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À prova de morte

À prova de morte

Pedro Butcher

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Em dezembro de 2012, durante uma mesa redonda promovida pelo site da revista The Hollywood Reporter, Quentin Tarantino – que acabara de lançar Django livre – revelou que considerava À prova de morte seu pior filme. A sentença, na verdade, fez parte de um desabafo mais amplo. Tarantino disse que dificilmente se via, nos próximos anos, como diretor de cinema, por um motivo simples: odeia filmar com tecnologia digital. “Não foi para isso que entrei para esse negócio. Cinema digital é como televisão em público. Se for assim, prefiro dirigir uma minissérie épica.”

Falou também, muito honestamente, como um cuidadoso administrador de sua própria carreira. A possível aposentadoria precoce seria uma forma de sair de cena no auge (e foi aí que À prova de morte entrou em cena): “Sou um bom conhecedor da carreira de vários cineastas, e quando olho para os filmes que alguns dos meus diretores favoritos fizeram mais velhos, como A libertação de L. B. Jones, de William Wyler, ou Fedora e Amigos, amigos, negócios à parte, de Billy Wilder, não sei... Seria uma decisão única e exclusivamente para o meu bem e o de minha obra. Quero sair de cena com uma filmografia formidável. À prova de morte é o pior filme que já fiz, e para um filme de um canhoto não é tão mal, certo? Então, se esse é o pior filme que fiz, estou bem. Mas realmente acredito que um desses filmes velhos, sem noção, toscos e brochas custam três bons filmes na sua cotação final”.

Há algo de trágico na história de À prova de morte. O filme nasceu como parte de um projeto grande e ambicioso, mas que se tornou um fracasso retumbante. Anos depois, ainda ganhou essa pecha de filho enjeitado ou, pelo menos, de filho “menos preferido” de seu criador.

O tal projeto ambicioso chamava-se Grindhouse, uma experiência cinematográfica um tanto atrevida realizada em conjunto por Tarantino e seu amigo Robert Rodriguez. “Grindhouses” eram como se chamavam os cinemas da Rua 42, em Nova York, nos anos 1970, que programavam sessões duplas de exploitation films, muitas vezes intercaladas com shows de

dança e striptease.

Tarantino e Rodriguez, produzidos por Harvey Weinstein, queriam recriar essa experiência em um único rolo que juntasse dois longas-metragens (À prova de morte, de Tarantino, e Planeta terror, de Rodriguez), precedidos e intercalados por falsos trailers de filmes inexistentes (um deles, Machete, passaria a existir depois, em um longa dirigido por Rodriguez). A sessão completa durava 3h11.

Grindhouse estreou nos Estados Unidos em abril de 2007 e foi uma bomba nas bilheterias. O público não entendeu a proposta. Reclamava da imagem propositalmente riscada e dos saltos, que reproduziam os efeitos de uma cópia de celuloide usada. Muitos saíam do cinema no fim do primeiro filme achando que a sessão tinha acabado. Harvey Weinstein desistiu da ideia e recolheu Grindhouse. Os falsos trailers foram abandonados (circularam apenas na internet) e cada longa foi remontado, para que pudessem ser lançados separadamente, no formato tradicional.

À prova de morte teve sua primeira exibição internacional um mês depois, em maio de 2007, na competição do Festival de Cannes. Um ano, aliás, excepcional na seleção de filmes americanos, que contava ainda com Zodíaco, de David Fincher, Os donos da noite, de James Gray, Onde os fracos não têm vez, dos irmãos Coen, e Paranoid Park, de Gus Van Sant – todos eles variações originais de crime movies. Desses cinco, apenas Paranoid Park foi reconhecido pelo júri, com um prêmio especial – justamente o que menos se aproximava de uma obra de gênero e mais se assemelhava a um “estilo europeu” de fazer cinema.

É importante ressaltar isso porque, de alguma forma, a declaração de Tarantino menosprezando À prova de morte diz muito, também, sobre sua percepção e imagem, assim como sobre os rumos que sua carreira tomaria nos filmes seguintes (buscando, muito claramente, um alcance maior tanto em termos de público quanto de reconhecimento no circuito das premiações).

Se Grindhouse era uma experiência dupla, À prova de morte, curiosamente, é também um filme duplo, claramente dividido em dois atos. Em cada um deles, um grupo de mulheres é perseguido por Mike McKay (Kurt Russell), um dublê de cinema psicopata que preparou seu carro para se tornar “à prova de morte”: o lugar

do motorista é como um bunker resistente aos mais violentos impactos.

Com seu carro sordidamente turbinado, Stuntman Mike McKay percorre o sul dos Estados Unidos atrás de belas mulheres que possam ser suas vítimas. Se elas gostam de colocar o pé para fora da janela do carro, estão condenadas. Na primeira parte, que se passa em Austin, Texas, o dublê encontra suas vítimas em um bar: Jungle Julia (Sydney Poitier), Arlene (Vanessa Ferlito) e Shanna (Jordan Ladd). Uma delas entra em seu carro (o banco do carona não está protegido) sem saber que Mike planeja uma colisão com o carro onde estão as outras garotas.

A segunda parte se passa algum tempo depois, em Lebanon, Tenessee. O segundo grupo-alvo é formado por Abernathy (Rosario Dawson), Kim (Tracie Thoms) e Lee (Mary Elizabeth Winstead), garotas que estão trabalhando em uma filmagem nas redondezas e têm o dia de folga. Elas encontram a dublê Zoë Bell (personagem e atriz têm o mesmo nome). Mike McKay as persegue, mas, desta vez, elas viram o jogo, em uma sequência digna de William Friedkin, responsável por algumas das melhores car chases da história do cinema, em Operação França e Viver e morrer em Los Angeles.

Ou seja, À prova de morte é um filme de vingança. A vitória do segundo grupo de garotas vinga a derrota do primeiro; pelo menos para nós, espectadores. As marcas pessoais de Tarantino estão lá, indeléveis: longos diálogos precedem as cenas de ação, a repetição dá ênfase aos detalhes que lhe interessam, trilha sonora sensacional etc.

Um dos detalhes que tornam o filme único e extremamente pessoal na carreira de Tarantino foi muito bem descrito pelo crítico do site Indiewire, Matt Singer: “Todos os filmes de Tarantino são cheios de amor ao cinema, mas À prova de morte transborda amor pelo filme, pelo meio físico, tátil, que se tornou a forma de arte dominante no século XX, mas que não era à prova de morte” (e que, sabemos, está prestes a desaparecer, ou a pelo menos se tornar uma raridade como o vinil, com a migração completa do cinema para a tecnologia digital).

Não por acaso, À prova de morte é o único filme em que Tarantino assina a fotografia – um trabalho brilhante, por sinal, tanto em termos de iluminação quanto de enquadramento. A

“materialidade” do filme é ressaltada por cortes que produzem pequenos pulos na imagem, como se fotogramas estivessem faltando, e – ironicamente – por efeitos digitais que reproduzem falsos arranhões na película (é claro que boa parte do público não entende a proposta, ou porque nunca viu um filme projetado com cópias desgastadas ou porque acha que se trata de um defeito de projeção).

Por fim, em À prova de morte Tarantino exercita uma de suas operações favoritas: a apropriação de gêneros eternamente considerados inferiores pelo cânone cinematográfico e que ele sempre celebrou com paixão. Detalhe importante: talvez esta seja a última vez que Tarantino tenha celebrado tal paixão de uma forma, na falta de uma palavra melhor, “pura”, ou, talvez, “desinteressada”.

Depois do fracasso de À prova de morte, Tarantino entrou na onda do revanchismo histórico de Bastardos inglórios e Django livre, tematicamente próximos a À prova de morte, só que, desta vez, “com relevância”. À prova de morte também é uma vingança e uma homenagem a gêneros eternamente desprezados, mas sem a importância dos “grandes temas” que se fazem presentes em Bastardos e Django (o nazismo, a escravidão).

Não que Bastardos inglórios e Django livre sejam filmes ruins, mas são obras em que, de certa forma, Tarantino trabalha seu estilo e personalidade com um olho no próprio filme e outro no que vem depois dele – o reconhecimento, tanto junto ao grande público (os dois filmes fizeram enormes bilheterias) quanto em relação ao prestígio das academias e dos prêmios (ambos se saíram bastante bem no Oscar). Os dois filmes promovem catarses que talvez tenham sido exageradamente questionadas, mas que diferem, em tom e peso moral, da catarse de À prova de morte. Ironicamente, Bastardos inglórios (menos) e Django livre (um pouco mais) começam a desenhar um caminho perigoso, em que um autor passa a se tornar uma espécie de paródia de si mesmo.

Tarantino, enfim, pode considerar À prova de morte seu pior filme, mas um punhado de críticos – eu, inclusive – se permite discordar. Um viva para À prova de morte, por favor!

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