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Kill Bill Vol. 1

Kill Bill: Vol. 1

Ruy Gardnier

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Num determinado ponto de Kill Bill: Vol. 1, no meio da chacina que a Noiva desencadeia para aplacar sua sede de vingança contra a chefe yakuza O-Ren Ishii, o filme instantânea e arbitrariamente perde a cor (o pretexto é uma cena em que a personagem arranca os olhos de um dos capangas de O-Ren), continuando em preto e branco até que um piscar de olhos da protagonista seja suficiente para o filme voltar às cores originais. Essa cena-dentro-da-cena tem antes de tudo uma função de equilíbrio visual, e, numa menor medida, narrativa: remete ao começo do filme, quando vemos, também em preto e branco, a Noiva sendo torturada por Bill, num plano aproximado do rosto da personagem feminina. Este flashback estilístico – flashback porque não vemos nenhuma imagem do passado, mas acedemos a algumas delas através de um procedimento visual diferente – nos aproxima da vingança da Noiva, porque curtocircuita causa e efeito e recoloca o preto e branco, já esquecido, novamente nos trilhos do filme. Mas a importância principal da passagem de cores nesse momento do filme é simplesmente estar lá, perspectivar nossa imersão, mostrar que o cinema é arte lúdica, abraçar o arbitrário como se fosse o melhor amigo. Escapismo pop, filme-Z-de-orçamento-A, ode à violência? Nada disso. Quentin Tarantino é um homem que pensa a imagem (e a imagem de seu tempo) como poucos, e intuiu logo cedo que a única maneira de restituir crença a uma imagem cinematográfica hoje é realizar uma quase paradoxal mistura de cinema de gênero (lugar da crença por excelência) com o pop mais descarado (lugar do cinismo por excelência). Não à toa, foi o único homem que conseguiu construir nos anos 90 uma cinefilia nova – mesmo que problemática – através de seus filmes.

Quentin Tarantino é um excelente crítico de seus próprios filmes. Kill Bill: Vol. 1, para ele, é sua primeira incursão no “mundo do cinema”, enquanto seus outros três longas fazem parte do “mundo de Quentin”. Isso é menos uma desculpa do que a inserção num outro código de cinema, que reflete as alterações da imagem cinematográfica desde Jackie Brown, seu último longa (1997), até hoje. Desde então, grande parte dos filmes mais interessantes surgidos assume uma postura reflexivo-

conceitual de citação. Podemos falar de filmes tão diversos quanto Psicose e Gerry, ambos de Gus Van Sant, Longe do paraíso, de Todd Haynes, História(s) do cinema, de Godard ou os dois As panteras, de McG. Neles, o que se toma emprestado (seja Hitchcock, Sirk, videoclipe, Richard Lester ou Bela Tarr) é condição para aquilo que se tem a dizer. Não se trata de cinema reiterativo, mas que cria a partir de um outro. O ready-made cinematográfico sempre esteve latente no cinema de Tarantino; em Kill Bill: Vol. 1, ele faz do empréstimo de fórmulas e imagens o centro. Num determinado momento, falamos de esquizopopart, 1 e agora é a ocasião de trazer o termo novamente à tona.

Kill Bill: Vol. 1 é uma homenagem a Chang Cheh, mais importante realizador de filmes de Hong Kong nos anos 1970, e também às diluições televisivas que esse cinema rendeu nos Estados Unidos. Ora, tanto Chang Cheh quanto Sergio Leone – sabidamente o realizador preferido de Tarantino – fazem parte do momento crepuscular do cinema de gênero, numa época em que este passava a remeter imediatamente não mais ao mundo, mas às figuras tornadas clichês do próprio cinema. A chave era reinvestir a imagem em tipos já conhecidos do espectador, fazendo com que o interesse principal do filme circulasse em torno do estilo, da mise en scène e do poder icônico da imagem (outro preferido de Tarantino, Brian De Palma é o principal responsável por essa virada dentro do cinema americano). Passada a tábula rasa dos anos 1980, quando uma nova tentativa de acesso ao real se perde num total “chororô” da perda de referência e da crença (Wim Wenders, morte do cinema etc.), é necessário retornar aos velhos clichês para reconstruir um cinema que fale sobre si mesmo e que, em detrimento de certa preocupação profunda com o real, faça voltar um culto de adesão à imagem capaz de criar diferença no mundo de hoje.

Dito tudo isso, Kill Bill: Vol. 1 cumpre à risca e excepcionalmente seu projeto. O filme devolve à imagem toda a capacidade de fascinação que ela pode ter, agregando a ela toda uma miríade de referências, acavaladas cuidadosamente uma atrás da outra, sejam os filmes de Hong Kong (Chang Cheh, mas também King Hu e Ching Siu-tung), seja o cinema de animação japonês

1. Termo criado pelo autor em sua crítica para o filme As panteras detonando (2003), de McG. Segundo definição do autor, “esquizopop art designa tanto uma complicação da relação entre sujeito e objeto no terreno da citação quanto uma arte toda própria dos deslocamentos narrativos e de espaço-tempo em que as distâncias e as durações são encurtadas ou curto-circuitadas: ontem é amanhã, aqui é lá, o começo é o meio é o fim”. Ver www.contracampo.com. br/66/esquizopopartruy.htm [N. E.]

(anime), sejam os westerns italianos (através da trilha sonora). A referência funciona em uma chave afetiva-conceitual mais do que narrativa (como em McG, aliás, mas ao contrário de Haynes – que é estratégica), e é dessa afetividade que extraímos o conteúdo positivo do filme. Quentin Tarantino expõe apaixonadamente, em primeiro plano, todas as suas obsessões estilísticas; e do poder evocativo e deliberadamente excessivo dessas imagens, nasce nossa própria paixão pelo filme. Ele ama seus artifícios estilísticos da mesma forma que os pintores uma vez amaram suas musas (e ele mesmo ama – cinematograficamente – Uma Thurman) e suas cores, como os escritores amam a cor da tinta sobre o papel branco.

A história de Kill Bill: Vol. 1 é menos a vingança de uma mulher-fantasma contra aqueles que a torturaram e a deixaram num estado de morte iminente do que uma verdadeira narrativa interna, em que som e imagem contam sua própria história. A densidade dos personagens, exigência aqui negada de certos espectadores “sérios” e “consequentes”, dá lugar a uma densidade de construção, e seria muito mais justo dizer que a história do filme começa com Nancy Sinatra, circula por um hospital, por uma bela casa de subúrbio (em que se vê, pelos planos verticais do teto e pelo split screen, uma tirada de chapéu a De Palma), depois passa por um assovio diegético, que se transforma em som de fundo, vira animação, entre tantos pontos singulares que a trama estética inclui. Kill Bill: Vol. 1 desenvolvese menos a partir de uma dinâmica narrativa do que através de uma lógica de intensidades de estilo. A Noiva, personagem criada conjuntamente por Quentin Tarantino e Uma Thurman, é mais um vetor do que um centro. É ela que passa por todos os lugares e situações, mas são esses lugares e situações que constituem o foco do filme. A única lógica narrativa de Kill Bill: Vol. 1 é a da genealogia da violência: passados traumáticos criam atualizações sangrentas (e o filme vai muito fundo nela quando a Noiva conversa com a [agora órfã] filha de Vernica Green, reconhecendo a necessidade moral de um futuro duelo). Lógica a jamais encontrar um equilíbrio, um fim – uma vez que um ato de violência sem dúvida chamará outros novos, e assim infinitamente –, funcionando como um motor da História e das histórias.

Assim, de ponto singular em ponto singular, o filme se constrói em sucessões de clímax, não só astutamente encadeados como incrivelmente diferenciados uns dos outros, e cada um chamando outro, até um fim (que não vem). A se referir, principalmente,

a uma impressionante cena dentro da batalha no restaurante japonês, em que a luz se apaga e vemos, em plano geral fixo – ritmadamente cortado por alguns planos mais aproximados –, apenas as silhuetas da Noiva e dos capangas de O-Ren lutando sobre um fundo azul. Convém lembrar que antes disso, em chave mais virtuosa, o filme tinha nos impressionado com um plano sequência fenomenal, tanto em construção de espaço quanto em virtuosismo, deixando nossa heroína ir reservadamente ao banheiro e passear por todo o hall da Casa das Folhas Azuis, para depois voltar ao banheiro, onde nossa heroína já completou a toilette. Nosso olho poderia pedir mais? Tarantino, ao contrário de todos os outros, diz que sim: depois ainda veremos, ao fim da sequência, um deslumbrante combate num jardim artificial cheio de neve, nos fundos do restaurante. Em oposição à lógica do oponente infinito – os tediosos agentes Smith de Matrix – e do mal infinito – a bravura insuportável da série O senhor dos anéis –, Tarantino nos entrega a saga do cinema infinito, que se movimenta tendo como combustível a ação e como limite a imagem. Fim? Nada disso. Mais no próximo episódio...

O que uma imagem pode? Essa parece ser a preocupação crucial de QT ao realizar seus filmes, ao menos desde Pulp Fiction. Uma preocupação que mudou: primeiro, tratava-se de estabelecer seu cinema; hoje, trata-se de manter um posto. Posição perigosamente reacionária, que seu autor consegue conjurar brilhantemente, jamais entregando exatamente o que se espera dele. Coquetel narcísico do cinema mergulhando sobre si mesmo para extrair apenas sensações sem densidade? Antes um cinema crítico – e nesse sentido, muitas vezes seus próprios filmes esvaziam a análise crítica que é feita deles –, um cinema que escolhe suas posições e vai ao fundo delas. Um cinema desses exige a mesma dedicação e entrega de Uma Thurman dilacerando um a um seus inimigos, seja ao som de punk-bubblegum ou disco-flamenco (o ecletismo sonoro espelha o visual), funcionando no ritmo “dos outros” – suas influências –, para dentro deles firmar sua própria assinatura. Observando a Noiva, podemos fazer a pergunta spinozista: “O que um corpo pode?” A pergunta faz eco com o questionamento do que pode a imagem cinematográfica hoje. QT ainda não responde, mas ao menos afirma (e a prova parece incontestável): ela ainda pode muita coisa.

Publicado originalmente pela revista Contracampo - contracampo.com.br

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