HISTÓRIA DAS POLÍTICAS DE SAÚDE NO BRASIL DE 1822 A 1963: DO IMPÉRIO AO DESENVOLVIMENTISMO POPULISTA Sarah Escorel e Luiz Antonio Teixeira ESCORES, S.; TEIXEIRA, L.A. História das políticas de saúde no Brasil de 1822 a 1963: do império ao desenvolvimentismo populista. In: GIOVANELLA, L. et al. (org.), Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2008. P. 333‐384. 1. Primeiro período ‐ Final do Império à República Velha: Formulação das primeiras ações governamentais de saúde, ainda restritas aos principais aglomerados urbanos e a algumas doenças epidêmicas com repercussões econômicas. Até a chegada da Corte portuguesa ao RJ (1808), os poucos médicos, membros da elite, encontravam‐se nas cidades maiores e atendiam somente as camadas mais altas da população. A partir de 1808, foram criadas as primeiras instâncias de saúde pública por aqui, basicamente encarregadas de habilitar e fiscalizar o registro daqueles que se dedicavam à arte da cura (médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras, sangradores, etc.) e fiscalizar os navios para impedir que chegassem novas doenças nas cidades costeiras. Com a independência, parte destas tarefas de fiscalização foi transferida aos municípios que também realizavam vacinação antivariólica em períodos de epidemias, controle da entrada de escravos doentes nas cidades, expulsão das áreas urbanas de acometidos por doenças contagiosas e purificação do ambiente. Também surgiram as primeiras faculdades e agremiações médicas. Em meados do séc XIX, em meio a várias epidemias, houve uma centralização do poder imperial, que empreendeu uma reforma nos serviços de saúde, vindo a ser estabelecida a Junta Central de Higiene Pública, que passou a coordenar as atividades de polícia sanitária, vacinação antivariólica e fiscalização do exercício da medicina. Também incluía a Inspetoria de Saúde dos Portos. Durante esse período a atuação do Estado na assistência médica se restringia à internação de doentes graves em lazaretos e enfermarias improvisadas e à internação dos loucos no Hospício criado pelo Imperador. Os serviços médicos hospitalares estavam nas mãos de entidades filantrópicas nas cidades maiores. Nas últimas décadas do séc XIX, enquanto os países europeus e os EUA passavam pela Segunda Revolução Industrial e se tornavam exportadores de capitais e serviços, o Brasil estabelecia a República Federativa e vivia a fase de ‘ouro’ do café. O novo bloco de poder estava centrado na aristocracia paulista, que passava a dividir a cena política com outras oligarquias agrárias existentes, particularmente a mineira – política “café‐com‐leite”. A riqueza derivada da comercialização do café impulsionava a urbanização da região sudeste. Entretanto, praticamente a mesma organização vigente no final do Império foi mantida. A Vacinação contra varíola foi tornada obrigatória em todo o país, um rol de doenças de notificação compulsória foi criado, aumentou a fiscalização dos portos. Em 1891, com a promulgação da Constituição, as atribuições relacionadas à saúde foram transferidas para os municípios e estados. Para o governo central ficava a responsabilidade pela vigilância sanitária dos portos e pelos serviços de saúde do DF. Salvo a preocupação com as epidemias, a ação do Estado em relação à saúde se restringia a medidas ordenadoras da vida urbana que visavam à manutenção de um estado geral de salubridade, como a fiscalização das habitações populares, da venda de alimentos e de bebidas alcoólicas. Até esse momento, a
ação dos poderes públicos não se voltava para a assistência à saúde dos indivíduos, permanecendo com a filantropia a responsabilidade pelo cumprimento desse papel. São Paulo, como o grande centro econômico da atividade cafeeira, e Rio de Janeiro, como capital do país, desenvolveram outras ações de saúde, embora sempre voltadas à lógica do neocolonialismo, preocupado em manter a continuidade de mão‐de‐obra estrangeira, a importação de produtos industrializados e exportação do café e outras matérias‐primas baratas para a indústria dos países mais desenvolvidos. Todo o interior do país esteve à margem dessas ações até 1910. Muito da desatenção, e mesmo desprezo, de nossas elites em relação ao interior, devia‐se ao preconceito em relação à população mestiça, vista como a ruína da sociedade. Em meados de 1910, várias expedições científicas que haviam se embrenhado pelo interior brasileiro relataram o abandono das populações interioranas, atribuindo a isso o entrave à ampliação da capacidade econômica do país e a causa de nossa eterna inferioridade frente às nações desenvolvidas. Com a epidemia de gripe espanhola, em 1918, ficou mais do que constatada a precariedade dos serviços de saúde e a necessidade de reformá‐los. Paralelamente, o crescimento do operariado nas cidades e a intensificação das atividades dos sindicatos que já absorviam as agitações sociais vividas na Europa, fomentaram o surgimento, em 1918 da Liga Pró‐Saneamento do Brasil que lutou pela reforma dos serviços de saúde e pelo saneamento dos sertões. Num contexto de expansão do pensamento nacionalista – que impulsionava o surgimento de diversos movimentos pela valorização da nação ‐, a necessidade de remover as doenças, vistas como o principal entrave para que o país se inserisse no grande concerto das nações, passava a ser um potente apelo para a intelectualidade brasileira. Dentre outras iniciativas decorrentes deste movimento, foi criado os Serviços de Medicamentos Oficiais, que se traduziram na instalação de plantas industriais nos institutos Oswaldo Cruz e Butantan para a fabricação de vermífugos e beneficiamento de sais de quinino, utilizados no combate à malária. Entretanto, seu maior objetivo, a criação de um ministério da saúde de caráter exclusivamente técnico, não foi logrado por oposição das oligarquias que viam numa ação estatal centralizada uma ameaça ao poder local, instituído pela autonomia estadual no campo da saúde. Entretanto, foi criado o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNPS), cujo primeiro diretor foi Carlos Chagas, com as funções de: legislar sobre a regulação da venda de produtos alimentícios (redução das infecções gastrintestinais – maior causa de mortalidade infantil no país), a normatização das construções rurais (controle da proliferação da doença de Chagas), a regulamentação das condições de trabalho das mulheres e crianças, a fiscalização de produtos farmacêuticos, a inspeção de saúde dos imigrantes que chegavam aos nossos portos, além da elaboração de estatísticas demográfico‐sanitárias em nível nacional e produção de soros, vacinas e medicamentos necessários ao combate das grandes epidemias que afetavam o país. 2. Segundo período ‐ Era Vargas (1930‐1945): Período de modernização do Estado Nacional e regulamentação das relações de trabalho e incorporação dos trabalhadores com a instituição das bases do sistema previdenciário. A grande crise que atravessou o setor cafeeiro na década de 20 (super‐safras e quebra da bolsa de NY, em 1929) geraram uma intensa crise econômica e forte insatisfação social. Ao mesmo tempo, o crescente adensamento urbano potencializou o desenvolvimento do movimento operário. A chegada de Getúlio Vargas à presidência, em 1930, carregou, para o aparelho estatal, as demandas de outros grupos,
além dos cafeicultores, como, por exemplo, os tenentes que queriam uma ação estatal mais centralizada e voltada para os interesses nacionais em detrimento dos interesses das oligarquias estaduais. No campo das idéias, crescia um novo projeto de construção nacional voltado para a integração nacional e para a valorização do trabalho e do operariado urbano. A política de Vargas teve duas bases distintas: a saúde pública e a medicina previdenciária, essa marcada pela criação das Caixas de Aposentadorias e Pensões que, posteriormente, foram transformados em Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) que congregavam os trabalhadores por categorias profissionais. Apesar de estarem voltados prioritariamente para os benefícios e pensões, também ofereciam serviços médicos. A assistência era limitada aos trabalhadores inseridos em empregos formais e organizados conforme o sindicalismo instituído por Vargas e, portanto, atrelado aos interesses do Estado. Esse modelo corresponde à concepção de cidadania regulada – modalidade de cidadania em que a base dos direitos não se encontra em valores políticos universais, e sim em um sistema de estratificação ocupacional definido por norma legal. Trabalhadores rurais, domésticos e trabalhadores informais eram vistos como pré‐cidadãos. Os recursos arrecadados da previdência foram utilizados para um dos principais projetos do governo: o apoio à industrialização. Em 1930 foi criado o Ministério da Educação e Saúde Pública. Convivendo com uma constante alternância de seus dirigentes, o Ministério ficou refém das instabilidades políticas decorrentes das disputas entre as diversas forças que haviam se aliado em torno do novo regime. Em 1934, quando Vargas retornou ao poder, por meio de eleição indireta, o Ministério, que passou a se chamar Ministério da Educação e Saúde (MÊS) começou a se institucionalizar, havendo a ampliação do setor relacionado à saúde. Também foram criadas oito delegacias federais de saúde, uma para cada distrito em que o país foi dividido, para colaborar com os serviços locais de saúde e foram criadas as Conferências Nacionais de Saúde, reuniões nacionais de dirigentes do setor, de cunho bastante administrativo. O MES passou a ter um caráter centralizador, normatizando e uniformizando as estruturas estaduais, nas mãos de interventores escolhidos pelo executivo federal, as quais deveriam assumir as atividades municipais. A estrutura administrativa da saúde pública instituída nesse período permaneceu quase inalterada até a criação do MS, em 1953. O período ficou marcado pela separação entre saúde pública ‐ centrada na erradicação de doenças infectocontagiosas, endemias ou epidemias ‐ e assistência médica previdenciária, de caráter individual, destinada aos indivíduos acometidos por doenças que lhes impediam de trabalhar. A assistência individual não estava sob o controle do MÊS e sim do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. 3. Desenvolvimentismo populista ao golpe militar (1946 a 1963):
Criação do MS e incorporação extensiva da assistência médica.
Esse período iniciou de forma tumultuada. Externamente começava a Guerra Fria polarizada nos EUA e União Soviética e sem opções intermediárias. Internamente houve a deposição de Vargas e conseqüente liberalização política, o que favoreceu, num primeiro momento, a ocorrência de inúmeras greves e, posteriormente, a intervenção em sindicatos, a decretação de ilegalidade do PCB e a cassação de seus parlamentares. Também houve a instituição de uma nova Constituição. Em relação à saúde pública prevaleceu o sanitarismo campanhista, centralizador e autoritário. Entretanto, a redução de novos casos de
malária e de outras doenças transmitidas por insetos parece ter mais relação com a disponibilidade de inseticidas de ação residual e de antibióticos, além do desenvolvimento do país, do que ser conseqüência das campanhas sanitárias. O modelo de capitalização e ‘seguro social’ adotado na previdência social no período anterior foi sendo substituído pela noção de ‘seguridade social’, a qual “parte da ideologia de um Estado que teria obrigações naturais e inalienáveis para com qualquer cidadão”. Novas clientelas foram agregadas à assistência médica previdenciária: inativos, pensionistas, gestantes e preventiva ao trabalhador. No segundo governo de Vargas (1951‐1954) a política econômica nacionalista imperou: foram criadas ou expandidas companhias nacionais de exploração mineral (inclusive a Petrobrás), hidroelétricas, química, etc. No campo da saúde pública, emerge o ‘sanitarismo desenvolvimentista’, o qual considera que o nível de saúde de uma população depende primeiramente do grau de desenvolvimento econômico de um país. Essa corrente passa a disputar espaços com a corrente então hegemônica do sanitarismo tradicional. O grande marco do período foi a criação do Ministério da Saúde independente da área da educação, em 1953, embora a ele só tenha sido destinado um terço dos recursos alocados no antigo MÊS. Até 1964, o MS se caracterizou pela transitoriedade de seus titulares, evidenciando ser objeto de intensa e frequente barganha política. Na previdência social, houve ampliação dos gastos com assistência médica, ampliando o escopo das doenças e situações de vida a serem contempladas. O governo de Juscelino Kubitschek (1956‐1960) ficou marcado pelo desenvolvimento e pelo desenvolvimentismo, responsável pelas grandes transformações econômicas apoiadas pelo capital estrangeiro. As políticas sociais eram vistas como paliativas. Durante esse período foi feita uma tentativa de coordenar os vários órgãos envolvidos no combate, controle ou erradicação de doenças específicas, com a criação do Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNERu). Embora a tentativa de unificar e coordenar as atividades das campanhas verticais não tenha tido muito sucesso, algumas conquistas foram realizadas: erradicação do transmissor da febre amarela e da varíola e as não tão bem sucedidas tentativas de erradicação da malária e lepra. Enquanto o DNERu estava voltado para determinadas doenças nas áreas rurais, o Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp) expandia seus serviços de assistência à saúde, sem que houvesse qualquer tipo de trabalho, cooperação ou intercâmbio entre eles. A conseqüência foi a multiplicidade de ações superpostas. Os anos que se seguiram, iniciados pelo governo “extravagante” de Jânio Quadros, foram marcados pela instabilidade política enfrentada por João Goulart na presidência. No MS houve uma sucessão de 6 ministros em cerca de 3 anos. O penúltimo, Souto Maior, apresentou um conceito ampliado de saúde, no XV Congresso de Higiene, em 1962. A saúde da população deveria ser entendida como suas condições globais de trabalho. Reconhecia um círculo vicioso entre pobreza e doença e subordinava sua interrupção a um projeto de desenvolvimento nacional. Nesse Congresso, a indústria farmacêutica nacional manifestou‐se contra a crescente desnacionalização do setor. A expansão das multinacionais de medicamentos era percebida como fator capaz de influenciar a orientação política do setor saúde por meio da construção de um modelo de ampliação descontrolada do atendimento médico‐hospitalar. O último antes do golpe, Wilson Fadul, convocou a 3ª. Conferência Nacional de Saúde, realizado em 1963, com a finalidade de examinar a “situação sanitária nacional e aprovar programas de saúde que, se ajustando às necessidades e possibilidades do povo brasileiro, concorram para o desenvolvimento
econômico do País”. A sugestão da conferência era a criação de uma lei municipal para todos os municípios criarem seus serviços de saúde. A estratégia da municipalização condensou o novo projeto sanitário, que pretendia ser descentralizado e sustentado em um modelo de cobertura dos serviços de saúde, começando pelo atendimento básico prestado por auxiliares da saúde e se estendendo até o nível terciário com atendimento médico‐hospitalar especializado. Os últimos meses do governo Goulart caracterizaram‐se, na área da saúde, por uma intensa polêmica entre os interesses nacionais e os do capital estrangeiro representados pelo então embaixador norte‐americano no Brasil. Em setembro de 1963, um decreto presidencial limitou a transferência de divisas da indústria farmacêutica para o exterior e, no MS, começou‐se a investigar casos de superfaturamento na importação de matérias‐primas para a produção de medicamentos. O impasse entre o governo e as multinacionais se acirrou, culminando com o diretor da U.S. Agency for International Development (Usaid), representante das últimas, enviando correspondência informando que o governo norte‐americano, “por restrições orçamentárias, não podia continuar a colaboração que vem prestando ao governo [brasileiro] no combate à malária”. Essa colaboração consistia na doação de DDT para ser borrifado nas áreas de malária. Apesar de ser um plano que envolvia uma estrutura caríssima, exigindo equipamentos, transporte e mais de 13 mil funcionários, já estava estabelecida a dependência do mesmo.