Adolescentes em conflito com a lei: existe responsabilização ou não?

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Adolescentes em conflito com a lei: existe responsabilização ou não?1 A Constituição Federal (CF) em 1988, estabelece que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, sendo dever da Família, da Sociedade e do Estado a corresponsabilidade pela absoluta prioridade na garantia dos seus direitos. Também determina que “São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial” (art. 228) e que na aplicação de qualquer medida privativa da liberdade devem ser obedecidos os princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (art. 227/V). Todas as conquistas constitucionais foram regulamentadas, em 1990, quando entra em vigor o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completa um quarto de século em 2015, e ainda recebe críticas, muitas delas sem a devida atenção e conhecimento. Preliminarmente, é importante e necessário destacar que a CF e o referido Estatuto buscam olhar e cuidar de todos os meninos e meninas na perspectiva ética, política e humana da proteção integral e não apenas daqueles “abandonados” e “delinquentes” a quem eram destinados os Códigos de Menores de 1927 e 1979. Na proteção integral é imprescindível que não se estabeleça uma hierarquização na garantia dos direitos humanos de milhões de pessoas com até 17 anos de idade. Em segundo plano, importa assinalar que existem críticas contra o ECA, desconsiderando que este tem total consonância com o que foi estabelecido na CF e na Convenção Internacional dos Direitos da Criança (ONU, 1989). Para alguns críticos, o ECA é a legislação da impunidade. Seria o Estatuto, na opinião destes, uma legislação que gera impunidade, pois segundo eles nada acontece quando os adolescentes praticam atos infracionais, condutas reprovadas socialmente e sujeitas a norma jurídica. Tal compreensão e afirmação não são corretas. Em contraponto as críticas ao ECA discutiremos, de forma breve, algumas definições na expectativa de facilitar uma melhor compreensão das atuais legislações. Quando o art. 228 da CF apresenta que os adolescentes, com idade inferior aos 18 anos, são penalmente inimputáveis e sujeitos às normas da legislação especial, tem o firme propósito de indicar que eles não podem responder penalmente (Código Penal) pelos atos praticados e que o ECA é a legislação especial a ser aplicada. Em outras palavras, os adolescentes não são imputáveis. Imputáveis são as pessoas a partir dos 18 anos que respondem criminalmente pelo cometido. Destes dois termos (inimputável e imputável) surgem confusões e críticas. A primeira, de que o ECA é uma lei que colabora com a impunidade. A segunda, que crianças e adolescentes só têm direitos. 1

José Fernando da Silva: Especialista nos Direitos da Criança e do Adolescente pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e Licenciado em História na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap); Superintendente Estadual de Atenção à Criança e ao Adolescente da Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos/Governo de Pernambuco (Seacad, 2009 2010); Secretário Executivo dos Sistemas Protetivo e Socioeducativo da Secretaria da Criança e da Juventude/Governo de Pernambuco (2011 – junho de 2013); Diretor Executivo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Pernambuco (CEDCA/PE, 2007 – 2009); Presidente do CEDCA/PE (2012); Conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda, 1999 – 2006), sendo vice-­‐presidente em 2003 e 2004 e presidente em 2005 e 2006; atualmente é Secretário Executivo de Coordenação da Gestão na Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Mobilização Social da Prefeitura do Jaboatão dos Guararapes. Se interessou pelo projeto e quer participar? Envia e-mail para contato@juventudearretada.com.br apresentando como você pode contribuir.


A impunidade é a ausência ou falta de responsabilização. A rigor, de acordo com o ECA, apenas as crianças (até 11 anos) não são responsabilizadas pelos atos infracionais praticados. Nessas situações, os pais, mães e outros adultos são responsabilizados. Já os adolescentes (12 aos 17 anos) são responsáveis diretos pelos atos e condutas praticadas como aquelas descritas como crime ou contravenção penal (ECA, Art. 103). O ECA no Art. 112 elenca 06 medidas responsabilizadoras aos adolescentes que vão da advertência à privação da liberdade e esta deve ser no estabelecimento educacional. As medidas socioeducativas têm a dupla finalidade: (a) responsabilizar o adolescente pelo ato cometido, não deixando impune o que comete; (b) e contribuir para que o mesmo não volte a praticar novo ato infracional. Na interpretação e aplicação deste artigo é fundamental que ocorra uma combinação entre o Art. 1º e o Art. 4º do ECA, que implica necessariamente na garantia da proteção integral, as exigências do bem comum, os direitos, deveres individuais e coletivos, além de ter presente a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento que, também é o adolescente envolvido em atos infracionais. Quando realizada a aplicação das medidas socioeducativas é necessário que o juiz da infância e juventude leve em conta algumas determinações do Estatuto da Criança e do Adolescentes: 1) o ECA estabelece uma relação de seis medidas socioeducativas, que precisa relacionar-­‐se com os três aspectos centrais: (a) considerar a capacidade do adolescente de cumprir a medida; (b) as circunstâncias em que o ato infracional foi praticado; (c) e a gravidade da infração. Portanto, é fundamental a existência de uma lógica entre o cruzamentos destes três aspectos com a medida a ser aplicada, cabendo ao Sistema de Justiça Juvenil o pleno respeito às normas. 2) quando a medida mais adequada for a internação é necessário considerar: (a) os princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Em nenhuma hipótese deve ser aplicada a internação quando houver outra medida adequada. (b) atendimento personalizado, em pequenas unidades e grupos reduzidos. Esta determinação do ECA foi a base para a definição do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente -­‐ Conanda (1996), regulamentou que cada unidade deve ter capacidade máxima para 40 adolescentes ou um conjunto de unidades (2006) para no máximo 90 adolescentes, preservando-­‐se a norma anterior para uma única unidade. (c) a internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração. (d) permanecer internado na mesma localidade ou naquela mais próxima ao domicílio de seus pais ou responsáveis. Neste ponto, o ECA determina a busca para conciliar o cumprimento da medida de internação em localidades que possam ser acompanhados mais de perto pelo pai ou seu responsável, guardando total consonância com o Art. 227 da CF e o Art. 4º do ECA, que preconizam a corresponsabilidade da Família, da Sociedade e do Estado na vida do adolescente. Se interessou pelo projeto e quer participar? Envia e-mail para contato@juventudearretada.com.br apresentando como você pode contribuir.


(e) quando o prazo máximo de três anos na internação for concluído, cabe ao juiz da infância e juventude definir se o adolescente poderá ter sua medida extinta ou ser colocado em regime de semiliberdade ou de liberdade assistida. As considerações anteriores são fundamentais para responder as proposições que tramitam no Congresso Nacional sobre a redução da maioridade penal e o aumento do tempo de privação da liberdade. Nesta direção, agrupam-­‐se os argumentos em três blocos: 1) não é aceitável tratar de responsabilização do adolescente sem ter presente as definições da Constituição Federal de 1988. Nesta, o adolescente pode e deve ser responsabilizado, inclusive com a privação da liberdade. É a partir dela que existe o disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente, lei especial de proteção integral, que inclui a responsabilização do adolescente pela prática de ilícito. 2) as normas de responsabilização do ECA, nas quais, o adolescente pode permanecer no Sistema de Atendimento Socioeducativo por mais de três anos. Este prazo máximo é para a privação da liberdade. Contudo, poderá – se assim o for determinado pelo juiz da infância e juventude – migrar para liberdade assistida ou semiliberdade. 3) o princípio pedagógico da responsabilização socioeducativa implica trabalhar para que o adolescente não volte a cometer novo ato infracional. O que podemos fazer? É necessário continuar o debate e o diálogo sobre a Redução da Maioridade Penal. Nesta direção, apresentam-­‐se alguns dados com o intuito de contribuir com a superação de três mitos. O primeiro mito diz respeito, a necessidade de leis mais severas como alternativas para a solução, diminuição das violências, e redução da criminalidade. É preciso confrontar a dupla face punitiva que prega a redução da maioridade penal ou o aumento do tempo de privação da liberdade, como aprovado recentemente no Senado Federal, que eleva para dez anos o tempo máximo de internação. Neste ponto, reside uma inconsistência com um dos princípios definidos no Art. 227/C da CF. Este aborda a brevidade da privação de liberdade. Se o ECA aponta que a adolescência vai dos 12 aos 17 anos, elevar para dez anos a privação da liberdade é maior do que os seis anos de duração da adolescência. O confronto se agrava, uma vez que fere um princípio constitucional e deste não podemos abrir mão. O segundo mito, é necessário desfazer a visão do senso comum que os adolescentes são perigosos. Segundo estimativa do Fundo das Nações Unidas para a Infância -­‐ UNICEF, tendo presente o levantamento do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo -­‐ SINASE (2012) e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios -­‐ PNAD (2012), 0,01% dos 21 milhões de adolescentes estão cumprindo medidas socioeducativas por atos cometidos contra a vida. Em 2013, 40% destes foram por roubo, 24% por tráfico de drogas e 9% por homicídios. Ainda de acordo com o UNICEF, no documento avaliativo dos 25 anos do ECA, entre 1990 e 2013, houve um aumento expressivo no número de assassinatos de pessoas com até 19 anos, passando de 5 mil para 10,5 mil, implicando dizer que a cada dia, 28 crianças e adolescentes são assassinados no Brasil. E que entre os negros a possibilidade de ser assassinado é 4 vezes maior do que os adolescentes brancos. Se interessou pelo projeto e quer participar? Envia e-mail para contato@juventudearretada.com.br apresentando como você pode contribuir.


O terceiro mito a ser combatido é o da impunidade de adolescentes. Discutiremos a seguir sobre os dois sistemas de responsabilização no Brasil. De acordo com dados divulgados (Jornal do Commercio2, 24.06.2015), o Sistema Penitenciário Brasileiro cresceu 161% entre 2000 – 2014. São 607.731 mil presos para 377.669 mil vagas, apresentando déficit de 231.062 vagas. Já no Sistema Socioeducativo, considerando apenas a privação da liberdade, houve um crescimento de quase seis vezes entre 1996 e 2013, passando de 4.245 para 23.100 adolescentes, conforme levantamento da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Os números, para ambos sistemas, indicam crescimento expressivo na privação da liberdade, não indicando haver impunidade. Por fim, é recomendável mobilizar governadores e bancadas de deputados federais, senadores, deputados estaduais para que não permitam o absurdo da redução da maioridade penal e a quebra dos três princípios constitucionais (brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento); pressionar o Governo Federal, os 26 Governos Estaduais e o Governo do Distrito Federal, para cumprirem a obrigação constitucional de elaborar em 2015, o Plano Plurianual (PPA) 2016-­‐2019, sendo necessário: (a) contemplar os objetivos e as metas para a plena efetivação do SINASE, que conta com 01 Plano Nacional Decenal e 14 planos decenais estaduais; (b) contemplar os Planos Decenais Nacionais, Estaduais e o do Distrito Federal de Educação; (c) definir objetivos e metas para melhoria dos indicadores de saúde, assistência social, cultura, esporte, lazer etc. Se os objetivos e metas do SINASE, não entrarem no próximo PPA, não será possível termos os desdobramentos na Lei de Diretrizes Orçamentárias e na Lei Orçamentária Anual dos governos federal, estaduais e Distrito Federal. Que os governos municipais também assumam suas responsabilidades com as políticas de garantia de direitos. Particularmente, em relação ao SINASE, é preciso priorizar: a) apoio às medidas socioeducativas de prestação de serviço à comunidade e liberdade assistida, de execução no âmbito municipal, que necessitam permanentemente de suporte financeiro, acompanhamento, monitoramento e avaliação dos governos Federal e Estaduais; (b) construção de novas unidades conforme parâmetros definidos nas normas nacionais do Conanda, especialmente para desativação das unidades que são inadequadas para a realização de um projeto político pedagógico fundamentado nos Direitos Humanos, contemplando a responsabilização do adolescente em atendimento socioeducativo; (c) concurso público para as equipes de atendimento do sistema socioeducativo nos âmbitos estaduais, Distrito Federal e municipais; (d) instituição e manutenção de escolas de formação dos operadores do SINASE, incluindo equipes técnicas dos governos estaduais, Distrito Federal e municipais, juízes, promotores, defensores públicos, entre outros. A luta é dupla – respeito às normas constitucionais, à articulação e à mobilização pela efetivação de Políticas de Direitos Humanos para todas as crianças e adolescentes e suas famílias. REFERÊNCIAS ONU. 1948. Declaração Universal dos Direitos Humanos. http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Pages/Language.aspx?LangID=por

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http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/mundo/noticia/2015/06/23/com-­‐607-­‐mil-­‐presos-­‐brasil-­‐tem-­‐a-­‐4-­‐maior-­‐populacao-­‐carceraria-­‐do-­‐mundo-­‐187230.php

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BRASIL. 1988. Constituição Federal. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm ONU. 1989. Convenção Internacional dos Direitos da Criança. http://www.unicef.pt/docs/pdf_publicacoes/convencao_direitos_crianca2004.pdf BRASIL. 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L8069.htm BRASIL. 1990. Convenção Internacional dos Direitos da Criança. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-­‐1994/D99710.htm BRASIL. 2012. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-­‐2014/2012/lei/l12594.htm BRASIL. 2012. Secretaria de Direitos Humanos (SDH). Levantamento Anual dos (as) Adolescentes em Conflito com a Lei. http://www.sdh.gov.br/assuntos/criancas-­‐e-­‐adolescentes/pdf/levantamento-­‐sinase-­‐ 2012 IBGE. 2012. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2012/default_sintese.s htm SIGLAS PPA. Plano Plurianual. https://pt.wikipedia.org/wiki/Plano_plurianual LDO. Lei de Diretrizes Orçamentárias. https://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_de_diretrizes_orçamentárias LOA. Lei Orçamentária Anual. https://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_orçamentária_anual

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