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Mr. Pink e o ressentimento

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Cronologia

Cronologia

Mr. Pink e o ressentimento

Paulo Maia

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No meio de cabras ladrões de diamantes, ser chamado de Mr. Pink é foda! Ressentimento é uma pressão dirigida ao futuro distante estrategicamente planejado, planejado, replanejado tanto que o planejamento se torna meta, razão, máquina, só. Mr. Pink ficou sendo assim mesmo: ele é um personagem secundário que se torna o centro da narrativa de Cães de aluguel; aliás inesperadamente. Revanchismo é a marcação deste personagem, sempre que ele aparece. Sua cara de revolta engasgada, lágrimas acumuladas, cueca apertada atestam sua expressão de sujeito sempre contrariado.

O personagem secundário em qualquer análise de ficção geralmente é deixado de lado mesmo. Não é o caso de Mr. Pink, este “profissional”, como repete sempre, que faz uma pontinha no filme. Ele se esforça muito para fazer parte do bando de ladrões chefiado por Joe. Se anuncia quando visível, prestativo quase sempre, pontual e oportuno, o tempo todo invocando comprometidamente os deveres e princípios moralizantes do trabalho, da profissão, tentando sempre ser um profissional exemplar.

Entretanto, não dá gorjetas. Acha que as garçonetes já ganham o suficiente para o trabalho simples que realizam, e gorjeta as deseducaria. Joe pede a todos da mesa, do bando, que deem 1 dólar de gorjeta, pois pagaria o café de todo mundo. Na manhã do assalto, num café, o contrariado Mr. Pink contraria seu bando e se torna o centro. Ele considera injusto que as garçonetes sejam tão reconhecidas por um trabalho deste, injusto talvez com ele que nunca ganhará gorjeta alguma, que não será reconhecido pelo seu “trabalho”, apesar do risco. Cães de aluguel é uma pedagogia do ressentimento para Mr. Pink. E ele, um aluno calado, um aluno que espera o que nem sabe que espera. Pois nem mesmo no mais otimista dos seus sonhos ele sonhara com o final que teria. Sobreviver aos figurões que admira, copia e até busca exceder em compromisso, no excesso de moralismo da ética do trabalho que invoca o tempo todo. Muito menos, esperava Mr. Pink sobreviver a Joe, o patriarca, o poderoso chefe desta matilha colorida de ladrões de diamantes.

Debaixo da rampa da oficina-esconderijo da última cena, quase que nem acredita que ainda está vivo e que, melhor, é o único e com uma maleta milionária. Com a morte do bando e de Joe, ninguém mais irá procurá-lo.

No ressentimento, o tempo da vingança nunca chega. O ressentimento é tão incapaz de vingar-se quanto foi impotente em reagir imediatamente aos agravos e às injustiças sofridas [...] Para que se instale, é preciso que a vítima não se sinta a altura de responder ao agressor; que se sinta fraca, ou inferior a ele. (Khell, p.114)

Mr. Pink é fraco, inseguro, covarde, impotente e vitorioso. É a vitória irônica do ressentimento. O bando se liquidou numa crise de identidade: quem é o policial infiltrado? Quem é o inimigo? Quem traiu? A desconfiança e a revolta coletiva eliminaram o grupo. Sobrou Mr. Pink, um burocrata da malandragem. A confusão entre a ordem e a desordem, o medo e a coragem, a honra e a burocracia se instala no final de Cães de aluguel. Este se converte no último grande assalto de um grupo de figurões presos num passado e liberados sob condicional num mundo em que não cabem mais. Eles não são bandidos coloridos, aceitam o codinome como uma concessão estratégica à nova ordem. Vestem a máscara e ela é colorida e frágil. Esta máscara logo se revela como elemento transitório para uma crise de identidade generalizada. Como Pink, um policial, um representante da burocracia armada que Mr. Blonde sequestrara para expiar sua raiva sádica contra o passado na prisão, perde a orelha e também não se revolta, ele se ressente do aspecto perdido.

A narrativa é de cima, de fora, pela moralidade burocratizada e pelo compromisso com a ordem do sistema colorido. Mr. Joe, Mr. White, Mr. Orange, Mr. Blonde e Mr. Blue, cowboys mobilizados, para esta última missão do velho mundo não suportam a máscara, que foram obrigados a usar no mundo onde não cabem, eles preferem acabar com a farsa. A revolta vence em seus corações. Não há violência gratuita neste bando. O auto-assassinato é uma negação à farsa colorida da atualidade. E quem polariza a tensão na cena do assassinato é Mr. White, experiente pacificador do grupo. O ressentimento grita alto o slogan do inimigo e Mr. Pink vence sem dar nenhum tiro. Ele é o cara que havia apontado para a provável conspiração, é ele quem implantara a ideia da traição, a intriga, a desagregação no grupo. A projeção de seu ressentimento só o faz pensar naquilo

que qualquer outro poderia estar tramando para derrubá-lo. E é assim que ele foge, sem violência, disfarçado, de acordo com a ordem do mundo que a princípio negara.

Como o ressentimento é insolúvel e inofensivo por princípio, Mr. Pink sobrevive para marcar o limite entre o romantizado mundo dos figurões do velho oeste, referência forte em Tarantino, e o mundo onde a revolta é burocratizada, inofensiva, inoperante, impotente. Cães de aluguel acaba sendo um filme sobre a vitória do ressentimento, na medida em que põe o personagem secundário numa posição central nas tensões do filme, sem que ele tenha movido uma palha para isso. A ética do trabalho foge com ele e a maleta fácil de diamantes. A sua inoperância absoluta, agora que seus comparsas e seu chefe estão mortos, é cega e surda, só conhece as pernas e a saída pela tangente, apesar do sapato que deve continuar apertado. Mr. Pink aceita sua máscara colorida porque isso o torna invisível lá fora onde ninguém estranhará o seu gesto mascarado.

Em O homem revoltado, Albert Camus analisa a experiência da revolta individual e coletiva na recente história ocidental. A revolta seria a superação do absurdo, daquilo que não se pode mais suportar.

O mal que apenas um homem sentia torna-se peste coletiva. Na nossa provação diária, a revolta desempenha o mesmo papel que o cogito na ordem do pensamento: ela é a primeira evidência. (Camus, p. 35)

A revolta nasce do oprimido que resiste e de quem se identifica com esse sentimento. A revolta, uma vez organizada, consiste no suicídio e na busca por um homem que ainda não nasceu. Mr. Joe e parte de seu bando são homens revoltados num processo que lhes parece absurdamente hostil. Camus diz que o homem revoltado prefere morrer de pé do que viver de joelhos. Só que estes revoltados cães de aluguel se matam pela ética de um mundo em desuso, eles lutam não por um homem novo, mas por um tipo que admiram no trem da história que corre em direção ao velho oeste. Um programa de rádio embala o bando do início ao fim do filme, seja nas fugas de carro, no restaurante ou na oficina. DJ. Steven Wright, um admirado comediante dos anos oitenta conhecido por sua intensa inexpressividade facial e vocal é quem apresenta o programa Super Sound´sof the 70´s na Rádio K-Billy, 108,1 FM, uma rádio fictícia e um programa de clássicos da música pop americana dos anos 1970. Ele se converte num

narrador estrategicamente sem expressão, disfarçado nos aparelhos de rádio instalados em todos os lados no filme. O coringa destes revoltados do passado é invisível, mas ele narra cada passo desta história com sua voz estranhamente monótona e na seleção dos clássicos do Pop dos anos 70. Sem que a gente perceba, ele vai nos envolvendo no mundo administrado. Os revoltados se revoltam. Mr. Pink, o ressentido, foge como quem fareja uma boa oportunidade.

Referências bibliográficas:

CAMUS, Albert. O homem revoltado. São Paulo: Record, 2003.

KHELL, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.

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