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O Mar Logo Ali Ana Gomes
from 51 Edição
E O MAR LOGO ALI
Ana Gomes
Minha cor é ferida. Sou ferido por essa cor e não terei como sarar. Estou sempre ferido. Meu nascimento é um golpe inimigo no corpo de minha mãe que foi atacada sem permissão pelo branco. E eu vou aprender tudo sobre o branco para o matar. Eu vou matar, sagrado Meio da Noite, eu vou abeirar as aldeias e abrir os corpos dos mil brancos.
Valter Hugo Mãe, As doenças do Brasil, 2021, Porto editora
A experiência da Injustiça é sempre sofrida e implica quase sempre um desejo de vingança com multiplicação da violência e, por vezes, com outras injustiças. Alice não vai contar-vos o que acontece no capítulo vinte e três das Doenças do Brasil nem tecer considerações sobre se, ao tempo, o desfecho seria verosímil, se não foi o autor que nos levou a tempos idos com os olhos de hoje e a fortuna das palavras.
Alice tem 17 anos. Nos tempos livres lê. Sai pouco, embora se mantenha à distância de um clic dos amigos. Não vê televisão. Ouve o que lhe apetece e o que o que o spotify sugere, senhor conhecedor dos gostos e das horas que a rapariga consome a ouvir música ou um novo podcast.
O facto relatado com pormenor, pungente, no capítulo vinte das Doenças do Brasil, constitui um crime e é do interesse público, e das vítimas, que os crimes não permaneçam impunes. A pena foi criada como punição pública, um meio de excluir a vingança privada e a perpetuação da barbárie, com eu vou aprender tudo sobre o branco para o matar. Eu vou matar, mas ainda hoje há muito por estudar e refletir sobre o sistema penal. O que é que fará com que o desejo de vingança se estenda a todos os que têm alguma semelhança com o que praticou o crime e se pretenda abrir os corpos dos mil brancos ? Porque é que uma vítima ou uma comunidade pode pretender vingar-se dos mil negros, dos mil estrangeiros, dos mil jovens ? Alice, amante de história (não só a que vem nos manuais escolares) e futura estudante de direito, propõe-se fazer esse trabalho.
Desde cedo, Alice escuta o que lhe dizem com atenção e surpreende os adultos com a sua visão do mundo e como argumenta contra o discurso corrente uno, de um só sentido. Diz que uma das associações que fazemos é por semelhança e por diferença e há mal nenhum nisso, desde que não haja direitos ou não direitos (na lei ou de facto), sem justificação, por causa dessa diferença.
Nas reuniões familiares lá tinha de levar com os mais velhos a dizerem que quando nasceu a irmã gémea era igual à mãe e ela, a última a sair, não tinha semelhanças com os bebés que haviam nascido em vida daqueles que então a tomavam no colo. Numa família de gente morena, uma menina de pele clara, quase transparente. Alice foi-se habituando a ser diferente. Isso nunca lhe trouxe qualquer desconforto emocional. Com nove anos, assumia, é um facto. Tal como ela se espantava com a cor de outros meninos mais escuros, assim esses também lhe perguntavam porque ela era assim clarinha, clarinha. Aconselhavamna a pôr-se ao sol que assim iria escurecendo, mas nem no verão Alice avançava um tom. O chapéu de abas largas protegia-a dos raios solares. Os avós, respeitadores da sua condição, levavam-na à praia a partir das sete da tarde e aí tal como os outros olhavam para ela, Alice olhava para todos e percebia que o mais magro via aquele que tinha dificuldade em caminhar até à água de tão gordo; o de pele lisa observava com atenção o que cobria o corpo de tatuagens, o branco atentava num grupo de negros em festa, o português tentava decifrar a conversa de dois alemães, a senhora sentada na cadeira a ler a revista parava por instantes e sorria com as brincadeiras ruidosas dos netos. As semelhanças e as diferenças, ali, em poucos metros quadrados.
Numa ocasião foi dar um passeio de mão dada com os avós à beira mar e, praia deserta, dão com uma pessoa a banhar-se na água aquecida pelo sol. A avó tenta baixar ainda mais a aba do chapéu à menina, para ela não ver, mas Alice ainda a tempo, percebendo o objetivo da avó, sai-se com um é uma mulher sem fato de banho, é um facto, e há mal nenhum nisso. A expressão espontânea da neta desarma a mulher mais velha que lhe levanta o chapéu e lhe permite ver com nitidez a areia lá ao longe, as ondas a aproximaremse da costa e a mulher, sem fato de banho, muito semelhante ao que Alice viria a ser um dia.