é entregue em casa por um homem ou mulher contratada para isso; membros da casa nunca vão buscar água nas fontes. Uma casa tem sempre um tanque de cimento para captação da água de chuva que cai do telhado. Nem ninguém da família vai buscar lenha, que também é fornecida por uma pessoa contratada para isso. A maioria das pessoas do Grupo 1 mora na parte mais antiga da Vila Recôncavo, sempre em sobrados coloniais, e raramente descem para a parte baixa da cidade habitada pelos


55 pescadores. Na verdade, eles se misturam pouco com os moradores da cidade e quase não há vida social dentro do próprio grupo. Festas são caras, e a visita de casa em casa à noite não é comum. A Vila Recôncavo não tem diversões, como passear à noite na praça. Esse grupo raramente se mete em coisa alguma, especialmente na política local; entretanto, quanto mais distante a questão quanto mais o grupo é inclinado a pensar igual. Muitas famílias desse grupo enviam seus filhos para estudar em Salvador, vão lá quando possível nas férias, recebem o jornal da capital e o Diário Oficial(2)e vão às compras na capital logo que podem. (2) O Diário Oficial é um jornal onde as leis e normas governamentais são publicadas. Como regra, a lei é tornada oficial quando publicada no DO. Vila Recôncavo difere em um aspecto da maioria das outras comunidades rurais brasileiras: ela não tem um pároco. A igreja matriz há muito não tem condições de manter um pároco próprio, e as obrigações que recairiam sobre ele são desempenhadas pelos franciscanos do convento de Vila Recôncavo. Os frades vivem dentro do convento, quase não tomando parte da vida social da cidade. Deve ser notado que não há menção de uma farmácia na Vila Recôncavo. Não havia nenhuma até 1945, quando uma organização sem fins lucrativos, o Instituto Vila Recôncavo, foi aberto. É um posto médico com recursos federais, estaduais, municipais e de particulares; seu diretor é o frei Inocêncio, um irmão franciscano leigo. O instituto fica localizado nos velhos e espaçosos prédios da extinta Ordem Terceira de São Francisco, e consiste de uma farmácia, um centro de distribuição de leite e sopa para crianças, um posto de maternidade, um posto dentário e outras instalações médicas. O dentista, que possui equipamento moderno, é competente em seu ofício. Por muitos anos, um médico ali atendia diariamente, dividindo seu tempo entre o instituto e o acampamento dos petroleiros. Em razão de um complicado conflito político local, ele deixou o instituto. Porém, frei Inocêncio conseguiu um médico visitante que vem de Centro e passa dois dias na semana na Vila Recôncavo. Três moças da cidade foram enviadas a Salvador para estudarem enfermagem e obstetrícia, então há assistência médica competente. Os muito pobres recebem atendimento e remédios gratuitos, além de leite e sopa; os que podem pagar o fazem a preço de custo dos remédios. O instituto é bem equipado, com um aparelho de raio-X, diatermia e outras aplicações de calor, que são populares por causa da incidência de gripes e reumatismo. O Instituto também proporciona sessões de cinema semanais, que têm sido um grande benefício para a cidade, possui uma sala de recreação, localizada no centro da cidade, com rádio, mesas de sinuca e um bar que vende milkshakes, sanduíches, cervejas e refrigerantes. O lugar tornou-se o maior ponto de encontro para os homens e meninos da cidade. Além disso, o instituto mantém uma escola noturna para adultos. O Grupo 2, listado no início deste capítulo, é formado principalmente pelas pessoas que trabalham para as do Grupo1 e são ligados a elas até certo ponto por laços de emprego e salário. Na maioria, os componentes dessa categoria são mulheres responsáveis por atividades tradicionais femininas de lavar, passar, costurar, bordar e realizar serviços domésticos em geral.


56 Normalmente, a roupa é lavada um uma das cisternas da cidade, construídas de cimento. As mulheres levam na cabeça a roupa suja, um balde e uma bacia de madeira. Puxam da cisterna uma quantidade de água com seus baldes para encher as bacias onde as roupas são lavadas. Após molharem e esfregarem com sabão, espremem e estendem a roupa no chão ao sol, e de tempos em tempos aspergem a roupa com água para ajudar o sol a alvejá-las. Depois, enxaguam e estendem de novo para secar. A depender do tempo, o processo de lavagem e secagem pode levar um dia inteiro ou três e quatro dias até que as roupas sejam consideradas bastante limpas. Então, são levadas para casa para serem passadas a ferro. O costume mais antigo era que uma outra pessoa passasse a ferro, mas hoje isso está fora de uso e normalmente a mesma pessoa que lava a roupa também passa a ferro. Os ferros usados são de modelos antigos aquecidos a carvão, que é colocado dentro do recipiente e aceso. Os ferros são feitos de maneira a manter as brasas acesas, e as mulheres devem parar semprepara abaná-las ou renovar o carvão. Uma passadeira tem dois ferros, deixando um ao lado para esquentar enquanto usa o outro. Muitas mulheres também preparam o xangó, um pequeno peixe parecido com sardinha pegado na rede em grande quantidade pelos pescadores da Vila Recôncavo. Há cerca de 20 mulheres na cidade empregadas nisso em tempo integral, e outras parcialmente. Elas se dirigem à praia, carregando latas vazias de gasolina de cinco galões, quando vêem as canoas se aproximarem, e compram os peixes por Cr$25,00 a lata, às vezes comprando dez latas. Uma pescaria diária excepcional pode chegar a cinquenta latas, especialmente nos meses de inverno. As mulheres levam os peixes para suas casas, limpam e salgam pelo período de vinte e quatro horas. Depois, os espetam em varetas de pau tiradas do dendezeiro. Em cada espeto vão cinco peixes. Então, são pendurados para secar ao sol por dois dias. Se chove, a secagem leva mais tempo e muitos se estragam. Poucas mulheres se acostumam com o cheiro do peixe salgado e seco, e se queixam bastante disso. Mas elas sabem que há sempre mercado para o produto e isso compensa o dissabor. Uma lata de peixes proporciona de 150 a 200 espetos, que são vendidos de Cr$25,00 a Cr$30,00 o cento de espetos. O preço sobe um pouco mais se o peixe for vendido na feira de Centro das segundas-feiras, aonde as mulheres vão pessoalmente ou mandam um conhecido vendê-los. De outra maneira, os peixes são vendidos a “tropeiros lá de cima”(3) quem vêm à cidade comprá-los a preços um pouco mais baixos. Dizem que o pequeno peixe salgado é considerado um prato fino pela população do sertão. Outras mulheres preparam camarões da mesma maneira, embora custem mais caro. Uma lata de camarões custa entre Cr$100,00 e Cr$150,00, dependendo do tamanho e da estação do ano, pois durante a Quaresma e especialmente a Semana Santa, quando a demanda é maior, os preços dos pescados e de mariscos sobem. Uma lata de camarões dá duas mãos, ou quarenta espetos, que são vendidos por, na média, Cr$100,00 a mão; o preço do produto final varia com o preço do camarão fresco. Entretanto, um homem da Vila Recôncavo construiu frigorífico, e as mulheres têm trabalhado menos com camarões, pois os pescadores vendemnos diretamente ao frigorífico, onde os eles são mantidos no gelo; então, são enviados de navio a Salvador, dia sim, dia não, para serem vendidos frescos nas feiras e nas ruas. “Camarão da Vila” é muito bem conhecido em toda a capital.


57 (2) Tropeiros “lá de cima” (ou do norte) são homens do sertão que descem ao Recôncavo com mulas carregadas de farinha para vender e retornando com peixes e frutas do Recôncavo.

A maioria das pessoas do Grupo 2 vive na parte baixa da colina onde está a parte antiga, perto da praia ou ao longo da estrada que vai para a usina. Elas são mais ou menos dependentes do Grupo 1, não só pelo dinheiro que recebem pelos serviços mas também por vários tipos de favores que são prestados por paternalismo. Raramente elas têm capacidade de utilizar os serviços do Grupo 3, como construção e conserto de casas. Contam com uma velha forma de trabalho cooperativo, chamado batalhão (trabalho em grupo) para fazer ou consertar uma parede ou montar um telhado de sapé. Frequentemente, um benfeitor arranja um outro de seus “dependentes” para transportar a argila necessária para a casa de taipa, e não há custo envolvido para o beneficiado; mas ele deve providenciar a mão-de-obra. As pessoas do Grupo 2 pegam sua própria água das cisternas e suas lenhas do manguezal. Há vários homens e mulheres na cidade que têm como negócio carregar esses dois artigos. Tal trabalho é contratual. Uma dona de casa encomenda latas ou barris de água por dia e cargas de lenha por semana. Se não tem dinheiro suficiente para pagar, ela mesma realiza o serviço. Durante os meses de estio do verão, pegar água é um negócio enfadonho, pois a maioria das fontes seca logo no início da estação. No verão sequíssimo de 1950-1951, todas as fontes da cidade secaram, exceto uma. Essa ficou com o nível bem baixo. Ela é toda cimentada e fornece a única água potável na cidade. Há um pequeno cano servindo de torneira. Na estação seca, leva de dez a vinte minutos para se encher uma lata de cinco galões (18,5 litros ― NT) nessa torneira. Como resultado, sempre se formam longas filas de mulheres esperando pela sua vez de pegar água, e é comum uma espera de três a quatro horas. Muitas mulheres mais despachadas se levantam às duas ou três da manhã para ir à fonte, fazendo várias viagens e se livrando dessa obrigação desagradável durante o dia. Isso, entretanto, demanda uma grande dose de coragem, pois a maioria das pessoas na Vila Recôncavo tem medo da escuridão, e nenhuma mulher medrosa faria essetrajeto à noite. É praxe os homens que carregam água em barris sobre animais caminharem duas milhas (3,2 km ― NT)a oeste da cidade para outra fonte(em São Bento das Lages – NT) que não atende a muita gente. Muitas mulheres também fazem essa jornada com latas de cinco galões de água na cabeça, e seus filhos carregando latas menores. No passado, muitas mulheres desse grupo possuíram heranças: joias passadas por suas ancestrais que haviam sido escravas favoritas de seus senhores brancos e haviam recebido delas broches, colares, anéis e brincos, conforme o padrão antigo de luxo estendido até a certos escravos. Em muitos casos, essas joias agora são vendidas em épocas de emergência a antiquários que percorrem as zonas rurais à cata desses tesouros, cujo valor agora está em alta, e são bastante procurados por colecionadores. O Grupo 3 é formado por artesãos, isto é, pessoas que trabalham para si. Isso difere do Grupo 1 já que seus membros raramente empregam os serviços de outras pessoas nas atividades pessoais ou domésticas, embora jardineiros, carpinteiros, alfaiates, pescadores, pedreiros e barbeiros empreguem auxiliares em seus negócios. O grande número de homens empregados


58 por pedreiros deve ser explicado, já que estes não formam uma categoria permanente. O recenseamento do qual esses dados foram obtidos foi realizado em junho de 1950, no auge do trabalho de pavimentação das ruas da cidade com paralelepípedos. Vários pedreiros vieram à cidade para esse serviço e eles, assim como os pedreiros residentes, tiveram de empregar auxiliares para realizarem o trabalho para o governo municipal. Quando a pavimentação foi terminada não houve necessidade de tantos pedreiros, e muitos foram embora ou se tornaram pescadores ou assumiram outras ocupações. Desde que os dados foram coletados, alfaiates também se mudaram para outras cidades, já que não havia negócio na Vila Recôncavo. A maioria dos homens neste grupo é de pescadores, totalizando 132, mais 5 que se empregaram em vez de trabalharem para si. Eles pescam em canoas, com vários tipos de redes para uma grande variedade de peixes. O agente de estatísticas federais lista dezessete tipos de peixes, incluindo camarões, dando peso e rendadas atividades do ano: 129.070 quilos e Cr$921.540,00 (quase 50 mil dólares). O camarão representa quase que a metade deste total, Cr$468.000,00, embora o total em quilos seja somente 26.000. O xangó, já mencionado, é o segundo produto mais rentável, alcançando Cr$195.000,00 com 65.000 quilos. O agente de estatística admite que esses números são aproximados, com base no que os pescadores dizem ter pescado, pois o peixe não é pesado e o preço é baseado no preço médio baixo por quilo para todos os tipos de peixe. Via de regra, o peixe é vendido por lata e não por peso. O único homem na cidade que adquire peixes para seu frigorífico sempre compra “de olho”, isto é, estimando quantos quilos está comprando. De qualquer maneira, há um desvio nos números acima por serem subestimados. A vida dos pescadores é dura e seu esquema de trabalho segue as marés vazantes e enchentes. Há seis tipos de redes mais usadas: a circular de arremesso (tarrafa) e a rede de fundo ou rede de arrasto para pegar camarões; a resseeabaladeira, a primeira para xangó e a segunda para sardinha e tainha (uma pequena sardinha); e a calão e calãozinho para peixes maiores. Estas são redes mais populares, mas ainda existem outras usadas com menos frequência, como a arraieira, uma rede usada só para pegar arraias; o pesqueiro, armadilha com a rede presa a varas para pegar todo tipo de peixes grandes; a caçoeira, para pegar caçãoe outros tipos de peixe grande; e o jereré, uma pequena cesta de rede usada por mulheres e crianças ao longo da praia para pegar peixinhos e siris. Além disso, usa-se também uma linha comprida com muitos anzóis (groseira), com iscas em cada um, para pegar peixes grandes. A linha com anzol é muito pouco usada. Veneno de peixe é usado. O tingui, uma planta tóxica, é triturada e jogada na água junto ao manguezal na maré vazia, e ele entorpece o caramuru e o miroró, duas espécies que lá habitam. Os bancos favoritos dos camarões ficam bem em frente à cidade de Vila Recôncavo, na boca do rio que enche conforme a maré da Baía de Todos os Santos. A ocasião preferida para usar a tarrafa para pegar camarões é de manhã bem cedo, sem vento, durante as horas de maré cheia e antes dela vazar. O cardume de camarões, visto desde os altos da cidade, oferece um espetáculo de grande tranquilidade, pois há pouca ação a não ser o arremesso rápido e a puxada da rede fechada. A pesca comtarrafa é trabalho para um só homem. O homem rema uma canoa em direção ao local onde o camarão sempre aparece, que nesse caso é um grande rochedo submerso na borda do canal do rio, ao redor do qual os camarões se acumulam. Ao chegar lá, o pescador, sentado na popa da canoa, embarca o remo e arremessa a rede. É


59 normal se ver entre vinte a trinta pescadores jogando suas tarrafas no mesmo local. A rede é em forma de cone, cujo vértice é amarrado à canoa por uma corda chamada espia, com a qual o pescador pode sentir quando a rede atinge o fundo; ele também pode sentir alguma atividade dentro da rede, indicando que pegou alguma coisa. A rede mede cerca de 18pés (5,4 metros ― NT), e sua extremidade arredondada tem uma circunferência de aproximadamente 120 pés (36 metros ― NT). Vários pesos de chumbo são amarrados nas pontas para afundarem na água. A rede, com os chumbos, pesam entre 5 e 6 quilos. O tamanho varia com a sua idade, por causa dos constantes reparos que às vezes aumentam ou diminuem sua extensão. Enquanto o homem pesca, a canoa fica à deriva, sem direção. Quando a corrente leva a canoa, o pescador para de lançar a tarrafa e rema de volta ao ponto inicial da área de pesca. Outras vezes, se o cardume de camarões parece se mover, ele pega o remo e leva a canoa atrás. A operação toda de lançar a rede, puxá-la e esvaziá-la no fundo da canoa leva de dez a vinte minutos. Se há camarões bastante, o pescador agiliza suas atividades. Se não, vai mais devagar. Carlos F. Ott considera a tarrafa “incontestavelmente um elemento cultural português”(4).

(40) C.F.Ott, “Os elementos culturais da pescaria baiana”, Boletim do Museu Nacional (Rio de Janeiro), Nº 4 (Outubro de 1944), p. 31. A duração da pesca não leva mais de três horas, pois então a maré corre mais forte e a brisa começa a soprar. Esses dois fatores perturbam a pescaria, já que deslocam as canoas da área de pesca. No mês, há aproximadamente quinze dias de pesca com a tarrafa. Se a sorte ajudar, um homem pesca de 20 a 30 quilos de camarão por dia, e às vezes mais; em outras vezes ele pode não pegar nada. Deve ser dito que o autor nunca presenciou uma grande captura com qualquer rede, apesar do grande número de vezes que ele acompanhou os pescadores. Os pescadores possuem sua própria tarrafa ou alugam de terceiros. A canoa é sempre alugada, e o preço éde dois cruzeiros por uma manhã de pescaria. O camarão rende de Cr$15,00 a Cr$20,00, de forma que esse tipo de pescaria é bem rentável e envolve pouca despesa. Uma tarrafa custa cerca de Cr$240,00 para fazer e permanece em bom estado por cerca de dez anos. A rede de arrasto, ou rede de fundo, como às vezes é chamada, é uma bem maior para a pesca de camarões. Mede 360 pés (109,7 metros ― NT) de comprimento e 168 pés (51,2 metros ― NT) de largura, e tem 420 pés (128 metros ― NT) de corda em uma ponta e 480 pés (146 metros ― NT) na outra. Na parte de cima é equipada com cortiças para flutuar e no fundo, com pesos de chumbo. Este tipo de rede custa Cr$4.000,00, sendo muito caro mantê-la, pois é facilmente rasgada por objetos submersos por causa de seu tamanho e peso. Há só seis delas na cidade; a maioria pertence a negociantes, que são os únicos que podem custear a manutenção. Pescar com esta rede é muito complicado e requer os serviços de pelo menos dez homens e duas canoas, uma grande e uma pequena. O proprietário raramente vai pescar. Um mestre fica encarregado pelas operações e os demais da tripulação são chamados de moços. Um deles é o baixador, cujo trabalho é feito dentro d’água. É um trabalho desagradável e o homem corre


60 riscos constantes de ser mordido por siris, queimado por águas-vivas ou ter o pé cortado por conchas afiadas de ostras no fundo. A rede é usada somente nos bancos de camarãojá citados acima, onde as tarrafas são usadas, em frente à cidade. Essa rede deve ser usada quando a maré está parada porque a corrente torna o seu manejo difícil por causa do seu peso. A rede é carregada em uma grande canoa impulsionada por seis remadores, enquanto quatro vão na outra menor. As canoas param quando chegam no ponto costumeiro de arriar a rede, e quase todo mundo acende um cigarro. Há sempre alguma discussão entre os pescadores de várias canoas sobre quem vai arriar sua rede por primeiro, mas em regra não mais que quatro das seis redes são usadas no mesmo dia. Já que todas as quatro devem ser lançadas exatamente no mesmo ponto, há uma ordem aceita de qual será a primeira, a segunda, a terceira e a quarta. A primeira do dia anterior será a última no seguinte, cada uma pegando o seu lugara cada dia. Mas se uma tripulação se atrasa, as outras não esperam muito tempo, pois o período para cada rede é curto. Raramente as quatro tripulações lançam suas redes mais que duas vezes em uma manhã. O último lançamento é chamado de dura-dura, indicando pouco retorno obtido por tanto trabalho. A primeira rede lançada normalmente pega a maioria dos camarões. Em um bom dia não é raro a primeira tripulação fazer de Cr$1.000,00 a Cr$2.000,00 na pesca, especialmente se joga a rede duas vezes. O método de pagamento à tripulação varia, mas sempre o proprietário fica com 40 a 50 por cento, o resto sendo dividido entre os membros da tripulação, o mestre e o baixador recebendo um pouco mais que os demais rapazes. Muitos pescadores não gostam de pescar com a rede de arrasto por várias razões: embora a pesca seja abundante, deve ser dividida entre muitos homens; deve haver treze homens para manipular a rede, o que limita o montante que cada um recebe, e quando somente dez participam o trabalho é bem maior para cada um, embora o pagamento aumente pouco; toda a operação, também, é um processo muito tedioso, que envolve longos períodos de espera. Torna-se cada vez mais difícil manter uma mesma tripulação. A resse, usada para pegar xangó, e a abaladeira, usada para pescar outros peixes menores, como sardinhas e tainha, é operada diferentemente. A resse é uma rede com malha mais fechada, 660 pés (201 metros ― NT) de comprimento por 12 pés (3,6 metros ― NT) de largura. Como na rede de fundo, há cortiças no topo e pesos de chumbo embaixo. Usa-se uma pequena canoa de 18 a 20 pés (5,4 a 6 metros ― NT) e somente dois homens são necessários para o manuseio. Essa rede pode ser usada tanto na maré enchente quanto na vazante e em qualquer lugar. Os pescadores têm seus bancos de areia e de cascalho favoritos onde gostam de pescar, a leste da cidade. Soltam a rede quando vêem cardumes de peixinhos cortando a água. A resse é uma inovação recente na Vila Recôncavo, onde foi usada pela primeira vez com muito segredo para evitar que sua malha caísse nas mãos de muita gente. Mas agora muitos pescadores desta parte da Baía de Todos os Santos estão familiarizados com ela, e em todo o município há vinte e cinco delas sendo usadas. Uma segunda invenção com essa rede, também aplicada à abaladeira, é o uso cooperativo de duas redes de vez para pegar mais peixes. Duas canoas participam do trabalho, cada uma com dois homens e uma rede. Uma captura excepcional num período de seis horas de pesca rende Cr$600,00, com a média normal entre Cr$300,00 a Cr$400,00. Quando duas canoas pescam juntas, a captura total é dividida igualmente entre as duas. Os pescadores que usam a resse e a abaladeira estimam que podem ganhar uma média de Cr$15,00 em cada dia do ano. Isso é


61 considerado relativamente bom, pois eles não pescam constantemente. Após uns poucos dias proveitosos eles dão um tempo para descansar e se divertir. A calão é outra grande rede, que requer pelo menos seis homens para manipulá-la na canoa e dentro d’água, como se dá com a rede de fundo. É usada para pegar peixes de todos os tamanhos, exceto pequenos xangós e camarões. A rede mede 780 pés (237 metros ― NT) de comprimento e tem cordas em cada ponta com 420 pés (128 metros ― NT) de comprimento cada. Esta rede necessita de uma grande canoa. O tamanho normal é de 30 pés (9 metros ― NT). Poucos pescadores possuem sua própria calão ― a maioria aluga do negociante que tem uma. É arrendada pelo mestre a longo prazo, mesmo que seja para uma saída. Diz-se que o mestre “toma conta da rede”, significando que não só ele pesca com ela como também a conserta e a tinge quando necessário. O dono da rede, que normalmente também é dono da canoa e dos remos, recebe 20 por cento dos lucros de cada viagem. O resto é dividido entre os seis homens, embora o mestre e o baixador recebam um terço a mais que os outros quatro. A depender de como o peixe está correndo, a calão pode pescar no valor de Cr$1.000,0 a Cr$1.500,00 por viagem, ou apenas Cr$120,00. Duas viagens por dia são dadas quando a pescaria é boa. Há somente oito dessas redes na cidade, e custam cerca de Cr$1.500,00 cada. A calãozinho é menor, do mesmo tipo, às vezes chamadas de redinha. Embora seu manejo seja quase o mesmo da rede grande, são precisos só quatro homens para manobrá-la. Entretanto, está se tornando cada vez menos popular, ao contrário da resse. Em terra, bons cuidados devem ser tomados com as redes. Após a pescaria, as redes são levadas pela praia até os cavaletes de secagem, longas varas sobre as quais as redes são estendidas. À medida que secam, o mestre as inspeciona, procurando buracos que são imediatamente costurados com uma agulha de madeira e linha de algodão. As redes são feitas a mão e tingidas em água embebida com cascas de mangue vermelho. Com isso, o branco da linha se transforma em marrom escuro, o que protege da ação da água salgado e do sol. Uma rede nova deve ser imersa nessa tintura a cada dois ou três dias, e depois a cada oito dias. A resse, a abaladeira e a tarrafa são tecidas normalmente por mulheres e, exceto trabalhando direto, podem levar até oito meses para fabricá-las. Uma tarrafa pode ser feita em cerca de doze dias, em trabalho initerrupto. As mulheres são pagas a Cr$12,00 por caixa de linha de algodão, que contém vinte e cinco carretéis de linha, sendo que cinco caixas fazem uma rede de tamanho médio. As outras redes requerem linha mais pesada e levam mais tempo para serem feitas. A calão e a rede de fundo são feitas por homens, e o período de um ano não é considerado muito longo para a sua manufatura. A piassava, uma fibra de planta que cresce no Recôncavo, é usada como linha. Os pescadores da Vila Recôncavo vão comprá-la na parte sul da baía. É muito dura e bem forte. Muitos homens se queixam que a fibra corta suas mãos quando estão pescando e a ação da água salgada inflama seus ferimentos. Há entre setenta e cinco e cem canoas na Vila Recôncavo, de todos os tamanhos, de 16 a 50 pés (4,8 a 15 metros ― NT) de comprimento. Elas vêm do sul do estado e custam entre Cr$1.000,00 a Cr$6.000,00 cada, dependendo do tamanho. São feitas de vinhático preto, uma grande árvore na qual uma canoa inteira é escavada. Quando as canoas ficam velhas, são fortalecidas por dentro com vigas. O banco e o suporte central (pé do banco) têm um buraco


62 onde um mastro é enfiado para segurar a vela. Os pescadores usam uma variedade de velas, mas normalmente uma simples vela quadrada chamada traquete. Quatro sacos de farinha costurados juntos fazem uma vela quadrada aceitável. As canoas duram um longo tempo e são passadas de geração a geração. Não é raro chegarem a cem anos. A maioria dos pescadores não sabe nadar bem e tem um grande respeito pelo mar por duas razões: a água é profunda, o que para eles implica em perigo, e dizem que esconde grandes peixes que comem homens. Há histórias de três que desapareceram nos últimos anos, levados por peixes. Um deles foi um baixador, e os outros dois que caíram pela borda. Cair não é incomum, pois se um homem pisa em pequeno peixe no fundo da canoa ou escorrega na madeira molhada, perde o equilíbrio e cai na água;as canoas são bem estreitas e instáveis. Em suas canoas, eles são destemidos e vão a qualquer lugar em qualquer tempo. Fortes tempestades que chegam de repente são enfrentadas na canoa, que fica ancorada (apoitada ― NT) enquanto os homens se escondem sob a vela, olhando às vezes para ver se o tempo vai melhorar. Muitos deles, entretanto, ficam bastante enjoados em umaembarcação maior durante uma tempestade. O inverno é a estação mais produtiva para a pesca, embora mais desconfortável. Há muitos temporais, e as chuvas são mais ou menos constantes. Mas os pescadores dizem que a mistura da água salgada com a água doce dos pequenos rios que desaguam na baía parece proporcionar muito mais peixes que nos meses de verão. Os pescadores, quando pescam, se vestem apenas com um par de calções e um chapéu de palha, e permanecem sob a chuva por horas. Resfriados são comuns entre eles, e os mais velhos têm reumatismo. Há sempre mercado para os peixes. Há uma discussão corrente na Vila Recôncavo, pois alguns dos homens mais velhos dizem que os peixes estão rareando, enquanto outros dizem que tudo continua como sempre. É muito difícil se provar uma teoria ou outra, pois registros escritos das capturas anuais são recentes. Entretanto, não há como se dizer que não se vende o peixe que trazem. Muitas pessoas na cidade aumentaram o seu consumo de peixe fresco em decorrência da inflação, pois é mais barato do que o salgado e a carne verde. Os próprios pescadores consomem bastante peixe, sempre guardando uma boa quantidade para suas próprias famílias. Os fazendeiros da zona rural se queixam que o peixe fresco não chega mais nas fazendas como acontecia antigamente. Provavelmente, isso se deve ao frigorífico na cidade. Os pescadores vendem primeiro para seus “consumidores usuais”, as mulheres que trabalham com xangó e camarão; o que sobra é vendido ao frigorífico para ser embalado e embarcado para a Bahia, em vez de ser levado para vender no campo. O jereré, uma pequena rede em forma de cesta fixada ao redor de um anel de ferro, com 1 pé e meio (45 centímetros ― NT) de circunferência, usado por mulheres e crianças na beira da praia, é parte da atividade de subsistência. Com ele se pega pequenos crustáceos (siris), uma enguia casual e outros pequenos peixes que são cozidos na forma de moqueca, um tipo de guisado muito temperado com pimenta e óleo de dendê. Nos manguezais abundam um grande crustáceo chamado caranguejo, alimento muito valorizado. Crianças sempre os pegam, mas um homem que faz isso é chamado de caranguejeiro, um termo depreciativo. O caçador procura o caranguejo metendo o braço no buraco, que normalmente é muito fundo, pelo menos do comprimento do braço. Como resultado, está sempre coberto com a espessa lama


63 típica dos mangues. Os “tropeiros lá de cima” sempre vêm à cidade e contratam alguém para pegar caranguejos, que eles envolvem em lama e folhas e levam para vender no sertão. O segundo maior subgrupo do Grupo 3 é composto de vinte e quatro lavradores que se ocupam de pequenas plantações, não de horticultura de subsistência. Eles moram na cidade e têm suas pequenas roças nos arredores da Vila Recôncavo. Todas essas roças estão localizadas na fazenda Engenho da Vila (o “P” no mapa da comunidade)(Fazenda Campinas ― NT)) e no tamanho variam entre um, dois ou três acres até 15 acres (4, 8 e 12 mil metros quadrados e até 60 mil metros quadrados ― NT), arrendados da fazenda por Cr$100,00 o acre por ano. As maiores culturas são de mandioca, banana e, em menor extensão, fumo, cana-de-açúcar para chupar, milho, feijão e abóbora. Em razão de ter somente 265 acres de mandioca sendo cultivados em todo o município, é muito baixa a produção de farinha consumida, que constitui o maior item da dieta do povo, tendo sido necessário importar o tubérculo moído. Em 1951, uma lei municipal proibiu a exportação de farinha. Por três vezes, durante a permanência do autor na cidade, houve uma pronunciada falta de farinha, não havendo quase nenhuma para ser comprada, e seu preço por litro subiu de um para três cruzeiros. Naquele ano, a seca foi parcialmente responsável pela escassez. Banana é a única cultura comercial de exportação dos lavradores. Há aproximadamente 15.000 pés de banana no município, produzindo para o mercado uma total de 177.000 cachos, proporcionando uma renda de Cr$500.000,00. As frutas são vendidas a um intermediário da Bahia que conhece a maioria dos lavradores da região. Uma vez por semana, ou a cada duas semanas, ele chega à cidade em um grande saveiro para pegar as bananas e levá-las para vender na capital. Às vezes, um lavrador vende um cacho de bananas a uma mulher na cidade que as revende aos moradores. Poucas pessoas compram, entretanto, pois cada casa tem pelo menos um pé de banana em seu quintal. Em um acre de terra se planta 144 pés que, quando bem cuidados, produzem 1.500 cachos por ano. As frutas são vendidas em carregamentosde cinquenta cachos, a Cr$160,00 o carregamento, de forma que um acre rende cerca de Cr$5.000,00 no ano. Esta soma é quase inteiramente de lucro, pois os lavradores fazem a maioria do seu trabalho, exceto quando eles possuem terra demais para uma só pessoa cuidar adequadamente. O terceirizado é pago de acordo com o serviço realizado: dez cruzeiros por corte de cinquenta cachos de bananas, vinte por transportá-los para a ponte se o lavrador não tem seus próprios animais, e cem cruzeirospara limpar um acre, isto é, cortar e queimar os velhos talos (pés)e folhas e manter o terreno limpo do mato. A mandioca é um caso diferente porque a matéria-prima deve ser processada antes de ser consumida. A raiz da mandioca da qual a farinha é feita possui um tipo de veneno e deve ser descascada e ralada, prensada para remover o caldo e então torrada. O produto final é um polvilho branco, fino ou grosso, a depender do tipo do ralador usado. A maior parte da produção é do tipo grosso (farinha de guerra). Um dos lavradores tem uma casa de farinha onde os tubérculos são convertidos no produto final. Ele processa lá sua própria mandioca e deixa os outros usarem o equipamento, cobrando deles um litro de farinha por cada dez que fabricam. O caldo que sai da prensa é guardado e o amido retirado é usado para se engomar roupas. A espécie de mandioca não venenosa, o aipim, é usado em menor escala. Normalmente, o tubérculo é cozido em água e então comido como se fosse batata, pois não precisa de qualquer processo para torná-la comestível.


64 Dez dos vinte e quatro lavradores concentram suas culturas na mandioca, enquanto os demais plantam banana. Muitos deles também produzem culturas de subsistência, espalhadas por entre os pés de mandioca e as bananeiras, como milho, feijão, abóbora e sempre alguns pés de excelente tabaco. Muitos deles também plantam, em um quarto ou meio acre de terra, um tipo de cana-de-açúcar pesada (cana de chupar), que é descascada, cortada em pequenos pedaços (roletes – NT) que são mastigados, a polpa sendo cuspida fora após a pessoa ter chupado o caldo. Quase todo mundo aprecia isso e o açúcar absorvido indubitavelmente é uma grande fonte de energia. As roças são cercadas e protegidas por uma caveira de boi enfiada em uma estaca da cerca para afastar maus olhados. Há muitos lavradores a oeste da cidade que arrendam suas roças tanto do Engenho da Vila quanto da escola federal (São Bento das Lages – NT). Essa área não produz cana-de-açúcar há muitos anos uma vez que lá o solo não é massapê. Esses lavradores são chamados de matutos(caipiras), verdadeira gente do mato que ganha a vida com agricultura de subsistência e raramente deixa a zona rural. Eles vivem afastados do contato com a civilização moderna como qualquer um vivendo no Recôncavo. Eles moram bem escondidos em pequenas casas de taipa e sapé, e podem se deslocar por suas áreas sem serem vistos por ninguém. Os mascates (ambulantes) listados no Grupo 3 têm suas casas em Vila Recôncavo mas vão de cidade em cidade vendendo suas mercadorias. Da mesma maneira que vendem nas feiras, eles percorrem uma rota regular independente delas. ‘Compadresco’, o sistema de compadrio, é importante para eles pois as casas de tais relacionamento dão aos ambulantes uma base de operações em cada cidade que visitam. Um dos três é um homem que compra e vende joias, e os outros dois são mulheres; uma vende tecidos para roupas e a outra, doces, amendoins e camarões secos. Esta última é uma das famosas vendedoras de rua de Salvador (baianas); ela senta em uma esquina atrás de uma mesa portátil e vende iguarias favoritas da Bahia, como acarajés e abarás. Vai de navio para Salvador aos sábados, terças e quintas-feiras, voltando para Vila Recôncavo nos dias seguintes para renovar o estoque. Na volta, ela traz farinha de trigo, amendoins, batatas e outros produtos, que não se encontram na Vila Recôncavo, como encomendas especiais de moradores, que pagam o preço do artigo e mais uma pequena porcentagem pelo trabalho de comprar. As pessoas do Grupo 3 fazem a maior parte dos seus trabalhos; os homens tocam seus negócios enquanto suas mulheres cuidam da casa, das crianças, carregam água e lenha e lavam as roupas da casa. Esse grupo também usa o batalhão para construir e consertar suas casas, embora alguns empreguem os serviços de um carpinteiro para trabalhos em madeira ou pedreiros para fazer as fundações, em contraste com as pessoas do grupo anterior, cujas casas são construídas com um mínimo de madeira e sem fundações de alvenaria. A maioria dos homens desse grupo, os pescadores, mora na parte mais baixa da cidade, em áreas conhecidas como Boqueirão, Caquende e Curtume (ver o mapa da cidade). Os outros moram dispersos pela cidade, nos fundos dos sobrados da parte alta e nas encostas dooitero que desce até a praia. Os pescadores têm a sua própria igrejinha construída na praia, que eles mantêm com dízimos, um décimo de seus ganhos. As pessoas do grupo de pesca raramente sobem a colina para a parte antiga da cidade pois sentem que não pertencem ao local.


65 Umas poucas palavras devem ser ditas sobre o Grupo 4, que consiste em trinta e uma pessoas que não se encaixam nos outros três grupos. Onze delas, que se disseram desempregadas, são pessoas não capacitadas, sem um negócio, sem um patrão nem habilidade para prestar serviços. Na maioria são mulheres, e embora uma análise dos dados do recenseamento mostre que não possuem meios visíveis de sustento, eles desempenham atividades de subsistência, como carregar água, cortar espetos para xangós, extrair óleo do dendê ou costurar redes de pesca, mas sem contratos regulares. Uma vez que se engajam em uma variedade de pequenas atividades independentes e trabalham para pessoas diferentes em períodos diferentes, eles se identificaram como desempregados no sentido de não terem uma ocupação regular. Nove pessoas no Grupo 4 moravam na cidade na época do recenseamento mas trabalhavam na Usina São Pedro. Três homens trabalhavam na fazenda de cana perto da cidade, preferindo morar na cidade que na fazenda, já que o percurso de ida e volta é curto. E o grupo inclui, finalmente, oito pessoas empregadas no Instituto da Vila Recôncavo como atendentes de enfermagem, de farmácia, escriturárias e atendentes do bar (conhecido localmente como Bar do Frade – NT). Esses indivíduos foram incluídos no Grupo 4 porque trabalhavam para uma instituição de caridade não lucrativa. Profissionalmente, os moradores da Vila diferem bastante dos indivíduos da zona rural da comunidade. Suas ocupações pouco exigem sair da cidade para irem até lá. De toda a força de trabalho da Vila, somente doze homens são empregados da indústria açucareira. Mesmo durante a época da safra, a cidade não fornece homens para trabalhar nos canaviais ou na usina. Entretanto, as poucas pessoas na cidade que possuem animais às vezes alugam-nos a fazendeiros para transporte de cana. Os vinte e cinco petroleiros todos os dias saem da cidade para trabalhar, mas suas ocupações são também totalmente diferentes dos moradores da zona rural. Na área urbana como nas fazendas, há especialização e divisão de trabalho. Entre os pescadores, cada homem pesca sempre com um ou dois tipos de rede. Mudar de um tipo de rede para outro é raro e ninguém gosta. Um pescador raramente complementa sua pescaria com a cultura de roça. Ao contrário, ele depende do peixe que captura para lhe proporcionar bastante dinheiro para comprar produtos de roça, assim como carne e artigos manufaturados. Por sua vez, o lavrador nunca pesca, dependendo do rendimento de sua roça para comprar o que não produz. A rotina diária do pescador varia consideravelmente porque depende diretamente das marés, enquanto a rotina diária dos negociantes, professores e burocratas, assim como a das empregadas domésticas e artesãos, segue um padrão mais citadino, começando por volta das sete da manhã e terminando à tardinha. Também há menor variação sazonal no trabalho dos moradores da cidade, pois não dependem da plantação e colheita das culturas, como acontece com os trabalhadores rurais. O modo de vida da cidade e o da fazenda variam consideravelmenteno que se refere ao paternalismo, que tem um papel bem menor na vida do morador da cidade. Muitos dos funcionários municipais têm benfeitores entre os proprietários rurais que os indicaram para posições burocráticas. Por sua vez, os burocratas, em menor escala, são patrões de pessoas


66 que moram na cidade, particularmente os empregados no serviço doméstico. Embora não possuam nem recursos financeiros nem prestigio para proporcionar a segurança que um proprietário rural pode oferecer a seu pessoal, eles, os burocratas, fazem o que podem para ajudar quando solicitados. Essa ajuda é sempre na forma de pedir a seus próprios patrões ajuda para outras pessoas. Dessa maneira, o paternalismo ajuda a unir as duas subculturas. Apesar disso, a subcultura na cidade é muito mais uma cultura de dinheiro, e em geral os moradores da cidade são mais independentes que os da zona rural.

6. Classe e raça Foi o sistema colonial da cultura da cana-de-açúcar que legou ao Recôncavo muitas de suas tradições características, e que formou padrões de relacionamentos de classe e de raça ou cor que têm persistido na região de uma forma modificada. Mais de três milhões de negros foram importados da África durante os séculos XVII, XVIII e XIX, e a maioria foi trazida para o Nordeste do Brasil. Os donos de engenhos portugueses ficaram ricos e formaram uma aristocracia regional, o que levou a um modo de vida de fausto e ostentação. Os escravos e seus senhores formavam dois grupos sociais distintos. Com o desenvolvimento da colônia, grupos intermediários passaram a existir. Em 1549, havia um pequeno grupo independente de pessoas composto de europeus e mestiços, já que muitos europeus que vieram para a colônia não recebiam concessões de terras. Eram negociantes, soldados ou padres, “gente pequena”, livres mas sem a influência social e política dos proprietários de terras. Os mestiços datam dos tempos em que os navios portugueses tocaram por primeiro as costas do Brasil, antes mesmo do início da colonização. Um exemplo notável foi Caramuru, um marinheiro português que naufragou na costa de onde hoje é a Bahia e que tinha uma enorme família mestiça na época em que Salvador foi fundada, em 1549(1). (1) Ver Thales de Azevedo, Povoamento da cidade do Salvador, (Bahia, 1949), pp.57 ff.

O primeiro período da colonização é crucial para se compreender o complexo de classes de hoje dos brasileiros, uma vez que aparentemente os critérios para distinções de classe evoluíram e foram fixados naquela época. Os homens brancos portugueses, e as poucas mulheres portuguesas existentes, eram donos de terras e depessoas, indígenas e negros, os quais foram atraídos para o meio cultural que se tornou a sociedade brasileira. Eles formavam o grupo que estabeleceu e apresentou os padrões ideais de comportamento aos demais. Eles estavam no topo da hierarquia de status e prestígio, enquanto os escravos estavam na base. Então foi estabelecida a dicotomia original de brancos como classe alta e pessoas de cor como classe baixa. Quando o desenvolvimento colonial continuou, outros fatores foram adicionados por vontade dos brancos. Pois foi o grupo dos brancos fundamentalmente o responsável pela criação do mestiço, e foi o branco quem colocou socialmente o novo mestiço entre ele, branco, e as pessoas de cor mais escura. Está claro que as distinções de cor surgiram com a criação do grupo mestiço de diversas tonalidades, e que ao mesmo tempo outros fatores, além do de cor, foram aparecendo, tais


67 como educação, família e profissão. Os senhores brancos que tinham filhos com escravos frequentemente os elevavam como legítimos se fossem de pele clara, isto é, se a diferença entre o pai e a criança não fosse muito grande. Nesses casos, a criança poderia se tornar membro do topo da hierarquia social, com educação, família e posição, no qual ele pudesse comandar outros em vez de realizar trabalhos manuais. Esse era particularmente o caso quando o senhor branco não tinha uma esposa legítima, europeia, para lhe dar filhos. Se a diferença entre o pai e seu filho era acentuada demais para a criança ser facilmente aceita como filho de um europeu, a criança às vezes era parcialmente reconhecida e ajudada de alguma maneira pelo pai. Ele então assumia seu lugar entre a “gente pequena”, livre mas ilegítima e de pele um tanto escura. Com feições negroides acentuadas, seu status era mais baixo que o da“gente pequena” europeia. Uma criança ilegítima manifestamente negra era provavelmente segregada com sua mãe. Assim, no início da sociedade brasileira a gradação de escuro da pele e o tipo de características faciais e do cabelo tornaram-se importantes. Oportunidade de progresso pessoal estava ligada à similaridade com o europeu branco, que era quem dava status e quem gostava de dar status mais alto àqueles à sua imagem. Até 1888, havia duas grandes categorias sociais: escravos e não escravos. Dentro do grupo dos não escravos, entretanto, havia subdivisões definidas ou classes, com o europeu branco proprietário de terras no topo e os trabalhadores negros livres na base. O grupo da basecrescia constantemente como resultado do acréscimo de escravos alforriados, especialmente durante a segunda metade do século dezenove. A abolição da escravatura removeu a barreira mais sólida para a mobilidade do maior segmento homogêneo da população brasileira, o dos escravos. Da noite para o dia os exescravos se tornaram a classe baixa de um novo sistema de prestígio baseado principalmente em cinco critérios principais: poder econômico ou riqueza, profissão, educação, família e cor. Como a classe mais baixa inchou após a abolição, a cor decresceu em importância em relação amobilidade, enquanto os outros quatro fatores se tornaram mais significativos para esse grande segmento da população. Em vista do fato de que, por trezentos anos, a grande parte da população de não escravos ter sido de cor ou mestiça, e já existir uma escala social que os incluía, a entrada dos ex-escravos na sociedade livre não perturbou o que já era um sistema de classe que funcionava perfeitamente, e a adição de tanta gente na classe mais baixa a tornou, de longe, a maior, numericamente. O fim da escravidão também proporcionou uma ênfase crescente à competição de classe, ou pelo menos às possibilidades de competição dentre um número tão grande de pessoas. Apesar disso, a distância entre o topo da hierarquia, a aristocracia local, e qualquer outra classe abaixo permaneceu tão grande quanto antes, restringindo a competição para os membros das classes mais baixas. Poucas pessoas de baixo eram capazes de entrar no grupo mais alto a não ser se fossem brancas e tivessem, de alguma maneira, acumulado riqueza suficiente. Alguns comerciantes entraram nessa classe ao adquirirem propriedades à medida que as famílias aristocráticas antigas iam morrendo. Com o passar do tempo, muita gente nos grupos superiores da classe média passou a manter relações sociais fáceis com a classe mais alta. Entretanto, casamentos formais entre pessoas de cor de classes mais baixas e pessoas brancas da classe mais alta sempre foram proibidos; o pequeno grupo de proprietários de terra e


68 outras pessoas da classe alta continuaram casando entre si, como faziam há séculos. Apesar disso, mesmo essa barreira era às vezes ultrapassada, pois pessoas da classe alta casavam e casam com pessoas reconhecidas como de ascendência miscigenada. Normalmente, o noivo mestiço nesta união é de pele muito clara e vem de uma família em boas condições econômicas que já tenha sido aceita por outros membros da classe mais alta como seus iguais ou quase isso. Preconceito racial ou de cor encontra sua mais forte expressão neste ponto ― casamento na classe alta ― , mas mesmo aqui se o mestiço for suficientemente de pele clara, educado e de boas maneiras, ele ou ela pode casar, e casa, dentro das melhores famílias. A importância do “processo de branqueamento” nessa sociedade não pode ser superestimada, pois aparentemente a tendência em escala nacional é pele mais clara e cabelos lisos. No caso de um casamento entre um reconhecidamente mestiço e um membro de uma família da classe alta, não se faz restrição ao fato de um dos noivos ser “menos branco” do que o outro. À parte da questão de casamento dentro do pequeno grupo do topo, a cor se funde em importância com outros critérios, como a situação econômica e a educação, na disputa por posição de classe. O sistema de três classes citado anteriormente foi recentemente descrito em minúcias(2). Embora distinções locais mais apuradas exijam aqui da inclusão de uma quarta classe, Vila Recôncavo proporciona um exemplo excelente de várias classes nacionais. Como em todas as discussões sobre esta comunidade, as distinções urbano-rurais devem permanecer em mente. O sistema local de classe pode ser representado como segue:

(2) Charles Wagley, ed., Race and Class in Rural Brazil (Paris, 1952), pp.144 ff. QUADRO2 CLASSES SOCIAIS NA VILA RECÔNCAVO Zona urbana Classe A:nenhum Classe B:burocratas locais, comerciantes, profissionais Classe C:pescadores, roceiros,artesãos Classe D:lavadeiras, serviçais, pessoas sem emprego fixo ou sem ofício Zona rural Classe A: proprietários de terras Classe B: administradores de fazenda, técnicos da usina, especialistas, funcionários doescritório


69 Classe C: operários da usina, trabalhadores rurais Classe D: nenhum O esquema acima mostra que a Classe A, composta de proprietários de terras, que nesta comunidade são plantadores de cana-de-açúcar, é encontrada somente na zona rural da Vila Recôncavo. Como já foi dito, esta classe ainda segue os velhos padrões do senhor-de-engenho em que seus membros são moradores de tempo parcial no campo, mantendo residências de inverno na capital. Esta classe é composta localmente por dezessete adultos e seus dezesseis filhos. Isso representa um total de cinco famílias, três das quais são relacionadas entre si por casamento. Essas pessoas não sofrem competição vinda de baixo em Vila Recôncavo. Na capital elas fazem parte da classe alta nacional, e como tal são sujeitas a todo estresse e tensão de qualquer grupo de “alta sociedade” cosmopolita. Elas são, na grande maioria, descendentes de senhores de engenho, barões, viscondes e outros ex-aristocratas, que pertenciam tradicionalmente à classe alta tanto nacional quanto local. Outros membros destas famílias são bem sucedidos advogados, médicos e educadores, e sua participação política em assuntos estaduais e federais é tão tradicional quanto afundiária. Eles pertencem à classe alta porque são legítimos descendentes de antigos aristocratas brancos com grande tradição familiar, porque são proprietários de terras em grande escala e portantograndes agentes econômicos, porque são altamente educados, alguns deles portadores de diplomas de cursos avançados de universidades europeias e norte-americanas, e porque fazem parte de tradicionais e honradas profissões, como direito, medicina e engenharia. Este é o grupo que mais rápido perde as restrições do comportamento tradicional e abraça novas ideias que vêm da Europa e da América do Norte. Em contraste, a classe imediatamente abaixo tem entre seus objetivos e padrões ideais de comportamento as agora históricas tradições da classe alta, tais como o padrão de dois sexos, o confinamento e proteção das mulheres, e a dignidade nas vestes e maneiras formais. No cenário local pode se dizer que é impossível para qualquer um ascender à classe alta, pois embora suas relações com as classes mais baixas são cordiais, elas acontecem ao nível do paternalismo. O abismo entre essa pequena classe alta e qualquer uma das classes mais baixas é tão grande que é inconcebível a qualquer um transpô-lo. Em Salvador, esta classe alta é consideravelmente grande e menos homogênea, e embora o padrão usual dentro dela é para a vida social ser vivida em família ― isto é, em reuniões de grande família em vez de em reuniões de várias famílias diferentes ― , a classe está em crescimento constante ou, pelo menos, mudança. Novos membros são acrescentados, pessoas que deixaram suas marcas na sociedade e que, embora tenham menos tradições familiares, sejam completamente aceitas na elite. Localmente, os membros da classe alta são tratados formalmente por “o senhor” e “a senhora”, às vezes por “meu patrão” ou “meu branco”, frequentemente por um pequeno título, tal como “Dr. Luiz” e algumas vezes por um termo íntimo tradicional “Ioiô” (para o homem) e “Iaiá” (para a mulher). Às vezes a antiga expressão “Vossa Excelência” é usada. Ioiô é uma palavra antigamente usada pelos escravos em relação a seus senhores, e embora seja geralmente usada para os brancos há ocasiões em que um membro de família de mulatos é conhecido em sua intimidade como tal. Com raras exceções, membros da classe alta se dirigem


70 a todos abaixo deles por “você”, e normalmente usam a forma imperativa de verbo ao dar ordens. Os dois expedientes linguísticos tendem a fortalecer e a manter as diferenças entre esses grupos de pessoas. As relações entre membros da Classe A e os que estão abaixo são simples. Como já foi dito, os proprietários de terras evitam a cidade de Vila Recôncavo, e raramente pessoas da Classe B da Vila são convidados para reuniões sociais em uma fazenda ou na usina, então essas duas classes quase nunca estão em contato. Uma vez que a Classe B rural consiste principalmente de administradores e outros empregados da Classe A, as relações entre eles são de empregados e empregadores. Entretanto, quando um fazendeiro celebra uma ocasião especial, como aniversário, os administradores são convidados, e podem “aparecer” por cortesia; vão-se embora logo que possível, pois raramente são incluídos nas brincadeiras (jogos ou troças) dos senhores e seus convidados. Na maioria das vezes, os administradores e outros de sua classe vêm sozinhos, sem suas esposas e famílias. Esta é uma importante indicação de posição de classe, pois normalmente a mulher de um administrador se sente embaraçada na companhia de “gente” (pessoas) e evita comparecer mesmo quando é especialmente convidada. O fortíssimo padrão “em família”, combinado com a intimidade de grandes famílias, torna extremamente difícil uma pessoa de classe baixa sentir qualquer tipo de igualdade nessa reunião. No curso de seu trabalho de campo, ao autor foi oferecido um “reisado”, espécie de festa surpresa que acontece no período seguinte a seis de janeiro, Dia de Reis. Um grupo de pessoas decide “fazer um reisado”na casa de alguém. Elas esperam as luzes da casa serem apagadas, tarde da noite, e batem na porta, tocando e cantando uma música tradicional desta festa. O dono da casa então abre as portas e deixa o povo dançar se divertir. O elemento surpresa acabou e hoje é considerado cortesia sondar o dono da casa para ver se ele vai aceitar ser o destinatário da festa, além de dar-lhe tempo para preparar as comidas e bebidas. O dono da casa também tem o privilégio de convidar qualquer pessoa que queira, que pode ser ignorada pelos que organizam a festa. Um grupo de rapazes se aproximou do autor da maneira citada e no devido tempo todos os arranjos foram concluídos. Os rapazes providenciaram um fonógrafo elétrico e discos para as danças, e o autor foi solicitado a convidar fazendeiros, especialmente aqueles que tinham filhas. Um grupo de vinte e cinco fazendeiros e cerca de uma centena de moradores da cidade, técnicos da usina, administradores e alguns homens da Classe C urbana vieram para a festa. Os fazendeiros chegaram bem cedo em um caminhão e entraram na casa, que então foi fechada e as luzes apagadas. Logo após, os outros chegaram, bateram na porta e a bandinha começou a tocar uma longa toada. (Uma banda foi trazida para tocar,o que é uma importante parte do reisado; mas hoje em dia ninguém quer dançar com uma banda local quando os discos estão à disposição de todos, então os homens tocaram só a música de entrada e puseram de lado seus instrumentos.) Ao fim da música, abriram-se as portas e janelas e os convidados entraram. Os cômodos da casa eram pequenos, mas toda a mobília tinha sido removida para dar espaço às danças nas duas salas maiores unidas por duas largas portas. No começo da festa, todos estavam formais e tímidos; os rapazes ficaram de um lado da sala, as moças ficaram do outro, e os fazendeiros formaram outro grupo. Gradualmente as coisas foram se ajustando, e à medida


71 que as bebidas foram sendo servidas para “esquentar a gente”, as pessoas começaram a dançar nas salas apertadas. Na primeira hora, todos os convidados se misturaram, dançando uns com os outros; e então os membros da Classe A gradualmente começaram a se soltar, primeiro dançando entre eles mesmos e finalmente se apossando de uma terceira sala na qual continuaram a dançar separados dos demais sem serem interrompidos. Foram várias as reações a isso nos dias posteriores à festa quando o caso foi discutido. Os rapazes estavam desapontados com a retração das moças da classe alta, pois tinham grandes expectativas de dançar com elas. Seu desapontamento, entretanto, foi expresso ao dizerem: “Nós dançamos diferente, e como foi a primeira vez não houve tempo para um se acostumar com o estilo do outro” Alguns homens mais velhos simplesmente questionaram: “O que você esperava? Você sabe que eles não se misturam com a gente”. Por outro lado, os fazendeiros gostaram da festa mas ficaram embaraçados pelo fato de permanecerem em um grupo separado, e finalizaram dizendo: “O único tipo de festa boa é uma festa em família, o que foi pra nós.” Foi uma festa atípica,pois se deu devido à presença de um estrangeiro na cidade capaz de reunir elementos diferentes. Em outras condições, isso não teria acontecido, pois cada grupo, após atender às formalidades, se recolheria, apreciando a festa e não criando momentos embaraçosos para o anfitrião. Uma reflexão sobre o que aconteceu expôs a todos a distância entre os dois grupos, mas não houve amargor ou ressentimento manifestado por ninguém. O que aconteceu foi um incidente, e depois as pessoas falaram somente da parte da festa que mais gostaram, ignorando o resto. Os membros da Classe A participam bastante de atividades em Salvador, onde não só fazendeiros mas também profissionais, comerciantes e industriais, tudo misturado. As crianças da Classe A vão a escolas particulares, frequentam grupos de escoteiros e escoteiras (organizações que ainda não chegaram à zona rural) e clubes sociais para praticar esportes e dançar. Seus pais frequentam círculos de atividades sociais, incluindo teatro, palestras, festas dançantes e aniversários. Os aniversários normalmente são celebrações importantes, quando a maioria dos membros da grande família se junta. Em ocasiões especiais, como casamentos em outras partes da família, podem ir até ao Rio de Janeiro; outras vezes, vão lá apenas passar as férias ou fazer compras. Os que possuem fazendas normalmente passam só a estação da safra no campo. É período de férias para as crianças, que convidam parentes e amigos para irem com eles nadar, pescar, caçar e passear a cavalo. A região toda é a sua área de recreio. Os pais participam dessas atividades quando podem, após cumprirem as obrigações na administração das fazendas. Entretanto, em geral, nem as crianças nem seus pais se misturam com os moradores permanentes da Vila Recôncavo. Uma criança pode ter um filho de trabalhador como seu companheiro constante, mas quando cresce esta relação normalmente se desvanece afetuosamente na memória. O padrão de vida desta classe está muito acima do de qualquer outro grupo local. É importante se ter consciência de que, por causa das flutuações do mercado de açúcar, membros desta classe nem sempre têm uma riqueza líquida à sua disposição, enquanto que em outras épocas sejam inegavelmente ricos. Mas mesmo durante uma crise eles são capazes de levantar fundos quando necessário. Uma das maiores razões que fazendeiros procuram as profissões é a


72 necessidade de assegurar a si mesmos uma renda continuada quando o mercado de açúcar cai. Nessas épocas suas principais atividades são dirigidas a ganhar a vida na cidade. Mas, nos períodos em que a produção fica lucrativa a prática das atividades se torna um peso, e um ou outro sofre. Entretanto, em qualquer tempo essas pessoas têm ganhado bastante para manter um padrão de vida que se compara favoravelmente daquele da classe mais alta de qualquer grande cidade. As famílias possuem geladeiras, rádios e outros aparelhos elétricos que são importados. Muitas têm automóveis, recebem revistas do exterior, seguem os estilos de moda de Paris, se interessam por assuntos internacionais e em geral levam uma vida com amplos recursos.Na zona rural as casas são bem melhores que as de quaisquer outros, dispõem de água encanada, luz elétrica e de uma grande gama de serviços prestados por criados domésticos. Normalmente estes vão para a cidade com a família. A Casse B na zona rural da comunidade é formada pelos administradores das fazendas, técnicos da usina e funcionários dos escritórios. É quase como uma pequena Classe A, compreendendo cerca de vinte membros adultos. Como no caso dos fazendeiros, que se associam a outros fazendeiros fora da comunidade, os administradores de várias fazendas se reúnem. Há muito mais contato social entre os administradores e o corpo de trabalhadores, entretanto, que entre os fazendeiros e os trabalhadores. Os fazendeiros conhecem todos os trabalhadores de suas fazendas assim como suas famílias; mas apesar de haver visitas e conversas constantes entre as mulheres dos dois grupos e entre os homens dos dois grupos, não há muito assunto para se conversar. O mundo dos trabalhadores das fazendas é pequeno e os tópicos das conversas são limitados a assuntos familiares, como aniversários, mortes, casamentos, doenças e outros detalhes íntimos da vida pessoal, problemas no trabalho e dificuldades de todo o tipo. O fazendeiro pode conhecer a vida do dia-a-dia e os pensamentos dos trabalhadores só por observação, enquanto ele próprio vive bastante diferente. Entretanto, seu conhecimento dos trabalhadores tende a ser profundo apesar das diferenças, e ele sabe muito mais da vida dos outros que os outros da dele. Por outro lado, as visitas entre os trabalhadores e os membros da Classe B são realizadas em bases muito mais semelhantes, pois são pequenas as diferenças entre seus modos de vida e de pensar. Quando os trabalhadores são convidados para uma festa pelos fazendeirosé para um acontecimento promovido por eles, como Natal. Nessa hora, o fazendeiro é anfitrião e espectador mais que anfitrião e participante. Em outras vezes, os trabalhadores podem formar um grupo musical e de dança, um “samba”, e vão para a casa do patrão à noite. Isso frequentemente é explicado como “para não deixar o patrão ficar só”. De novo, o patrão é assistente pois o samba,dançado exclusivamente pelas mulheres, é um tipo de dança popular raramente participada pela sofisticada classe alta. A Classe B na zona rural está apenas começando a ter algum tipo de consciência de grupo, pois as instituições profissionais que a representam são relativamente novas, e não está ainda alinhada com a classe correspondente na cidade. Há dois administradores que não possuem educação formal ― na verdade, não sabem ler ou escrever. Em todos os casos, os membros masculinos dessa classe formam e mantêm família, educando seus filhos e cuidando de casálos assim que possível. Na maioria, esses homens se fizeram por esforço próprio ―, ascenderam das fileiras dos trabalhadores como resultado de sua própria capacidade, inteligência, senso de responsabilidade e desejo de se aprimorar. Distinguem-se dos


73 trabalhadores por maneiras que parecem desenvolver, ainda mais quando têm a oportunidade de usar a iniciativa própria. Os membros desse grupo normalmente adquirem vários bens para si mesmo, como cavalos, bois, carros de bois, mulas e burros, com os quais podem obter ganhos. Eles também exploram uma cadeia de vendas, uma em cada das três fazendas. Também tentam comprar uma fazendinha nas proximidades. Frequentemente o empregador facilita tal aquisição como um tipo de bônus, emprestando dinheiro ou mesmo dando a terra ao administrador. Alguns dos membros da Classe B também compram alguma propriedade em Salvador ou em Centro, como uma casa ou casas que possam alugar. É a posse dessa riqueza material, além da posição de responsabilidade e autoridade, a maior proximidade com o patrão e o status invariavelmente legalizado de homem de família, que o distingue daqueles que lhe estão abaixo, incluindo-se em uma classe. No caso dos funcionários administrativos da usina, melhores posicionados, a educação também é importante. Quanto a bens materiais além dos listados acima, a Classe B difere consideravelmente das outras duas classes, tendo muito menos do que a Classe A mas muito mais que a Classe C. Suas casas são sempre melhores e maiores que as dos trabalhadores, e geralmente têm luz elétrica fornecida pela fazenda. Normalmente possuem conjuntos de mobílias de sala de jantar e de estar, melhor mobília de quarto de dormir do que a escassa mobília dos trabalhadores, louças em vez dos pratos de barro (nagé)(*) dos trabalhadores, e mesa de jantar para umas doze pessoas. Suas roupas são melhores e mais variadas. Os administradores são bem conhecidos por usarem casacos caqui, camisas, gravatas, calças de montaria, botas de couro bem polidas e chapéus de feltro, em contraste com as roupas mais informais e esportivas dos proprietários e com as calças, camisas grosseiras e apertadas, chapéus de palha dos trabalhadores descalços do campo. (*) Referência à cerâmica popular de barro confeccionada em Nagé, no município de Maragojipe, e vendida nas feiras de Salvador – NT. A Classe B na cidade de Vila Recôncavo é representada pelo Grupo 1 descrito no capítulo anterior, com poucas exceções como os funcionários municipais inferiores, alguns dos comerciantes menores e petroleiros menos qualificados. Por não haver representantes da Classe A na cidade, a Classe B representa o topo da escala social urbana. É uma classe que existe há muito tempo na cidade e que sempre foi composta de mais ou menos as mesmas ocupações. Na sua maioria, os membros deste estrato moram no alto da colina, que é a parte antiga da Vila Recôncavo, e raramente se deslocam até a parte mais nova. Há quatorze pessoas que residem na cidade, além des seus oito filhos, que são considerados caucasianos puros; são todos membros dessa classe alta local. Três deles vieram de fora e não tomam muito parte da vida da cidade após realizarem suas obrigações diárias. Os demais são “brancos da terra” (uma expressão que será explicada mais tarde neste capítulo) e “homens de cor”, inclusive alguns pretos. Muitos indivíduos nesta classe se conscientizam de sua “superioridade” sobre o total da população da Vila Recôncavo por causa de seu status econômico mais alto, do tipo de trabalho que fazem (normalmente, administrativo), sua melhor educação, melhores tradições familiares


74 e pele mais branca, ou, pelo menos, mais clara. Eles são conscientes do fato que eles estão no topo da escala no cenário local e que ascender a uma posição mais alta é impossível na Vila. Para alcançar isso eles deveriam se mudar para uma cidade maior. Se alguém possui uma habilidade especial tem que ser capaz de aperfeiçoar sua condição na cidade grande, porém pode permanecer desconhecido. Na Vila Recôncavo ele é “um grande sapo em uma pequena lagoa”, e isso parece dar certa dose de satisfação a muita gente. As pessoas da Classe B procuram manter relações favoráveis com os fazendeiros, que concedemfavores municipais e têm contatos em Salvador necessários para influenciar nomeações federais e estaduais, já que membros de suas famílias são muitas vezes representantes dos governos estadual e federal. Só os comerciantes da Classe B estão em relativa posição independente, pois eles podem atuar independentemente na política. Seu mercado é a população da cidade e não dependem do comércio nem dosfavores dos fazendeiros ou seus trabalhadores. Não há famílias tradicionais de comerciantes na Vila Recôncavo. Todos os negociantes contemporâneos são pessoas que vieram do trabalho com a pesca ou com qualquer atividade comercial. Esta classe cresce lentamente e há certos padrões aos quais todos os membros se adaptam, como morar na parte antiga da cidade, vestir-se com mais apuro que os das classes mais baixas, ajudar a igreja e patrocinar as poucas celebrações religiosas nos dias santos, enviar seus filhos para frequentarem escolas secundárias em Salvador, possuir rádios, bons aparelhos de jantar e mobílias, mostrar solidariedade familiar e boas maneiras e manter uma boa relação com membros da Classe A. Mas há pouca ou nenhuma coesão entre os membros do grupo. Raramente agem como uma unidade ou expressam uma opinião grupal (exceto para condenar o candomblé, a forma local de cultismo africano). A vida social dessas pessoas é definitivamente limitada e até certo ponto segue o mesmo padrão dos membros rurais da mesma classe pelo qual os homens saem mais de casa que suas mulheres. As mulheres desse grupo passam a maior parte do tempo em casa, saindo pouco para visitas e ouvindo de seus criados os mexericos locais. Desde o advento do cinema, entretanto, é moda marido e mulher, e às vezes os filhos, comparecerem às sessões juntos. Quando aparece um circo na cidade é comum eles irem em família pelo menos uma vez. Entretanto, é regra comparecer aos serviços religiosos separadamente, as esposas e filhas juntas e os homens sozinhos, permanecendo no fundo em vez de sentarem junto às famílias. Jantares, reuniões de carteado ou encontros sociais com amigos em casa, tão comuns em pequenas cidades da América do Norte, não existem absolutamente aqui. A única viagem que essas pessoas fazem é a Salvador, onde ficam com parentes e fazem rápidas visitas, vão ao médico ou às compras. Mesmo os membros mais velhos da Classe B são bem menos educados que os da Classe A e não pertencem a famílias com proeminência nacional. Em muitos casos, eles têm parentes em Salvador, porém em nenhum caso mantêm lá uma segunda casa. Embora seus filhos frequentem a escola primária em Vila Recôncavo, o que as crianças da Classe A jamais fazem, são enviados para Salvador para uma educação mais avançada; e vários da geração presente estão estudando direito e medicina. Como já foi citado, essa classe se envolve pouco em atividade social junto com a Classe A, e quase nunca com as pessoas da Classe B rural. As filhas de famílias dessa classe são cuidadosamente acompanhadas e têm pouca liberdade. Vivem em casa, costurando, bordando e ajudando suas mães nos serviços domésticos. Suas expectativas


75 de casamento são pobres. Isso também se aplica às professoras que são trazidas à cidade e que também pertencem a essa classe. Há poucas oportunidades delas se casarem na Vila Recôncavo a não ser que aceitem um inferior social, o que comumente acontece com professoras rurais no Brasil. “Felipe”, o marido da professora,é um “não adequado” sustentado por sua mulher. Há dois casos na Vila Recôncavo de esposas da classe alta local que trabalham ― ambas são professoras, que complementam a renda dos maridos e aliviam a aridez de suas vidas. A Classe C na zona rural consiste na mão-de-obra do campo e nos empregados da usina, que constituem a maior parte da população. Não há “brancos puros” neste grupo, mas uma disseminação de “brancos da terra”. Em geral os empregados da usina se consideram superiores aos trabalhadores agrícolas; e assim são reconhecidos pela mão-de-obra do campo e pelos membros das classes A e B em razão de suas ocupações serem mais especializadase trabalharem na usina. Na verdade, há fatores que os distinguem dos trabalhadores do campo, pois, além de serem protegidos por legislação federal, inclusive salário mínimo e direito a férias e serviços médicos, eles recebem da usina luz elétrica para suas casas e lenha para a cozinha. Além disso, os empregados da usina não plantam roças para se abastecer de farinha, e eles se consideram superioresaos trabalhadores agrícolas porque suas mulheres “não pegam na enxada”. No núcleo urbano da usina, onde empregados da usina e trabalhadores agrícolas de uma fazenda moram no mesmo espaço, as casas dos primeiros são agrupadas no meio do povoado, perto do chalet do dono, enquanto as dos últimos estão situadas na periferia, mais longe da casa do usineiro, da usina e do grande armazém. As casas dos empregados da usina são melhor construídas que aquelas dos trabalhadores do campo. Na maioria são feitas de tijolos com tetos de telhas, enquanto as casas dos trabalhadores agrícolas são de pau-a-pique, reboco e caiadas. As casas do núcleo da usina seguem o padrão das senzalas. Os prédios são compridos e estreitos e divididos em apartamentos sob um único teto. A usina é dona de todas as casas, e os trabalhadores as recebem sem pagar aluguel. O empregado da usina é melhor pago que o trabalhador do campo e consequentemente possui mais e melhores bens materiais. Sua casa é mais bem mobiliada e se veste melhor. O analfabetismo é disseminado na zona rural. O núcleo da usina abriga uma escola primária estadual há trinta anos, e Pedras, a maior das fazendas da usina, possui uma há vinte anos. Assim, os empregados da usina, como as pessoas de Pedras, têm tido a oportunidade de frequentar quatro anos de escola primária. Os trabalhadores agrícolas em outras fazendas, entretanto, na maioria não tiveram essa oportunidade. Uma exceção é a Fazenda das Moças, que tem mantido uma escola em anos recentes para crianças durante o dia e para adultos à noite. A vida social dos trabalhadores é quase inteiramente confinada ao lugar onde moram. Passam suas vidas na fazenda exceto quando vão a pé para a feira de Centro, normalmente a segundafeira seguinte ao pagamento da quinzena. No verão, quando as estradas estão boas para transitar, eles ficam ocupados com o corte da cana e a moagem. A usina funciona em regime de vinte e quatro horas por dia durante essa estação. No inverno, quando eles têm mais tempo livre, viajar fica bastante difícil pois as estradas desaparecem na lama. Poucas pessoas do


76 campo vão a Vila Recôncavo, pois nada os atrai por lá, a não ser o vapor para Salvador e o padre, a quem eles às vezes visitam para assistir a uma missa ou em funerais. O cinema gratuito recentemente introduzido no acampamento do Conselho Nacional do Petróleo e localizado a uma milha da usina(*) tem sido um benefício para o pessoal do campo, mas normalmente só os homens frequentam. Na verdade, quase que qualquer tipo de reunião fora da fazenda é frequentada predominantemente por homens. (*) A distância é de menos de 1 km – NT). Na maioria das fazendas, a casa de farinha é um local de congregação social, e tanto homens como mulheres lá se reúnem para conversar sobre as últimas notícias enquanto trabalham. As mulheres também mexericam quando vão pegar água na fonte ou ficam por lá lavando suas roupas. A vida do dia a dia delas é corrida e há pouco tempo para atividades puramente sociais. O dia começa e termina cedo. Logo após o anoitecer as luzes de apagam, as casas fecham e o silêncio se instala, a não ser pelos sons que vêm da casa de farinha, que pode funcionar toda a noite, ou por um canto solitário vindo dos barracões onde vivem os caatingueiros, ou pelo ritmo forte dos tambores vindo de uma cerimônia de candomblé distante dali. Em razão de haver pouco trabalho para as mulheres em uma fazenda, as moças “extras”, aquelas para quem não há maridos em potencial, pedem ao fazendeiro para levá-las para a capital para trabalharem como domésticas; normalmente é fácil porque há sempre alguém em Salvador procurando uma “moça do campo boa e forte” para trabalhar em sua casa. Ocasionalmente, se um filho de um trabalhador se mostra inteligente e esperto, ele também é levado para o trabalho doméstico na cidade. A Classe C compreende a maioria da população da Vila Recôncavo e inclui a maior parte das ocupações listadas no Grupo 3 do capítulo anterior ― isto é, pescadores, lavradores e artesãos. Não há “brancos puros” nesta classe, mas, como na zona rural, poucos “brancos da terra” e uma gama completa de mestiços, de quem as várias características sociais e de cor serão discutidas mais adiante. As pessoas da Classe C moram na parte baixa da cidade, emlocais chamados Curtume, Largo de Santa Cruz, Rua Nova, Boqueirão, Cumbamba e Caquende. A grande maioria delas possui casa própria, embora a terra pertença à Fazenda Engenho da Vila (Fazenda Campinas – NT), à igreja ou à prefeitura, pagando-se um pequeno foro anual. As casas são pequenas, consistindo de uma sala de estar, um corredor com um ou dois quartos, uma pequena sala de jantar e uma cozinha. A mobília é simples ― uma miscelânea de cadeiras, bancos e mesas, um ocasional armário para louças, os sempre presentes retratos de santos, uma ou duas camas e pratos de barro. Conforme observado anteriormente, o pescador poderia ganhar mais se ele quisesse. Há um certodesprezo para com os que tentam melhorar de vida, embora quando eles elevam seus status sejam admirados. Um certopescador na cidade trabalhava mais que os outros, ganhando um pouco mais; sua casa estava sempre em melhores condições que as dos outros e sua esposa cuidava dela melhor. Ela era muito arrumada e sua casa e as crianças viviam muito limpas. Essa família era sempre ridicularizada pelos vizinhos por querer ser “gente” (literalmente, pessoa, mas na Vila Recôncavo carrega uma conotação de pessoa de classe alta). A vida se tornou tão desagradável para eles que finalmente se mudaram para outro lugar.


77 A Classe C tem consciência da diferença entre ela e a classe mais alta da Vila e os fazendeiros. Os últimos constituem um grupo distante para a maioria dos membros da Classe C da cidade, pois há poucas ocasiões em que os dois grupos se encontram.Quando não obrigadas a fazer uma distinção mais apurada, as pessoas da classe baixa geralmente reconhecem dois estratos ― o seu próprio e um pequeno porém poderoso grupo acima delas, representado pelo classe alta local e os fazendeiros. A cor desempenha um papel importante na Classe C, pois é reconhecido que o mais branco é o mais alto na escala social, apesar de casos na cidade de mestiços escuros terem subido ao topo da escada, isto é, ao topo da Classe B. A cor é o único critério de classificação que se aplica a todos os membros da Classe C, já que muitos dos outros critérios, como educação e tradição familiar, são inaplicáveis. Essas considerações negativas, mais o fato de que suas ocupações são todas manuais, tendem a tornar o grupo quase homogêneo, exceto pela cor da pele. Todavia, os membros da Classe C da cidade se consideram definitivamente superiores aos trabalhadores rurais, olhando-os como caipiras. Há pouca ou nenhuma tendência da população rural para se mudar para a cidade, e ninguém se lembra de ter sabido de casamento de uma pessoa do campo com um habitante da cidade. A Classe D na Vila Recôncavo é composta amplamente pormulheres que têm filhos mas não têm maridos. Não há esse grupo na zona rural em razão da pressão exercida pelos donos das fazendas para manter a estabilidade das famílias, mesmo sem casamento formal. Na Classe D são encontradas na maioria as lavadeiras e passadeiras relacionadas no Grupo 2 de Ocupação no capítulo anterior. A mãe solteira raramente se casa, pois poucos homens se interessam em ter uma esposa que não seja virgem, e muito menos em aceitar a responsabilidade de uma família inteira de vez, a não ser que a mulher tenha algum bem que possa levar com ela. Ao ter uma criança, uma mulher perde prestígio e status e se torna uma marca para homens que procuram um caso. Ela pode até se juntar com um homem por um tempo. Mais tarde, ou ela o deixa ou ele a deixa. Ela deve se sustentar e a seu filho, pois o pai dela raramente sustenta outra família. Quando as suas crianças crescem, especialmente as filhas, ela espera que elas casem legalmente; mas isso raramente ocorre, pois as garotas escaparão do controle da mãe, como aconteceu exatamente com ela. Nesse caso, uma mulher tem pouca influência e normalmente não pode forçar o homem a casar com sua filha, de forma que sua família é composta de três gerações, com duas mães solteiras e suas crianças. Isso é especialmente verdadeiro quando as filhas são bonitas ou, como sempre acontece, de pele clara, como resultado do fato de seus pais pertencerem ao grupo de homens de cor mais clara da cidade. Moças da Classe D frequentemente são enviadas à capital para trabalhar como domésticas, da mesma maneira que as da zona rural; lá elas podem casar e evitar a repetição do ciclo, ou mesmo voltar para suas mães grávidas e solteiras, pois poucos empregadores mantêm uma garota grávida em sua casa. Os dados seguintes foram obtidos com o uso de um questionário aplicado após o autor estar em trabalho de campo por nove meses. A presente coleta foi realizada pelo autor e por dois assistentes contratados. O questionário era longo e detalhado, e cada um levou aproximadamente três horas para ser completado. Muitas pessoas em todas as classes não quiseram responder, pensando ser uma grande invasão de privacidade. Muitos disseram não saber quanto dinheiro ganharam em um longo


78 período, que simplesmente gastavam logo que ganhavam. Outros fizeram registros escritos e detalhados de quanto ganharam e gastaram, e de que maneira gastam. O total de amostras recolhidas foi 125. Sessenta e duas são amostras urbanas da cidade de Vila Recôncavo e sessenta e três da zona rural, da usina e dos povoados das fazendas. O total das amostras é dividido por classe da seguinte maneira:

Cidade

11 41

10

Classe

Campo

A

2

B

7

C 54 (trabalhadores de campo 25; operários da usina 29) D

A Classe C na zona rural é dividida em dois grupos, trabalhadores do campo e empregados da usina, para mostrar a pouca diferença entre os dois grupos.

QUADRO3 RENDA MENSAL Renda média mensal do chefe da família (Cr$) Cidade

Classe

Campo

A

15.500,00

1.822,72

B

2.040,00

805,85

C

trabalhadores do campo

450,44

trabalhadores da usina 483,74 (classe D urbana)

847,00


79 O abismo econômico entre a Classe A da zona rural e as classes B, C e D de ambas as zonas rural e urbana é rapidamente constatado. Pela moeda dos Estados Unidos, a renda chega a US$750 por mês na Classe A, US$100 por mês na Classe B e somente US$20 na Classe D. Os números da Classe B, tanto urbana quanto rural, mostram quão perto os segmentos da classe se equiparam em renda. Entretanto, a Classe C urbana e a Classe C rural diferem pois a renda do grupo urbano é maior, apesar de não se aproximar da Classe B. Embora a renda dos trabalhadores do campo pareça próxima à da Classe D urbana, a produção das roças dos trabalhadores do campo não está incluída nesses números. A Classe D, cuja renda é a menor, vive de salários, já que os membros dessa classe não têm roças.

QUADRO4 VALOR TOTAL DE BENS (Cr$) Campo Classe A

5.751.080,00

Classe B

88.652,85

Classe C – trabalhadores do campo

1.251,20

Classe C – trabalhadores da usina

1.633,00

Cidade Classe B

36.834,54

Classe C

6.954,75

Classe D

3.991,00

O valor total de bens mais uma vez demonstra o enorme abismo entre a classe alta rural e as classes abaixo dela. Também demonstra os membros da Classe B rural muito distantes dos da Classe B urbana em posses de propriedades. A maioria dessas propriedades consiste em pequenas fazendas e animais. As Classes C e D urbanas possuem mais propriedades do que a Classe C rural, principalmente porque os moradores da cidade têm suas próprias casas. Além disso, membros da Classe C possuem seus próprios meios de produção, como canoas e redes de pesca. Tanto casas como equipamentos de trabalho são fornecidos aos trabalhadores rurais pelos donos das terras.

QUADRO5


80 DESPESAS FAMILIARES Classes

Gastos totais

Gastos com alimentação

A

10.129,50

3.327,00

B campo B cidade

1.955,91 1.771,40

1.199,28 1.342,21

C campo

522,00

413,00

C usina

755,54

522,00

C cidade

728,00

571,00

D

440,90

434,00

Aproximadamente um terço do total das despesas da Classe A é com alimentação, enquanto a Classe B gasta cerca de dois terços de todas as suas despesas com comida, exatamente ametade do valor total do que a Classe A gasta. Tanto a Classe A como a Classe B gasta mais em alimentação sozinha que o total de despesas das Classes C e D. Os trabalhadores do campo gastam menos com comida, o que novamente reflete na posse das roças. A consciência de cor percorre todas as relações de classe e pode mesmo ser equiparada, até certo ponto, à classe. Todos os membros da Classe A são brancos; a Classe B tem brancos e uma mistura dos outros; a Classe C é quase inteiramente composta de mestiços e negros, com exceção de uns poucos “brancos da terra”, que normalmente são considerados separadamente dos mestiços; e a Classe D tem mestiços claros tanto quanto negros. “Consciência de cor” ou “relações de cor” melhor descreveria a situação nesta região da Bahia rural que a expressão “relações raciais”, pois embora a palavra portuguesa “raça”, diretamente traduzida em Inglês como “race”, é utilizada nesta região para designar os três maiores grupos raciais: indígena, negro e caucasiano, e também significa brasileiro no sentido de nacionalidade. Também é muito comumente usada para descrever animais que têm pedigree em contraste com aqueles que não o possuem. Quando são abordadas questões sobre raça, as pessoas logo perguntam primeiro de que tipo de raça se trata. Se se questiona sobre cor, a situação fica mais clara. Nos Estados Unidos há uma “linha” definitiva traçada entre branco e negro. Uma pessoa que não é branca é negra, não importa qual a sua percentagem de herança genética de negro.Na Vila Recôncavo, esta “linha” é mais considerada do que desenhada. Uma distinção entre negro e branco está sempre em mente quando se classifica um indivíduo. Todos reconhecem quando se é branco “puro” ou não. A classificação por cor é um dos mais importantes aspectos da cultura local e um dos mais difíceis de compreensão para o estrangeiro. Baianos do Recôncavo percebem instantaneamente a diferença entre um branco “puro” e um mestiço de branco com índio, branco com negro ou negro com índio, mas elesnão fazem isso. Eles classificam ou descrevem minuciosamente cada pessoa; eles classificam de acordo com a cor da pele, o tipo


81 de cabelo e as feições faciais. As classificações dos tipos físicos são usadas nas conversas diárias. Se nos Estados Unidos se diz que alguém é baixo e gordo, na Vila Recôncavo se descreve uma pessoa pela cor e tipo de cabelo. No Recôncavo, uma pessoa branca é chamada de branco. O termo negro é raramente usado para descrever uma pessoa de ascendência africana. Em vez disso, tal pessoa é chamada de homem de cor. Negro é usado abstratamente para significar a raça negra, mas quase nunca é usado para identificar um indivíduo. “Nêgo” (uma variação mais leve da palavra negro) pode frequentemente ser usado carinhosamente, mesmo entre brancos, e às vezes é usado como apelido. Quando um baiano do Recôncavo fala de índio, ele normalmente se refere ao indígena do interior do Mato Grosso ou do Amazonas. Quando quer indicar uma pessoa de tipo físico de indígena americano no Recôncavo geralmente ele fala caboclo ou caatingueiro, ou às vezes sertanejo. Mesmo os brancos são subclassificados, divididos em duas categorias, o louro e o moreno. Há uma terceira expressão para pessoas com características físicas caucasianas, a “branco da terra”. Significa alguém que seja fenotipicamente branca, isto é, que tem características físicas de um caucasiano ― pele clara, feições finas e “bom” cabelo (escorrido) ― mas que tem ancestrais negros. Geralmente ele é moreno e caracterizado por um tom de pele levemente amarelado. O branco da terra às vezes também porta traços de ascendência de caboclo, como de negro ou branco. Na Vila Recôncavo o homem branco “puro” refere-se a tal pessoa como branco da terra, mas também pode chamá-lo de branco. Para a maioria da população, o branco da terra é sempre chamado de branco,e ninguém chama uma pessoa de branco da terra em sua frente. É-lhe atribuído o mesmo tratamento para qualquer branco tanto por parte dos brancos quanto dos não brancos. Classificar as pessoas a cor da pele é um importante fator, como também o tipo de cabelo. Se houver qualquer questão sobre como descrever uma pessoa, o seu cabelo é um critério decisivo. Depois da pele e do cabelo, as feições faciais (prognatismo, forma do nariz e espessura dos lábios) são consideradas. As muitas designações usadas na Vila Recôncavo para as pessoas de ascendência negroide ou mestiça podem ser descritas como seguem: 1. O preto ou preto retinto tem a pele negra brilhante, o cabelo crespo, lábios grossos, nariz grande e achatado. Os pretos se distinguem entre si quanto ao que eles chamam de “qualidade” e se classificam de acordo com diferenças minuciosas da cor da pele, tipo do nariz etc. O preto com maior “qualidade” é o mais distante do conceito usual de um negro, e ainda assim é um negro. É um negro mais bonito. 2. O cabra (homem) e a cabrocha (mulher) são geralmente mais claros que o preto, com cabelos mais compridos, porém enroscados e rebeldes, feições faciais um pouco menos negroides, embora sempre com lábios grossos e nariz achatado. O cabra e a cabrochanão possuem as feições faciais e o brilho do preto. 3. O cabo verde é mais claro que o preto, mas ainda escuro. Ele entretanto tem o cabelo longo e liso e suas feições faciais tendem a ser muito delgadas, com lábios finos e um nariz estreito e reto. Ele é quase um “homem negro branco”. 4. O escuro, ou simplesmente “homem escuro”, é mais escuro do que os mestiços, mas o termo é geralmente aplicado a uma pessoa que não se encaixa em um dos três tipos


82

5.

6.

7.

8.

mencionados acima. O escuro é quase um negro com feições caucasianas. Normalmente, ele tem “qualidade.” Escuro é um termo muito usado para os forasteiros no Recôncavo. O mulato é uma categoria dividida em dois tipos: o mulato escuro e o mulato claro.O mulato tem o cabelo que cresce talvez até a altura do ombros, mas encrespado e até encaracolado. Ele pode até ser alisado. As feições faciais do mulato variam bastante: lábios grossos com nariz estreito, ou vice-versa. Como regra, as feições são “mais grosseiras” que as do branco e “mais finas” que as do preto. O mulatoé distinguível por um tom amarelado da cor da pele, mais acentuado do que o do branco da terra. A cor de sua pele varia de muito clara para muito escura. Um mulato claro, com cabelo liso, lábios finos e um “bom” nariz,parece-se mais com o branco da terra. Pardo é um termo não muito falado. É uma das classificações oficiais usadas no recenseamento e em papéis de identificação. Entretanto, é usado ocasionalmente para descrever um indivíduo mais chegado a branco do que a mulato claro. Às vezes, crianças mestiças são descritas como pardas durante os primeiros anos de suas vidas, antes de suas feições se tornarem distintas bastante para encaixá-las em um dos outros grupos. Em um caso, uma garotinha de três anos foi consideradaparda por sua mãe. A menina morava com seu avô, que era um branco da terra. Ele classificou a neta como branca, uma vez que sua pele era muito clara e seu cabelo crescia bastante e pouco ondulado. Mas a mãe da menina dizia que ela era parda porque sabia que “seu cabelo poderá encaracolar algum dia”, o que a tornaria uma mulata clara. O sarará não é difícil de se identificar. Ele tem uma pele muito clara e o seu cabelo é avermelhado ou aloirado, porém encrespado e cacheado. Suas feições faciais são extremamente variadas, mais até que as do mulato. Há sararás que “passariam” por branco nos Estados Unidos, mas sempre o sarará apresenta uma aparência não usual: uma pele que nem é escura nem clara, frequentemente sardento, olhos de matiz azul-esverdeado e cabelo que branqueia facilmente ao sol. Na Vila Recôncavo, o sarará é normalmente encontrado entre os pescadores e os que moram nas ilhas. É difícil encontrar uma pessoa deste tipo físico que não seja bronzeada e de cabelos claros. O moreno tem uma pele “excelente”, de “textura fina” e suave. Sua pele é clara mas não branca. Possui cabelos pretos, longos e ou ondulados ou encaracolados. São penteáveis e não necessitam de alisamento. Suas feições são muito mais caucasianas do que negroides. Novamente aqui se faz uma distinção entre o moreno escuro e o morenoclaro; e também entre esses e o moreno branco. Conforme usado em relação ao branco, o moreno diferencia o alourado do louro do mesmo grupo.

Poucas pessoas se encaixam completamente em qualquer desses tipos raciais. Quando uma tem definidas todas as características do preto, é chamado de bem preto ou bem pretinho. O mesmo se dá com o sarará, o bem sarará; ou com o moreno, que é chamado de bemmoreninho ou moreno fino. É muito difícil encontrar o tipo ideal para as outras classificações, pois há bastante variações. Muitas vezes é preciso salientar que um indivíduo é predominantemente de um tipo físico mas tem uma ou mais características de outro tipo. Por exemplo, um jovem na Vila Recôncavo tem as características de um escuro, porém se muitas pessoas gostam dele elas preferem considerá-lo como moreno. Ele tem uma pele “boa” e feições faciais “finas”, mas seu cabelo é curto e enrolado. As pessoas se referem a ele como moreno, e acrescentam: “Mas ele tem cabelo ruim”. Ouve-se frequentemente: “Ele é mulato, mas muito claro”. Essas descrições verbais pintam um retrato nítido da pessoa em questão. Na


83 Vila Recôncavo, não é simplesmente uma questão só de preto e branco, envolve todas as tonalidades entre eles. Um termo de classificação não listado acima, o caboclo, é um caso especial. Conforme mencionado anteriormente, a maioria das pessoas com traços de indígenas americanos vem do sertão para o Recôncavo durante os períodos de seca no norte. Apesar da quantidade de vezes que o povo do sertão tem vindo periodicamente para o Recôncavo, comparativamente poucos permaneceram. Todavia, a população de Vila Recôncavo apresenta um elemento indígena considerável, isto é, pessoas com tom de pele avermelhada ou bronzeada, ossos da face mais proeminentes que os africanos ou os brancos, e uma tendência para olhos amendoados. Entretanto, poucas pessoas portando essas marcas na Vila Recôncavo são chamadas de caboclos. Em vez disso, eles são classificados nos termos locais antesmencionados, ignorando os traços indígenas. Na Vila Recôncavo, há um certo desprezo pelo caboclo. Ele é considerado menos civilizado que o habitante do Recôncavo. É conceituado como melhor trabalhador, mais ambicioso, confiável e frugal, porém menos cordial que o indivíduo tranquilo do Recôncavo. Na zona rural da Vila Recôncavo, a cada ano muitos homens caboclos chegam para trabalhar nas fazendas durante a safra. Na maioria das vezes eles ficam sozinhos, afastados dos trabalhadores residentes da fazenda. As fazendas constroem um tipo de barracão para acomodar esses homens, que fazem sua própria comida, cuidam de suas roupas e passam as noites juntos ao redor da fogueira, entoando canções sertanejas, separados dos trabalhadores permanentes. Chegou-se aos seguintes percentuais de tipos raciais de uma amostra de 162 chefes de família, usando-se os quatro maiores tipos: Preto

50, ou 40 %

Mulato.....59, ou 49% Caboclo... 3, ou 2% Branco 11, ou9% Imagina-se que cada tipo físico na Vila Recôncavo tenha uma série de traços de personalidade correlatos com a aparência física. Além disso, esses estereótipos esperados de comportamento refletem a atitude das pessoas em relação aos vários tipos raciais. Dois tipos físicos, por exemplo, o cabra-cabrocha e o sarará são normalmente “mais para se ter pena do que criticados”, pois são considerados feios pela maioria das pessoas. Há um sentimento de que são produtos de cruzamentos desastrosos entre pais de características físicas que não se miscigenam bem. Considera-se que lhes faltam traços definidos que caracterizam os outros tipos físicos, “e mesmo um preto de qualidade é melhor que qualquer um deles― pelo menos, mais bonito.” Além disso, considera-se as pessoas desses tipos físicos difíceis de lidar. Às vezes são irritadiços e facilmente se zangam. São os tipos físicos menos preferidos na Vila Recôncavo; todos os outros têm qualidades positivas. As pessoas organizam suas preferências de várias maneiras, de acordo com as qualidades físicas que querem enfatizar.


84 Há também uma série de expressões usadas por todo mundo para descrever a pessoa que tenta parecer branca. É quase axiomático que quem quer que tente ser o que não é é considerado ridículo por todos. Tanto os brancos como negros desdenham do alpinista social e usam as expressões “tem pinta” ou “tem sangue” ou “é da raça” ou simplesmente “besta”, “cheio de arte”, “cheio de manha” ou “fala bonito”. Há também muitas frases usadas por pessoas da classe baixa para ridicularizar os negros e os mestiçosque se exibem ou são atrevidos. A maioria delas começa com Negro:

Negro não casa, se junta. Negro não acompanha uma procissão, corre atrás. Negro não senta, fica de cócoras. Negro vestido de branco é sinal de chuva. Negro não assiste à missa, espia. Negro em festa de branco é o primeiro a pegar e o último a comer. A inteligência do negro é do tamanho de seu cabelo. Os conceitos e ideias estabelecidas que as pessoas de Vila Recôncavo têm desses tipos raciais também foram reveladas em respostas a um questionário ilustrado elaborado no trabalho de campo. Uma série de oito fotografias foi mostrada. Eram de pessoas desconhecidas dos que responderam ao questionário. Esses últimos consistiram de homens e mulheres representando cada um dos quatro maiores tipos raciais, o caboclo, o preto, o mulato e o branco. Foi feita uma tentativa de não se dar qualquer pista da possível posição de classe das oito pessoas. Entretanto, as fotos que conseguimos não foram inteiramente satisfatórias para nossos propósitos na Vila Recôncavo. A foto de um caboclo era de um homem de meia idade, mas de um tipo localmente considerado como tendo uma personalidade forte, enquanto a cabocla era mais velha e certamente não simpática na visão local. Os dois pretos eram ambos inequivocamente pretos e ambos jovens. O mulato e a mulata diferiam um do outro, pois o homem era definitivamente um tipo mulato comum, enquanto a mulher era quase uma morena mulata, em vez de mulata “pura”. Ela era jovem e considerada muito mais simpática do que qualquer das outras três apresentadas. Os dois brancos eram ambos jovens e não havia distinções entre eles, e houve dúvidas entre as pessoas que responderam o questionário se os dois eram brancos “puros” ou não. O questionário foi aplicado a oitenta e cinco pessoas, decompostos nos seguintes grupos: 18 brancos

11 homens

7 mulheres

41 mulatos

21 homens

20 mulheres


85 18 pretos

7 homens

11 mulheres

8 caboclos

6 homens

2 mulheres

85

45

40

O Quadro6 mostra os resultados sobre que tipos foram considerados mais atraentes fisicamente, mais ricos, melhores trabalhadores e mais religiosos.

QUADRO 6 Tipos físicos Questão

Número de pessoas selecionadas em primeiro lugar Branco

Homem mais atraente

39 *

Mulher mais atraente Homem mais rico Mulher mais rica37

8

Preto

Mulato

Caboclo

17

14

15

26

3

30

26

27

11

9

38

17

23

Melhor trabalhador

4

38

13

30

Melhor trabalhadora

7

22

23

33

Homem mais honesto

11

22

8

44

Mulher mais honesta

15

13

27

33

Homem mais religioso

21

15

13

36

Mulher mais religiosa

17

11

17

40

Os números sublinhados indicam o grupo mais selecionado em primeiro lugar.

No Quadro 6 tornou-se claro que o ideal de homem mais atraente é o branco; e que a indicação preferencial para o tipo feminino é a mulata ― mas a cabocla, é preciso notar, é igualmente selecionada com a branca. Tanto a mulataquanto a cabocla (apesar desua idade aparente) das fotografias são de tipos que têm as características físicas da morena, tão preferida na Vila Recôncavo. Surpresa foi o cabocloser selecionado como o mais rico, tendo em vista o estereótipo de que o branco é que é geralmente o mais rico; mas acredito que isso é devido ao fato de as pessoas acharem o


86 caboclo da fotografia tendo um rosto mais “distinto”, enquanto o branco foi visto como um jovem com o que deve ser considerado um rosto sem “característica”. O homem preto foi escolhido como melhor trabalhador, o que apoia o estereótipo discutido anteriormente, enquanto a cabocla foi escolhida como a mulher melhor trabalhadora. Isso pode ser explicado por uma frase usada localmente para descrevê-la: “Boa para nada mais”. Os caboclos, tanto homens como mulheres, foram escolhidos como os mais honestos e os mais religiosos, que está dentro do estereótipo do caboclo, que é considerado mais sério e cerimonioso do que os nativos do Recôncavo. O Quadro 7, mais detalhado por tipos raciais que o Quadro 6, mostra claramente os tipos selecionados em primeiro lugar pelos negros, mulatos, brancos e caboclos.

QUADRO 7 DETALHAMENTO DO QUADRO 6 POR TIPOS RACIAIS Questão

Escolhidos em primeiro lugar por: Pretos(P) Mulatos(M) Brancos(B) Caboclos(C)

Homem mais atraente

P

B

B

B

Mulher mais atraente

C&B..........M

B

B

Homem mais rico

P...........C

C

......C

Mulher mais rica

B...........B

B

......B

Homem mais trabalhador

P

C

P

......P

Mulher mais trabalhadeira

P

C

M

.......C

Homem mais honesto

C

C

C

C

Mulher mais honesta

C

C

C

C

Homem mais religioso

C&M

C

C

C&B

Mulher mais religiosa

C

C

B

C

(*)Onde dois tipos raciais estiverem em primeiro lugar significa que receberam um número igual de “votos”.

O Quadro 7mostra a extrema posição inferior da mulher negra em relação às outras mulheres. Ela foi escolhida em primeiro lugar em apenas uma instância ― como mais trabalhadeira ― e


87 somente pelos negros. Apesar do fato de que no Quadro 6 a mulata ter sido considerada a mais atraente, ela foi escolhida apenas por mulatos. Os outros três tipos raciais selecionaram a cabocla e a mulher branca. Resumindo o número total de “votos”, a mulata ganhou por estreita margem de quatro. É interessante notar que os negros escolheram o homem preto como o mais rico, selecionando o caboclo em segundo lugar, enquanto os outros três tipos raciais selecionaram o caboclo em primeiro. A maioria das pessoas que desejam ascender socialmente dirá que é melhor ser branco, ou pelo menos claro, que escuro, porque é o branco que tem dinheiro, mais educação e, consequentemente, o maior número de oportunidades. Tradicionalmente, o mulato tem se beneficiado de certa forma com essas coisas. Portanto, hoje, se um indivíduo for mais claro será mais fácil para ele ascender, simplesmente por causa de sua pele clara. Entretanto, considera-se melhor se ser um preto rico que um branco pobre. Ninguém, em qualquer classe, gosta de um casamento no qual as cores da pele sejam muito distintas. Qualquer casamento de escuro com claro ou branco será referido como “mosca no leite”, e uma certa repugnância é sentida por todos. Um ex-pescador e agora comerciante de algum recurso é um preto casado com uma branca da terra, que era pobre mas sempre branca. Esse casamento não lhe ajudou muito, pois sua mulher não lhe trouxe posição social, mas isso “branqueou” seus filhos. Seu próprio status cresceu através de seus negócios. Mas seus filhos estão sendo educados na capital, e são mais rapidamente aceitos por causa da cor e de seu padrão econômico. Suas chances para um bom casamento são maiores do que se eles tivessem o mesmo padrãoporém fossem escuros. Em outro caso, uma garota branca da classe mais alta da cidade ficou noiva de um preto que é engenheiro em Salvador, mas tem suas raízes na Vila Recôncavo. Houve grande resistência ao noivado por parte da família da moça, e todos os seus amigos reconheceram que, embora ela tivesse feito uma boa “conquista” ― isto é, um homem bem sucedido ―, ele era escuro demais para ela, apesar do fato de que o pai da moça seja um branco da terra e de que a avó fosse de pele escura. O fosso intransponível entre a classe alta de “brancos aristocráticos” e os que lhes estão abaixo é o casamento. O branco de segunda classe pode ser aceito pela classe alta por ser branco. Mas as chances são difíceis de um casamento de umamoça da Classe A com um “homem de cor”. Talvez na cidade um casamento entre um branco dessa classe alta e um mestiço do mesmo grupo pudesse acontecer, mas certamente não aconteceria na zona rural. Até o fim do último século um número de bastardos foi gerado pelos senhores-de-engenho brancos e seus filhos com escravas e ex-escravas. Um grande segmento da população da Vila Recôncavo é formado por esses indivíduos e seus filhos, e em muitos casos eles adotaram o nome de suas famílias brancas. Essas pessoas não são reconhecidas socialmente pelos brancos. Em vários casos, o mestiço tem o nome de família não porque lhe foi dado, mas porque ele próprio adotou. Uma família branca poderá rastrear os descendentes do lado ilegítimo da família e ajudá-los se necessário; mas nunca apresentará um desses indivíduos como um membro da família se tiver a pele escura, mesmo que a pessoa tenha todas as características físicas.


88 Em um caso, a filha ilegítima de uma união entre um homem branco e uma escrava recentemente encontrou-se em uma oportunidade de ajudara filha legítima do primo de seu pai. Esta moça havia nascido livre antes da abolição. A mãe escrava fez com que a filha fosse educada, tendo se tornado uma professora bem sucedida e feito contatos profissionais excelentes no mundo da educação. Mais tarde, quando a filha legítima do primo de seu pai enviuvou, com três filhos, e necessitou de ajuda para educar uma de suas próprias filhas, ela recebeu tal ajuda de sua prima mestiça. Por serem tão marcantesas características dessas relações de cor é que se deve repetir que há uma única série na classificação e esta inclui todos, de brancos a negros. Independentemente do grau de cor, todos os tipos são parte do mesmo sistema amplo de três classes. As categorias são conhecidas por todo mundo, não só por aqueles que são “gente de cor”, e elas são usadas por todos ao se referirem aos outros.

7. A Família As famílias da Vila Recôncavo desempenham as funções usuais desta unidade de parentesco em maior ou menor grau, dependendo principalmente de sua classe e estrutura interna. Há extremos de estrutura de família na área: as famílias da Classe A representam uma organização patriarcal ampla, extensa e firmemente construída, constantemente dando evidências de sua forte solidariedade, enquanto a Classe D é caracterizada por uma organização de famílias pequenas, frágeis e abertas, e em parte por famílias de mulheres com seus filhos. A Classe A na comunidade da Vila Recôncavo é representada por cinco linhas familiares que praticamente possuem todas as terras de açúcar da região. Duas dessas famílias, os Condes e os Jacuípes (Tourinhos e Junqueira Ayres ― NT), são bem entrelaçadas por casamentos entre primos; uma terceira, a família Aliança (Ribeiro Porciúncula ― NT), está relacionada a estas duas por casamento. As outras duas famílias não têm relações com aquelas nem entre si. Há pouco ou nenhum contato entre elas e as outras famílias, pois passam pouco tempo na zona rural, e em Salvador elas pertencem a círculos compostos de suas próprias famílias extensas. As famílias Conde, Jacuípe e Aliança mantêm contatos esporádicos com as outras duas em atividades públicas em Salvador, mas dificilmente em pequenas reuniões sociais. Eles passam a maioria do tempo na zona rural onde são mais ativos politicamente que as outras duas. Se as raízes dessas três famílias fossem traçadasdesdeo século passado, poder-se-ia ver que elas são também ligadas a muitas outras famílias de fazendeiros e usineiros locais. Apesar do grandecrescimento de cada família, elas se desenvolveramà parte, cada ramo preservando seu próprio grupo nuclear. Cada geração traz novos casamentos entrelaçados e realinhamentos entre ramos dessas velhas famílias. As famílias Conde e Jacuípe são bons exemplos de estrutura familiar e coesão na Classe A. A família Conde é a principal proprietária da usina, enquanto vários membros da família Jacuípe detêm ações da companhia. A fazenda ancestral da família Jacuípe (Fazenda Limoeiro, hoje em terras de São Sebastião do Passé ― NT) fica fora, embora perto, da comunidade de Vila


89 Recôncavo e está arrendada a uma usina vizinha. Dona Sinhá, membro da família Jacuípe e viúva de um Conde (Rodolpho Bahia Tourinho ― NT), é dona da Fazenda das Moças (Fazenda Gorgaínha ― NT) dentro da comunidade, uma propriedade contígua às terras da Usina São Pedro (Dom João ― NT). As famílias Conde e Aliança são ligadas por um casamento que as tornou próximas (Célia Tourinho Ribeiro e Armando Vasconcellos Ribeiro ― NT). A família Aliança tem três fazendas na comunidade (Engenho de Baixo, Engenho d’Água e Guaíba ― NT). Assim, dez das onze fazendas em operação na região pertencem a membros das três grandes e interrelacionadas famílias. O membro sênior da família Conde, o “Coronel”, é um dos dois homens que fundaram a usina e irmão do membro sênior da família Jacuípe, Dona Yayá(Anna Olimpíada Tourinho Junqueira Ayres, Zinha ― NT)que é viúva (de José Carlos Junqueira Ayres de Almeida ― NT).Um filho e uma filha do Coronel (irmãos Rodolpho Bahia Tourinho e Elza Tourinho Junqueira Ayres ― NT) casaram-se com uma filha e um filho de Dona Yayá (irmãos Ana Junqueira Ayres Tourinho, Nanita, e Otávio Tourinho Junqueira Ayres ― NT), estreitando os laços entre as duas famílias. Os Conde são representados por três gerações: a mãe e o pai, seus onze filhos, dez deles casados, e seus vinte e três netos. A família Jacuípe é representada por quatro gerações: Dona Yayá, seus oito filhos (Adroaldo Tourinho Junqueira Ayres, Heloísa Junqueira Ayres Carneiro da Rocha, Jayme T. J. Ayres, Ana J. Ayres Tourinho, Carmelita J. Ayres Hutchinson, Otávio T. J. Ayres, José Carlos T. J. Ayres e Álvaro T. J. Ayres ― NT), sete dos quais casados, vinte e seis netos e três bisnetos. Através de casamentos na segunda geração de descendentes de ambas as famílias, mais dezessete pessoas ingressaram no grupo familiar, e através de casamentos na terceira geração de descendentes da família Jacuípe mais seis pessoas foram incorporadas. O número total de pessoas nas duas famílias diretas é noventa e sete. Dezenove membros da família Jacuípe moram hoje no Rio de Janeiro, reduzindo bastante o número de presentes na Bahia para setenta e oito. Os do Rio, entretanto, mantêm constantes contatos com a Bahia e sempre passam suas férias “em casa”, em Salvador. O Coronel e sua esposa e a irmã do Coronel, Dona Yayá, formam o núcleo ao redor do qual os dois grandes grupos aparentados são organizados. Na usina, há três residências: o grande chalet, onde o Coronel e sua esposa moram, e uma casa para seu filho (Frederico Bahia Tourinho - NT) e outra para seu genro (Otávio Tourinho Junqueira Ayres – NT), que são os dois diretores ativos da usina. Há acomodações nas três casas para quase todos os membros das duas grandes famílias, pois a usina tonou-se o maior ponto de reunião para todos eles durante o verão. Cada casal mantém sua própria casa na capital. Nas famílias Conde e Jacuípe, a tendência tem sido aumentar as duas famílias pela inclusão de genros e noras do que perder filhos e filhas, por causa da forte e excepcional fidelidade familiarpreservada pelosseus membros. Como resultado, muita gente é atraída para os círculos sociais dos dois grupos, que às vezes parecem uma única família, e outras vezes duas unidades separadas porém unidas. A vida social desse pessoal é realizada quase inteiramente dentro desse grupo de noventa e sete pessoas, e seus agregados e suas famílias. Tal vida social intrafamiliar é conhecida como “vida em família”. Durante o inverno em Salvador, suas atividades sociais são circunscritasa se visitarem uns aos outros, aos jogos de cartas, festas de aniversário, casamentos de filhos dos outros, e assim por diante. Passeios à praia, idas a clubes sociais e a formaturas são feitos em conjunto. Durante o verão, partes das famílias visitam outras, e em certas ocasiões, como a


90 botada da usina (primeiro dia das atividades da usina de açúcar a cada ano), Carnaval e o aniversário do Coronel, de sua esposa, ou de Dona Yayá, quase todos os membros da família se reúnem. Isso pode significar um encontro de sessenta a setenta pessoas. Já um “pequeno” almoço pode ser frequentado por meras vinte ou trinta pessoas. Ainda é costume casais jovens jantarem com os pais pelo menos uma vez por semana. Também não é raro encontrar um edifício inteiro de apartamentos na cidade ocupado por membros de uma família, cada grupo conjugal ocupando o seu apartamento. Membros da mesma geração brincam ou fazem visitas juntos, embora todas as gerações estejam presentes na maioria das reuniões de família. Através desse companheirismo ao longo da vida, os membros de famílias nesta classe acabam se conhecendo bastante bem e são normalmente os melhores amigos e parentes. Por causa do tamanho dessas famílias, e por causa da constância de suas devoções uns com os outros, há pouco tempo ou vontade para receber gente de fora. Entretanto, isso não significa que conhecimentos são limitados aos membros da família. Amigos são feitos e são atraídos aos vários grupos conjugais e às atividades na família maior. O namoro nas famílias de Classe A é um assunto formal. Por primeiro, considera-se que o jovem casal está se “gostando” ou “namorando”. Espera-se que o rapaz leve a moça para as reuniões de sua família e que ele seja convidado para as dela, de forma que suas vidas continuem a ser dentro da família, mas agora dentro das duas famílias. Há muito poucos locais públicos de diversão em Salvador, a não ser cinemas, e então o casal raramente fica às sós. Os encontros sempre acontecem nos círculos familiares, e então não há necessidade de acompanhante. O namoro continua até que o rapaz termine a escola (se começa cedo, o que geralmente acontece), ou se firma no trabalho, quando então o noivado pode ser anunciado. Quando o casal fica noivo, lhe é permitida maior liberdade. Isso, entretanto, não conta muito pois sua vida social continua confinada dentro da família. Se, por alguma razão, o rapaz ou a moça se afasta por um tempo, o que fica em casa é convidado para todas as festas da família, como se ambos estivessem presentes. O período de noivado não demora muito ― não tanto quanto o período de namoro, que pode durar uns dois anos ―, pois, uma vez noivos, considera-se o casal já pensando sério em casamento, que então é realizado logo que possível. As bodas, sempre em Salvador, são cerimônias tanto religiosa quanto civil. A primeira é uma cerimônia formal e elegante na igreja, seguida de recepção e coquetel, antes que a noiva e o noivo partam para a lua de mel. O casamento civil acontece na casa da noiva pouco antes da cerimônia religiosa. Somente os pais e parentes mais próximos comparecem a esta cerimônia. Após o casamento, o casal vai morar em sua própria casa, mas se não for possível pode ir viver com os sogros. Entretanto, isso não é desejável, e frequentemente as bodas são adiadas até que o casal possa ter sua própria casa. Os pais de ambos os lados ajudam o quanto podem para arranjar uma boa colocação para o rapaz.As ligações familiares são extremamente importantes na Classe A na hora se introduzir os jovens nos negócios ou em uma profissão. É normal a criança nascer no fim do primeiro ano de casamento, e os compadres (padrinhos) são escolhidos entre os membros mais chegados das duas famílias, pelo menos para o primeiro filho. Os outros depois podem ter amigos chegados ao pai como padrinhos. As crianças tomam nomes de membros da família de gerações anteriores ou ― como acontece em alguns casos ― de escravos muito amados. O antigo padrão era o casal continuar a ter filhos regularmente


91 enquanto a mulher tivesse condições, mas a tendência agora é cada geração ter uma prole menor. Há quatro ou cinco gerações passadas, um casal podia ter vinte filhos. Era comum entre essas grandes famílias pelo menos uma criança entrar para o mosteiro ou convento. Isso não existe mais, não só pelo tamanho menor das famílias mas também por o padrão colonial de um padre para cada fazenda não existir mais. A idade de casamento para as meninas também tem mudado, por várias razões: leva mais tempo agora um rapaz ser educado e estabelecido em um negócio; as famílias não podem mais sustentar filhos casados; e as garotas estão sendo melhor educadas. Em vez de se casarem aos dezesseis, dezessete e dezoito anos, elas agora frequentam o colégio por muito mais tempo, às vezes atingindo graduações mais avançadas, como os seus irmãos. Isso adia o casamento até os vinte anos e dá à garota uma certa independência, em vez de simplesmente uma posição de esposa e mãe. Até agora poucas delas têm abraçado uma profissão, porém recentemente a moda é se estudar enfermagem ou assistência social pelo menos por enquanto antes do casamento. Pelo antigo padrão, as viúvas eram sustentadas por suas famílias, mas agora as moças querem ser autossuficientes, sem a triste perspectiva de morar como dependentes em caso da morte dos maridos. Neste século, também, o casamento tem assumido um aspecto de companheirismo, que antes faltava, pois as mulheres alcançaram uma igualdade muito maior com seus maridos e agora são mais parceiras do que acessórios domésticos. Tem havido uma reação ao aspecto familiar da sociedade baiana, e é frequente se ouvir queixas sobre limitação de vida por aqui e desejos expressos de se morar no Rio de Janeiro, ou em algum outro lugar que não se precise viver no mesmo grupo restrito de parentes. Muitas das antigas obrigações de visitas formais a parentes mais chegados e distantes são agora relaxadas, embora convitesaindasejam esperados com algum tipo de regularidade e membros da grande família ainda os esperam para casamentos, aniversários e mortes. A chegada de membros da família do Rio é motivo de muitos jantares e celebrações em sua homenagem. Mas as famílias conjugais procuram mais e mais conhecimentos externos, e quando entram em novos grupos se tornam menos capazes de lidar com os numerosos assuntos familiares. Contudo, ainda é a adesão a essas grandes e patriarcais famílias que dá às pessoas seus status na comunidade como um todo e o direito de entrar em novos grupos que se formam na classe. Todos são bem ciosos disso, e a primeira coisa que se faz com novos amigos é perguntar sobre seus antecedentes familiares e posicioná-los mentalmente no apropriado nível social. É comum que cada grande família tenhauma figura de proa, normalmente o homem mais velho. Ele é reconhecido pelo resto da família como o líder, e poucas coisas são feitas sem seus conhecimentos e conselhos. O chefe da família Jacuípe é o filho mais velho de Dona Yayá. Ele fez sua residência no Rio de Janeiro e não mora em Salvador há muitos anos. Entretanto, ele é informado sobre tudo o que acontece na família, e nenhum passo sério é tomado por qualquer membro sem o seu conselho. No ambiente local, entretanto, é a sua irmã mais nova que lidera a família em todas as atividades sociais. É ela que cuida para que a família seja representada em qualquer ocasião que se deva comparecer. Entre os Conde, o Coronel ainda é o chefe da família apesar de sua idade e enfermidade. Por muitos anos, seu filho mais velho (Rodolpho Bahia Tourinho – NT) se mostrou capaz de assumir muito bem a direção da usina de açúcar e dos bens da família, mas desde sua morte prematura nenhum dos outros filhos mostrou tal vigor, e a longo prazo a maioria das decisões foram deixadas para o idoso cavalheiro.


92 Nas famílias conjugais, entretanto, as decisões e ações são tomadas conjuntamente pelos casais. A menos que a ação seja muito séria que possa afetar o resto da família, eles não precisam procurar conselhos do chefe. O líder da família não tem forte controle sobre os outros membros da família; mas, ele é alguém a quem se pode recorrer quando se precisa de conselho. Também, se algum membro da família fica em algum tipo de dificuldade, o resto do grupo se coloca a seu lado, sob a direção do líder. Em razão dos muitos cargos na vida pública ocupados por membros dessas grandes famílias, a família é capaz de conseguir consideráveis pistolões em muitas áreas. Solicitações são frequentemente feitas, especialmente para ajudar pessoas de classe baixa que vêem vários membros da família como seus benfeitores. Um telefonema aqui, outro ali pelo líder reconhecido de uma grande família podem serde grande ajuda para se conseguir uma vaga nos sempre lotados hospitais, para ajudar alguém com dificuldades legais, para conseguir que algum jovem ingresse na Aeronáutica, e uma miríade de outras coisas que surgem nesta cultura bastante personalizada. A coesão da grande família também atua para cuidar dos mais velhos, doentes, viúvos e solteiros. Muito frequentemente uma moça na família não casa e fica morando com os pais, tomando conta deles até que morram. A não ser que o pai tenha feito um arranjo específico para ela antes de sua morte, a família normalmente olha isso como necessidade de cuidar dela apropriadamente, uma vez que ela os aliviou da responsabilidade de tomar conta de seus pais por muitos anos. Ou, se algum membro da família perdura além do que seria considerado normal o término da vida, os outros membros ajudam de alguma forma para que essa pessoa seja cuidada. Assim, ninguém é ignorado por causa de seu infortúnio. Contudo, um membro sempre tenta não ser um fardo para a família. Do antigo patriarcalismo das famílias da Classe A só restam vestígios que, entretanto, são importantes: a continuada relação fechada dos membros da família, mesmo que separados pela distância e por interesse; o casamento entre primos e o sólido modelo de vida em família; o fato de que a família como uma unidade ainda proporciona cuidado e proteção para aqueles membros incapazes de fazer por si mesmo; e finalmente o reconhecimento de um chefe de família grande, um homem a quem são conferidos deferência e respeito pelos membros de sua própria família assim como por outras famílias. A família de classe alta hoje difere de maneira significante daquela do século passado, especialmente quanto à ênfase crescente sobre a família conjugal e ao decréscimo do tamanho da família. Um importante sinal de afastamento das tradições da antiga família é a crescente igualdade das mulheres, sua participação tanto nas atividades domésticas quanto fora de casa. Aniversários são as ocasiões mais importantes nessas famílias, além de casamentos. Sejam na cidade ou na fazenda, os aniversários são comemorados na maioria das vezes com um almoço. Durante o verão no campo os fazendeiros às vezes promovem uma série de almoços, cada domingo em uma fazenda diferente. Nesses casos, a casa onde o almoço é realizado providencia quase toda a comida, mas é regra todas as mulheres fazerem sobremesas, que levam com elas. Conforme antiga tradição baiana, o menu é extenso, sempre começando com feijoada (um prato fundo de feijão e carne, normalmente acompanhado de arroz ou farinha), sarapatel (um prato muito temperado do qual a base é o sangue de porco), moqueca de camarão (um tipo de guisado feito com óleo de dendê)e ensopado de porco. Seguem-se assado de carne, porco, carneiro e peru, além de filé mignon. Todos esses pratos são servidos


93 com arroz, batatas, farinha e salada de vegetais cozidos. Frutas são servidas, seguindo-se várias sobremesas, incluindo pudim, sorvete e bolos. A refeição se encerra com um cafezinho. O almoço normalmente é servido ao meio-dia, e depois os convidados se dividem em grupos, conversam, cochilam, jogam cartas ou caminham pelo jardim. No meio da tarde, uma pequena merenda é servida para quem quiser, consistindo de bolo e cafezinho, e à noite a ceia é servida, com frios, saladas e sobremesas. Após a ceia, o grupo pode ir ao cinema, tanto na sede do acampamento do Conselho do Petróleo quanto na Vila Recôncavo. Ou, se estiverem alegres, podem passar a noite dançando na sala ao som de músicas populares. As pessoas vão a esses almoços a cavalo, de jeep, caminhão ou, às vezes, para se divertir vão de carro de bois. A hospitalidade tem sido, por centenas de anos, a tradição dos proprietários de terras rurais, que envolvem os convidados com uma superabundância de tudo. Um fazendeiro sempre tem uma mesa de jantar com pelo menos dez lugares, embora só ele e sua mulher morem na casa. Outros têm a reputação de sempre oferecer boa comida para quem quer que apareça na hora das refeições. A redução do tamanho das famílias, o deslocamento de emprego individual na agricultura para as profissões e a mudança deste século para grandes organizações industriais de produção do açúcar causaram algumas diferenças na posse de terras e, portanto, na herança. O Recôncavo não é uma região de títulos de terra imprecisos ou perdidos, como era o caso do sertão. A terra sempre foi escassa por aqui, pois os tão apreciados solos de massapê são bastante limitados. As fazendas de hoje na maioria se dividem em duas categorias: as que estiveram nas mãos de uma mesma família por um século ou mais e as que foram adquiridas, após o fim da escravidão, por recém-chegados ao Recôncavo ou por quem já tinha fazenda e, quando os valores caíram, compraram outras na mão dos credores que haviam tomado de exproprietários devedores. Em ambos os casos, a titulação passava livre e desembaraçada. A forma comum de herança é que a metade do patrimônio vai para a viúva e a outra metade, dividida entre os outros herdeiros. Há um século, era comum os senhores de engenho terem vastas extensões de terras não só no Recôncavo, mas também em outras regiões do estado, além de casas e mesmo prédios comerciais na cidade de Salvador. Além disso, tais famílias acumulavam enormes quantidades de prataria, porcelanas, cristais e enxovais de linho. Era costume esses itens serem distribuídos separadamente entre os herdeiros. Um filho podia receber uma fazenda no Recôncavo, outro um rancho no sertão; uma filha devia receber um completo e valioso serviço de mesa ou, talvez, toda a casa e suas mobílias em Salvador. Fazendas individuais quase não eram divididas, a não ser que fossem grandes bastante para possibilitar a divisão. As divisões de propriedades eram feitas um tanto arbitrariamente pelo patriarca da família, e sempre causavam disputas acirradas pelos herdeiros após a sua morte. Escravos também faziam parte dopatrimônio dividido, embora não fosse raro se alforriar certos favoritos. Em outros casos, o escravo predileto de um filho ou filha podia lhe ser dado. Através de heranças e constantes divisões, as grandes herdades antigas dessas famílias aristocráticas ficaram bem fragmentadas. Hoje, por ocasião de morte em uma família, há sempre uma única fazenda que os herdeiros podem compartilhar. Entretanto, a fazenda raramente é dividida. Em alguns casos quando não há fortes laços emocionais para a com a fazenda, os herdeiros podem vendê-la inteiramente e dividir os lucros. Outra solução tem sido arrendar a fazenda a uma usina, adiando assim a


94 solução final. Ainda outrapossibilidadeé um dos herdeiros assumir a administração da fazenda, pagando aluguel aos demais herdeiros. Uma solução final é frequentemente realizada quando se permite um dos herdeiros comprar a fazenda dos demais, e dessa maneira o bem e suas tradições permanecem na família, muitas vezes continuando a serfrequentada por todos os membros da grande família. O problema da alienação de terra existe somente na fazenda privada. No caso de terras de uma usina, a propriedade é corporativa. A morte do titular das ações em uma corporação não afeta a posse da terra, que continua como antes. Suas ações na corporação são simplesmente divididas entre seus herdeiros. O padrão de família na Classe B é muito diferente do que foi descrito. Embora a família conjugal seja igualmente pequena e mostre a mesma tendência à diminuição, nunca há a extensão ou o vigor da grande família que existe na Classe A. Na Vila Recôncavo, com somente uma exceção, as famílias da Classe B são só unidades conjugais sem tradição de gerações na região, pois ou eles são casais que vieram recentemente para a cidade em cargos públicos ou são “recém chegados” socialmente, o que frequentemente indica que os parentes de um ou de ambos esposos podem pertencer à classe baixa; neste caso, as famílias da classe alta são inclinados a ignorá-los. Nessas famílias conjugais, o marido é a figura central, participando de negócios e atividades sociais na cidade, enquanto sua mulher e os filhos, especialmente as filhas, permanecem em casa. Os filhos normalmente vão estudar na capital e lá permanecem após a graduação, pois há pouca chance de continuar uma linha familiar forte na cidade. Na usina, a coisa é algo diferente, pois os filhos das famílias da Classe B podem assumir altas posições no escritório da empresa, formando assim um grupo de grandes famílias quando eles casam e lá se estabelecem. Esse padrão, entretanto, é aparente apenas na segunda geração, e existem somente três casos. Como resultado da falta de entretenimento público na Vila Recôncavo e da atitude competitiva dos membros da Classe B entre eles mesmos e em relação aos membros mais altos da Classe C, há poucas reuniões sociais, especialmente das mulheres. Nunca há reuniões de grandes famílias na Classe B como aquelas descritas da Classe A. Os homens vão para os bares ou visitam as casas de outros, porém as mulheres e filhas raramente o fazem. As esposas são mantidas ocupadas em parir e cuidar dos filhos. As poucas filhas que são enviadas ao colégio na capital são realmente afortunadas, pois são maiores suas chances de casar e permanecer em Salvador, o desejo da maioria dos jovens. As férias de verão são aborrecidas para elas em comparação com a amplitude das atividades no inverno. Os filhos podem se divertir no verão, vão nadar, andar a cavalo, jogar bola, participar da maioria das poucas festas que acontecem no verão, jogar conversa fora em bares, esperar o navio na ponte e visitar garotas de classe mais baixa. As filhas, ao contrário, não podem fazer nada desses tipos. Passam o tempo em casa com suas mães e às vezes visitam uma amiga casada ou uma irmã para conversar. Para as garotas que ficam na cidade a vida pode ser intoleravelmente monótona. Devem ser extremamente cuidadosas para onde vão, quando e com quem, e o que fazem, pois os mexericos na cidade sobre elas podem ser maliciosos. A reputação de uma garota vista nas ruas à noite sem a companhia dos pais é arruinada. Considera-se que essas moças sejam


95 virgens, modelos de correção, e as forças sociais que as compelem a este ideal são fortes bastante para segurá-las em casa. Em grande parte, algumas das famílias grandes da Classe B tomam como padrão as antigas tradições das famílias da classe alta. O pai é a pessoa mais importante da casa e tem a palavra final em todas as decisões. Sua mulher não é sua igual no sentido social e desempenha um papel muito mais passivo que as mulheres das classes A, C e D. Entretanto, isso está mudando lentamente, pois os casais da geração mais jovem estão começando a partilhar de mais atividades, como ir ao cinema, visitar amigos ou passear em Salvador. Mas isso é um desenvolvimento recente e se aplica somente a quatro casais na cidade. Os outros ainda mantêm o velho padrão pelo qual o homem frequenta atividades sociais enquanto sua mulher fica em casa. Em ocasião de uma festa de despedidas, os convites foram cuidadosamente estendidos a casais na Classe B, por incentivo deste autor. Dos treze casais convidados somente quatro vieram juntos. Em outros casos, somente os maridos vieram. Entre os demais, um dos maridos foi embora, e sua mulher não veio, apesar de que sua mãe, pai e duas irmãs estivessem presentes. Ainda é comum a esposa tanto permanecerdiscretamente silenciosa como desaparecer completamente quando seu marido tem visitas em casa, e entre as famílias mais antigas o pai e seus convidados são servidos separadamente à mesa nas refeições, enquanto as mulheres da casa comem mais tarde sozinhas. A vida familiar na Classe B rural segue em certa parte a da família da mesma classe da cidade. O pai é a figura central na família e toma todas as decisões. Ele viaja por toda a comunidade enquanto sua esposa fica em casa. Os filhos dos administradores, entretanto, raramente são enviados para estudar em Salvador, embora os filhos das famílias da Classe B que moram na usina sempre vão, pelo menos por pouco tempo. Até agora, entretanto, nenhum deles abraçou uma profissão. Como já foi exposto, as mulheres da Classe B rural têm o mesmo tipo de vida que as da Classe C, a quem se associam. As filhas são protegidas cuidadosamente, enquanto os filhos são colocados em posição de vantagem sempre que possível, através da ajuda do dono da fazenda ou do usineiro. Eles podem entrar para o escritório da usina e em vários casos são encaminhados para negócios na fazenda, cuidando de vendas que pertencem a seus pais. Uma filha de Seu Paulo, administrador da Fazenda das Moças, casou-se com o filho do administrador de uma fazenda vizinha quando da estada do autor na comunidade, e seu pai organizou um grande casamento. O cortejo saiu da fazenda bem cedo pela manhã em um carro de bois decorado com papel crepom e seguiu para a Vila Recôncavo. O casamento foi realizado na igreja franciscana. O povo da cidade não compareceu às bodas nem mostrou qualquer interesse. Logo após a cerimônia, a procissão retornou à fazenda, uma viagem de cinco milhas (oito quilômetros – NT). Em cada povoado de fazenda que passava o cortejo parava em frente à casa do respectivo administrador, e cálices de cachaça eram oferecidos aos convidados, e brindava-se à noiva e ao noivo. Ao chegarem à nova casa de tijolos que o pai do noivo havia presenteado o casal, a noiva foi para a cozinha ajudar sua mãe e a outras mulheres que preparavam o almoço. Então, ela serviu cálices de vinho aos convidados. Com exceção de Dona Sinhá e deste autor, todos os


96 convidados eram administradores das fazendas vizinhas. As mulheres convidadas eram parentas da noiva. O almoço consistiu de tudo o que a região tinha para oferecer: peixe, camarão, saladas; assados de carne, porco, carneiro e peru; batatas e farinha. Seguiram-se frutas, sobremesas e café. Depois que todos os homens comeram e foram conversar na sala de estar, a noiva e as outras mulheres sentaram na sala de jantar para comer. Em uma amostra de dezoito famílias da Classe B (onze urbanas e sete rurais), quinze casais eram casados tanto no civil quanto no religioso. Os outros três simplesmente viviam juntos, emestado conhecido no Nordeste do Brasil como amasiado. Na Classe C, uma amostra de noventa e cinco famílias (quarenta e uma urbanas e cinquenta e quatro rurais) mostrou vinte e três casados no civil e no religioso, trinta e quatro casados somente na igreja e oito somente no civil. Oito dos casais da amostragem não responderam à questão. Na Classe B, um companheiro em cada dos três casais vivendo no estado de amasia foi casado antes com alguém a quem ele ou ela tinha deixado. Dezenove casamentos civis foram realizados em todo o município (população acima de 11 mil) durante o ano de 1950.Eles estão mostrados abaixo por grupos de idade. Cinquenta casamentos religiosos foram realizados no mesmo ano nas cinco freguesias assistidas pelos franciscanos. Em razão das diferenças na maneira de registrar os dois tipos de casamentos, entretanto, nenhuma correlação pôde ser conseguida entre muitos casamentos que ocorreram tanto no civil quanto no religioso. Não há estatísticas disponíveis do número total de uniões maritais formadas durante anos, então é impossível se saber a porcentagem de uniões de amasiados em toda a população. QUADRO 8 Casamentos civis por grupos de idade Homens

Mulheres

Maiores de 18

1

menores de 15

2

18-22

4

15-19

6

23-27

6

20-24

7

28-32

5

25-29

2

33-37

1

30-34

1

38-43

2

35-39

1

19

19

Há ocasiões em que um casal casa na igreja após ter vivido junto por muitos anos, quando seus filhos são as principais testemunhas do casamento. Tal casamento sempre dá ao casal um


97 sentimento de satisfação e bem-estar, pois há às vezes uma certa vergonha ligada ao estado de amasia, especialmente quando é necessário preencher formulários oficiais, como registro de nascimento, recenseamento ou registro no Instituto da Vila Recôncavo. Uma mulher que pode dizer “meu esposo” ou “meu marido” sente uma certa superioridade sobre a que só pode dizer “meu homem”. A atitude em relação às crianças na Classe C é bem ambivalente. Mulheres casadas com dez ou doze filhos podem dizer que nunca os quiseram, ou simplesmente dizem que “foi Deus que mandou”. Frequentemente, meninas rezam para que sua mãe queira ter outro filho para que elas possam cuidar. Todas as garotas, desde os sete até os treze, quatorze anos, parecem gostar de crianças. Há poucos homens que não gostam de crianças. Apesar da mãe dizer que não as quer, ela sempre parece satisfeita quando elas nascem, e crianças, especialmente meninos, são logo bem amados e mimados. Parte daconversa entre as mulheres é sempre sobre outra mulher que espera um filho, e muitas mulheres com cinco ou seis crianças acusam outras de parirem “como ratos” porque essas outras têm oito ou nove. Não há uso de contraceptivos na Classe C, embora a maioria tenha conhecimento. Foi destacado pelos homens, com um sorriso, que tais coisas não são encontradas na cidade porque a farmácia do Instituto é administrada por um frade. Contraceptivos podem ser obtidos em Centro e em Salvador, mas são caros, e os homens se dizem embaraçados ao pedir eles. Um jovem casal solicitou de São Paulo o envio de algumas injeções para a mulher usar para prevenir a concepção, mas não adiantou. O casal tinha encontrado um anúncio das injeções em uma revista, e, uma vez que eles queriam limitar sua prole à criança que já tinham, tentaram outros meios. Agora, eles têm três crianças, a despeito dos esforços de prevenção. Também há remédios locais que supostamente produzem abortos. Consistem em chás de ervas e na maioria supõe-se que sejam eficazes somente após o terceiro mês de gravidez. “Alumã”, “raiz de coqueiro”, “orelha de pau”, “pitanga”, “raiz de mil-homem” e “melão de São Caetano” são as ervas consideradas eficazes. Poucas mulheres vão admitir terem usado, embora todas as conheçam. Números de abortos naturais são impossíveis de obter, pois não há registros feitos. A mãe não vai ao médico, ela simplesmente enterra “tal bobagem” no quintal. As que admitem ter tido abortos dizem que aconteceram com uma queda, ou por causa de um grande susto, como se deparar com uma cobra na estrada. Muitas mulheres não acompanham seus períodos menstruais, e de acordo com o médico da cidade a higiene pessoal delas deixa muito a desejar. Muito pouca ou nenhuma informação é diretamente passada entre pai e filhos ou mãe e filhas sobre assuntos sexuais. Cada geração é deixada para descobrir por si mesma. Há poucas aberrações sexuais masculinas na cidade, conhecidos como “veados” (gíria para homossexuais), e eles são bem notórios. Um pescador de meia idade, Patão, é o centro de tais atividades. Ele é casado e tem vários filhos. Quando sua mulher descobriu seuscasos extraconjugais pegou as crianças e foi embora de casa, extremamente envergonhada. Isso aconteceu anos atrás, e desde então esse homem continuou com suas atividades, principalmente com homens solteiros, embora haja pelo menos três homens casados que também o procuram. A desculpa deles é que não há bastantemulheres na cidade, e já que não há prostitutas eles vão com Patão, embora não gostem. Os casados dizem que é por causa de suas mulheres serem doentes ou terem ido embora, e eles não querem nenhuma complicação


98 com alguma garota. Patão, entretanto, delicia os grupos de mexericos diários com seus casos, detalhe por detalhe, e sempre se sabe quem o visita. Esses homens não se escondem e continuam sua vida normalmente junto com os outros. Há também dois casos de homens ligados ao candomblé que se suspeita tenham tendências homossexuais, mas não há informações definidas sobre eles. A opinião pública, porém, é contra a homossexualidade, e houve mesmo um caso em que se tomou uma providência. Um homem casado “pegou um menino” no banheiro dos homens em uma fonte. Normalmente, os homens entram no banheiro sozinhos, os outros aguardam do lado de fora até que o outro saia. Dessa vez, o homem já encontrou o menino lá e entrou com ele. Mais tarde, o garoto contou o que tinha acontecido, a vizinhança se enfureceu e obrigou o homem a deixar a cidade, pelo menos temporariamente. A única queixa do menino foi não ter sido pago! Os garotos no início da puberdade às vezes se referem jocosamente ao “clube dos veados”, insinuando suas experiências exploratórias com um outro, e o que eles tentaram quando foram juntos a Salvador ou a Centro, onde, de acordo com eles, as ruas são cheias de veados. Tais relatos não foram encontrados em relação às pessoas do campo, mas lá era comum a denúncia de jovens serem “viciados nas mulas”. Um outro caso em uma usina distante se referia a duas mulheres que moravam juntas, uma muito forte, grande e barbada, e muito ciumenta com quem quer que olhasse para a outra. Este caso era bem conhecido e considerado hilário pelos vizinhos. A vida familiar na Classe C é caracterizada pela falta de privacidade. A casa da família nessa classe tem no máximo dois quartos, muitas vezes só um onde todos os membros dormem. É comum para um casal jovem ter somente uma cama quando casam, onde ele e mais o primeiro e segundo filho dormem. O uso de berço para bebês é raro. Normalmente, o bebê dorme com seus pais, e quando cresce, ou quando uma nova criança chega, ele é relegado ao pé da cama. São grandes e implacáveis as queixas sobre crianças que molham a cama, o que muitas fazem por muitos anos. Muitas mães dizem que tentam acordar várias vezes na noite para segurar os bebês para fora da cama para permitir que eles façam suas necessidades naturais, o que torna a vida mais agradável para os outros na cama. Pela manhã, o chão é totalmente lavado. Durante o dia os meninos usam apenas calções, ou camisas e calções, dependendo do tempo. As meninas sempre usam um vestido. As crianças na fase de engatinhar ficam muito sujas por causa da quantidade de poeira trazida das ruas para dentro de casa, embora isso agora esteja mudando como resultado da pavimentação. Os bebês, entretanto, parecem ter a propensão de entrar no saco de carvão que fica junto ao fogão da cozinha, e saem de lá empretecidos. Tomam banho duas vezes ao dia, de manhã e à tarde, a princípio com água fria para acostumálos com a frieza da água que usarão pelo resto de suas vidas. Dar banho na criança é considerado um prazer tanto pela sua mãe quanto pelo bebê, assim como amamentá-lo. Se a criança de pais de pele clara apresenta o “jenipapo” (uma mancha azulada perto da base da espinha, às vezes conhecida como “mancha azul mongol”), as mães tomam cuidado para não deixar as visitas verem, já que tal mancha é considerada forte indicação de proximidade com ascendente negro. Ela desaparece após a criança fazer sete ou oito anos. Os homens e meninos mais velhos da Classe C tomam seus banhos diários pela tarde, em uma das duas fontes existentes atrás do convento e fora da vista de todos ou em um cercado de


99 madeira que foi construído junto às cisternas do Curtume. Ficam em pé sobre um estrado de madeira e jogam um pequeno balde amarrado a uma corda na água lá embaixo, que então é içado e a água derramada sobre eles, voltando para dentro a espuma do sabonete e qualquer sujeira que escorra da pele. Muitas vezes uma mulher que pega água despe seu filho no local e joga o balde de água sobre ele. Isso não acontece depois que o menino atinge cinco ou seis anos, e nunca é feito com uma menina de qualquer idade. Mulheres e meninastomam banho diário de esponja nas suas cozinhas no fim da tarde, antes de começarem a preparar a janta. Nenhuma das casas tem instalações sanitárias que não sejam em local isolado no quintal. Durante uma pesquisa sobre instalações domésticas na cidade, quando se colocava a questão “Você tem um toalete?”, a resposta era dada com sorrisos: “Para quê?”. (Mas praticamente todo mundo sabe o que é um toalete, e há diferentes tipos na cidade, pertencentes a casas da classe mais alta. A construção do tipo descarga, com fossas adequadas, já é conhecida há muitos anos.) Após o banho diário, a maioria das pessoas veste roupas limpas com as quais vão dormir, embora roupas de dormir vão desde o vestuário diário até longas camisolas, calções ou nada. Asvestes diáriasdos homens consistem em calça, camisa e sapatos de madeira (tamancos), ou talvez calçados de couro. As mulheres usam um vestido, uma combinação e estão normalmente descalças. Certas ocasiões exigem também roupas íntimas, meias e sapatos. Geralmente elas demonstram grande modéstia quando na presença de outras pessoas. Poucos homens barbeiam-se a si próprios, para isso vão ao barbeiro, assim como para cortar os cabelos. Há várias mulheres especializadas em alisamento de cabelo, o que fazem com chapinha, embora muitas mulheres e garotas nessa classe fazem seu próprio alisamento. Tanto na Classe C quanto na Classe B, o pai é a pessoa dominante. Ele é quem governa a casa. É o único que é servido à mesa, que tem suas roupas lavadas e passadas e que sai mais de casa. Ele passa a maior parte de seu período de lazer em um dos vários armazéns, conversando e às vezes bebendo cachaça; ou fica em umas das poucas esquinas sombreadas jogando dominó com amigos; ou também em um bar jogando sinuca e prosando. Normalmente, ele vai sozinho ao cinema, ou pelo menos com a sua família, embora os altos escalões das famílias da classe sempre vão juntos ao cinema e à igreja. Há uma família com inclinação musical e passa as noites em casa formando uma pequena orquestra. Se houver um samba na casa de alguém, muitos homens dessa classe aparecem para assistir, enquanto os participantes geralmente são mulheres solteiras e garotas da mesma classe. Os homens comentam sobre os atributos físicos de uma mulher enquanto ela dança no meio da roda. Essa é uma das maneiras mais comuns em que uma garota é “examinada” e observada no seu desenvolvimento. Cedo ou tarde algum homem se apaixonará por ela, e se ela não for bem vigiada pela família ele terá um caso com ela. Quanto ao pescador, ele passa a maior parte do tempo pescando ou cuidando do equipamento, pois as redes precisam de uma boa dose de atenção. Como as funções do pescador seguem as marés, suas horas de trabalho diferem dia a dia. Sempre vão dormir cedo e levantam-seàs três ou quatro horas da manhã. As mulheres, por outro lado, seguem uma rotina diária mais regular, fazendo cedo o café, arrumando as crianças para a escola, saindo para pegar água e lenha, lavando e passando roupas e cuidando das crianças pequenas. Além disso, se possível, elas tratam o xangó para ajudar a suplementar a renda familiar e vão à feira em Centro nas segundas-feiras quando seus maridos não podem ir. As mulheres dos pescadores também têm que cozinhar para seus


100 maridos várias vezes ao dia, pois geralmente eles trazem bastante peixe para uma ou duas refeições. É a mulher que vai ao armazém comprar farinha, café, feijão, arroz etc. Passam sempre as noites costurando, fazendo ou emendando uma rede para seu marido ou para outro pescador. Se houver um samba elas comparecem para assistir, mas não ficam por muito tempo; porém se for uma cerimônia de candomblé, elas passam a noite toda no terreiro, especialmente se são participantes. Nesses casos, elas sempre levam seus filhos e os põem para dormir lá mesmo ou então os deixam em um banco para assistir a cerimônia. O Instituto São Francisco acabou com a parteira prática, também conhecida localmente como “curiosa”, vez que uma das primeiras providências tomadas,quando abriu em 1945, foi enviar jovens a Salvador para treinarem como parteiras. Até então só havia mulheres mais velhas que, pela experiência ou por necessidade, realizavam os serviços de parteira. Na zona rural, a parteira não treinada é ainda importante, pois a parteira clínica ainda não se faz presente para a maioria da população que vive lá. Quando chega a hora do nascimento de uma criança, uma vizinha ou mesmo uma parenta vai para a casa cozinhar, limpar e ocasionalmente ajudar com o parto. O pai continua com suas ocupações normais para, como dizem as mulheres, “ganhar bastante para alimentar outra boca”. Em alguns casos, o homem ajuda nos trabalhos domésticos quando está em casa, e há muitos homens na cidade que são bons cozinheiros e sabem cuidar das crianças. Em outros casos, a parteira pode ficar vários dias na casa, fazendo os trabalhos domésticos. Entretanto, mais recentemente, em razão da morte de uma parteira e da demissão de duas outras treinadas pelo Instituto, as outras duas ficam tão ocupadas que não podem permanecer muito tempo em cada casa. Uma queixa comum nesse caso é que a parteira tenta apressar o parto, massageando a barriga da mulher e tentando induzir o nascimento antes do tempo normal. A parteira mais popular da Vila raramente tem tempo para descansar. Ela já está nos setenta anos e fica em estado de exaustão por ter que cuidar da casa quando há um parto. Ela dorme lá, normalmente em colchão de capim, já que a mãe ocupa a única cama da casa. Ela atende também na zona rural, como nas ilhas vizinhas à cidade. A remuneração de seus serviços vai de cinquenta cruzeiros a nada mais do que um simples agradecimento, mas com o entendimento de que quando ela adoecer a família vai lhe ajudar, já que mora sozinha. Se uma criança batizada morre antes dos sete anos, é chamada de anjo e vai direto para o céu, mas se ela morre antes dessa idade ainda não batizada é chamada de pagã e vai para o limbo. O “anjo” é levado pelas ruas em um caixão aberto para todos verem. A tampa é colocada no caixão depois que estiver na cova e todos os presentes jogam terra em cima com uma pá. A postura em relação à morte de uma criança é um misto de alegria e tristeza, e às vezes só de alegria.Se a mãe e o pai não gostavammuito da criança, eles se sentem tristes; caso contrário, o sentimento normal é que a criança morta está em melhor condição, principalmente por ter se tornado um anjo. A diferença de toques dos sinos da igreja também mostra isso, pois o toque para uma criança é de um som curto, quase alegre, enquanto que o toque para um adulto é longo, triste. Se se verificar que uma criança não vai resistir ao nascimento, providencia-se o seu batismo logo que possível. Mas se ele for saudável, é batizado assim que a família possa fazê-lo. O batismo inclui uma pequena festa com a família e os padrinhos. Antigamente, se uma criança


101 morria antes de ser batizado seu túmulo era às vezes benzido no dia de São João pela mulher que fora escolhida para ser sua madrinha. A família e os padrinhos iam ao cemitério à meianoite, reuniam-se ao redor da sepultura, que era aspergida com água benta pela madrinha da criança. Entretanto, essa prática já acabou. De acordo com os registros da paróquia, 705 crianças foram batizadas no município no ano de 1950; 320 delas pertenciam à comunidade de Vila Recôncavo. O registro civil, contudo, mostra somente 276 pessoas de todas as idades registradas no município no mesmo ano. Uma criança raramente é registrada logo após seu nascimento, ou mesmo na época do batismo, mas só quando a família quiser. Às vezes, uma pessoa pode fazê-lo por si mesmo, quando adulto, ao precisar de uma certidão de nascimento. A situação está mudando gradualmente, quando a vida se torna mais enredada pela burocracia oficial, e as pessoas estão registrando suas crianças mais frequentemente do que acontecia antes. Os membros da Classe A e B são muito mais cuidadosos sobre esse assunto que os das classes mais baixas. Conforme a lei, o médico deve assinar a certidão de óbito antes que a permissão para se enterrar alguém possa ser obtida, por isso os registros de mortes são mais acurados que os de nascimentos. O registro civil referente à comunidade de Vila Recôncavo lista 111 mortes em 1950, cinquenta e um homens e sessenta mulheres. A relação por idade é a seguinte:

QUADRO 9 NÚMERO DE MORTES POR GRUPOS DE IDADE, 1950 Abaixo de 1 ano

36

1-4

20

5-9

1

10-14

4

15-19

4

20-29

10

30-39

10

40-49

6

50-59

9

60-69

4

70-79

3

80-89

1


102 90-99

2

Acima de 99

1

Total

111

É evidente que os primeiros cinco anos são aqueles em que a taxa de mortalidade é maior. De acordo com os registros do médico local, as causas mais frequentes desses óbitos são diarreia e enterite (7 casos), coqueluche (7 casos), nefrite crônica (5 casos), bronquite aguda (4 casos). O “mal de sete dias” (infecção umbilical em recém-nascidos) foi a causa de somente duas mortes, e só um aborto natural foi registrado, como também um natimorto. Conforme o mesmo médico, muitos adultos morrem de problemas no coração e nos rins que de quaisquer outras doenças. O método mais popular para se dar nomes aos filhos é a escolha em um almanaque de um que se adeque à fantasia dos pais. No Brasil, muitas empresas brasileiras publicam anualmente almanaques que são amplamente distribuídos. Além de divulgar feriados nacionais, dias santos e vários outros tipos de calendários, incluem listas de nomes, geralmente de santos. Enquanto nas classes mais altas as crianças levam nomes de seus pais e avós, nas mais baixas dão às suas proles toda a sorte de nomes exóticos retirados dos almanaques, como Estanislau, Enoque ou Inácio. Algumas vezes o nome é escolhido porque é o nome do santo do dia em que a criança nasceu. Há também uma boa quantidade de nomes mais comuns, como Antonio, João, Lourdes e Maria. Mas se uma criança desenvolve alguma característica peculiar, tanto física quando pessoal, ele ou ela será chamado por algum termo descritivo baseado na peculiaridade. Muita gente tem apelidos como Patão, Barco Velho, Cuspe Grosso ou Gatinho, e com o tempo o seu nome próprio fica esquecido quase que inteiramente e é usado apenas em ocasiões formais, como na assinatura de um registro. A forma diminutiva do nome também é popular, e é usada nas pessoas da classe mais alta, por exemplo, Dr. Zeca (diminutivo de Dr. José). Em alguns casos um homem é mesmo conhecido pelo nome de sua mãe ou sua mulher, por exemplo, José de Engrácia. Há grande liberdade na escolha dos padrinhos. Quando possível, pelo menos um dos padrinhos será um membro da classe mais alta, que irá ajudar a criança quando necessário, especialmente quando o afilhado, ao crescer, queira ir estudar na capital ou entrar para o Exército ou Marinha. A madrinha pode ser membro da família da criança, ou em alguns casos a parteira. Em muitos casos a esposa escolhe a madrinha, especialmente se ela suspeita que seu marido está dando muita atenção a alguma outra mulher. Nesses casos, ela pede àquela mulher que seja a madrinha; esta dificilmente recusa, pois o pedido é considerado uma honra. Ao se tornar madrinha, a mulher é colocada efetivamente fora do alcance do marido, pois não podem haver relações sexuais entre compadre e comadre. Esta é uma estratégia comum de mulheres que têm irmã solteira morando em casa e refreia qualquer intenção amorosa por parte do marido ou da irmã. Entretanto, houve casos em que esta regra foi quebrada. Um casal que quebra este tabu é altamente criticado pelo resto da comunidade, pois a esposa, se


103 descobrir, conta tudo a seus amigos. Em um caso que ocorreu na Vila Recôncavo durante a estada do autor, a mulher ficou tão envergonhada e assustada pelo pecado que se suicidou bebendo veneno de rato. Na zona rural, enquanto o homem é reconhecidamente a pessoa dominante na família, é a mulher quem decide a maioria das atividades diárias. As crianças ficam com ela a maior parte do tempo, ajudando-a em casa e trabalhando com ela na roça, tanto meninas quanto meninos. Quando recentemente as escolas abriram em várias fazendas, foram as mães, e não os pais, que insistiram que as crianças frequentassem. Quando uma mulher se junta com um novo marido e leva seus próprios filhos, ela sempre deixa claro que as crianças são dela, e não dele. Ela não admite nenhuma interferência de seu marido sobre como disciplinar seus filhos. Existem sempre as melhores relações possíveis entre o padrasto e as crianças, mas ele nunca dá ordens a elas. A mulher do campo parece, em todos os casos, ser mais exigente com seus filhos que a mãe da cidade. Não é raro ela bater em seus filhos com cipó caboclo, mesmo se já forem homens crescidos, enquanto isso nunca acontece na cidade. Ela também estende seu controle sobre eles mesmo quando já estão casados, aconselhando-os e ajudando-os quando pode, e criticando-os se ela não gosta de alguma coisa que eles façam. No final da adolescência, os meninos ficam interessados em namorar, mas as meninas sempre começam mais cedo. Se um rapaz vê uma garota que lhe interessa, ele arruma um jeito de encontrá-la logo que possa na rua ou na ponte, e por olhares ou sinais mostra-se claramente que está interessado. Ou, se sabe escrever, pode enviar à garota uma mensagem por um amigo comum. Na Vila Recôncavo, o posto telefônico é um local popular para mostrar seus interesses, pois a operadora é uma jovem moça altamente respeitada pela maioria das pessoas na cidade e bastante querida pelos jovens. Eis um típico exemplo de comunicação que passa por suas mãos:

“Vila Recôncavo 7 de janeiro de 1951 Dona Terezinha, saudações: Estou absolutamente convicto que você não tem dúvidas da sinceridade de meu amor, que é sempre manifestado claramente em minhas cartas e em meu rosto quando a vejo. Tenho igualmente a convicção de ter a felicidade de possuir o seu amor, mas por enquanto há algo faltando para completar minha felicidade. É falar com você, ouvir de seus lábios a confissão sincera do seu amor, sentir você perto de mim por poucos minutos. Peço-lhe que me dê permissão para falar com você, dizendo o dia e local onde possamos nos encontrar.


104 Certamente você não vai se arrepender em me dar este prazer, pois você verá que eu sei como retribuir sua confiança com respeito e honestidade. Ansiosamente aguardando sua resposta, sou seu sincero admirador. Desculpe os erros. Fim. Themístocles Filho”

Esta foi a primeira experiência da garota com esse tipo de coisa, então ela pediu a uma amiga mais velha para escrever para ela a resposta. Levou uma semana para a resposta ficar pronta e ser levada ao rapaz. Durante esse tempo, as garotas que conheciam o caso discutiram as possibilidades: a aparência dele, sua mensagem, seus amigos etc., até nada ser deixado de fora. Geralmente, os detalhes de um caso desse são partilhados pela garota com suas amigas. Eis a resposta que foi enviada:

“Vila Recôncavo 10 de janeiro de 1951 Caro cidadão: Inicialmente envio meus desejos de felicidades e eles podem se tornar parte de tudo que está em sua imaginação, leal e sincero amigo. E agora quero acusar o recebimento de sua carta, que no primeiro momento foi fonte de indescritível alegria em meu coração. Depois, surpresa como toda garota jovem, me indaguei sobre o conteúdo de tudo que você escreveu para mim tão lindamente. E, embora confusa com as desilusões de muitas amigas minhas, penso que minha resposta correta seja um encontro entre nós dois para que possamos nos conhecer melhor, e se nos entendermos bem nosso destino pertencerá a Deus. E assim me apresento. Therezinha”

Esse caso continuou por várias cartas antes que a garota marcasse o encontro definitivo. Nesse ínterim, os dois se cruzavam nas ruas, no cinema e na ponte sem se falarem. Por fim, a garota, que só tinha quatorze anos, perdeu a coragem e o caso se encerrou antes de um encontro. Quando tal correspondência culmina com um encontro real, ele é facilitado ou dificultado pelo grau de vigilância exercida pelos pais da garota. Frequentemente, o namoro é escondido deles completamente, somente as melhores amigas da garota têm qualquer conhecimento do andamento. O encontro pode finalmente ser arranjado na casa de uma amiga mais velha. Se os


105 dois genuinamente se interessam um pelo outro então permitem que o fato se torne público, e se os pais aceitam, eles se encaminham oportunamente para o casamento. Se não, a garota mantém o namoro em segredo, e após um período de flerte tem um caso com o rapaz e fica grávida. Toda garota que recusa comer pimenta é suspeita imediatamente de gravidez, e os questionamentos são feitos. Quando uma família de Classe C deseja celebrar algum acontecimento, como nascimento, aniversário ou festejar os santos gêmeos Cosme e Damião, as amigas ou parentas da mulher vão lhe ajudar nos preparativos. Convidados são chamados pelo marido. O preparo das comidas deve ser feito com as mãos: matar as galinhas, depená-las e limpá-las, descascar o feijão, limpar os camarões e peixes, fazer os bolos de farinha e preparar os populares licores com a infusão de variadas frutas em garrafas de cachaça e calda de açúcar. Em tais festas, pratos baianos tradicionais como vatapá, acarajé, caruru, abará, cuscuz e muitas moquecas são servidos. Todos eles são apetitosos, mas levam muito tempo de preparo e não podem ser feitos com muita antecedência, pois não há meios de conservar os alimentos. Se a família não é rica raramente dá festas; muitas delas nem pensam em dá-las. Danças são importante parte das festividades. Os homens tocam os tambores, pandeiros e violões, enquanto as mulheres cantam e dançam samba. Na zona rural, dança de casais é rara, mas na cidade é um costume comum. A família cuida de uma mãe idosa, de um pai ou mesmo de avós, ou qualquer outro parente de ambos os lados. Tal pessoa é bem cuidada dentro das condições da família. Muita gente em Vila Recôncavo é generosa para com os menos afortunados e ajuda-os como pode. Há pouca ou nenhuma queixa se a família tem que tomar conta de um parente doente ou idoso; dizem que isso pode acontecer com eles um dia e eles terão que ser cuidados. Talvez o idoso os tenha ajudado de alguma maneira no passado quando necessitaram e agora estão recompensando. Ou se algum idoso quer viver sozinho, um grupo de vizinhos e parentes ajuda por longo tempo na preparação da alimentação ou na compra de mantimentos ou outras necessidades. Em Vila Recôncavo não há casos de pessoas idosas serem enviadas para uma instituição pública. Órfãos ou crianças que não podem ser mantidas pelos pais por dificuldades financeiras são criadas por um membro da família ― uma tia, ou tio, ou talvez avós, se ainda estiverem vivos, ou mesmo padrinhos. A família de Classe D apresenta um quadro diferente de qualquer outra classe social em Vila Recôncavo. É quase o reverso da família de classe alta patriarcal, pois na Classe D a mulher é que é a chefe da família. Em Vila Recôncavo, 90 das 290 famílias levantadas pelo recenseamento de 1950 têm como chefe a mulher. Destas, trinta se dizem viúvas, dezessete são casadas mas os maridos vivem fora e quarenta e três são solteiras. É difícil determinar com certeza quantas mulheres que se declaram viúvas ou casadas o são na verdade. É comum na Vila Recôncavo mulheres que viveram uma relação não marital com um homem e depois se separaram dele dizerem que são viúvas. Também é difícil estabelecer a partir desses registros quantas relações não maritais estão envolvidas. A composição dessas famílias quase desafia uma classificação. Cinquenta e cinco são compostas de mães e filhos, incluindo, em alguns casos, parentes e um agregado (termo do recenseamento oficial que designa alguém que mora permanentemente na casa mas não paga


106 suas despesas), assim como hóspedes (designação do recenseamento de alguém que está em casa temporariamente e que não paga suas despesas). Das cinquenta e cinco casas com crianças, vinte e quatro são representadas por chefes de família mulheres solteiras. Oito dessas listam agregados aproximadamente da mesma idade que a mulher, o que pode indicar, embora não necessariamente, relações de amasia. As outras famílias são compostas do que parecem ser separados de outras famílias, maritalmente ou não: pessoas mais velhas que vieram de suas próprias uniões conjugais, jovens cujas famílias nunca formaram unidades legais ou foram desfeitas, agregados e hóspedes. Essas noventa famílias formam um total de 353 pessoas, que podem ser listadas como: 55 mães 142 filhos 37 netos 35 parentes, incluindo mães, tias, primos, irmãs e irmãos, sobrinhos e sobrinhas 46 agregados e hóspedes. A família de Damiana é um bom exemplo da Classe D. Ela, que está agora em seus cinquenta anos, manteve uma relação prolongada com um homem casado quando era jovem, e teve três filhas. Ao ficar órfã naquela época, ela pegou suas crianças e foi morar na casa de uma grande amiga que vivia uma relação não conjugal com um homem. Quando Maria José, uma de suas filhas, tinha dezesseis anos foi deflorada, e Damiana quis, com a influência de um padrinho, forçar o rapaz responsável a casar com a menina. Entretanto, Maria José não quis viver com ele, e já que nenhum menino nasceu do relacionamento ela foi para Salvador onde arranjou emprego. Lá ela encontrou Vavá, de quem gostava muito. Ela morou com ele por onze anos e teve três crianças. Nesse período, Vavá teve casos com várias outras mulheres que lhe deram duas outras crianças. Finalmente, ele se cansou de Maria José e a mandou embora de volta para a casa de sua mãe. Ela foi levando seus três filhos. O padrinho de Damiana aceitou receber Maria José, com seus filhos, e mais Tatá, outra das filhas de Damiana, que, de sua parte, teve seis filhos ilegítimos, em uma casa que ele possuía sem cobrar aluguel. Sem filhos, ele tomou uma filha de cada uma das moças para morar com ele. Logo após terem as três mulheres se acomodado em casa, Vavá cansou-se de sua nova companheira e quis que Maria José voltasse para ele, o que ela se recusou a fazer. Às vezes ele também lhe pedia dinheiro, já que estava desempregado. Ela, empregada, sempre lhe dava algum, explicando que não era para ele mas para as duas filhas de Vavá, pois ela imaginava que estavam passando fome. Em quase todos os casos de dissolução de uma união de não casados as crianças permanecem com a mãe. Isso também acontece quando a união resulta em um filho. O pai nunca assume a responsabilidade das crianças. Além disso, como já foi dito anteriormente, as crianças assumem o sobrenome da mãe e não o do pai. Muitas vezes a separação ocorre porque o


107 homem vai viver com outra mulher, que não aceita os filhos da união anterior, pois ela pode ter os seus próprios com ele ou com outro homem. Por outro lado, as mulheres de Vila Recôncavo dizem que ficariam envergonhadas se deixassem as crianças irem embora e serem criadas por outra mulher, exceto no caso de padrinhos, em cujas casas espera-se um tratamento pelo menos tão bom quanto a mãe poderia proporcionar. Algumas vezes mulheres dessa classe têm casos com homens casados que não deixam suas esposas e filhos. Raramente uma mulher tem mais de um amante ao mesmo tempo, e normalmente fica com o mesmo homem por longo tempo. Embora o homem não assuma a responsabilidade pelos filhos resultantes, ele tenta às vezes ajudar a mulher; mas a sua dedicação primordial é para com sua própria esposa e filhos. Exceto se o casamento for formal, os filhos são sempre considerados pertencentes à mãe, e o fato mais notável sobre o lar mantido pelas mulheres é que a mãe e os filhos se ajustam para permanecerem juntos o quanto puderem. Normalmente uma mulher sem marido encontra trabalho como lavadeira ou passadeira, ou secando o xangó, três ocupações que a permitem manter os filhos perto dela. Quando se emprega como cozinheira ou servente em alguma casa, é comum ela levar seus filhos para o trabalho e deixá-los brincando no quintal ali perto. Em tais casos, eventualmente as crianças recebem ajuda do empregador, o qual, pela contínua presença, delas se afeiçoa e procura fazer alguma coisa por elas. Se isso não acontece, a própria mãe se encarrega do futuro dos filhos. Em regra, os meninos dessa família deixam a cidade tão logo crescem, arranjando emprego em Salvador. As meninas, por outro lado, permanecem mais tempo com suas mães. Se vão embora, sempre voltam, como Maria José, com seus próprios filhos. Em razão da pobreza desses lares, há pouca ou nenhuma condição de cuidar de pessoas idosas, e é dessa classe que saem as muito poucas mulheres mais velhas que mendigam por comida, remédios e outras necessidades. As pessoas da cidade em geral são extremamente generosas em vista de suas próprias condições financeiras, e elas fazem o que podem para ajudar. Na Vila Recôncavo não há mendigos “profissionais”; não se vê ninguém sentado na esquina pedindo esmolas. Em vez disso, há um espírito orgulhoso de independência, e ter que ir de porta em porta (ou de cozinha em cozinha) pedindo comida ou dinheiro é altamente detestável. Famílias enviam regularmente comida para um idoso a fim de evitar o contato cara a cara com o necessitado. Pedidos são feitos também através de terceiros, muitas vezes uma criança, para evitar a relação pessoal. A Classe D não existe na zona rural, por razões já citadas, particularmente por causa da pressão exercida por donos da fazendas e seus administradores. Além disso, também as mulheres só podem se sustentar e a seus filhos em áreas urbanas mais populosas, onde encontram um trabalho que as permita estar perto de seus filhos.

8 Religião


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Durante o período colonial e o Império, a religião ocupou uma grande parte das vidas da aristocracia rural. A cidade de Vila Recôncavo ganhou um convento franciscano, uma grande igreja matriz da paróquia de São Gonçalo e a capela da Ordem Terceira de São Francisco. Na zona rural da comunidade, cada fazenda tinha a sua própria capela, que fazia parte da casa do proprietário, e seu próprio capelão, que cuidava das necessidades espirituais das respectivas famílias e seus escravos. Muita riqueza dos donos de terras foi usada para construir igrejas magníficas, para patrocinar procissões religiosas e sustentar irmandades religiosas de leigos. Neste século, entretanto, o catolicismo não mais se constitui na religião oficial do Estado, os proprietários de terras não mais sustentam igrejas na cidade como faziam, e a Ordem Terceira de São Francisco fechou as portas na Vila Recôncavo. Hoje, membros da Classe A limitam sua ajuda a igrejas que frequentam em Salvador, deixando a igreja local à mercê de Deus e da “gente pequena” da cidade. Visitas dos franciscanos para celebrar missas e orientar para a primeira comunhão tomaram o lugar do capelão das fazendas e de suas capelas. Os padres dizem hoje que o povo da comunidade não tem base intelectual para entender ensinamentos ou crenças religiosas. Consequentemente, dizem que agora o povo procura, o mais que possível, se adaptar a modelos e rituais fora da igreja e abstém-se de frequentar cultos africanos. Além da estrutura formal da Igreja Católica, surgiram, especialmente no século XIX, muitas casas de cultismo africano, chamado nesta região de candomblé. Os aderentes a esse culto, na maior parte mulheres escravas e ex-escravos, seguiam uma longa rotina para se tornarem praticantes nos vários terreiros e gastavam grandes somas de dinheiro, de acordo com a lenda, com braceletes, colares e roupas exigidas. Todavia, os sacerdotes desse culto têm a mesma queixa da dos católicos. Dizem que os jovens não têm compreensão ou paciência necessária para se preparar para a devoção nos terreiros. As mães-de-santo mais velhas deploram a degeneração de algumas dessas casas e a introdução de espíritos de caboclos, que agora tomam o lugar dos orixás africanos. O espiritismo recentemente foi introduzido na comunidade. Até agora tem se limitado a pouca gente, embora seja muito popular em Salvador. O uso do sobrenatural, conforme descrito em Cunha, de Willems(1), não acontece na Vila Recôncavo. Em Cunha, os santos são invocados para mandar chuva sempre que a safra parece estar em perigo. Mas na Vila Recôncavo, que fica em uma zona semitropical chuvosa, não há necessidade de tais invocações. Além disso, há culturas de interesse econômico em larga escala e inexiste produção de subsistência da qual o povo dependa diretamente para seu sustento. (1) Emilio Willems, Cunha: Tradição e transição em uma cultura rural do Brasil (São Paulo, 1947), Capítulo 7.

A Igreja Católica na Vila Recôncavo


109 Durante o período colonial cada paróquia foi cuidadosamente delimitada e preservada, mas divisões políticas posteriores atravessaram seus limites. Isso tornou as estatísticas coloniais muito difíceis. Durante os tempos de colônia e Império, a Igreja era o órgão responsável pelo censo, mas, desde que os limites das paróquias e os municípios passaram a não coincidir, as estatísticas se tornaram de pouca ajuda na comparação do presente com o passado. Cada paróquia construía a sua igreja matriz em sua sede. Cada uma dessas igrejas tinha um santo como padroeiro, que também era o padroeiro da paróquia, e mantinha um ou vários padres residentes. Na cidade de Vila Recôncavo, sede do município, foi construída uma igreja matriz tendo São Gonçalo como padroeiro; também foi construído o convento de São Francisco, ligado a uma rica Ordem Terceira. Quando o Recôncavo entrou em seu longo período de declínio, as paróquias sofreram financeiramente, os prédios entraram em estado de ruína e padres não foram mais admitidos, pois não havia dinheiro para sustentá-los. Os franciscanos na cidade também sofreram materialmente, e seu número diminuiu drasticamente. Quando o Império acabou e a República se instalou, cessou o fluxo de jovens, homens e mulheres nas ordens religiosas No fim do século dezenove não havia mais bastante franciscanos brasileiros para continuar o trabalho do convento e um contingente de frades alemães foi enviado ao Brasil. Desde aquela época, os franciscanos na Vila Recôncavo são alemães. Hoje há apenas quatro frades, três ordenados padres e um irmão leigo. Uma a uma, as paróquias do município se tornaram franciscanas já que ficaram pobres demais para sustentar seus próprios párocos, e hoje os três franciscanos ordenados cuidam das necessidades espirituais de cinco paróquias. Além do próprio convento e das cinco igrejas das paróquias, trinta pequenas igrejas e capelas servem a uma população de mais de quinze mil pessoas espalhadas por uma grande área acessível só por canoas, a pé e a cavalo. Dessas muitas igrejas, a única onde há missa diária é a do convento franciscano na cidade de Vila Recôncavo, pois há sempre um padre presente enquanto os outros dois estão viajando. Aos domingos, são celebradas três missas na cidade: uma no convento, uma na igreja matriz e uma em uma igrejinha na parte baixa da cidade, conhecida como a capela dos pescadores. Só uma vila em todas as cinco paróquias tem um programa de missa mensal. Esse empenho especial decorre, no dizer do pároco, do fato de “haver um grande movimento religioso lá”. Geralmente é combinado entre as pessoas da paróquia e os padres que quando uma cidade ou uma vila quer a celebração de uma missa, os moradores estabelecem uma data e comunicam ao convento. Se possível, um padre cumpre o prometido, levando consigo seus próprios paramentos, a Bíblia, as hóstias e os cálices. Além de rezar missa, os padres são convidados a abençoar casas recém construídas, dar extrema-unção a doentes, dar comunhão em casa a idosos e enfermos e ensinar catecismo a crianças. O catecismo é ensinado nas escolas, e uma vez por semana o padre visita cada escola para ensinar. Perto do fim do ano escolar, a primeira comunhão é celebrada na escola ou, se em fazenda, na casa do proprietário. Os jovens recebem a comunhão primeiro e depois outros que a queiram receber. Ao longo do ano poucas pessoas da zona rural vão assistir à missa na cidade, a não ser que tenham solicitado um serviço especial em honra a seu santo padroeiro ou em memória de um parente falecido. Normalmente, elas esperam pela visita do padre em


110 sua própria localidade. O mesmo se aplica a casamentos e batismos, que dependem da visita do padre. Em caso de morte, o corpo é enterrado dentro de vinte e quatro horas. Cada paróquia tem o seu próprio cemitério, e parentes e amigos do morto carregam o caixão para o enterrar. Na paróquia da Vila Recôncavo, o cemitério fica fora da cidade. As pessoas dessa paróquia, como as da própria cidade, levam antes o caixão para o convento para ser abençoado, pois há sempre um padre por lá. Então, levam o caixão para o cemitério. Em outras paróquias o defunto é enterrado sem o benefício da benção, o que só acontece no dia 2 de novembro, quando os padres visitam cada cemitério para abençoar todos os mortos. As muitas obrigações que recaem sobre os franciscanos quase os impossibilitam de continuar o tipo de vida prescrita para os que entram em uma ordem. É muito difícil para eles participarem dos retiros a que devem ir; há pouco ou nenhum tempo para eles estudarem ou ficarem em contemplação, pois encaram a realidade desanimadora de tentar preservar a religião viva em uma população bastante grande e dispersa com um contato adequado. Em 1941, a Vila Recôncavo foi descrita por visitantes canônicos provinciais como “um dos maiores problemas de nossa Província por causa das cinco paróquias decadentes que lhe são confiadas”(2). O mesmo livro fala constantemente da “indiferença deplorável” e do “desinteresse religioso” do povo da Vila Recôncavo. Em 1949, os registros de atividades religiosas foram as seguintes: 333 batismos (184 crianças legítimas e 149 ilegítimas), 27 casamentos, 200 primeiras comunhões, 8.292 comunhões em geral e 80 comunhões de doentes. (2) Livro de crônica do convento, Vila Recôncavo (MS no Convento Franciscano, Vila Recôncavo). Hoje já não existem irmandades religiosas na Vila Recôncavo. A última foi a Irmandade do Santíssimo Sacramento, fechada após a morte de seu tesoureiro no início deste século. A Ordem Terceira dos Franciscanos, fechada formalmente em 1902, foi reaberta em 1933 quando duas mulheres receberam o escapulário e o cordão. Mas não deu em nada. Há uma organização de caridade, a Sociedade São Vicente de Paula, que ajuda os pobres e é tocada por três homens da Classe B. É muito precária e presentemente só pode ajudar a quatro pessoas na cidade. A sociedade não realiza festas nem manifestações públicas.

Festas

As festas que acontecem na Vila Recôncavo são baseadas no calendário religioso com participação em grande parte de membros de candomblé. Primeiro de janeiro é uma data importante na cidade e é comemorado com uma missa na igrejinha dos pescadores, após a qual o padre vai até a praia e abençoa as canoas. Após a sua saída, os participantes do candomblé fazem suas oferendas pelo dia. É a data em que presentes são oferecidos à Mãe d’Água, como lá é chamada, mas às vezes conhecida em outras partes do Brasil como Janaína, Sereia ou Iansã. A entrega é feita por mães-de-santo do culto, mas qualquer pessoa que queira


111 dar um presente à Mãe d’Água pode fazê-lo entregando-o nas mãos das sacerdotisas. As oferendas podem consistir em dinheiro ou qualquer coisa que uma mulher possa usar, contanto que seja branca: pentes, fitas, talcos, perfumes, sabonetes, flores etc. Tudo é enrolado junto em panos brancos, colocado em um recipiente de barro e enfeitado com flores. A mãe-de-santo sai doterreiro após a missa, acompanhada de participantes e curiosos, vai até a praia e entra em uma canoa preparada para a ocasião. Tocadores de tambor a acompanham, como também as mulheres devotas (filhas-de-santo). Normalmente, dois presentes são ofertados, um para a Mãe d’Água jovem, que vive perto da cidade, e outro para a velha Mãe D’Água, que mora a cerca de uma hora de distância, onde a água é profunda. As canoas saem e se dirigem ao rio, enquanto os tambores são tocados e as devotas cantam. A Mãe D’Água é invocada e louvada, e quando as canoas chegam onde a mais moça mora o seu presente é jogado na maré. Se não afundar, é um mau sinal, pois significa que o presente foi rejeitado. Os pacotes normalmente afundam, pois são acondicionados em um recipiente pesado de barro. Nesse momento, supõe-se que a Mãe d’Água incorpora na pessoa que coloca o presente na maré. Esta pessoa, geralmente uma devota idosa, entra em transe e tem que ser segurada pelas demais, pois tenta se jogar na água. Na mesma hora, todos os presentes na canoa jogam água do mar sobre si, já que a ocasião é sagrada. A pessoa possuída se acalma gradualmente e volta ao estado normal enquanto as canoas sobem o rio. Nesse período, grupos de pescadores seguem em suas recém benzidas canoas (canoas de bordejo). Em razão das canoas estarem abençoadas pela mãe-de-santo e do aspecto sagrado da água resultante da presença da Mãe d’Água, os homens entram na maré sem medo, se jogam e nadam ao redor até se cansarem. Isso não pode ser feito em outra época do ano, pois não é considerado seguro entrar na água profunda. Depois que o segundo presente é ofertado e aceito, a comitiva retorna e vai para terra, continuando a festa com espírito de grande alegria e divertimento. O resto do dia é devotado a corridas de cavalo, visitações, jogos e danças na praça dos pescadores. As pessoas das classes A e B não participam desses procedimentos, pois os consideram bárbaros. Porém, a maioria das pessoas da classe baixa pelo menos aprecia, embora só participantes entram nas canoas. Curiosos ficam pelas margens e observam. Cultos nas zonas rurais fazem as suas oferendas separadamente, frequentemente pelo Natal e em outros locais. A segunda festa do ano se dá em 6 de janeiro, Dia de Reis, que já foi mencionado anteriormente. As festas acontecem deste dia até o começo da Quaresma. Com exceção de uma missa, não há uma festa santificada ligada a esse dia. A festa mais importante do ano é a de Nossa Senhora da Conceição da Praia, a padroeira dos pescadores, a quem sua igrejinha é dedicada. Esta festa começa em 13 de janeiro com uma novena, realizada todas as noites pelo padre, na capela dos pescadores. Nos três últimos dias da festa, em cada manhã é celebrada uma missa em honra a Nossa Senhora da Conceição, São Pedro e São João. Organiza-se um comitê na capela para pedir contribuições para a festa, para comprar velas, óleos, pagar a energia elétrica e o padre a cada noite. Flores são parte importante da festa, embora nessa época do ano elas sejam muito caras. A cada noite de novena há um grupo diferente de benfeitores, e há uma suposta competição entre eles para


112 tornar a noite mais atraente que as outras. A festa vem se tornando mais dispendiosa a cada ano e os benfeitores tornam-se menos interessados em doar dinheiro. Esta festa é melhor aproveitada pelas classes mais baixas. Ela é evitada pelos membros da Classe B que, todavia, são convocados em muitos casos para serem benfeitores. À noite, a festa assume aspectos de carnaval, com barracas montadas por profissionais de Salvador e de Centro. Elas abrigam rodas da sorte, jogos de adivinhação e vendem doces e bebidas. Após a celebração religiosa na igrejinha, as pessoas saem à praça ao redor para conversar, jogar e dançar. Um dia antes da primeira missa da festa ser celebrada, a capela é toda lavada por mulheres frequentadoras do terreiro de candomblé, vestidas com saias engomadas e torços de pano e vão pegar água na fonte, que levam para a capela e a jogam no chão. Moças descalças lavam o chão com vassouras, após o que todas vão dançar nas ruas,que percorrem pedindo doações em dinheiro. Todo esse procedimento, conhecido como lavagem, é desaprovado pelas pessoas da Classe B. A maior parte da vida normal da cidade cessa durante esses nove dias, pois as pessoas se cansam por passarem acordadas até tarde da noite. O dia do padroeiro da cidade cai durante a festa e é comemorado com apenas uma simples missa em sua honra celebrada na igreja matriz. O povo da zona rural da paróquia não comemora o dia do padroeiro. Após o nono dia de festas, um grupo de rapazes sai dançando e cantando pelas ruas, pedindo doações para fazerem uma grande feijoada à noite. É a chamada “mazorra” (de palhaços) (grupos de caretas ― NT). Depois disso, voltam à sua pescaria, pois seu dinheiro já foi todo gasto. A festa seguinte do calendário é 2 de fevereiro, quando as cidades vizinhas de Centro, Conselho e Morro (Santo Amaro, Candeias e vila do Monte Recôncavo – NT) celebram o dia de sua santa padroeira. O povo da Vila Recôncavo frequenta esses três lugares, embora não em grande número. A maioria vai para Conselho, que tem a reputação de ser um local sagrado, onde há grande fluxo de peregrinos. Todas as festividades terminam na Quaresma, que é observada respeitosamente. É interessante notar que o Carnaval, que acontece três dias antes da Quaresma, é celebrado em Vila Recôncavo apenas pelos membros da Classe A. Nos terreiros de santo diz-se que os orixás voltam para a África para a Quaresma e que os espíritos de caboclos retornam para as florestas, só regressando à Vila Recôncavo na Páscoa. A Sexta-Feira Santa é geralmente marcada por comidas com muito azeite de dendê e de oliva, principalmente os pratos favoritos dos baianos, acarajé e vatapá. No sábado, algumas pessoas na Vila “queimam o Judas”. Fazem um boneco de pano cheio de palha e capim, que percorre a cidade à noite no lombo de um burro até a capela dos pescadores, onde o boneco é pendurado e queimado. Enquanto isso, os homens lêem um longo poema composto durante o ano, que conta particularidades cômicas dos amigos e deles mesmos. Durante o mês de maio, a cada noite há um serviço na igreja matriz em honra à Virgem Maria. Um padre celebra e mulheres da classe mais alta cantam no coro. As cerimônias são frequentadas por quase todos os habitantes da cidade, na maioria mulheres. O dia de São João, que cai no fim de junho e é feriado popular na maior parte do Brasil, não é comemorado na cidade, embora de madrugada aconteça a alvorada de São João, com as pessoas gritando


113 “Acorda, São João!”. No dia 16 de agosto é celebrado, principalmente pelo povo do campo, o dia de São Roque, considerado inimigo das pestes. Nesse dia, há uma missa na matriz, celebrada por um padre, que depois percorre as capelas da zona rural. São Roque também é celebrado por cultos africanos. Em 27 de setembro celebra-se os santos gêmeos Cosme e Damião, sempre com uma missa e, especialmente, com uma festa conhecida como “caruru”, que é o prato característico deste dia e subsequentes; como no Dia de Reis, Cosme e Damião deve ser festejado dentro do mês ou após a data. Antes do caruru, é costume as pequenas imagens dos dois santos percorrerem as ruas da cidade, parando de casa em casa e pedindo doações para uma festa em sua homenagem. Normalmente, a festa é para crianças, que dançam e comem o quanto podem, enquanto os mais velhos primeiro assistem e depois comem o que restou e também dançam. Qualquer um que seja gêmeo ou goste de gêmeos pode dar um caruru em sua casa. São Francisco também é festejado, já que há o convento franciscano na Vila, com comemorações por três noites e uma missa na manhã do seu dia. No último domingo de outubro, dia de Cristo Rei, há sempre uma procissão na cidade que começa na igreja matriz e vai até um pequeno altar erguido na frente do prédio da Prefeitura. Depois, segue até à igrejinha dos pescadores, a uma cruz existente em uma das praças (Praça Santa Cruz – NT) e volta para o convento e para a igreja. Algumas pessoas armam pequenos oratórios nas ruas, em frente às suas casas, para serem abençoados quando o padre passa. Essa procissão é acompanhada na maioria por mulheres de todas as classes, embora o andor coberto da hóstia seja carregado por homens da Classe B. O Natal é comemorado discretamente, exceto pela troca de presentes.

Rezas As rezas são muito populares todo o ano entre mulheres das classes C e D. Por uma variedade de razões um grupo de mulheres se reúne em casa de uma delas, rezando alto em frente a um pequeno nicho decorado onde há um quadro ou uma imagem do santo dos donos da casa. Quem melhor conhece a reza puxa os demais. Um grupo pode rezar na noite anterior ao dia do santo padroeiro de um deles, especialmente se este não tem condições de mandar rezar uma missa por falta de dinheiro ou por não ter havido acerto com o padre. Às vezes a reza é promessa ao santo padroeiro por alguma cura de doença. Estranhamente, os pescadores nunca sentem necessidade de ajuda sobrenatural para superar um mau tempo ou uma falta de peixes. Alguns deles, entretanto, oferecem um presente à Mãe d’Água para agradecer uma pescaria excepcional. Em outras vezes, as pessoas simplesmente rezam para seus santos de devoção por não poderem realizar uma festa em sua honra. Santos de devoção pessoal, entretanto, não desempenham papel muito importante nas vidas das pessoas da Vila Recôncavo, embora todo mundo tenha um e mantenha pelo menos um quadro do santo na parede de casa. É comum encontrar mulheres do candomblé rezando nessas reuniões noturnas em honra a vários santos que não são representados em seus respectivos terreiros.


114 Cansaços incomuns, leves doenças e dores podem ser causados por mau olhado, que é afastado ao se rezar a vítima. Há várias mulheres na cidade que fazem particularmente bem esse trabalho de reza; entretanto, não o fazem em grupo. Uma mulher vai até a casa da vítima com um pedaço de cordão que passa pelo corpo da afetada, rezando o Pai Nosso e a Ave Maria. Algumas mulheres dizem que esse processo deve ser repetido por três vezes seguidas, outras que deve ser feito a cada sexta-feira por três semanas. Essa é uma reza de proteção para “tirar o mau olhado”. O cordão usado é retirado e descartado cuidadosamente pela rezadeira.

Conflito e Participação Diferenciada A atitude dos padres em relação às condições em suas paróquias é de resignação. Eles percebem que é fisicamente impossível levar a religião a todas as pessoas ou à maioria delas. Também são desmotivados pela pobreza intelectual do povo para entender a doutrina da Igreja. Eles não desencorajam nem encorajam as rezadeiras, simplesmente aceitam que elas existam. Mas combatem vigorosamente os cultos africanos. Durante muitos anos a capela dos pescadores ficou fechada por causa das atividades cultistas de muitas das mulheres que frequentavam a igrejinha. Entretanto, recentemente o superior franciscano reabriu a capela, percebendo ser melhor não excluir toda a população de pescadores da igreja por causa de uns poucos que participavam do candomblé. Verificou que, enquanto a capela ficou fechada, todas as pessoas da cidade baixa se recusavam a subir a colina para ir ao convento, e assim passaram muitos anos sem frequentar a missa, fazer confissões ou tomar a comunhão. Nos sermões nas missas uma oportunidade de condenar o candomblé nunca é perdida, mesmo que tenha pouco efeito. A política local da Igreja em relação ao cultismo depende da sensibilidade de cada superior e se ele irá tolerá-lo. O padre que reabriu a capela tornou-se uma pessoa benquista na cidade, pelo menos pelas classes baixas, pois ele percebeu que poucas pessoas se dedicam às atividades do culto comparadas com as que só vão assistir. O zelador de uma das igrejas na zona rural também é um líder de terreiro em sua fazenda, mas as relações entre ele e os padres são cordiais. Embora a maioria das devotas femininas frequentem missas para seus santos prediletos, as mães-de-santo doterreiro nunca vão à igreja e evitam, sempre que possível, encontros com os padres. A religião faz mais parte da vida das mulheres que da dos homens, e há mais mulheres nas missas do que homens. Há aquelas extremamente religiosas, as beatas, na cidade que nunca perdem uma missa, benção ou reza. Através de um questionário aplicado na cidade e na zona rural, foram obtidos os seguintes dados a respeito da frequência média de comparecimento à igreja em um ano de homens e mulheres acima de 14 anos:

Quadro 10


115 Frequência de comparecimento à igreja Cidade

Classe

Campo

Número de vezes por ano

Número de vezes por ano

Homens

Homens

Mulheres

A

19

23

Mulheres

40

96

B

4

3

17

25

C

3

3

4

41

D

Verificam-se muitas coisas neste quadro. Primeiro, quanto mais alta a posição social do homem mais vezes ele vai à igreja, pelo menos nas classes B, C e D. Em segundo, a frequência de comparecimento das mulheres de todas as classes é consideravelmente maior que a dos homens. Terceiro, as mulheres da Classe A frequentam a igreja menos vezes no ano do que as mulheres das classes B, C e D na zona urbana. Em quarto, há grandes diferenças na frequência nas zonas rural e urbana: as pessoas das fazendas raramente vão à missa na cidade, preferindo aguardar uma ocasião especial quando o padre vai à fazenda. A diferença entre a frequência da Classe A e a das Classes B e C na zona rural é devida ao tempo em que a Classe A passa em Salvador, onde membros sempre vão à missa dominical, assim como a missas familiares.

Cultos africanos O candomblé brasileiro é considerado um sincretismo entre culto africano e catolicismo. Há uma identificação parcial de divindades africanas com santos católicos. Por exemplo, Ogum, o orixá da guerra, é identificado com Santo Antônio; Oxóssi, deus da caça, com São Jorge; Omulu, deus das pestes, com São Roque; Exu, o trapaceiro, com Satã; Yansã com Santa Bárbara; e Xangô, tanto com São Jerônimo quanto com Santa Bárbara. Há confusão nas mentes dos próprios praticantes do culto sobre exatamente que santo um orixá representa, e há débeis diferenças de interpretação que, entretanto, não atrapalham as práticas do culto. O cultismo no Brasil foi descrito em detalhes por Nina Rodrigues(3), Arthur Ramos(4) e Edison Carneiro(5), e pelos americanos Donald Pierson(6) e Ruth Landes(7), todos eles centrados no cultismo na cidade de Salvador; Eduardo Octávio da Costa(8) possui bom material sobre cultismo urbanorural no Maranhão (Norte do Brasil). Na Vila Recôncavo, os sincretismos são esquecidos, já que a essência dos cultos muda dos orixás para os espíritos indígenas (de caboclos ― NT), os quais não se identificam com os santos católicos. Aparentemente, o cultismo começou na Bahia no início do século XIX. Carneiro(9) estabelece a data da abertura do primeiro terreiro em Salvador em 1838. As pessoas mais velhas da Vila


116 Recôncavo não se lembram do culto além de duas gerações atrás. Há uma mulher na cidade que está em seus noventa anos e somente lembra de ter ouvido de sua mãe e da geração de sua mãe como ativas em candomblé. Aparentemente, a força do ritual aumentou com o decréscimo do proselitismo católico, quando o número de padres diminuiu nas zonas rurais. O culto também cresceu com a alforria de escravos, e aparentemente foi uma das instituições pelas quais ex-escravos compravam a liberdade de outros.

3. Raymundo Nina Rodrigues, O animismo fetichista dos negros bahianos (Rio de Janeiro, 1935). 4. Arthur Ramos, O negro brasileiro (2nd ed.; São Paulo, 1940). 5. Edison Carneiro, Candomblés da Bahia, (Publicações do Museu do Estado, No. 8 (Bahia, 1948). 6. Donald Pierson, Negroes in Brazil (Chicago, 1942). 7. Ruth Landes, The City of Women (New York, 1947). 8. Octavio da Costa Eduardo, The Negro in Northern Brazil (New York, 1948). 9. Carneiro, Candomblés da Bahia, p.31. Hoje, os cultos na zona rural são muito menos elaborados que os da capital, embora pareça que mesmo na Vila Recôncavo o cultismo esteja mostrando a mesma tendência geral de desintegração que é tão aparentemente forte na zona rural. Em ambos os lugares há uma mudança do ritual africano para práticas relacionadas a espíritos de caboclos indígenas, cujas demandas são fáceis de entender e concordar. Na cidade de Vila Recôncavo há dois terreiros com líderes femininas, e na zona rural há só um com um líder masculino. Há mais seis na região, mas são muito menores e mais pobres que os outros três. Um desses três é dirigido por uma mulher de quase cem anos. Ela está completamente cega e mal pode andar pela casa. De lá não sai há muitos anos. Há um assistente, um jovem nos seus vinte e poucos anos que, quando menino, carregava lenha e água na casa e agora está sendo instruído nos assuntos dos rituais. A casa está inativa, pois a velha senhora sobreviveu a seus ex-seguidores e outros mais se mudaram. A sala que contém as insígnias dos orixás ainda é mantida, e os alimentos e bebidas apropriados são sempre lá colocados pelo rapaz, conforme as instruções da idosa. Ela faz pouca coisa, embora ainda consulte os orixás jogando búzios. Sua fama de mãe-de-santo é notória, e as pessoas ainda vêm pedir sua ajuda, mas ela está muito fraca para fazer mais coisas. Nos bons tempos, era uma “purista” e passou por um longo período de treinamento necessário para se tornar uma devota e mais tarde mãe-de-santo. Ainda se lembra de algumas palavras em Nagô, a língua Yorubá, e lamenta a morte de pessoas de sua geração com quem, diz ela, conversava somente em sua língua. Muitas de suas iniciadas foram embora e iniciaram seus próprios terreiros em outros lugares, embora, segundo ela, ainda não estivessem prontas para assumir a liderança já que não conheciam bastante os mistérios. Os outros dois terreiros pesquisados são dirigidos por discípulas de uma das devotas que abandonaram a velha senhora. Não há contato entre as três, embora as duas líderes mais jovens reverenciem a velha senhora, são conscientes de que ela sabe muito mais do que elas e que no entender dela são somente novatas, manipulando algo místico que elas não estão


117 suficientemente preparadas para controlar. Ela não as intimida e ignora suas atividades, uma vez que ambas recentemente passaram a receber espíritos indígenas que a velha senhora sabe que são falsos. Ela se interessa mais em passar seus conhecimentos ao rapaz que cuida de sua casa, ainda que se queixe de que ele é muito indiferente aos seus ensinamentos. Ele está aprendendo bastante, ainda que não tenha “feito” o seu santo, isto é, ainda não é um devoto de pleno direito. Estão sendo feitas preparações para isso, e espera-se que se realize antes da morte da yalorixá. Enquanto isso, ela já deixou de herança para ele a casa e todos os aparatos, assim como a herança espiritual. Ele está aprendendo a parte mística do culto, mas ela não pode mostrar a ele como exteriorizar, com danças e outros movimentos de adoração, porque ela se encontra bastante doente. Tradicionalmente, só mulheres se preparam para adoração nos cultos brasileiros, pois a crença é que os deuses baixam e “cavalgam” ou “montam” na discípula. Isso só poderia ser feito em mulheres. Entretanto, umas das mudanças que atingem os cultos agora é a entrada de homens como devotos. Na maioria das vezes, são afeminados, como é o caso do rapaz que ajuda a velha senhora. Ela não está satisfeita em ter um homem assumindo as obrigações de seu terreiro, mas se satisfaz com ele porque não há mais ninguém em sua casa. Apesar de todas as suas discípulas terem ido embora, pelo menos agora ela terá alguém para fazer o despacho para os seus santos quando ela morrer, um ritual complicado que deve ser desempenhado apropriadamente. Um dos outros terreiros na Vila Recôncavo é dirigido por Rôxa, que já “fez o seu santo” mas, pelos padrões do culto, ainda deveria ser uma devota em um outro terreiro, pois não é considerada bastante preparada para dirigir o seu próprio. Sua casa é extremamente simples, com poucos seguidores, a maioria dos quais ainda não “fez seus santos”. Rôxa é a figura principal, a que mais fica possuída e através da qual os espíritos falam. Quando jovem, passou por um rigoroso período de treinamento, mas abandonou antes de completá-lo. Ela diz que cumpre as obrigações necessárias somente porque, se não fizer, pode ficar doente. Ela chama isso tudo de “complicação” em sua vida que deve ser resolvida. Ela já foi casada, mas agora está viúva e sem filhos. O outro terreiro, localizado em uma das fazendas com administradores, é dirigido por um homem na casa dos quarenta. Ele também afirma que está no candomblé em razão de sua saúde. Quando menino e rapaz, sempre estava doente, com dores por todo o corpo. Certo dia, ele encontrou no campo uma “pedra de raio”. Tais pedras são comuns no candomblé e se diz que são enviadas do céu, embora sejam realmente artefatos ameríndios, como pontas de flechas e machadinhas, que afloram na terra. No início, ele não sabia que pedra era aquela e levou-a para casa, mas, ao descobrir que tinha significância sobrenatural, jogou-a fora, pois não tinha nada a ver com cultismo. Seus pais se opunham fortemente ao candomblé e lhe diziam que era uma coisa má. Mas no dia seguinte a pedra voltou para casa, assustando-o. Ele jogou fora de novo, e de novo ela reapareceu na casa. Então, ele levou a pedra para a líder do terreiro na fazenda que lhe disse que era um sinal de que ele tinha uma obrigação a cumprir para com os deuses. Para encerrar o assunto, foi necessário ele fazer uma harmonização envolvendo alimentos e bebidas. Então, começou a economizar dinheiro ao mesmo tempo em que recebia instruções da mulher sobre o que fazer. Nesse período, ele ficou verdadeiramente interessado no candomblé e tornou-se o “mais curioso” dos discípulos da mãe-de-santo. Estudou com ela por muitos anos e participou o mais que pôde de cerimônias. Quando ela morreu, deixou a


118 casa para ele, já que era o mais ativo de seus seguidores. Após observar o período honorífico de um ano após a morte da mulher e fazer despachos apropriados com os santos, ele se mudou para o terreiro onde agora é o líder já por trinta anos. Em razão dos ciúmes e brigas pela herança, muitos dos devotos abandonaram o terreiro e procuraram outras casas, levando com eles os seus próprios santos. Três anos após assumir o terreiro, ele teve sua primeira experiência com o espírito do caboclo Sete Estrelas, que lhe veio em sonho e lhe disse querer baixar e participar do culto. Por algum tempo, o homem resistiu, pois o culto era tradicionalmente Nagô e a ex-líder nada tinha a ver com espíritos de caboclos. Sete Estrelas ameaçou-o destruí-lo se ele não aceitasse. No final, ele cedeu e, numa noite, durante uma cerimônia, Sete Estrelas baixou nele. Todos gostaram de Sete Estrelas porque era um espírito feliz e alegre e dançava bem. Depois, muitos outros devotos na casa foram também possuídos por ele e por outros caboclos, mas nenhum deles considerado tão bom quanto Sete Estrelas. De acordo com o preceito, há vinte e um espíritos de caboclos, embora o informante e ninguém mais pudessem nominá-los. Todos os vinte e um moram em uma aldeia na mata. Não havia nada na tradição africana sobre qual preparação seria necessária para esses espíritos, então o ritual se tornou criativo e conveniente. Hoje em dia, jovens que entram no culto são sempre dominados por um caboclo e ficam satisfeitos, pois esses espíritos envolvem pouco gasto e menos trabalho. A principal queixa sobre os orixás é referente à quantidade de trabalho e os grandes gastos envolvidos para fazer suas próprias vestes e comprar miçangas e braceletes. Todos os líderes dizem que atualmente ninguém pode se permitir ter orixás tradicionais. Aqueles que tiveram ainda os mantêm, claro, mas também são visitados por caboclos, que eles mais preferem. Então, desempenham as obrigações mais fundamentais com relação aos orixás, como oferecer comida e bebida, mas se vestem e dançam para seus caboclos. O resultado é uma confusão de rituais ― o uso do batuque e feitiços africanos e a inclusão de novas danças, costumes e alimentos apropriados para os gostos mais simples dos espíritos de caboclos. Os terreiros são construídos como as outras casas da comunidade. O que está em atividade na cidade fica situado em uma rua, junto às outras casas, enquanto que o que existe na fazenda fica um pouco separado das demais, em vista da configuração espalhada do povoado. A sala da frente, que é a maior, normalmente é vazia, à exceção de um longo banco de madeira e um pequeno altar com quadros dos santos padroeiros do chefe da casa e de vários membros do culto. Essa sala é decorada com fitas de crepom e flores de papel; as danças são ali realizadas. As outras dependências da casa consistem em um quarto de dormir, sala de jantar, cozinha e outro quarto conhecido como “peji”, que abriga o altar africano com suas plantas e folhas, pratos, garrafas, xícaras e copos com comida e bebida para os orixás, assim como o símbolo de cada um deles, como uma pá, uma espada ou uma machadinha. Nesse quarto também há um baú contendo os apetrechos cerimoniais usados durante as festividades, como vestes e cocares de cada orixá. Essa é a sala onde são feitos os sacrifícios de cabras e galinhas usadas durante as cerimônias. No terreiro na zona rural há também retratos de santos católicos no peji, outra diferença de terreiros tradicionais mais antigos onde isso nunca ocorreria.


119 O líder da casa mora no próprio terreiro. A literatura sobre o candomblé refere-se ao líder como mãe ou pai-de-santo. Nenhum deles na Vila Recôncavo gosta destes termos. Dizem que não seria possível ser mãe ou pai de seres divinos. Eles se consideram mais “zeladores” dos santos na Terra. Há também as mesmas queixas quanto aos termos filha ou filho-de-santo. Preferem se referir à pessoa como que “tem um santo”, o que indica que tem uma obrigação para com um dos santos e é por ele possuído. A palavra “santo” é usada na linguagem comum, mas uma vez que a pessoa “fez o seu santo” ― isto é, passou pelos ritos preparatórios e aprendeu os gritos e as danças da divindade e como cuidar dela adequadamente ― ,diz-se que essa pessoa tem Omolú, ou Sete Estrelas. Em razão das mulheres e dos poucos homens do culto, na sua maioria, não poderem passar um ano segregados no terreiro a fim de “fazer o seu santo”, continuam por muitos anos na condição intermediária de alguém que “tem o santo mas ainda não fez seu santo”. Isso significa que a pessoa experimentou a possessão, e que foi determinado pelo zelador que está sob a obrigação de um certo santo e em processo de “fazer um santo”. Durante o período de simplesmente “ter um santo”, a pessoa tem que cumprir certas obrigações, como alimentar o santo, fazer suas próprias vestes e comprar contas e outros acessórios externos da divindade que são usados nas cerimônias. Isso envolve gastos consideráveis. As roupas são sempre feitas de seda, já que nada é melhor para o santo. Hoje, batom, perfume e bijuterias estão consumindo os poucos centavos extras que as garotas possuem, e leva bastante tempo para elas conseguirem isso. Nesse período, as obrigações de dançar e de serem possuídas são menos extenuantes. No caso de espíritos dos caboclos, as divindades sempre falam através das pessoas após uma ou duas possessões, e isso é indicativo de que o espírito está firme com a pessoa e já pode ser considerado “feito”. Dessa maneira, evita-se o trabalho árduo, assim como gastos consideráveis. Essa é a principal razão do crescimento da popularidade dos caboclos, além do fato de serem mais divertidos. Os tocadores de tambor também gostam de santos indígenas, pois, após terem dançado, os caboclos fazem uma coleta que é presenteada a eles, tocadores, por terem tocado tão bem para eles, os caboclos. Os batuqueiros são escolhidos entre os homens cujas mulheres participam das atividades, ou outros interessados no culto e que gostem de tocar tambor. Eles aprendem a tocar desde jovens, ouvindo quando vão assistir às cerimônias. À noite, quando os tambores tocam, é impossível não se ouvir os sons imponentes e excitantes, que continuam por horas a fio. Os meninos aprendem o ritmo rapidamente e logo o associam a um espírito particular que dança ao som dele. Quando crescem e mostram interesse, lhes é permitido substituir um dos batuqueiros durante um intervalo e dessa maneira se juntar aos demais em alguma parte menos importante da cerimônia, até que o zelador perceba que eles sabem bastante para tocar por toda a noite. Todo o processo é considerado bastante cansativo para crianças, tanto para os garotos do batuque quanto para as garotas dançarinas. Se uma garota mostra sinais de possessão durante a cerimônia, ela é afastada, pois até que complete quatorze anos a dança é considerada bastante estressante para ela. Mas, a não ser que a família recuse, ela pode ser preparada para todos os rituais pelas outras dançarinas e pelo zelador. As cerimônias sempre atraem mais espectadores do que praticantes, e fora de um terreiro na zona rural um homem montou uma pequena banca para vender refrescos. Os curiosos entram na sala e se alinham ao longo das


120 paredes, enquanto outros ficam do lado de fora assistindo pelas portas e janelas abertas. A maioria sabe vagamente o que está se passando, a quem os tambores chamam e quem “está” com que santo. As cerimônias são bastante longas, sendo que o primeiro passo é invocar os santos. Os participantes da noite dançam em círculo enquanto os tambores chamam os vários espíritos. Às vezes, leva algum tempo para o santo baixar, e há vezes em que ele não se manifesta mesmo. Um rapaz dançou sem sucesso por quase uma hora e finalmente foi retirado exausto pelo zelador. Quando alguém na roda “cai” é rapidamente retirado da sala e levado para o peji, onde o zelador troca suas roupas, vestindo-o com a indumentária do espírito. Enquanto isso, os demais descansam ou continuam a dançar, ficando possuídos um após o outro, dependendo do tipo de cerimônia. Após a pessoa possuída ser vestida e completar o ritual necessário, é levada de volta à sala principal, onde, mais uma vez, como o santo, dança vigorosamente até se cansar ou se zangar com alguma coisa que ocorra na sala. O zelador sempre dá o sinal para os tambores mudarem seus ritmos, indicando o final da dança, altura em que a pessoa está fisicamente bastante cansada, embora emocionalmente tensa. Ela é levada ao peji para completar os rituais detalhados, e então lhe é dado um lugar para descansar e voltar ao normal. De regra, ela logo se junta aos demais espectadores na frente da casa. Enquanto isso, os tambores invocam os outros santos, a roda se refaz e o processo é repetido. Isso continua noite adentro, somente terminado ao amanhecer. O terreiro na zona rural realiza uma cerimônia geral para todos os santos no feriado de Ano Novo, e leva de três a quatro dias e noites de danças contínuas, os tambores batendo, para que todos os participantes “realizem as suas obrigações”. As atividades cessam a certa altura do dia quando todos descansam e recomeçam ao fim da tarde. A regra geral é que a pessoa que “tem o santo” deve cumprir suas obrigações para aquele espírito pelo menos uma vez por ano, se possível no dia do santo. É claro que as comidas apropriadas devem ser oferecidas constantemente durante todo o ano, mas pelo menos uma vez no ano o santo deve ser festejado, isto é, chamado para baixar em uma pessoa e dançar. O termo normalmente usado para a cerimônia é “bater” (com referência a tambores), embora outros eufemismos sejam usados, como “vamos ter uma festa” ou “vamos tocar”. Se uma pessoa não puder festejar o santo no dia específico, entretanto, deve fazê-lo na cerimônia geral no fim do ano. Não concordar com os rituais poderia ser desastroso. O zelador do terreiro sempre festeja seu santo no seu próprio dia como também no fim do ano. Em ambos os terreiros ativos os zeladores têm mais de um santo e tentam festejar cada um em sua data específica. Todos os participantes colocam as indumentárias simbólicas de seus santos no terreiro e cuidam delas pessoalmente se possível, mas para muitos deles que moram longe do terreiro o zelador assume a responsabilidade. Em muitos casos, uma pessoa que “tem um santo” tem um peji em miniatura em sua própria casa e também mantém lá as comidas e bebidas apropriadas. Em alguns casos, uma mulher mais velha pode ter uma cerimônia em sua casa se ela permitir os requisitos para sacrifício de animais e comida. A afiliação nos terreiros nem sempre passa de pais para filhos. Muitos dos participantes mais jovens ligam-se aos terreiros por sua própria vontade e podem ser crianças de famílias que não são simpáticas às atividades do culto. Quando uma mãe pertence a um terreiro, seus filhos podem ser doutrinados nos rituais por sua participação continuada nas cerimônias. Mas, a não


121 ser que eles se sintam atraídos, nenhuma pressão é feita para participarem das atividades, embora possam sempre comparecer às cerimônias. A maioria da população diz que nada tem a ver com os cultos e ignora os rituais. Mas membros das classes mais baixas têm pelo menos algum conhecimento da cerimônia. Em uma região onde há pouco entretenimento, como na Vila Recôncavo e especificamente na zona rural, os cultos proporcionam uma maior atração de espectadores, e os que os presenciaram durante suas vidas os apreciam. Entretanto, o número de participantes ativos é pequeno. A casa que funciona na cidade tem apenas uma dúzia de iniciados, enquanto a da zona rural é maior e possui cerca de quarenta e cinco devotos, sendo somente sete oriundos da fazenda onde o terreiro está situado. Este é mais ativo por várias razões, conforme informantes locais: os costumes são mais bonitos, e portanto as pessoas preferem dançar lá; o pai-de-santo tem uma personalidade mais forte e é melhor curandeiro que o do terreiro da Vila. O terreiro rural está mais convenientemente localizado para pessoas de fazendas vizinhas. Contudo, o pequeno número de participantes é indicativo de fragilidade da instituição nessa área. A curanderia é parte importante das atividades do culto, já que o zelador que “fez o santo” aprendeu um grande número de curas rituais e com uso de ervas. De fato, é o aspecto de curanderia que atrai a maioria das pessoas às atividades do culto. Pessoas doentes, entretanto, preferem confiar primeiro nos medicamentos fornecidos pelo dono da fazenda, pela enfermeira da fazenda e pelo médico da cidade. Mas se sentem que não foram curadas, voltam ao terreiro. Se a doença é diagnosticada pelo pai-de-santo como um claro sinal que a pessoa está em contato com um espírito, o paciente participa dos ritos como iniciante ou sofre as consequências. Para dores de cabeça comuns, problemas estomacais e erupções de pele, o paide-santo lança mão de seus conhecimentos de ervas. Supõe-se que o conhecimento venha de sua divindade, que nessa área sempre é São Roque, que conhece a cura. O líder do terreiro rural uma vez comparou seu estabelecimento a uma farmácia. Ele é pago por esses serviços médicos. Às vezes, ouve-se uma pessoa desejar poder “ter” tal e tal santo para que possa saber como curar e fazer dinheiro, como os líderes de terreiros. É crença geral que os pais-de-santo são ricos financeiramente, embora eles insistam em dizer que não o são e que devem viver de colaborações. Como regra, todos os participantes na casa são obrigados a contribuir para a cerimônia que reverencia a divindade do líder, que é o cerimonial mais extravagante do terreiro. O cumprimento das obrigações individuais é muito dispendioso, demais para uma só pessoa pagar. A cerimônia do fim do ano de 1950 custou aos membros da casa quase dois mil cruzeiros em comida, animais para sacrifício, velas, querosene para os candeeiros, roupas e ornamentos. Cada membro gastou quatrocentos cruzeiros com suas vestes e miçangas, além da contribuição para o fundo comum, sem falar no seu trabalho na cozinha e na lavagem e passagem a ferro dos trajes e roupas usadas nas cerimônias. Tal soma de dinheiro é difícil de conseguir, por isso a quantidade de cerimônias anuais está decrescendo. Não só os salários das pessoas estão baixos e a inflação alta, mas muitas coisas que não eram antes disponíveis na região ― tal como cinema, relógios de pulso, outras joias além de contas e pulseiras simbólicas das divindades, perfume e batom ― atraem o desejo delas e oneram seus bolsos. A participação nos cultos é geralmente considerada uma atividade de pessoas da classe mais baixa, e na Vila Recôncavo só essas pessoas são vistas dançando e cumprindo outras


122 obrigações do candomblé. Indivíduos de outras classes, entretanto, participam indiretamente ou secretamente. As pessoas da Classe A mostram uma genuína falta de conhecimento sobre as atividades do culto, apesar se terem sido criadas ouvindo o som dos tambores e vendo símbolos externos de divindades africanas e caboclas. Essas pessoas, embora falem com desdém sobre o cultismo e o paganismo envolvidos, têm um certo respeito por eles e normalmente abstêm-se de se intrometer no assunto. Elas mantêm um tipo de relação de gracejo no que diz respeito aos seus empregados que sabem ser participantes, mas pouco assistem às cerimônias. Essas são raramente realizadas nas fazendas quando os donos estão presentes. Na maioria, acontecem naquelas dirigidas por administradores. A Classe B na cidade tem vários membros que ajudam o terreiro e participam indiretamente de suas atividades, especialmente com referência ao ritual da Mãe d’Água. Já que educação, que implica na liberdade de crença no cultismo, é um critério de posição de classe, os membros da Classe B denunciam em público o cultismo e os que dele participam. Mas muitos deles, vindos de famílias que eram participantes, guardam alguma crença e temor pelo culto. Eles não cortam completamente suas ligações com o candomblé. Participam secretamente, enviando dinheiro para a mãe-de-santo e presentes para a Mãe d’Água. Naturalmente, nesses pequenos grupos o segredo não é guardado devidamente e logo se sabe quem enviou um presente, porque e quando. Muitas pessoas desses grupos, e algumas da Classe A, têm medo de ser possuídas por um santo, especialmente se se expõem a atividades do culto durante a cerimônia, e por essa razão não frequentam os rituais. Até certo ponto esse medo é a base dos protestos que muitos deles fazem contra o batuque dos tambores por toda a noite, embora a queixa comum é que eles não podem dormir por causa do barulho. O som dos tambores à noite é impressionante, e ninguém ignora que nas vizinhanças o sobrenatural está sendo invocado. É muito perturbador para aqueles que não entendem a mecânica das cerimônias e o significado do batuque e dos sacrifícios.

Espiritismo O espiritismo, que não usa tambores, é tão perturbador quanto o candomblé para pessoas de todas as classes, embora em razão de seu caráter mais tranquilo nem sempre se sabe quando uma sessão está em curso. O espiritismo parece ganhar popularidade na região, embora seja bastante temido por muita gente. Tem ganhado aderentes em razão dos poderes de cura mostrados pelos médiuns. Na maioria dos casos as pessoas são atraídas a ele, tanto na cidade quanto na zona rural, por doenças e promessas de cura. Em razão da falta de atendimento médico ou por causa das despesas com tratamento médico, ou talvez por o candomblé não o ter curado, um paciente pode tentar o espiritismo como último recurso. Para aqueles que foram ajudados, o espiritismo é uma companhia constante, e embora tenham aderido com medo, logo o perdem. Tornam-se defensores convictos e tentam atrair seus amigos. Os maiores sucessos na cura parecem seguir os tratamentos com ervas dos cultos africanos, mas o espiritismo não requer obrigações adicionais, como o candomblé. É comum ouvir alguém dizer que a sua presença numa sessão espírita o curou de alguma doença, deixou-o livre de obrigações e não teve que pagar ao médium. O espiritismo também é usado para descobrir e neutralizar mau olhado e tramas malignas de qualquer inimigo. No espiritismo encontram-se


123 os mesmos espíritos de caboclos dos cultos africanos locais, embora não haja danças. Hoje há uma competição estabelecida por seguidores entre os médiuns e líderes de terreiros. Há um caso marcante de uma família de Classe A que foi “ajudada” pelo espiritismo. Essa família não era muito benquista na cidade e sentiu que “fizeram um trabalho” contra ela. Falou-se que um médium local impediu que o pai dessa família sofresse algum dano através de um espírito. Ele se tornou convicto do poder do espiritismo e convenceu sua mulher a também entrar. Eles agora não fazem nada sem primeiro consultar os espíritos, e frequentemente convocam o médium a sua casa em Salvador para ajudá-los. A classe mais alta da cidade não é alheia ao espiritismo, e mesmo os que não usam os médiuns e não frequentam sessões espíritas parecem considerar eles mesmos possíveis vítimas do espiritismo. Há uma década ou mais, experiências com o espiritismo, como movimentar copos, eram populares. Essas experiências ganharam muitos adeptos e deixaram muitos outros em estado de crer ou não crer nessas possibilidades.

Protestantismo O protestantismo não entrou na Vila Recôncavo. Esse é um ponto de orgulho entre os moradores, que já ouviram falar mas não sabem nada sobre o protestantismo. Em outras áreas do Recôncavo já houve conversões, mas ainda não há igrejas, capelas ou grupos domésticos protestantes na Vila Recôncavo. Em outras comunidades, pastores viajantes realizam serviços em casas de adeptos. Assim como nos cultos africanos, sempre há curiosos do lado de fora das casas, discutindo os méritos do sermão, da leitura da Bíblia e dos hinos cantados. Os suficientemente impressionados às vezes se filiam, mas ainda há uma resistência considerável a outra religião organizada.

9. Mudanças recentes na Vila Recôncavo O trabalho de campo descrito do Capítulo 1 ao 8 deste estudo foi desenvolvido de junho de 1950 a junho de 1951. Em 1955 e 1956, o autor teve a oportunidade de realizar novo trabalho na Vila Recôncavo. Este capítulo é um resumo de algumas mudanças ocorridas durante o período de cinco anos, de 1951 a 1956. Primeiro, a fábrica de açúcar passou por várias transformações, desenvolvendo-se de um “engenho” para uma “usina” altamente industrializada, conforme dito na introdução. O sistema engenho-fazenda, diferente das fazendas particulares, teve a maior mudança. A Usina São Pedro foi descrita anteriormente como uma corporação familiar, de propriedade e dirigida por membros de uma grande família. Em algum tempo nesses cinco anos a família foi obrigada a abrir o capital com uma grande quantia oriunda de uma segunda empresa familiar, mais poderosa que a primeira. Em pouco tempo, a segunda família assumiu o controle


124 completo da usina através de uma série de manipulações financeiras. Como resultado, a Usina São Pedro saiu do domínio e direção da família Conde, e agora é apenas um componente de uma grande firma comercial. Para uma melhor compreensão da sociedade baiana, é necessário que examinemos essa segunda corporação. A palavra chave é “família”, que representa quase uma constante nessa cultura. A segunda família, os Helvécios (os Wildberger, de origem suíça ― NT), é família de imigrantes de segunda geração. A maior atividade da empresa da família ― há outros acionistas, especialmente empregados, com pequenos lotes de ações ― sempre foi a comercial: exportação, importação, distribuição e transporte. A empresa tem grandes extensões de terras em outras partes do estado que são exploradas de maneira impessoal e com base no lucro, não de maneira tradicional, paternalística, comum na zona açucareira. Os Helvécios ascenderam a altas posições na sociedade baiana, simbolizando dinheiro novo e poder econômico. A história deles é importante. O primeiro imigrante casou-se com uma baiana de família de “bom nome”, e todos os seus filhos fizeram o mesmo. Um deles casou-se com uma filha do Coronel, fundador da Usina São Pedro. Foi por esse casamento que se deu a transferência da usina. Hoje, embora os Conde possuam ações na corporação, os Helvécios têm o controle acionário, e os Conde estão vendendo gradualmente suas ações para os Helvécios. A nova corporação introduziu muitas mudanças na administração da usina. Embora ainda uma empresa familiar, tornou-se, do ponto de vista mais amplo, uma empresa estritamente comercial, sem ligações familiares e com relações impessoais. Uma nova diretoria e uma gerência foram implantadas. O novo “chefe” da usina veio de uma parte diferente do estado e sua experiência é completamente diferente dos produtores de cana-de-açúcar. A ligação familiar ainda permanece, pois o novo gerente tem relações com a nova família proprietária por casamento. Ele é tratado, entretanto, como empregado assalariado da empresa. Seu irmão, novo administrador-geral de campo, da parte de agricultura da usina, também assim é tratado. Esses dois novos gerentes colocaram as relações entre gerência e trabalho em base estritamente de negócio e removeram todos os aspectos de paternalismo. Após assumirem, demitiram a grande maioria dos empregados mais velhos, funcionários de alto nível da fábrica, do campo e do escritório. Administradores, mecânicos e escriturários, na grande maioria com vinte anos ou mais de serviço, foram despachados. Novas pessoas vieram para assumir seus lugares, e muitas das vagas foram preenchidas por promoção. Relógios de ponto foram instalados e o sistema de autoridade foi reforçado de cima para baixo. A legislação social ― um novo fator no Brasil rural, agrícola ― tomou o lugar do paternalismo. Então, o velho padrão paternalístico, pessoal, de proprietário–diretor transformou-se completamente. O chalet não é mais cenário de encontros de família nas férias de verão, no Carnaval ou no Natal; mesmo a tradicional “botada” (festa de início da moagem das canas ― NT) sofreu mudanças. Novas caras e diferentes relações predominam na Usina São Pedro. Outra mudança, mas em sintonia com o passado, foi um aumento de capital, aplicado na modernização da usina. A capacidade de moagem aumentou bastante. Mas, o setor agrário continua como antes, sem inovações. O resultado é que a usina tem capacidade de moer e


125 produzir açúcar muito mais rápido do que pode ser fornecida de cana. O aspecto hierárquico da usina, diagramado lá atrás, permanece o mesmo, e cada fazenda ainda funciona como uma unidade separada. Em contraposição, a fazenda privada na comunidade de Vila Recôncavo experimentou relativamente poucas mudanças nesses cinco anos. Elemento mais conservador no Recôncavo, a fazenda particular continua a manter seu aspecto característico: a relação pessoal, cara-acara, paternalística proprietário-trabalhador. O padrão hierárquico permanece o mesmo. Os trabalhos continuam na base da força manual e animal, porém os proprietários estão pouco a pouco introduzindo a mecanização em certas partes do processo, especialmente no transporte; caminhões e carretas puxadas a trator levam a cana do campo para a usina. Tratores e arados mecânicos são bastante usados na preparação do solo, e semeadores mecânicos já estão em uso em algumas fazendas. Entretanto, a maior parte do trabalho ainda é feito à mão e a tração é fornecida por bois e burros. Não há carregadeiras, escavadeiras ou plantadeiras mecânicas, e há pouco uso de fertilizantes e herbicidas. Poucas práticas científicas agrícolas estão em uso. O plantador ainda é, prioritariamente, um homem “prático”. As relações entre a Usina São Pedro e as fazendas particulares sofreram também mudanças consideráveis, tanto no aspecto de negócio quanto social. Os novos gerentes da usina conseguiram afastar quase completamente os fazendeiros particulares que lhes fornecem cana-de-açúcar. Não só membros da grande família Conde, mas também outros fornecedores ressentiram-se da arrogância e modos bruscos dos novos gerentes. Interessados em romper completamente com o passado, os novos gerentes instituíram várias políticas nas relações com os fornecedores. Antes, estes compravam açúcar por saca, faziam suas compras domésticas no armazém da companhia e tinham suas máquinas consertadas nas oficinas da usina, pagando tais serviços no fim da safra. Os fornecedores recebiam prestação de contas que mostravam quanto de cana foi enviado à usina, o preço, quanto a usina pagou ao banco pelos empréstimos do fornecedor, quanto foi adiantado ao fornecedor por suas canas e quanto ainda sobrava para ele, descontando os custos dos serviços prestados pela usina. Essa sempre foi uma prática tradicional, não somente na Usina São Pedro, mas também nas demais usinas da região. Entretanto, agora a Usina São Pedro cobra em dinheiro no momento da negociação por cada serviço que o fornecedor recebe. Além disso, a usina está cortando gradualmente o número de serviços oferecidos aos fornecedores. Isso é muito sério com relação a serviços mecânicos, já que os fornecedores particulares não têm outro local de conserto de suas máquinas, exceto em Salvador. Levá-las à capital toma muito tempo e custa muito mais que quando os serviços eram prestados nas oficinas da usina. Os novos gerentes primeiro cobraram um desconto automático sobre a tonelada de cana fornecida por cada fazenda particular. Isso resultava em uma grande perda de dinheiro no fim do ano para cada fornecedor, piorando assim as relações diárias que se tornavam cada vez mais desagradáveis. Qualquer questão sobre medida e tonelagem é muito desagradável para os fornecedores, que vendem suas canas por peso. O desconto imposto pela usina tornou-se uma questão tão séria que vários fornecedores se uniram e convocaram o Instituto do Açúcar e do Álcool em sua defesa, sendo então a situação corrigida. Isso aconteceu pela “primeira vez” na Usina São Pedro, onde tal coisa nunca acontecera e onde tal recurso é considerado extremo.


126 As relações sociais entre os fazendeiros e os gerentes da usina são quase inexistentes. Considerando que alguns anos atrás a usina era ponto central de reunião da vida social dos fazendeiros da região, agora é local a ser evitado. Além de tornar as condições de trabalho difíceis, os novos gerentes e suas famílias são de fora desta pequena e fechada sociedade de fazendas, com diferentes contextos e costumes. Como resultado dessas novas condições, os fazendeiros gastam mais tempo em suas propriedades do que antes, mas a vida social gira em torno das fazendas, evitando-se o “núcleo usina”. Esse padrão também reflete nas atividades dos trabalhadores residentes nas fazendas, que estão aborrecidos com o tratamento dado aos empregados mais velhos da usina e do campo e estão se esquivando de visitar o núcleo usina. O resultado das novas condições entre fazendeiros e a usina é o desejo de parte dos fornecedores da São Pedro de tornarem-se independentes deste estabelecimento. Vários fazendeiros estão fornecendo suas canas a outras usinas nas vizinhanças, quando é conveniente. Muitos deles pensam seriamente em mudar suas lavouras, conforme será descrito adiante. Na verdade, uma boa extensão de terras já foi retirada da produção de canade-açúcar, diminuindo assim futuras safras e pondo em perigo o recebimento de cana pela Usina São Pedro. Anteriormente pacífica, “tudo em família”, a região quase protegida tornou-se uma área de tensões e poucas relações de negócio e sociais. A situação tem todas as características de um tipo tradicional de tomada de terra de cana-de-açúcar. A usina precisa de terras para produzir mais cana a fim da moenda operar em plena capacidade. Ninguém deseja vender para a usina nem mesmo fornecer mais cana do que poderia sob outras condições. Mas os fazendeiros são dependentes da usina, economicamente e por seus serviços. Portanto, é muito simples para a usina criar dificuldades para fazendeiros individuais, até os forçando gradualmente a falirem, uma vez que o fazendeiro opera a crédito e tem pouca margem mesmo para uma quebra de safra. A bancarrota dá oportunidade à usina de barganhar as terras que ela necessita. A indústria do açúcar na comunidade de Vila Recôncavo tem passado por mudanças em relação a trabalho, como a indústria como um todo. Como já mostrado no Capítulo 4, o preço da cana e do açúcar é regulado artificialmente e tem subido lentamente ao longo de alguns anos. Entretanto, a legislação social nacional nos últimos três anos tem aumentado anualmente os salários dos trabalhadores, antes dos aumentos de preço serem garantidos pelo Instituto do Açúcar e do Álcool. A espiral inflacionária também tem ajudado o crescimento de todos os custos de salários, materiais e maquinaria. Enquanto os preços por serviço realizado sempre foram muito bem regulados, recentemente tornaram-se um grande problema, e há muitos trabalhadores descontentes. O plantador, particular ou empresarial, é o mais interessado em manter baixos os custos trabalhistas, já que outros custos, particularmente de maquinaria e reparos, estão crescendo, diminuindo sempre a margem entre o custo total de produção e o preço de venda estabelecido. Pela primeira vez na história da Vila Recôncavo, trabalhadores descontentes promoveram uma greve acompanhada de violência. O movimento, embora tenha tido caráter geral na indústria açucareira, foi a primeira na qual trabalhadores da Vila Recôncavo participaram. Foi especificamente dirigida contra o setor agrícola do conjunto fabril. Entretanto, ela afetou também algumas fazendas particulares, e alguns dos seus trabalhadores aderiram a ela. A


127 greve foi imediatamente sufocada pela ação da polícia estadual. Nas investigações, a polícia encontrou considerável literatura e propaganda comunistas na sede do sindicato dos trabalhadores em Centro, que organizara a greve. O próprio sindicato era ilegal, pois não estava devidamente registrado nos órgãos apropriados e os seus líderes eram agitadores comunistas bem conhecidos. O que é importante para nosso estudo é o surgimento, na comunidade de Vila Recôncavo, de propaganda comunista escrita e verbal e a vontade de trabalhadores rurais locais de participar de uma greve geral. Isso é uma mudança tremenda para uma região conservadora, onde a lealdade e o paternalismo sempre foram fortes. A indústria açucareira de Vila Recôncavo entrou em uma fase de muitas e novas dificuldades: as ligações entre a usina e os fornecedores estão tensas e as relações trabalhistas estão se tornando problemas para os plantadores, particulares e empresariais. A inflação e a “cotação do dólar”, que afetam diretamente os plantadores, já que todo o maquinário tem que ser importado, também trabalham para o desenvolvimento de uma nova “crise”, seguindo o padrão descrito no Capítulo 3. Entretanto, um novo elemento está entrando na comunidade de Vila Recôncavo em forma de uma nova cultura, o cacau. Um dos fazendeiros (Vicente Porciúncula, no Engenho d’Água – NT) começou uma experiência com cacau durante o primeiro período de pesquisas do autor na Vila Recôncavo. Mas, são precisos pelo menos cinco anos para se saber se o cacaueiro dará frutos satisfatoriamente. No fim de 1955, o Instituto de Cacau da Bahia apresentou ao público o experimento como um sucesso e agora está sistematicamente estimulando o interesse no cacau como substituto possível e lucrativo da cana-de-açúcar. Cacau é o maior produto de exportação da Bahia e significa dinheiro para o baiano. Ainda mais atrativo é o fato de que o cacau introduzido no Recôncavo é uma mutação genética, que dá um fruto de semente branca que tem um preço bem maior no mercado mundial do que o fruto normal. A atração financeira do cacau e a situação incômoda e financeiramente frágil da indústria açucareira na Vila Recôncavo estão criando considerável interesse em parte dos fazendeiros da comunidade. Assim como a cana-de-açúcar é limitada pelo solo e condições climáticas, o cacau também o é. Há um pequeno temor de competição em outras regiões. Além disso, o cacau é exportável, enquanto o açúcar da região é para consumo interno. Apesar da atração desta nova cultura, há certos problemas com que lidar. Primeiro, os detalhes da mudança da cana-de-açúcar para o cacau devem ser planejados, especialmente os referentes a espaço e financiamento. O plantador tem de adaptar os canaviais, pastagens e terras de rotatividade para que, aos poucos, possa separar terra para preparar para o cacau. Se ele quiser financiar pessoalmente a transição, não pode abandonar a produção de cana; na verdade ele vai precisar de mais dinheiro do que antes. Normalmente, os bancos emprestam para a safra vindoura. Se a safra é reduzida, então é o total que pode ser emprestado. Entretanto, para resolver isso o Instituto de Cacau da Bahia prepara um programa de financiamento a longo prazo.O trabalho com a cana-de-açúcar é contínuo: planta-se em um ano, colhe-se durante três ou quatro anos, então a terra é arada e replantada. O cacau, por outro lado, é uma cultura permanente, que dá seu primeiros frutos em cinco anos, atinge a maturidade em quinze ou vinte anos e continua a produzir anualmente por sessenta ou até cem anos. Assim, a cana é financiada de ano a ano, enquanto a plantação inicial do cacau deve


128 ser financiada a longo prazo, de dez a quinze anos. A mudança de uma cultura recorrente para uma permanente também requer uma mudança de mentalidade totalmente diferente por parte do fazendeiro. Cacau é uma “cultura de floresta”, o que significa que ele requer sombra. Em condições primitivas, é plantado em floresta tropical densa. Na Vila Recôncavo, entretanto, a mata atlântica foi inteiramente devastada durante os últimos quatro séculos, uma vez que a cana-deaçúcar não tolera sombra. Antes do cacau ser plantado, a sombra deve ser providenciada. Isso é feito plantando-se bananeiras e, a intervalos fixos, uma árvore de crescimento precoce, alta e de vida longa (a eritrina ― NT). Para custear o trabalho envolvido é comum se plantar mandioca entre as bananeiras. A mandioca é colhida no ano seguinte, e logo após as mudas de cacau podem ser plantadas. A bananeira oferece sombra suficiente para as mudas. Por um período de cinco ou seis anos o fazendeiro pode colher bananas, que cobrirão os custos operacionais enquanto espera a maturação do cacau. Ao fim de cinco ou seis anos, a eritrina já está bastante grande para proporcionar sombra suficiente, e as bananeiras são gradualmente retiradas. Ao mesmo tempo, o cacaueiro começa a dar seus frutos, e o fazendeiro pode se considerar um cacauicultor. Vários fazendeiros em Vila Recôncavo estão no estágio de plantar banana e mandioca, e defrontam-se com seu primeiro problema de mão-de-obra. Ninguém quer trabalhar nos bananais e nos mandiocais porque o serviço é árduo e lento. Não há máquinas disponíveis para o cultivo mecânico da mandioca, e o serviço tem que ser feito a mão. O trabalho é realizado lentamente, mas a custos que fazem da mandioca um passivo considerável. No entanto, apesar dessas dificuldades, há muito interesse no cacau em Vila Recôncavo, e ele pode ser considerado um elemento de mudança na comunidade que terá efeitos de longo alcance. A área da produção açucareira será bastante reduzida, requerendo ajustes por parte das usinas, que representam um grande investimento financeiro. Ademais, o cacau é um produto relativamente simples de processar ― sua transformação em chocolate normalmente é feita após a exportação ― e é muito provável que cada fazenda voltará ao antigo feitio de “plantation”, tanto cultivando quanto processando seus produtos, e tornando-se mais uma vez uma unidade altamente autossuficiente. Isso, é claro, levará a um novo alinhamento nas relações socioeconômicas e, sem dúvidas, alterará a estrutura da comunidade. A terceira causa principal de mudança em Vila Recôncavo é o crescimento de uma nova e potente indústria dentro da comunidade e nos seus arredores. É a indústria petroleira brasileira. Trabalhos exploratórios foram feitos em Vila Recôncavo em 1950 e em 1951 sob a direção do Conselho Nacional do Petróleo. Desde aquela época, uma empresa nacional, a Petrobrás, está sendo formada para explorar os campos de petróleo que jazem no subsolo do município de Vila Recôncavo. A Petrobrás vem perfurando centenas de poços e tem construído estradas, oleodutos, tanques de armazenamento e oficinas. Fora dos limites da comunidade, mas dentro do município, foram construídas uma refinaria e uma pequena e moderna cidade para alojar os técnicos ― e suas famílias ― da refinaria e do campo. Em um pedaço de terra desapropriado da Usina São Pedro também foi construída uma série de barracões, um salão de recreação, um restaurante e um centro de serviços para os trabalhadores de campo solteiros.


129 Apesar disso, as mudanças na estrutura da comunidade trazidas pela indústria do petróleo ainda têm sido relativamente pequenas. Esta indústria existe na comunidade como uma intrusa, não afetando demais a vida comunitária e não contribuindo com benefícios locais substanciais. Isso em parte se deve ao fato de que é uma empresa nacional, com escritórios na cidade de Salvador, em vez de produto de realização local. Na sua maioria, os petroleiros não estão sendo recrutados da mão-de-obra local, estão vindo de fora do município. É como se fosse uma base militar instalada temporariamente em Vila Recôncavo. O efeito na cidade de tem sido, principalmente, o aumento do número de casas. A maioria dos trabalhadores casados da Petrobrás mora na cidade de Vila Recôncavo. Naturalmente ocorreu um aumento de perspectiva entre os moradores da cidade como resultado da convivência social, como também uma nova prosperidade devida ao grande número dos recém-chegados. Entretanto, ainda não há automóveis particulares, ônibus ou transporte público no município. Os petroleiros e suas famílias vão para Salvador sempre que possível para fazer compras e se divertir em vez de procurarem satisfazer essas necessidades na Vila Recôncavo, onde os serviços públicos, diversões etc. continuam quase inexistentes. Em contrabalanço ao efeito da prosperidade trazida para a cidade pelo crescimento da população, a indústria petroleira tem provocado um efeito adverso nas atividades pesqueiras da população urbana. Muitos poços têm sido perfurados nas águas rasas da Baía de Todos os Santos em frente à cidade. Como resultado das explosões submarinas, da passagem constante de lanchas rápidas a motor, de máquinas perfuradoras e de dragagem, a área de pesca tradicional dos pescadores da cidade está sendo rapidamente exaurida e seu balanço ecológico destruído. Os pescadores estão gradualmente abandonando a pesca como ocupação e procurando outras atividades remuneradas, tanto fora da comunidade quanto na empresa petroleira, e, com menos intensidade, na usina de açúcar. Outros procuram realizar serviços, por exemplo, como pedreiros, para quebrar o galho. A Petrobrás tem afetado muito pouco a vida rural. Os fazendeiros da região têm se beneficiado bastante por causa das estradas construídas pela companhia. Agora é possível se viajar de automóvel da capital para as fazendas em qualquer estação do ano. É um percurso de duas horas, muito mais confortável que o antigo sistema de viajar de navio e a cavalo. Além disso, as estradas tornam possível o transporte mais eficiente das canas, usando-se caminhões e carretas puxadas a trator. E a refinaria proporciona grandes suprimentos de óleo diesel, gasolina e querosene, não sendo mais necessário se trazer esses produtos da capital, com grandes despesas e atrasos. Os fazendeiros também têm se beneficiado de outra maneira. A Petrobrás invadiu canaviais em sua procura por petróleo. Cercou pequenas áreas onde perfurou, construiu tanques de armazenamento e retirou boa parte das terras de produção de cana para estradas e instalações. Recentemente, chegou-se a um acordo de se pagar aos fazendeiros, de maneira satisfatória, pelo uso das terras. Como resultado, cada fazendeiro que tem sua terra parcialmente ocupada agora recebe uma compensação anual em dinheiro com base na produção que aquela terra ocupada teria. Até agora nenhum acordo tem sido feito para os proprietários de terras participarem dos lucros da Petrobrás, uma vez que as riquezas do subsolo pertencem à União e portanto, neste caso, à Petrobrás.


130 Tem havido poucas relações sociais entre os fazendeiros e o pessoal da Petrobrás, tanto na zona rural quanto na cidade de Salvador. Às vezes, funcionários do alto escalão da Petrobrás são convidados para grandes festas promovidas por fazendeiros, e em contrapartida os fazendeiros são convidados para festas na refinaria. Mas a sociedade dos fazendeiros é tão fechada e tão baseada solidamente nas relações familiares que se torna difícil manter relações sociais firmes com recém-chegados. Além disso, os engenheiros e outros especialistas em petróleo são principalmente orientados para a capital, e não há tentativas sérias para se estabelecer relações com os fazendeiros. Os trabalhadores de cana-de-açúcar, de sua parte, são tão orientados para as fazendas que procuram pouca diversão entre os petroleiros. Os trabalhadores solteiros da Petrobrás, que se supunha estabelecerem relações com a população rural, raramente o fazem. Eles moram em uma área de barracões cercada que logo dá a impressão de ser um grupo segregado do resto da sociedade. Quando procuram diversão, vão ao povoado da usina ou à Vila Recôncavo ou à cidade vizinha de Milagres (Candeias – NT). Politicamente, o influxo de novos trabalhadores tem tido pouca influência. A política local permanece nas mãos dos proprietários rurais tradicionais. Entretanto, outros partidos políticos nacionais que não os dos proprietários rurais estão ganhando força, especialmente o partido trabalhista, e em futuro próximo vão haver sem dúvidas consideráveis modificações nos padrões eleitorais. A massa da população rural não tem direito a voto por ser analfabeta. Por outro lado, os petroleiros, cujo nível de vida é bastante superior ao da população rural, podem votar e, conforme a lei, são obrigados a exercer o direito. A principal área de mudança na comunidade é a da estrutura de classes. Em seus principais contornos, ela permanece a mesma, mas há algumas diferenças a se enfatizar. A Classe A, a classe alta rural, que também faz parte da classe alta na capital, onde reside parte do ano, tem diminuído. O Coronel, seu filho e seu genro, com as respectivas famílias, que formavam a família de proprietários-diretores da Usina São Pedro, não mais fazem parte do cenário. Como resultado da mudança de mãos do capital e da direção, o ex-usineiro foi substituído por empregados assalariados(1). Embora esses empregados tenham relações familiares com os principais membros da nova companhia, são tratados mais como empregados do que como membros da família. Eles não têm “estatura social”, isto é, tradição, background, relações familiares extensas e formação acadêmica, o que os distinguem dos ex-proprietários. Por isso, a Classe A é agora representada somente pelos proprietários particulares de fazendas. De outro lado, a Classe B está crescendo passo a passo na zona rural e na área urbana da comunidade pela incorporação de dois novos grupos: os membros da nova organização usineira e dos petroleiros com seu alto padrão de vida, melhor educação e empregos estáveis como membros de uma nova burocracia, a Petrobrás. Petroleiros solteiros procuram se casar com moças da região, especialmente as que moram no povoado da usina e na cidade de Vila Recôncavo. Em alguns casos, têm acontecido casamentos civis e religiosos. Em outras oportunidades, o casal simplesmente passa a viver junto. Mas a política da Petrobrás é que seus empregados formem famílias regularizadas e registrem os seus filhos para que os benefícios da legislação e seguridade social possam ser pagos aos beneficiários legais, como esposas e filhos. Em razão da grande quantidade de casamentos recentes, não há mais casas


131 disponíveis na Vila Recôncavo nem em Milagres (Candeias ― NT), e está havendo um surto de construção de moradias.

(1) O termo “usineiro” é normalmente restrito ao proprietário-diretor que é o fundador da usina, ou ao filho do fundador. Quando o diretor é empregado assalariado, ele é apenas o “chefe”.

Tem havido também mudança de ênfase na estrutura da comunidade. Apesar do núcleo usina ter deixado de ser cenário de reunião social da classe alta da região, a estrutura do sistema usina-fazenda particular assegura que ele, núcleo usina, continue a ser o centro econômico enquanto a cana-de-açúcar for cultivada na área. O sistema de cotas estabelecido para o fazendeiro e para a usina pelo Instituto do Açúcar e do Álcool requer que o plantador e a usina cooperem no fornecimento e no recebimento da cana-de-açúcar. Também a estrutura física da área, na qual a usina é o centro de uma rede de pequena ferrovia que chega a cada uma das propriedades particulares, reforça a impressão da usina como centro das atividades. É claro que a possibilidade de futura transição do açúcar para o cacau reduzirá a importância da usina. Entretanto, há um novo fator que dará mais relevância como nunca à usina: uma feira. O município de Vila Recôncavo não conta com uma feira semanal. Por muitos anos, autoridades municipais quiseram montar uma, não só para aumentar a arrecadação municipal, mas também atrair mais gente para a área e tornar mais fácil a vida da população. Um mercado agora está em construção no povoado da usina. Quando estiver concluído, o núcleo usina se tornará pelo menos um centro de atração semanal para muita gente das fazendas da redondeza. O desenvolvimento da indústria do petróleo está trazendo nova vida à cidade de Vila Recôncavo e à cidade vizinha de Milagres. A Petrobrás não pode desenvolver um núcleo nas terras que pertencem à usina ou a fazendeiros, e, portanto, deve concentrar qualquer empenho em construção de comunidade local nas velhas cidades públicas que já existem. Indiretamente, a Petrobrás, através de acordo com o município, logo contribuirá consideravelmente com a arrecadação municipal. O mesmo tipo de compensação que foi acordado com os fazendeiros agora está sendo acertado com o município, através de tributos sobre produtos finais da refinaria, ou seja, gasolina, querosene, óleo diesel, gás em botijão e outros derivados do petróleo. Como resultado do aumento de arrecadação, o governo municipal estará capacitado a promover melhoramentos consideráveis na sede. Um hospital já está sendo construído, assim como uma nova ponte de atracação para melhor receber os navios que vêm de Salvador. Em Milagres (Candeias ― NT), já há um forte movimento para se separar do município-mãe (Salvador ― NT) e se tornar ele próprio um município, padrão comum no Brasil para distritos que atingem certa população e grau de atividade econômica. Assim, há duas possibilidades de crescimento urbano na região e para a formação de centros urbanos que atrairão a grande população rural. A cidade de Vila Recôncavo está perto de concretizar outras possibilidades. A


132 construção de uma estrada para a cidade de Centro (Santo Amaro – NT) já começou, atendendo a uma antiga necessidade. A sua conclusão tornará possível o trânsito de carros, ônibus e caminhões que venham de Feira de Santana, na borda do sertão, para Centro, e então passando por Vila Recôncavo até Milagres, e por dentro da cidade, diminuindo o percurso da estrada existente que segue pela beira do Recôncavo. Este itinerário “poria a Vila do Recôncavo no mapa” e aumentaria muito seus contatos com o mundo exterior. Além disso, as possibilidades da introdução de uma nova cultura na comunidade trará crescimento na atividade comercial e muito mais impostos, permitindo ao município construir suas próprias estradas e pontes e promover outros melhoramentos para o desenvolvimento da região. Então, a estrutura da comunidade de Vila do Recôncavo, que há cinco anos estava em processo de cristalização ao redor do povoado da usina, encontra-se agora pronta para novas mudanças. O povoado da usina continua, presentemente, a ser o centro principal, mas a velha sede do município tem todas as possibilidades de um renascimento de sua antiga importância. Na verdade, em razão da indústria do petróleo e da futura transição do açúcar para o cacau, o povoado da usina está ameaçado como centro comunitário, posição que só recentemente foi consolidada. Finalmente, uma das mais importantes modificações na Vila Recôncavo nesses cinco anos foi a mudança de atitude por parte das pessoas. Vila do Recôncavo sempre foi conhecida como uma comunidade conservadora, mantendo antigas tradições e costumes, rejeitando novidades. Entretanto, há agora um ar de esperança e uma procura por novos caminhos e novas coisas. A insatisfação com a indústria açucareira, combinada com o surgimento de uma nova indústria e novas pessoas, tem trazido novas ideias e um desejo por mudanças. A cidade de Vila do Recôncavo começa a perder seu ar de abandono. Os habitantes da zona rural não estão mais satisfeitos com as velhas formas de trabalho manual e animal. A comunidade como um todo parece sentir que está à beira de algo novo e empolgante. Os principais contornos do que está por vir ainda não são claros, mas um desejo de mudança invade a região.


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