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LICÍNIA QUITÉRIO TRAGÉDIA NO AEROPORTO
from 54 Edição
Abriu a mala para tirar o batom, num gesto quase maquinal, a quebrar o fastio da espera na sala pouco movimentada do aeroporto. Ao remexer o interior da bolsa dos cosméticos, sentiu na mão o frio de um objecto de metal e não o tubo procurado. Espreitou. Mal podia acreditar no que via. Ali, na sua mão direita, um canivete suíço, vermelho, tão longo como a sua mão aberta. Estremeceu, olhou em volta, tornou a fechar a mala. Ninguém podia ver o objecto proibido num lugar daqueles, altamente vigiado, no coração de um continente em crise, com sensores presumivelmente implacáveis. Certificou-se de que nenhum alarme soava, que nenhum vigilante se lhe dirigia. Continuou fingindo a maior calma, a mala aconchegada no colo, a pensar no que fazer ao canivete. Deixá-lo ali caído, deitálo num recipiente de lixo, enfiá-lo no bolso do casaco do passageiro adormecido a seu lado. Nenhuma das hipóteses lhe agradou, o habitual poder de imaginação a falhar redondamente. Foi quando se fez luz na sua cabeça aturdida pela insólita situação. Para que serve uma arma daquelas? Para cortar. Cortar o quê? Começou então, metodicamente, a cortar em pedaços os poucos passageiros em espera. Cabeça de um que já prometia pendências, pernas de outro, convenientemente esticadas ao longo do banco, a mão de outro, abandonada no vazio, e mais um pé descalço, e uma orelha do outro a pedir misericórdia, e ainda…
“Senhores passageiros do voo XYZ com destino a KKKK queiram dirigir-se à porta de embarque 000”.
Desistiu da degola, agarrou a mala, olhou em volta, nada de alarmes, dirigiu-se à porta indicada. Atrás dela, uma fila de zombies que reconheceu claramente. Um deles chegará a presidente de uma qualquer república, pensou. Já dentro do avião, voltou a procurar na mala o canivete. Lá continuava, longo, frio. Achou estranho que agora as lâminas também fossem vermelhas,masuma explicação haveria de encontrar. Agarrou-se com firmeza aos braços do assento. Tinha sempre medo nas descolagens. Para acalmar, pensou em contos de terror, antes de voltar a adormecer.