![](https://assets.isu.pub/document-structure/200826105840-9699448813ed1513ddb87ba7c752e78f/v1/552935893c7cf9ec8434bc7a179b0711.jpg?width=720&quality=85%2C50)
6 minute read
BOCA DE CENA
from 38 Edição
CARLA COELHO
Não me identifico, na verdade. Há vários anos li um livro do Amin Malouf (“As identidades assassinas”) que me levou a reflectir sobre a questão das identificações e identidades e perceber até que ponto são limitativas. Cada elemento de identidade que escolhemos é uma caixa para nos metermos lá dentro. O que nos limita e permite aos outros limitar-nos. Prefiro pensar em mim como um ser humano em construção.
PROFISSIONALMENTE REALIZADA OU INCOMPLETA?
Sinto-me realizada nas minhas funções. Entrei para o CEJ em 2003 e já sabia que queria ser juíza. Ao longo destes anos nunca tive um momento de dúvida. Gosto da absoluta independência intelectual que está subjacente ao processo decisório, da possibilidade de mudar de jurisdição (coisa que já fiz algumas vezes) e sinto-me privilegiada por ter uma profissão que alia a exigência intelectual a um lado social muito forte. O papel dos Tribunais é contribuir para a pacificação social, um elemento essencial para que como país possamos avançar.
LANÇOU HÁ POUCO TEMPO UM LIVRO QUE TEM UM TÍTULO CURIOSO QUE CORRESPONDE AO NOME DE UM BLOG SEU E DE UMA CRÓNICA QUE TEM NA JUSTIÇA COM A. PORQUÊ FLORES NA ABISSÍNIA?
O título surgiu de forma espontânea, quando estava a escrever um dos contos que integra o livro, com o título Ao teu encontro. Gostei muito e decidi dar ao meu blogue esse mesmo nome. Depois, quando fui convidada para escrever nesta revista decidimos que a coluna teria esse nome que, na minha modesta opinião, é bem bonito.
POR ORDEM DE APELO COLOQUE: JORNALISTA, PSICÓLOGA, ESCRITORA, MÃE, JULGADORA, PROFESSORA, ENFERMEIRA.
Ah, são tantos os apelos que sentimos, não é? Porque não baterista, cozinheira, leitora ou astronauta? Quando era miúda, tive o sonho de ser arqueóloga. Imaginava-me num território algures na antiga Babilónia, desenterrando pedaços da vida esquecida e trazendo-a à luz do dia. Todas as actividades indicadas me chamaram, num ou noutro momento da vida. São tudo tarefas meritórias. A Mae West disse um dia qualquer coisa como “só vivemos uma vez, mas se vivermos bem, uma vez é suficiente”. Sei que a West era inteligente, mas neste particular, face à pluralidade de experiências humanas possíveis, tenho as minhas dúvidas.
COMENTE: AS MULHERES DECIDEM DE FORMA DIFERENTE DOS HOMENS.
Sei que há quem pense assim, mas não concordo. Decidimos com a nossa mundividência, que procuramos colocar ao serviço de uma decisão o mais justa possível. Nunca me apercebi nas conversas que fui tendo com colegas de ambos os sexos que o facto de serem homens ou mulheres influenciasse o sentido da sua decisão. Creio que a questão do género é indiferente no processo decisório, como o são a orientação sexual, a raça, as crenças religiosas que cada um possa ou não ter.
COMO CONJUGA A CARREIRA COM A FAMÍLIA, A ESCRITA E A ACADEMIA? Como todos nós: uns dias melhor, outros dias pior. Para mim, os dois pontos essenciais são o trabalho e a família. É aí que não posso falhar. Quanto à escrita e à academia são dois interesses fortes, mas que na ordem dos meus dias, vêm em segundo lugar em relação aos outros dois tópicos.
EXERCE AGORA NA JURISDIÇÃO DE FAMÍLIA E MENORES. O QUE MUDARIA SE PUDESSE?
Cheguei há pouco tempo, pelo que ainda há muito para aprender e apreender. No entanto, desde já seria importante dotar as equipas técnicas de mais meios: mais gente no terreno e BOCA DE CENA mais instrumentos para apoiar as famílias e as crianças.
SER CIDADÃ EM 2020 IMPLICA O QUÊ PARA SI?
Muito tempo em casa, não é? Bom, agora a sério. Cada vez mais acho que a cidadania exige muito de nós. A nossa vida é difícil e a atenção é dispersa por mil e um temas. Mas acho essencial que cada um tire um tempo só para si e pense nos seus valores, no que para si é importante a médio/longo prazo e depois invista um pouco da sua energia nisso mesmo. Serão coisas diferentes para cada um de nós. Há quem se preocupe com a causa ambiental, os direitos dos refugiados, o desemprego, as horas que as crianças passam na escola e a quantidade de trabalhos de casa que têm para fazer, enfim, coisas muito concretas onde cada um de nós pode fazer a diferença. Existe a ilusão no nosso tempo de que cada um de nós conta pouco, que não pode fazer a diferença para mudar o mundo. Mas a História mostra coisa diversa. Quem proclamou a independência de Portugal, por exemplo? Quem fez a Revolução de Abril? Quem lutou para termos fins-de-semana e férias? Estas são conquistas que não podem ser imputadas a A, B ou C. É certo que na história há pessoas inspiradoras. Mas elas pouco teriam conseguido se não houvesse uma massa anónima lutadora a abrir caminho. E isto é muito importante de se perceber a meu ver. Todos temos um poder de mudança e não o usar, desde logo por descrença, é cair numa desresponsabilização pessoal muito perigosa.
DO SEU LIVRO QUAL O CONTO DE QUE SE LEMBRA DE IMEDIATO. Castelos na Areia. É um texto em que fui buscar memórias que me são muito gratas: as idas para a praia com os meus pais e os amigos deles que por sua vez também tinham filhos da
minha idade. Lembro-me de chegarmos à praia cedo, de irmos ao mar, ler livros do tio Patinhas enquanto comia batatas fritas e bebia um refrigerante, recordo-me dos piqueniques nas matas à volta da praia. Fui uma criança sossegada e lembro-me de ficar sentada a tentar descascar pinhas ou a observar carreiros de formigas.
A JUSTIÇA É MUITAS VEZES RESPONSABILIZADA PELAS CRISES ECONÓMICAS. PORQUE ACHA QUE O FAZEM?
Não vejo como se pode fazer essa associação. Não sou economista, mas penso que as crises resultam, por regra, de uma multiplicidade de factores, muitos deles até relacionados com um contexto internacional, atendendo ao mundo globalizado em que vivemos. Por isso, identificar a Justiça como a responsável pelas crises económicas parece-me sobretudo um problema de falta de informação.
O LIVRO QUE JÁ LEU MAIS QUE UMA VEZ:
Vários, mas posso indicar aqui O Plano Infinito, de Isabel Allende. Allende foi uma das primeiras mulheres escritoras a ganhar notoriedade quando eu era miúda. E, de facto, as suas heroínas são bem diferentes das que saíam da pena dos autores masculinos. De todos os livros que escreveu este é o meu favorito, pois descreve a vida com as suas dificuldades e alegrias e tem uma galeria de personagens inesquecível. BOCA DE CENA O FILME QUE NÃO PODE DEIXAR DE VER:
Ana e as suas Irmãs. Já o vi dezenas de vezes e não me canso. Revi-o durante a quarentena e encontrei-lhe todo um outro sentido, mais esperançoso, de que não me tinha ainda apercebido. Acho-o um filme genial.
UM TÍTULO PARA UMA AUTOBIOGRAFIA:
Viver, enfim.
QUEM GOSTARIA DE VER ENTREVISTADA OU ENTREVISTADO NA JUSTIÇA COM A ?
Gostava que a revista entrevistasse mais pessoas ligadas ao sistema de justiça (juízes, MPs, advogados, funcionários), um pouco como me fez a mim agora. Em particular, acho que os juízes e juízas mais antigos na profissão têm imensas vivências e histórias interessantes para partilhar. Além disso, e pensando em tantos colegas que tenha conhecido, desde logo na primeira instância onde, naturalmente é onde conheço mais, acho que os cidadãos e cidadãs que estão fora do sistema judiciário gostariam de descobrir tantas pessoas sensíveis, cheias de curiosidade intelectual que ultrapassa o Direito, com gosto diversificados e muito sentido de humor.