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Jackie Brown: derrame de emoções

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Cronologia

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Jackie Brown: derrame de emoções

Bruno Andrade

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A primeira cena de Jackie Brown parece redescobrir algo que havia se perdido em algum momento, algo que não parecia mais ser conhecido pelo cinema e cuja ausência dava vazão a uma sensação amnésica, imemorial. Tarantino nos passa a impressão de estar descobrindo – e em cinema o que vale é sempre a impressão, aquilo que se imprime e faz-se aparente. A descoberta? Nem a parede em forma de mosaico, nem a esteira do aeroporto. Estas peças, tais quais Tarantino as escolhe filmar, nada mais são que uma inércia, um peso do qual um cineasta contemporâneo não tem como escapar. É preciso dobrá-las, implodi-las. O diretor parece querer mostrar que aquilo que o cinema (e vale lembrar já neste ponto do texto: a obra de Tarantino se funda no simples fato de que, quando chega aos 100 anos, o cinema deixa de ser apenas o registro de uma imagem histórica e passa a ser a própria história dessa imagem) podia conhecer com a plasticidade, já conhece por completo; conhece demais até, poderia ser acrescentado. É necessária outra pulsão que anime o movimento, que faça do cinema novamente “a imagem em trabalho” (para roubar a expressão de um dos favoritos de QT). O décor não abandona seu estatuto de natureza morta até a aparição de Pam Grier em tela. Uma vez que existe esse corpo – um corpo de mulher, e especificamente de uma dama que simboliza e compreende o fato de que certos filmes existem –, as formas ganham novamente um movimento que o cinema – e só o cinema – pode lhes dar.

To set things in motion (pictures, movies, films, flicks)

A expressão, que traduzida da língua inglesa significaria algo próximo de “dar movimento às coisas”, ajuda bastante a compreender algo que é profissão de fé no cinema de Tarantino. Pictures, movies, films e flicks são designações diversas para o que no Brasil chamamos apenas de “filmes”. Dar uma ordem de “Mexa-se!” a esse manancial – não só porque em cinema as formas se agitam devido a corpos que operam algum tipo de trabalho, como também pelo fato de esses corpos cativarem a câmera a se movimentar ao redor deles – implicará também, para Tarantino, a feitura de uma pequena (porém admirável)

genealogia de sua história de cinema. Um cinema, vale salientar, propriedade e produto exclusivos de Tarantino, da sua inacreditável memória fílmica e sígnica e da capacidade de não traçar linhas que distinguem uma arte pretensamente nobre de outra mais indigna. Por tudo isso, no universo Tarantino não existem maiores distinções entre flicks e pictures, movies e films: finalmente (e até que enfim) John Cassavetes pode respirar ao lado de Jack Hill, Welles convive harmoniosamente com Samuel Fuller, Peter Bogdanovich pode dialogar brevemente com John Flynn e Jean-Luc Godard copia descaradamente de Brian De Palma.

Se o que chamamos hoje de maneirismo precisou procurar por uma linha de pensamentos, referências e códigos próprios para poder se expressar, é em Jackie Brown – e não em Pulp Fiction – que acaba por encontrar seu registro mais sincero, poético e melhor articulado. O filme de Tarantino constitui-se uma das obras-primas seminais da década de 1990, dessas experiências inestimáveis e fundamentais para se compreender os rumos do cinema contemporâneo: é junto a Irma Vep, O pagamento final, Gosto de cereja, Amores expressos, New Rose Hotel e Edward mãos de tesoura que Jackie fica mais à vontade, mais até do que em relação aos dois trabalhos anteriores do diretor.

De Jack Hill a Jackie Brown

É oficial: o cinema de Jack Hill define e norteia a maioria dos rumos que Tarantino toma em seu filme. Todas as influências possíveis de Hill – The Big Doll House, Coffy, Foxy Brown e Switchblade Sisters – abrem para Tarantino um leque de opções, de alternativas para aproximações e diálogos com outras obras, cineastas e momentos da história do cinema. A escolha não é em nada casual ou aleatória: Hill é ao grupo de cineastas das décadas de 1960 e 70 herdeiro de uma trajetória instaurada por um gueto do cinema de gênero comercial norte-americano das décadas de 1930, 40 e 50. Mas para que exista o cinema de Hill, colocando os resultados e os contextos de suas produções em perspectiva, é preciso que exista também o boom dos cinemas novos nas décadas de 1960 e 70. É desta forma que, por exemplo, nos anos 1970, as produções de gênero (AIP ou New World Pictures, Sam Arkoff ou Roger Corman) não apenas não continuam sendo feitas em estúdios, comotodoum novo referencial para experimentações com formatos narrativos e dramatúrgicos instauram a possibilidade de se jogar com os passados dos gêneros. Isso tudo passa tanto pelo cinema de

Tarantino quanto pelo de Hill. Importante notar, contudo, que os dois diretores encaram estes princípios como possíveis pontos de partida, jamais como fins ou apenas resultados a serem obtidos (poderíamos citar a “penca” de cineastas que acreditam ser a metalinguagem e os excessos estéticos recursos válidos por si próprios e objetivos a serem alcançados).

Se o interesse de Tarantino por Hill acaba indo além do meramente referencial é pelo fato de ambos serem cineastas altamente informados e instruídos por certa concepção de cinema: não mais uma questão de gêneros e formatos, mas de drama, récita e personagens (ou corpos, como vemos em Hill). É desta forma – e não de outra – que nos vemos de repente em situações de um escopo dramático dignas de um Samuel Fuller ou um Douglas Sirk (Jackie Brown, Coffy e Switchblade Sisters), que Orson Welles e Fritz Lang fazem sombra e impõem enormes influências formais (as elipses de Foxy Brown, o panoptismo ontológico na sequência da troca de bolsas em Jackie Brown ou a articulação dos episódios de Pulp Fiction) ou que somos lembrados de Anthony Mann e Raoul Walsh pelo peso mitológico dos entrechos (o homoerotismo, os joguetes entre intérpretes e as traições em Cães de aluguel; as paixões avassaladoras e perdidas e toda a tramoia envolvendo gangues e domínio de poder em Switchblade Sisters).

Hill e Tarantino. Hill com Tarantino, talvez fosse mais interessante (e frutífero mesmo) pensar. Dois cineastas que encaram de forma semelhante a profissão, que têm a necessidade de mediar o excesso histórico do tipo de cinema que realizam através de um processo muito forte ligado às suas respectivas memórias. Coisas existiram; algumas continuam existindo; outras não podem existir mais. E para que essas últimas possam existir em seus filmes, faz-se necessário um esforço enorme de contextualização e representação – lições que Tarantino e Hill aprendem com o cinema moderno.

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Ou, em outras palavras, o grande trunfo de Tarantino, o momento em que as lições aprendidas com De Palma e com o Sergio Leone de Era uma vez na América vêm finalmente à tona. As sequências no Del Amo Shopping Mall, onde mestria e aprendizagem se tornam intercambiáveis, percepção e teorização caminham de mãos dadas. E de mãos dadas de fato seguem: é só pensarmos na união entre Jackie Brown e o

agente de fianças Max Cherry. Cherry é aquele que olha; Jackie Brown é aquela que media esse olhar, que o transforma numa mise en scène. Articular visualmente todas as ações de policiais disfarçados, transeuntes de shopping center, trambiqueiros profissionais e aquilo que importa no meio disso tudo: não, não a maleta que contém U$ 500.000,00, mas Jackie Brown. Tal esforço só pode partir de um olhar disposto a separar de um excesso de informações aquilo que importa, a cereja no bolo; é com calma e precisão, portanto, que esse olhar será construído. Cena fundamental para compreendermos a paciência e entrega de Cherry: durante o “ensaio” para a troca de bolsas que é pivô de toda a trama do filme (através das quais será efetuado o golpe que dará U$ 500.000,00 ao sortudo que se apossar da bolsa certa), Cherry senta-se a uma das várias mesas da praça de alimentação onde será realizada a troca. O ponto escolhido permite a observação de boa parte de várias das ações que compõem o golpe, mas não é de forma alguma o local perfeito, o olhar perfeito. Mais geólogos que arquitetos, Tarantino e Cherry se contentam em estar muito atentos, apesar das possíveis limitações de suas escolhas. Aprendem coisas durante seus percursos homólogos, mas também conseguem aplicar e fazer uso daquilo que conhecem de uma forma certeira, inequívoca.

Criar para Pam Grier um filme espetacular repleto de reviravoltas, personagens cativantes e macabros, situações inverossímeis e momentos audaciosos; ao mesmo tempo, lançar um olhar repleto de carinho e respeito por essa figura que numa tela de cinema é nada menos que impressionante. É esta a força do olhar de Max Cherry, o herói Hawksiano no qual Tarantino põe o máximo de si mesmo.

Moral da câmera

Talvez existam vários tipos de cineastas, ou talvez apenas dois ou três. Mas o que isso importa? Apenas que ao contextualizarmos o surgimento de Jackie Brown após Cães de aluguel e Pulp Fiction, fica possível perceber que o esforço de provar como débeis as acusações de uma provável fissura ética/ estética nos filmes assinados por Quentin Tarantino parte muito mais dos próprios filmes de Tarantino que de qualquer outra fonte. Uma relação moral entre sujeito e objeto, entre encenador e a matéria de sua encenação se estabelece em cinema naquilo que atravessa a objetiva da câmera, na distância que separa e aproxima a câmera de seu sujeito, no momento em que um corte é efetuado ou não. Uma moral de cinema não é técnica,

mas cênica. Não se trata jamais de um dispositivo, mas de algo que desde Welles e Godard orienta todos os horizontes vislumbrados pelo cinema moderno, e que, por isso, não se sujeita a expedientes ou diretrizes.

É principalmente na sequência final de Jackie Brown que nos surge a resposta avassaladora: os difamadores de Tarantino são de fato bem menos interessantes e complexos que a obra do cineasta nela mesma. O lento movimento de zoom em plano-contraplano que insiste em não abandonar o momento da separação de Jackie e Max já seria suficiente para provar quão equivocadas são as acusações de amoralidade deste cinema. Mas a prova cabal surge quando o diretor escolhe como sucessor do último plano de Jackie, o da sua partida, o plano em que Max percebe o que a ausência dela significa (utilização impressionante da cenografia e criação de um espaço cênico riquíssimo em signos, obtidos através de um brilhante trabalho de operação de câmera). Nos aproximamos lentamente das feições de Max, e não podemos agradecer suficientemente Robert Forster pela inacreditável interpretação com a qual nos presenteia (e que coroa a carreira deste que é possivelmente o grande herdeiro de Warren Oates e Robert Mitchum). Tarantino parece de certa maneira esperar por tudo que o rosto deste homem pode acumular, e é necessário não só muito cuidado como também um enorme respeito para com esse senhor de 50 e alguns anos. O fundo do escritório é completamente abstraído por uma saída de foco, e neste momento nada resta a não ser encararmos o rosto de Max de uma forma total. Tudo ou nada no instante seguinte: anteriormente boquiaberto, como se estivesse à espera de uma reação, Max cola seu lábio inferior ao superior, e na banda sonora entra Across 110th Street, a música de Bobby Womack com a qual o filme abre. O homem que decide tirar o foco por completo no momento em que Max se dirige a uma salinha para poder chorar a ausência de uma paixão, fazendo a câmera chorar juntamente com o personagem filmado, é digno da mais profunda admiração.

Na cena seguinte, o derrame de emoções de Jackie: escutando a música de Womack no rádio do carro, ela percebe toda a tristeza de seu momento de glória (é ela quem acaba ficando com a fortuna em dinheiro). O percurso moral de Tarantino se completa: seus personagens podem até sair vitoriosos quando tudo está dito e feito, mas as ausências que tornam possíveis os momentos triunfais são sentidas da maneira mais dolorosa possível. É no meio deste derrame de emoções,

desta epifania de sentimentos, que Tarantino confirma toda a beleza de seu cinema.

Publicado originalmente pela revista Contracampo - contracampo.com.br

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