9 minute read
FLORES NA ABÍSSINIA
from 38 Edição
A CIDADE E AS SERRAS
Sempre pensei no Verão e, em particular, nas férias, como um tempo de aventuras, vividas na primeira pessoa ou através dos livros, os meus companheiros de eleição. Ainda hoje, parece-me que durante esse período é tempo de abrir possibilidades e ver como há tanto mais à nossa espera do que aquilo que nos é dado a experimentar no dia-a-dia. Outros mundos, outras possibilidades.
Com isto em mente, o meu grande propósito de férias tem sido nos últimos anos viajar e tenho tido a sorte de o conseguir fazer de forma regular.
Um dos desígnios que me vinha à mente de quando em vez era ir fazer voluntariado com animais.
Uma pesquisa na net indicou-me como destino possível os santuários de elefantes na Tailândia, uma ideia alimentada (admito) pelas imagens nas redes sociais em que pessoas perfeitamente descontraídas tomam banho com elefantes num qualquer rio asiático. Contudo, o meu realismo sempre me colocou barreiras que, com o tempo, se solidificaram. Será que o santuário era idóneo? Que tarefas irei fazer? Provavelmente, limpar bosta e pôr fardos da palha aos elefantes, uma vez que nada sei de veterinária ou mesmo de comportamento animal de modo mais detalhado. E fará mesmo sentido largar uns milhares de euros para fazer voluntariado nestes termos?
Arquivei o projecto na gaveta à espera de uma melhor e mais próxima oportunidade. E ela surgiu, imagine-se, neste tão inesperado 2020, ainda por cima numa modalidade que me permitiu realizar o meu sonho sem necessidade de me meter num avião e ir para o outro lado do mundo a pensar no peso médio de um elefante adulto e a quantos quilómetros do santuário seria o hospital mais próximo.
Foi através de uma publicação nas redes sociais que conheci o projecto A Quintinha da Liz e logo que li a descrição pensei this must be the place.
Fica bem perto de Mangualde e é um santuário de animais, um projecto amigo do ambiente e que pretende ser autosustentável. Não há consumo de qualquer produto de origem animal, o que para mim é a mais elevada recomendação que poderia existir. Também não há televisão, nem internet.
FLORES NA ABISSÍNIA
Carla Coelho Juíza de Direito
Há água corrente, electricidade e gás, caso se estejam a interrogar sobre outros confortos da civilização. Há uma horta e um belíssimo pomar com árvores carregadas de fruta. Há um local estratégico ao fundo da quinta onde se acompanha de forma privilegiada o pôr do sol sentadinhos num ramo de árvore deitado no chão. E, o mais importante, há animais humanos e não humanos que nos fazem acreditar que um mundo melhor, não só é possível, como já existe. Nós é que não fomos avisados. Mas estou a adiantar-me no meu relato.
Trocados uns e-mails e agendada a viagem restou-me estar em Santa Apolónia numa bela manhã, pelas 7h30m para tomar o comboio rumo a Mangualde. Pelo caminho, algumas hesitações tardias, é certo. Mas não seria eu se assim não fosse. Além disso, tinha terminado a leitura de A Propósito de Nada de Woody Allen e a minha veia ansiosaespeculativa estava, por isso, ao rubro. Foi isto uma boa ideia? Mas o que sei eu de animais? Não vejo uma galinha ao vivo e a cores há mais de trinta anos … E os porcos, as cabras? Ouço dizer que são traiçoeiros. E se me mordem? Será que dói muito? Tenho as vacinas em dias …, certo? Bom, não tenho mesmo de estar com eles, não é? Posso ir para a horta ou para o pomar, optar por ter o estatuto de hóspede e ficar a ler um livro todo o dia ou, em último caso, ir embora. Sim, posso ir embora. Este pensamento consolador levou-me a dar entrada na estação de Mangualde, não em triunfo (a capitulação como projecto nunca me entusiasmou), mas com alguma tranquilidade.
Mas, afinal, durante os dias em que estive no santuário vir embora foi coisa que não me ocorreu e foi mesmo com tristeza que vi chegar o dia da partida. Desde o momento em que o Noel me foi buscar à estação num jipe tão sujo como o carro que deixei em Lisboa até ao momento em que me depositou na estação para ir apanhar o Intercidades de volta à capital, não senti outra coisa senão que esta opção de férias estava no top ten das melhores decisões da minha vida.
Não que a experiência tenha sido isenta de dificuldades. Sou uma pessoa urbana, é o que é. Em miúda fiz férias na aldeia onde vivia uma das minhas avós e tinha algumas recordações românticas desse tempo. O riacho, os campos, as amoras colhidas e levadas à boca, as galinhas, a vaca e o
vitelo e tal e coisa. Todavia, em criança eu era um bocado medrosa e nunca me cheguei perto dos animais, sem a supervisão de um adulto e por períodos limitados de tempo. Além disso, esses tempos de infância já lá estão atrás. Por isso, vivi cada situação na quintinha como nova. Até porque em cada dia era efectivamente nova, jamais me senti numa espécie de Grondhog Day rural.
Veja-se a ida à capoeira. No primeiro dia era isso mesmo – ir à capoeira. A partir do segundo dia passou a ser ir ver, para além do mais, o Jorginho e a Luisinha (galo e galinha), o Magalhães e a Maria (peru e perua) e a Aurora, uma simpática porquinha com uma apetência por sestas longas. Mais uns dias e o objectivo era não só limpar o espaço, mas também perceber se as águas estavam à sombra e se, em particular, o Magalhães e a Maria tinham bebido água ou se era preciso incentivá-los.
À medida que os dias passaram (e não foram muitos) fui conhecendo a alegria do Amor (um pequeno porquinho com um apetite homérico), o Sr. Silvas (um simpático bode), a reserva do Orfeu, um pato de penas negras e bico laranja-encarnado (o mais bonito que vi até hoje), entre outros habitantes do santuário. Habituei-me a encontrar a gatinha Keiko quando abria a porta do quarto e deixei de ter receio do Sebastião e da Inca, dois cães tão grandes em tamanho como em vontade de receberem festas. Todos estes animais (e outros que ali vivem) foram resgatados de situações de maus tratos (com excepção do Amor, que nasceu já no santuário). Mas todos eles percebem quando lhes estamos a querer fazer bem. Posso dizer que um dos momentos mais felizes destes dias (férteis em felicidade e alegria, diga-se) foi quando percebi que a Maria já confiava o suficiente em mim para beber água do gargalo da garrafa que segurava nas mãos. Aos momentos de contacto com os animais não humanos juntaram-se momentos na horta e na estufa, embora tenha de ser sincera e dizer que apenas fiz coisas leves. O meu orgulho são os garrafões de água que enchi para utilização futura.
Participar nestes trabalhos não é condição para ir passar uns dias à quintinha. Podese igualmente ir conhecer o espaço na qualidade de hóspede e há boas razões para o fazer. A quinta, na aldeia de Nesperido, é muito bonita e está rodeada de verde e estando próxima do rio Dão. Vale a pena
passear pela zona e perceber o quão diferente pode ser a vida.
Há ainda dois motivos adicionais para estes terem sido dias memoráveis. Um é a comida. Adoro comer e não gosto nada de cozinhar. Nestes dias tive o privilégio de comer pratos deliciosos de manhã à noite, feitos generosamente pelos habitantes da quinta que lá estão a receber os hóspedes e voluntários.
Falei acima do apetite homérico do Amor, mas o meu não lhe andou muito atrás. Não
era possível resistir, ainda que o quisesse fazer (e não queria). Enumero algumas iguarias: a maionese do Noel (acabou-se qualquer hipótese de comer outra), uma espécie de gaspacho feito pela Alice que todos os dias espalhei generosamente no pão (afinal, pensei, vou trabalhar no campo, preciso de alimento), a massa à bolonhesa (acho que nunca estive tão calada como nessa refeição), as saladas, shepherd`s pie, batatas a murro (ou antes a copo, deliciosas com maionese do Noel), a massa com orégãos, a feijoada, o cheesecake da mãe da Lara e, já agora, o bolo com cobertura de chocolate feito pela Mafalda, que sei eu?
Senti-me numa deliciosa versão vegana de A Cidade e as Serras à medida que me ia servindo uma e outra vez.
Fiquei espantada quando pouco antes da partida fui vestir as calças e percebi que me serviam, talvez apenas um pouco mais apertadas na zona da cintura. Demonstração, como me disse a minha Mãe quando comentei o assunto com ela, de que se calhar não trabalhei assim tanto…
O outro motivo (que, na verdade, é o primeiro de todos) foram as pessoas que encontrei, os residentes e os que foram aparecendo, todos de coração aberto e sorriso largo. By order of appearence, como se diz nos filmes, o Noel, a Alice, a Lara, a Soraia e o Fernando, que enquanto escrevo este texto estão certamente a fazer mais uma ronda
pelos animais para ver se tudo está bem. Receberam esta filha da cidade, mostraramlhe o que fazer, apresentaram-lhe os animais, aceitaram o que podia dar (que não foi muito, considerando a minha parca experiência rural) e arranjaram ainda tempo para longas conversas. E também a Rita e a Ana, o Gil e a Susana e os seus filhos, bem como a Mafalda e a Ana, que passaram pela quinta enquanto lá estive.
É incrível como sendo desconhecidos para mim há umas semanas, fazem agora parte daquele núcleo de pessoas que nunca vou esquecer, mesmo se não os tornar a ver.
Claro que isso resulta da atmosfera da casa e dos que lá estão a viver a título permanente, com a sua generosidade e abertura. Só isso explica que em tão poucas horas e por tão poucas horas cada pessoa que chega se sinta parte da comunidade como se sempre ali tivesse estado. Por mim, sabendo que a vida é imprevisível (não é um lugar comum, como este ano nos tem mostrado de forma exemplar) tenho em mim a certeza de que quero voltar. Reencontrar os amigos humanos e não humanos que fiz, ver o pôr do sol no meu spot uma e outra vez, meter conversa com o Magalhães e o Orfeu e fazer o caminho de volta à casa cogitando o que será o jantar.
A Quintinha da Liz fica no Largo da Fonte do Além, nº30, Nesperido e tem página no Facebook e no Instagram