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E O MAR LOGO ALI

Ana Gomes Juíza de Direito

Passei o dia no quarto, sem comer nada, a sentir a iniquidade na boca (…) a janela a deixar entrar a luz, sem se importar com a nossa dor, a luz não quer saber dos nossos momentos de escuridão, varre tudo, extermina as sombras, mas esquece-se de iluminar por dentro (…)

Afonso Cruz, Enciclopédia da Estória Universal Mar, 2015, Alfaguara

A LUZ E A ESCURIDÃO

Depois de dada permissão para sair, há quem tenha permanecido fechado. A casa já não é a prisão como foi durante o estado de emergência – só apetecia dar um passeio pela praia, remar no rio, entrar em lojas e conviver ao fim da tarde no bar, mas não se podia.

Fim da proibição. Acorda às 6 para correr, depois do trabalho bebe umas cervejas com os colegas porque as grandes ideias aparecem nos momentos mais descontraídos e três vezes por semana ainda vai ao restaurante de um amigo, dizendo que a economia precisa de reanimar e todos temos de ajudar.

A maioria sente-se na Noruega a aproveitar o sol da meia noite. São tais as saudades de fazer outras pequenas coisas que não se fazem em casa, que a sede está difícil de matar. É custoso o regresso aos limites que as paredes, mesmo de casa, representam, porque é como se fosse de dia e o sono é um desperdício, mesmo ao lado da mulher.

Lília reagiu exatamente ao contrário. Habituou-se a ficar e a trabalhar à distância. Não voltou a desenhar a sua casa como o ninho onde regressa depois de doze horas. Para ela, é impossível voltar à nova normalidade. As amigas gostariam de a visitar, levariam umas frutas, até uns bolos para celebrar o reencontro depois de dezenas de horas em videochamadas. Lília recusa. Tem medo do vírus e diz que tem razões para isso. Os cento e dez quilos de massa distribuídos por um metro e cinquenta e cinco de altura e as doenças associadas não ajudam. As colegas ligam preocupadas porque não voltou ao Tribunal e sentem falta da sua alegria. Por agora, recusa ajuda e nem vai de férias. Como a personagem de Afonso Cruz, por dentro, Lília está em TromsØ, em dezembro, mas sem a beleza da aurora boreal.

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