Eqql2 antologia

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Ant olo


Armando Azevedo Bruno Granato Clara Dias FRANCELINE RODRIGUES IAGO MARQUES Lucas Valadares Maiara Cerqueira Olivia Janot


ROBSON Amaro

A Oi Kabum! BH é uma escola de Arte e Tecnologia voltada para jovens de 16 a 24 anos da periferia urbana de quatro capitais brasileiras: Belo Horizonte, Salvador, Recife e Rio de Janeiro. A escola oferece cursos técnicos gratuitos nas áreas de Multimídia, Artes Visuais e Produção de Áudio e Vídeo, todos eles com 18 meses de duração. O objetivo é permitir que os jovens se apropriem das tecnologias de modo a desenvolver sua capacidade de intervenção criativa nos campos da comunicação, da arte e da cultura. Nesta perspectiva, pensando uma formação múltipla, trabalhamos a linguagem verbal e escrita de forma continuada em nossos processos formativos. O edital Escreve que Quero Ler é uma iniciativa da Gráfica

Oi Kabum! Belo Horizonte que tem como objetivo fomentar a produção literária juvenil a partir da publicação de textos de estudantes e egressos do programa Oi Kabum!. Nesta segunda edição, o edital promoveu a integração entre as quatro escolas e, no futuro, pretende ampliar sua abrangência para toda cidade (BH). Esta antologia é a prova material da crença da Oi Kabum! nas atividades ligadas a literatura, a escrita criativa e a interface das relações entre palavra e imagem, produzidas ao longo do nosso percurso, desde a transversal Oficina da Palavra e mais recentemente na disciplina Poéticas da Narrativa. Gráfica Oi Kabum! Belo Horizonte. 2015


Uma crise na escrita ou “literatura e suor têm tudo a ver” Laura Cohen Rabelo

São 7:59 da manhã de uma terça-feira e eu estou toda suada porque acabei de correr cinco quilômetros antes de me sentar para trabalhar. Devia ter enviado esse texto para a Oi Kabum! ontem, para sair em uma antologia que ajudei a preparar (ou ajudei os escritores a prepararem), então, escorrendo suor no limite do prazo e pensando em como começar a escrever, me lembro de um acontecimento do ano passado. Eu tinha ido ao lançamento do livro de um amigo, Carlos de Brito e Mello, mas mais conhecido como Trovão. Era um sábado de manhã e eu estava toda suada porque tinha acabado de sair da academia – e quando fui cumprimentá-lo, avisei que estava inabraçável. Ele me abraçou da mesma forma e assinou o meu livro. Alguns meses depois, quem estava lançando livro era eu, num bar lotado em uma quinta-feira de noite. O Trovão chegou todo suado (acho que também tinha acabado de malhar) com o livro para ser assinado e disse: “vim retribuir o suor” e ainda completou: “acho que literatura e suor têm tudo a ver”. 1Indico

Não que eu seja partidária da ideia tão gasta do “escrever é 1% inspiração e 99% transpiração”, nem naquele dito extremamente desrespeitoso: “a musa está morta”. Acho que há algo além. Acredito mais em uma relação tríplice que o professor Jacyntho Lins Brandão coloca em seu livro Antiga Musa1: o contexto de surgimento de um texto depende de três instâncias – a musa, o poeta e o público. Isso é uma ideia que vem da antiguidade, dos poemas gregos mais antigos que conhecemos. Penso que hoje a musa está além de uma das nove deusas invocáveis que sussurram ao nosso ouvido – a musa pode ser composta de ideias que descem ao papel como se tivéssemos sido possuídos por algum ente externo, mas a musa também pode ser todas as influências que carregamos, uma cena vista, uma música, palavras que combinam, um acontecimento real, um caso que alguém nos contou cuja escrita é irresistível. O autor, nós já sabemos – o ser que sua para colocar no papel um discurso maluco de forma adequada. E o público? O

fortemente a leitura: BRANDÃO, Jacyntho Lins. Antiga Musa: uma arqueologia da ficção. Belo Horizonte: Relicário, 2015.


tão esquecido público vai do invisível editor que te ajuda a preparar o texto, ao seu amigo que te sugere soluções, a sua mãe que chora ao te ver escrevendo uma coisa tão linda, o cricrítico do jornal, a uma pessoa que diz que se identificou muito com sua história e seus personagens. É nessa relação entre o poeta, as minhas musas e aqueles que recebem o meu texto que habita a crise. A palavra crise vem do grego krísis, e pode significar de fazer uma seleção, uma escolha, encontrar uma solução, enfrentar uma luta, o poder de discernimento, até um processo jurídico. Na origem, a palavra crise não tem esse significado apocalíptico que os jornais gritam hoje – por isso gosto de voltar ao nascimento de algumas palavras, porque as palavras sempre têm alguma coisa a nos ensinar. Preparando coletivamente alguns textos dessa antologia com alguns/algumas escritores/escritoras do Rio de Janeiro, de Salvador e de Belo Horizonte tentei fazer com que eles entendessem esse aspecto da crise: essa relação tão desequilibrada que tenho com a minha musa, que fala de uma maneira aleatória, às vezes precisa ser mediada pela figura do editor. Os textos chegaram aqui um tanto grosseiros, às vezes vindos diretamente da musa e sem uma leitura. Às vezes

vinham de forma genial, mas mais comumente o núcleo genial estava carregado de lugares comuns, gralhas, rimas involuntárias, cacoetes, soluços, tropeços, correções descabidas do word, poemas lotados de letras maiúsculas desnecessárias e irrefletidas. Alguns não haviam lido o texto em voz alta – haviam escrito, postado em um blog, no máximo mostrado a um professor-editor – e à medida que iam sofrendo a crítica (lembrando que crítica é uma palavra também derivada da crise!), o escritor conseguia decidir o seu desejo na escrita. Além de desejo, certamente existe uma necessidade tão fisiológica quanto o suor do corpo – uma das primeiras perguntas que fiz a esses escritores e escritoras, tão aptos a ouvir o cantar da musa, foi se eles sentiam necessidade de escrever. Quase todos levantaram a mão. No começo, timidamente, depois levantando a bandeira da escrita. E a edição foi acontecendo de forma coletiva – aos poucos, eu, contratada para preparar aqueles textos para publicação, fui me retirando e deixando que os escritores conversassem entre si e tomassem a autonomia da decisão da crise, cortando e colando o texto até que ele ficasse de dar frio na barriga. O que estou querendo dizer é isso: não basta o suor. A gente tem é que suar junto.

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Poesia

Maiara Cerqueira

IAGO MARQUES

FRANCELINE RODRIGUES

clara dias

Esta antologia apresenta trabalhos selecionados na segunda edição do projeto Escreve Que Eu Quero Ler, edital de fomento à produção literária juvenil, idealizado e desenvolvido pela gráfica-laboratório da Oi Kabum! Escola de Arte e Tecnologia de Belo Horizonte, em parceria com as unidades da Oi Kabum! de Rio de Janeiro, Recife e Salvador.

Su má rio

07 10 21 34


ROBSON Amaro

Olivia Janot

105 111

Prosa

Maiara Cerqueira

Lucas Valadares

Clara Dias

Bruno Granato

Armando Azevedo

45 54 58 68 101



clara dias

PO ES IA


Clara Dias

quanto mais alto fica, mais vontade de sair do corpo tenho. Se repetia tanto quanto um coração batendo.

10 ANTOLOGIa oi kabum!


Clara Dias

é hora de molhar o chão por excesso aos poucos bolhas de sabão

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FRANCELINE RODRIGUES

PO ES IA


Patavina, Poeta Franceline Rodrigues

Poeta é um bicho tolo Palerma Parvo Quer indicar a palavra Conduzi-la Apoderar-se dela Da sua alma Arranca-la de si brincar com ela fazer dela o que fizeram dele Regala-la Não Extorqui-la Torna-la dele, só dele Ela é tão bela Fascinante E ele não Ele é banal patavina, Poeta

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Palavras a Modesta I Franceline Rodrigues

Não quero chegar ao final da vida sabendo que não vivi Nem tão pouco, lamentando o que não vi E, nunca, afirmando que nada acolhi Ciente de que assim como o tempo, eu havia passado Não quero chegar ao final da vida certa de que me ocupei apenas do genuinamente supérfluo De coisas, coisas apenas Não quero chegar ao final da vida Vê-la como um final, e diante disso, incriminar a sua própria senhora por a tê-la desqualificado Ciente de que assim como tempo, eu havia passado

14 ANTOLOGIa oi kabum!


Palavras a Modesta II Franceline Rodrigues

Quero aportar ao final da vida com flores nas mãos, aquelas que arranquei do solo bruto e recultivei Ciente de que assim como o tempo, eu havia passado Quero aportar ao final da vida de mãos dadas com todos os meus amantes, aqueles que fui capaz de arrancar suspiros Ciente de que assim como o tempo, eu havia passado Quero aportar ao final da vida com os bolsos carregados de jujubas e brigadeiros aqueles que furtei dos festins aos quais nem havia sido convidado Ciente de que assim como o tempo, eu havia passado Quero aportar ao final da vida com as mais deprimentes e arrojadas 15


letras aquelas que levaram-me ao choro e ao ĂŞxtase na velocidade da luz Ciente de que assim como o tempo, eu havia passado Quero aportar ao final da vida Isenta de expectativas aquelas, qualquer uma Ciente de que assim como o tempo, eu havia passado

16 ANTOLOGIa oi kabum!


RUBEM: AMOR ÀS VISTAS Franceline Rodrigues

Eu não me apaixono por qualquer um, mas Rubem Alves, digo e confesso é amor à primeira vista, a segunda, a terceira a qualquer vista O nosso primeiro encontro ocorreu numa sala fria, eu de frente a uma tela, lisa por sinal e ele não sei com precisão em que lugar desse mundo de meu Deus se encontrava Bem, mesmo assim nos encontrávamos lado a lado frente a frente, dorso a dorso Não se diz que a distância não é impedimento para dois amantes? Pois então, apoio-me nessa tese dos amantes e defendo o nosso confuso sentimento, mas ainda assim digo que é amor Outra lucubração dos enamorados 17


é ver estampado no parceiro a perfeição em pessoa, ou quem sabe a própria perfeição o nome não é “Fulano” ou “Sicrano”, mas Sr. ou Sra. Perfeição Tudo o que Rubem diz, ou melhor, recita é perfeição um vislumbre danado Não se consegue olhar para os lados nas primeiras saídas e nem se ouvir mais ninguém, ainda que esse outro alguém seja bom mas certamente não melhor do que ele Pois ninguém o é E se o amor findar? Não irá findar porque se é amor, apesar de o princípio em si não ser o da eternidade, mas um ato em que se cultua o sui generis Em outras palavras, é o culto à originalidade dele se fazendo em mim, abruptamente perdurável

18 ANTOLOGIa oi kabum!


PORTAS Franceline Rodrigues

Não há que se precipitar até que o dia decida por fechar as suas portas. Sim, portas Algumas escancaradas. Outras entreabertas. Portas trancadas a sete chaves. Cerrada a maçaneta, mas não fechada a chaves. São muitas as formas de se manter uma porta! Portas incitam, principalmente quando se desconhece o que há por trás delas Nisso, “gentes” permitem infringir e, olhar pelo buraco da fechadura Bisbilhotá-la Pior mesmo é a decepção de nada avistar Ausência de sonoridade, de vida, que dá o tom da vida Daí o jeito é ceder à imaginação, ao 19


poder O supremo poder de criar o que ainda não fora criado Eu, apenas um pedestre que andava por ali... Porém decidi por parar, olhar pela fechadura e, redemoinhir-me aos apelos que me passavam pela mente. De repente: assusto-me com a ideia de um dos meus camaradas verem-me ali, entorpecido diante de uma fechadura alheia Certo que o camarada cismado ficaria Talvez num ímpeto relatasse às autoridades, à polícia. Eu suspeito e frisado ladrão para os restos dos meus dias. Só sei que estariam certos, o meu camarada e a autoridade. Pois eu, ao menos naquela tarde, fui ladrão, furtando da porta todas suas memórias

20 ANTOLOGIa oi kabum!


DESPEDIDA DE MANECO Franceline Rodrigues

–Maneco! –Olá! O que fazes? –Estou aqui no quintal de casa, brincando com os tatus de jardim. –Sua mamãe está te chamando lá dentro menino, já anoitece, já é tempo de ir. –Não, não vou. Quero brincar mais um pouco! –Eita, Maneco danado, quando se encrenca com algo, é insistente que só ele! Até parece que nunca viu jardim, tatu, pedra ou piuí. Ele gosta de inventar, mas depois de tanto brincarolar, ele decide ir. _ Bate com a mão para mim, num tom de quem quer brincar mais um pouco, num tom de quem não quer se despedir. _ É. Foi-se ele injuriado, pois jeito mesmo não teve. ... ... ... _ Oh, e o que aconteceu? O Menino travesso Maneco levou o quintal com ele, nas mãos: dentro dele. 21


SONHO Franceline Rodrigues

Degustar o Órion Beber o mar Acomodar por um segundo, na palma da mão, o pôr do sol E na mão esquerda a alvorada Bailar até os pés ficarem doces naquela ardil nuvem que se disfarçou de algodão Cochilar ternamente E ao acordar, encontrar Deus, à espera Cochichar ao Seu ouvido Torna-te Tua confidente Dormir novamente, e desadormecer ciente De que não fora um sonho

22 ANTOLOGIa oi kabum!


IAGO MARQUES

PO ES IA


Iago Marques

os pelos dos meus mamilos são maiores que os mamilos 8’’:57

24 ANTOLOGIa oi kabum!


não me olhe cruzado se não te dou um reto 08’’:63

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euro lembra ouro 03’’:78

26 ANTOLOGIa oi kabum!


o beijo é outra língua 05’’:63

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cores se alteram entre x e y 4’’:50

28 ANTOLOGIa oi kabum!


sentei embaixo do poste para ver se dava uma luz 06’’:48

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pulei na poça caí no poço 04’’:63

30 ANTOLOGIa oi kabum!


o mesmo ônibus com diferentes pessoas passa no mesmo lugar 07’’:47

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da sacada da casa dei uma sacada 03’’:91

32 ANTOLOGIa oi kabum!


falar sozinho é coisa de louco quem escreve é louco e quem não é escreve pouco ou fala sozinho de outro jeito

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felizes seriam as รกrvores que bem cuidadas eram inofensivas amigas dos pรกssaros que em revoada pousavam sob uma e outra e as abenรงoavam com seu antigo ninar que se harmonizavam com as batidas do ar na รกrvore nave au revoir

34 ANTOLOGIa oi kabum!


essas gotas que estão caindo e que já caíram várias vezes molharam o pelo do corpo e o pelo do boi essas gotas que estão caindo gelaram meu coração sem blusa toda água que existe sempre existiu molhou a pele do dinossauro e já foi tocada por Gandhi elas descem varrendo todas as cordas musicais do ar no frio a vida gelou meu coração sem blusa

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Maiara Cerqueira

PO ES IA


Maiara Cerqueira

sobrevoa entre o eu e o nĂłs, a vida. ela caminha tĂŁo perto do singular e plural. asas e pernas. coexistĂŞncias. Uni-versos, poli-Versos.

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de silêncio em silêncio a saudade enche o papo

38 ANTOLOGIa oi kabum!


luzes apagadas cĂŠu aceso

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ÍNTIMOS Maiara Cerqueira

no mais íntimo do corpo sensações, quereres e birras. os erros e sentimentos aglomerados. no íntimo da mente cabem histórias incontáveis. cabem desejos inexprimíveis. íntimo da alma. dores e felicidades descansam no baú dos legados da vivência, a essência se faz presente. aura: energias e transmissões. sintonia e o infinito. onde o puro amor está escondido. a sete chaves.

40 ANTOLOGIa oi kabum!


NUA Maiara Cerqueira

sem um pingo de noção dos pontos cardeais, me perco naquele cheiro familiar das tangerinas descascadas lentamente com as mãos que tocam as peles e os arrepios, em um dia de chuva. pés descalços, encharcados e frios buscam algum conforto ao sentir a textura do piso. sem paciência para os limites. sem roupas, sem perfumes, maquiagem. sem nada que impeça a respiração plena, os poros agradecem. aos poucos, reconheço a natureza que me compõe, e compreendo a sutileza dos cílios superiores ao tocar os inferiores para livrar os olhos de algumas impurezas. água lá fora e no organismo 41


sempre em litros. reidratação do corpo e quiçá da alma. vistas transbordam, lágrimas reconhecem: se expressar é necessário.

42 ANTOLOGIa oi kabum!


SOMOS TOD@S BASE Maiara Cerqueira

as propostas das mudanças se dispersam enquanto elas são apenas conceito-mor, nada mais. mudar o quê para quem, mudar quem para o quê? a transformação do micro pode ser mais importante do que tratar de um macro confuso – e ignorante. as urgências são macro, as insurgências são micro. a verdade não advém da ordem, mesmo que discordem. somamos frases e formulamos discursos. só não percebemos que somos todas a base. somos todas as bases só não descobrimos, ainda.

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ESTUDANDO ANATOMIA I Maiara Cerqueira

terremotos e tremores e brilhos e sussurros e costelas e diodos emissores de luz e rebolados e respirar e indecisão e movimento e batimentos cardíacos e neologismos sem sentido e buscas incansáveis. entre o ser ou não ser, tento encontrar meio tudo, meio nada: anáfora-eu.

44 ANTOLOGIa oi kabum!


II

tela dela o corpo infinito de células. os órgãos são conjuntos tecidos pela evolução costurado em pontos. bordado, tricô e crochê, quase nada sobre costuras e sim pintura. telas delas dos fios de cabelo às costelas. tatuagem, tinta. templo eterno, um caderno para milhares de poesias.

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III

corpo é substantivo composto e complexo, é para ser abraçado e lançado na ilusória poesia da vida. corpo é para ser estudado os ossos, músculos, as articulações, a temperatura, os nervos, as glândulas. a respiração. corpo é para ser o oposto, a frente, às avessas, só matéria. é a soma de signos, de língua, de fala. é linguagem. e com todas as suas partes rendidas a um firmamento, corpo é sentimento e é conjunto. é assunto para as próximas novelas, notícias, entrevistas. corpo é para a morte e para o gosto. é para ser, por fim, decomposto. 46 ANTOLOGIa oi kabum!


Armando Azevedo

PR OS A


Metamorfose Armando azevedo

A pior coisa que aconteceu em minha vida foi perder a minha mãe. Desde que isso aconteceu vivo com meu pai, mas raramente ele tem tempo pra mim. Às vezes tenho medo dele, que já não era muito simpático nem mesmo com ela. Ah! Eu adoro os animais de asas, desde os pássaros a todos os insetos que podem voar. Acredito não existir ato mais poético e por isso me divertia cuidando e observando a metamorfose que acontecia diariamente dentro do meu quarto, numa caixinha onde eu criava lagartas que eram verdadeiras amigas até que, um dia, meu pai as descobriu e insensivelmente me mandou jogar todas fora. Naquele momento, fiquei imaginando a reação da minha mãe em minha defesa contra aquele monstro. Tornei a chorar a perda dela, dessa vez, junto à das minhas companheiras lagartas... Mas, por medo, nem pensei em desobedecer a ordem do meu pai. Certo dia, entediado como de costume, fui andar pelo jardim, onde me deparei com uma criatura que pela cor e beleza exuberante me fez tornar a acreditar na vida. Era uma maravilhosa lagarta, que, prestes a virar borboleta, me olhava como me pedindo pra que a levasse para casa. Pensei na reação do meu pai, mas, num impulso, resolvi levá-la e mantê-la escondida dentro do meu guarda-roupas. Diariamente alimentava a lagartinha, que a cada dia mudava um pouco. Certa noite, enquanto a observava, meu pai entrou no quarto e descobriu que eu o tinha desobedecido, neste dia ele pisoteou a caixa onde estava a lagarta, gritou e ameaçou dar-me uns tapas. Chorando, deitei em minha cama, mais uma vez com a imagem da minha mãe na cabeça, dessa vez senti a sua presença me acariciando e assim adormeci. No meio da madrugada, ao despertar de um terrível pesadelo, encontrei na cabeceira da cama a jovem borboleta. Ela voava pelo quarto e atravessava os cômodos da casa. Encantado pela forma como ela movia as suas asas, a acompanhei por cada espaço que ela esteve, passamos pelo jardim e logo 48 ANTOLOGIa oi kabum!


estávamos caminhando pela rua, eu estava agindo por um espécie de hipnose. Só me dei conta de onde estava ao chegar num borboletário. Aqui existem flores e borboletas de todo tipo, o perfume é o da minha mãe. O sol já começa a nascer, as borboletas circulam em volta do meu corpo que bestificado apenas sorri. Observo uma espécie de asa que surge em minhas costas... “não pode ser!”, penso, mas sinto-me pertencente a esse grupo de borboletas. Tão livre quanto elas. Agora posso voar?!

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Como Uma Boneca Armando azevedo

Era uma vez Lucy, uma linda boneca. Seus traços eram delicados, os olhos atentos e os cabelos longos e encaracolados... Inteligente e muito sapeca. Costumo dizer que tinha a personalidade de um pássaro engaiolado, pois vivia um grande drama: não suportava estar na posição de um objeto manipulável, sem escolhas e com apenas uma expressão. Lucy adorava os humanos, e desde sempre tentou se comunicar com eles, mas sem sucesso. Até que um dia encontrou a possibilidade dessa comunicação quando ganhou de presente uma dona, ou melhor, uma grande amiga, Aninha. Uma garotinha tímida, de 6 anos e cheia de problemas. Ela não tinha muitos amigos e sofria bullying na escola, muitas vezes preferia se isolar em seu quarto, onde tinha a companhia de uma grande coleção de bonecas de todo tipo. Mas, desde que ganhara a boneca, a pequena Ana, que passou a se ver em Lucy, a elegeu como a sua boneca preferida. As duas passavam horas trocando experiências sobre seus mundos. Lucy queria ser gente, ser independente, poder correr e escolher suas próprias roupas. Enquanto Aninha sonhava em ser uma boneca e ter a atenção de muitas crianças para brincar. Algumas vezes, Aninha e Lucy se desentendiam, pois a menina tentava projetar os seu desejos em Lucy, que odiava os lacinhos cor de rosa e vestidos rodados com que a menina insistia em vestí-la. Certo dia, durante um sonho, Aninha descobriu que era possível resolver o seu problema e o de Lucy, criando, debaixo de sua cama, uma ponte de brinquedos a qual as levaria a um lugar onde tudo seria transformado, sem possibilidade de reversão. As duas então passam a dedicar todo o tempo à construção desse portal, que uma vez aberto não mais se fecharia. Passando pelo portal, Aninha perderia a boneca Lucy, e Lucy perderia sua 50 ANTOLOGIa oi kabum!


dona, porém, ambas estariam realizadas. E então, abraçadas uma no colo da outra, atravessaram o portal. Visualizaram outro mundo. Depararam-se com outro quarto, outra realidade. Lucy habitando um corpo humano e Aninha com seu vestido rosa e rodado cheio de laços. Entreolhavam-se, imaginavam uma o drama da outra. Pensavam no que aconteceria a partir daquele momento. Muita coisa havia mudado? E suas histórias, seu passado... seria tudo apagado? “Ser boneca nem era tão ruim assim...” pensava Lucy. Aninha pensava na sua família. Iniciava-se, então, um choque de consciência. Os dramas neste momento eram outros.

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Castelo de Espelhos Armando azevedo

Em um reino muito distante, havia um castelo em que todos temiam entrar. Ele era grande, imponente e parecia brilhar cada vez que a luz do sol era refletida em uma de suas torres. Era o castelo mais belo, e o que mais atiçava a curiosidade das pessoas que por ele passavam e viam sua imagem. O enigmático castelo era trancado à sete chaves. Não havia registro de quando ele tinha sido construído, tampouco informações sobre seu proprietário. Ouviam-se várias lendas a respeito dele: que, em noites de fortes chuvas, abria suas portas e janelas para acolher pessoas desamparadas e, supostamente, trancavam as pessoas para sempre. Certo dia, eis que surge no reino um corajoso jovem com a missão de entrar no castelo e sair de lá com todos os segredos desvendados. Então, aproveitandose de um momento de encanto, em que o castelo estava completamente iluminado pela lua que parecia ainda mais cheia, o jovem conseguiu adentrálo. Lá, encontrou uma outra atmosfera. O jovem se via em cada parede que olhava, sua voz ecoava no infinito dos cômodos vazios. Tudo parecia girar em torno dele próprio, neste momento ele já era o protagonista da história, correndo e sendo perseguido por si mesmo. Uma grande confusão se passava em sua cabeça. A coragem dava lugar ao medo. Tudo se passava como num filme: de um lado, seu alter ego mais ocultamente desejado acenava e piscava um dos olhos, do outro, o mais próximo da normatividade o observava de braços cruzados. Ele não sabia o que fazer, deu um passo em direção ao ego que lhe faria mais feliz, olhou pra trás com receio, mas ainda assim avançou e correu, atravessando uma parede e caindo num mundo onde todos os seus desejos eram reais e as possibilidades infinitas. Ele não queria mais sair de lá, e percebia que a cada momento estava mais distante do seu projeto inicial de retornar ao reino com os segredos do castelo.

52 ANTOLOGIa oi kabum!


Seu alter ego o convida a passar por uma porta. Ao fazer isso, o jovem cai da torre mais alta do castelo, levanta do chĂŁo enquanto todos o observam. Nada ali mudara alĂŠm de sua existĂŞncia.

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Castelo de Espelhos Armando azevedo

Em um reino muito distante, havia um castelo em que todos temiam entrar. Ele era grande, imponente e parecia brilhar cada vez que a luz do sol era refletida em uma de suas torres. Era o castelo mais belo, e o que mais atiçava a curiosidade das pessoas que por ele passavam e viam sua imagem. O enigmático castelo era trancado à sete chaves. Não havia registro de quando ele tinha sido construído, tampouco informações sobre seu proprietário. Ouviam-se várias lendas a respeito dele: que, em noites de fortes chuvas, abria suas portas e janelas para acolher pessoas desamparadas e, supostamente, trancavam as pessoas para sempre. Certo dia, eis que surge no reino um corajoso jovem com a missão de entrar no castelo e sair de lá com todos os segredos desvendados. Então, aproveitandose de um momento de encanto, em que o castelo estava completamente iluminado pela lua que parecia ainda mais cheia, o jovem conseguiu adentrálo. Lá, encontrou uma outra atmosfera. O jovem se via em cada parede que olhava, sua voz ecoava no infinito dos cômodos vazios. Tudo parecia girar em torno dele próprio, neste momento ele já era o protagonista da história, correndo e sendo perseguido por si mesmo. Uma grande confusão se passava em sua cabeça. A coragem dava lugar ao medo. Tudo se passava como num filme: de um lado, seu alter ego mais ocultamente desejado acenava e piscava um dos olhos, do outro, o mais próximo da normatividade o observava de braços cruzados. Ele não sabia o que fazer, deu um passo em direção ao ego que lhe faria mais feliz, olhou pra trás com receio, mas ainda assim avançou e correu, atravessando uma parede e caindo num mundo onde todos os seus desejos eram reais e as possibilidades infinitas. Ele não queria mais sair de lá, e percebia que a cada momento estava mais distante do seu projeto inicial de retornar ao reino com os segredos do castelo.

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Seu alter ego o convida a passar por uma porta. Ao fazer isso, o jovem cai da torre mais alta do castelo, levanta do chĂŁo enquanto todos o observam. Nada ali mudara alĂŠm de sua existĂŞncia.

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Bruno Granato

PR OS A


Dor Bruno Granato

Dor de cabeça, de garganta, de moleza, de infância, de coração, de pé, de mão, de bêbado, de são, de cotovelo, de tosse, de medo de solidão. Dor de sim, de não, de vento, de anão, de mágoa, de perdão. Que é isso, menino. Dor não é mole não! Mas dor é tudo virose... Dor é comida que assa. A gente (dor) queima, esfria, esquenta, come e quando não há mais carne... dor passa!

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Cartas Bruno Granato

Um dia desses me perguntei o porquê de nunca mais ter escrito. Não tive a resposta. E às vezes me pego em questões do tipo: por que não volto a escrever? Devo mesmo ter perdido o dom. Sempre escrevi sobre amor. Pelos cachorros, pela vida, pelo drama, pela corrida, pelos sonhos, pela esperança, desde criança. Pela dor. Nunca entendi o motivo da rima, mas rimava sem parar. Rimei tanto que nem sei por onde fui ficar. Mas com o tempo acabei não rimando mais. Não seguindo mais, não vivendo mais. Como um velho, que por dia tanto faz. Acho que o motivo da rima se foi, sabe? A gente rima tanto quando ama, e quando termina se desfaz. O engraçado é que nunca entendi de amor, mas falei de amor. Falei de amor das vezes que segurei sua mão, das vezes que fomos ao cinema, nem sabia qual o filme, mas fui só por te ver. Falei de amor na praia, quando me contava suas piadas, e que tinham graça porque só nós conseguíamos entender. Falava de amor quando recebia suas ligações dizendo: Vem pra cá! E eu, mesmo sem entender o porquê, ia, sem pensar. Às vezes falamos de amor tanto que nem notamos. E você se foi! Hoje não escrevo mais, não amo mais, não falo mais, não vivo mais. O único que me entendia, já não sinto mais. E ainda espero o dia que receberei outra de suas mensagens. Ô, saudade. Amor é isso? E a gente só percebe o amor quando passa? Quando as nossas músicas já não tocam no rádio? Quando a praia já não está mais serena? Quando deixo de ser sua pequena? Que pena! Em nome de amor, perdi o amigo, a viagem, a meta, o emprego, o problema, até o dilema. Mas viveria tudo de novo. Acho que sou a nostalgia em pessoa. E nunca mais escrevo de um só, à toa. Hoje um coração quebrado, amanhã um que voa!

58 ANTOLOGIa oi kabum!


21/12/12 Bruno Granato

Quero ver o fim do mundo se concretizar! Quero dizer na véspera tudo o que sempre quis dizer! Quero ver todo mundo se libertando! Quero abraçar pessoas na rua sem motivo! Dizer Eu te amo pelo menos 100 vezes a quem eu amo! Quero pular de asa delta, bung jump, paraquedas, até do Cristo Redentor, por favor! Quero atravessar uma ponte de bicicleta! Comer um bolo de chocolate sem rancor (com amor)! Escrever uma carta malcriada a um senador! Que vergonha! Surtar! Viajar de canoa, ou até nadar! Se o fim do mundo chegar! Quero estar em uma praia! Ou no Arpoador! Ver o sol ir descansar! Dar uma festa e parar de me condenar! É tanto “ar” para terminar que tenho medo de me sufocar! Quero muito me desgarrar, mas daí eu pergunto: e se o fim do mundo não chegar?

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Clara Dias

PR OS A


Clara Dias

Somos nós, os jovens, a boca fica torta, estranha quando a palavra “adultos” sai dirigida a nós. O preço da comida começa a importar, o socialismo precisa ser discutido de forma clara, atual, o discurso de 150 anos perde a beleza, mas ainda assim nada deve parecer impossível de mudar. Não se muda tanto de bar, e na mesa o assunto é o plano de governo, mas tem que ser objetivo, que o metrô já vai fechar. Somos nós, com a voz mais grave, comportando as profundidades de forma mais serena dentro do peito, tendo essa fala mais clara e ouvida dentro da casa que há tempos só frequentamos pra comer, dormir e chorar. Os pais já não levantam a voz, a mágoa se dissipa, enquanto nos parecemos cada vez mais com as suas outras fases, alugando conjugados na era da especulação imobiliária. É o rio. E o trânsito está em nós. Existe agora alguma fé, uma teoria e outra, notada nos discursos de mensagem de texto, baseados em alguma lei espiritual da índia ou na fala de um caboclo do centro de umbanda frequentado na última sexta, depois do trabalho, enquanto se mata aula na faculdade que se brigou pra entrar e agora tanto faz. Tanto faz. Um começa a namorar e o outro defende sua carteira assinada, relembram os textos, contos de dois anos atrás, reparando que os sonhos mudam, que aqueles 61


dois amigos não dariam certo nunca e o fulano não era tão bom escritor assim. Desistências, apelidos que não funcionam mais, cerveja agora é bom e o 524 mudou de número. Todos contabilizam quantas mortes faltam pra tudo recomeçar.

62 ANTOLOGIa oi kabum!


Clara Dias

É que eles são estranhos, vizinhos sem intimidade. O som das teclas e das portas é tudo o que um pode ouvir do outro, não existem palavras entre eles. E esse não é um silêncio bom. A hora de lavar roupa suja é o mais parecido com convivência. Ponha suas roupas daquele lado, por favor, eu prefiro estender as minhas na parte mais baixa... É que eles são estranhos, vizinhos dentro de uma casa só, separados por muros de toalhas molhadas e poeiras de livros. Companheiros de solidão, de empresas de jornais, tv, internet e telefone diferentes. Já se puseram em caixas, que não puderam retirar, já que estão acostumados a viver livres dentro desse espaço chato, cheirando a café. Isso quer dizer que pequenas perfeições já não fazem muito... ele não ronca, ela não liga. Ela sabe ser bonita, ele nem lembra.

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Quarta-feira. Dia de jogo, dia de feira, o dia da chacina no Pará. Dia de ódio, no terceiro período, aqui e lá. Dia de lembrar que playboy é foda e é melhor não confiar (chega de escravidão), dia de xingar o motorista que não liga o ar. Dia de tabaco com veneno pra rato, de dura. Que dia amargo. É praga de Oxum. Dia de desculpa no telefone, de destruição de ego em massa, dia de atualização do whatsapp. É hora de voltar pras cartas, amigos. Refugiem-se: o único lugar seguro é tu contigo mesmo. Que dia vazio. E pra acabar, a chuva. Num dia desses, escrever é parir. Normal.

64 ANTOLOGIa oi kabum!


Acordo, espreguiço-me livremente na cama, sem os limites impostos pelo seu sono leve, e sem me preocupar com o pecado do hálito matinal impuro. Ando descalço pela casa, respirando o silêncio, dando bom-dia aos livros, acenando calorosamente para os CDs. Vou até o banheiro e deixo a porta aberta, sem a obrigação de vigiar a tampa do vaso. Aperto a pasta de dentes pela cintura, jogo as roupas todas pelo chão, tomo banho fazendo festinha, cantando alto. Enxugo-me e vou até o quarto, arremesso a toalha em cima da cama (ainda desarrumada), pego a camisa listrada mais amarrotada que vier e tenho o cuidado de combiná-la com a, velha e boa, bermuda xadrez desbotada. Ligo o rádio na estação de MPB, no volume que mais me agradar, já que não vou mais ouvir que isso é música para caretas. Vou até a cozinha, sem precisar dar de cara com o cheiro do seu café forte. Como sem pressa, sujo a toalha de mesa toda com migalhas, moldo bolinhas perfeitas com o miolo do pão. Quase me esqueço do perfume, que agora uso até que me exploda a cabeça, sem ter que prestar atenção em suas alergias. Estou deixando a minha barba crescer, porque sua pele não corre mais o risco de ser arranhada por ela. Voltei com o futebol, fiz amizade com a vizinha do 304, troquei as cordas do violão e ganhei um aumento. No mais, está tudo na mesma. Obrigado por se preocupar. [Ele decide que este é o discurso ideal para quando ela ligar. Ele põe a foto dela de volta na gaveta, com o rosto virado para baixo. Sente-se mal e percebe que não tem a quem pedir um copo de água. Definitivamente, aquelas garrafas de vinho não eram boa ideia... Se dá conta de que bebeu todas elas, sozinho. Se esqueceu de trancar a porta e agora não vai mais levantar. Puxa os lençóis e vira para a janela, com as cortinas abertas. Antes de pensar como será desagradável 65


acordar amanhĂŁ com a visita indesejada do Sol, ele adormece. Talvez nem consiga sonhar.]

66 ANTOLOGIa oi kabum!


Clara Dias

É que eles são estranhos, vizinhos sem intimidade. O som das teclas e das portas é tudo o que um pode ouvir do outro, não existem palavras entre eles. E esse não é um silêncio bom. A hora de lavar roupa suja é o mais parecido com convivência. ponha suas roupas daquele lado, por favor, eu prefiro estender as minhas na parte mais baixa... É que eles são estranhos, vizinhos dentro de uma casa só, separados por muros de toalhas molhadas e poeiras de livros. Companheiros de solidão, de empresas de jornais, tv, internet e telefone diferentes. Já se puseram em caixas, que não puderam retirar, já que estão acostumados a viver livres dentro desse espaço chato, cheirando a café. Isso quer dizer que pequenas perfeições já não fazem muito..ele não ronca, ela não liga. Ela sabe ser bonita, ele nem lembra. Quarta-feira. Dia de jogo, dia de feira, o dia da chacina no Pará. Dia de ódio, no terceiro período, aqui e lá. Dia de lembrar que playboy é foda e é melhor não confiar (chega de escravidão), dia de xingar o motorista que não liga o ar. Dia de tabaco com veneno pra rato, de dura. Que dia amargo. É praga de Oxum. Dia de desculpa no telefone, de destruição de ego em massa, dia de atualização do whatsapp. É hora de voltar pras cartas, amigos. Refugiem-se: o único lugar seguro é tu contigo mesmo. Que dia vazio. E pra acabar, a chuva. Num dia desses, escrever é parir. Normal. 67


Clara Dias

Acordo, espreguiço-me livremente na cama, sem os limites impostos pelo seu sono leve, e sem me preocupar com o pecado do hálito matinal impuro. Ando descalço pela casa, respirando o silêncio, dando bom-dia aos livros, acenando calorosamente para os CDs. Vou até o banheiro e deixo a porta aberta, sem a obrigação de vigiar a tampa do vaso. Aperto a pasta de dentes pela cintura, jogo as roupas todas pelo chão, tomo banho fazendo festinha, cantando alto. Me enxugo e vou até o quarto, arremesso a toalha em cima da cama (ainda desarrumada), pego a camisa listrada mais amarrotada que vier e tenho o cuidado de combiná-la com a, velha e boa, bermuda xadrez desbotada. Ligo o rádio na estação de MPB, no volume que mais me agradar, já que não vou mais ouvir que isso é música para caretas. Vou até a cozinha, sem precisar dar de cara com o cheiro do seu café forte. Como sem pressa, sujo a toalha de mesa toda com migalhas, moldo bolinhas perfeitas com o miolo do pão. Quase me esqueço do perfume, que agora uso até que me exploda a cabeça, sem ter que prestar atenção em suas alergias. Estou deixando a minha barba crescer, porque sua pele não corre mais o risco de ser arranhada por ela. Voltei com o futebol, fiz amizade com a vizinha do 304, troquei as cordas do violão e ganhei um aumento. No mais, está tudo na mesma. Obrigado por se preocupar. [Ele decide que este é o discurso ideal para quando ela ligar. Ele põe a foto dela de volta na gaveta, com o rosto virado para baixo. Sente-se mal e percebe que não tem a quem pedir um copo de água. Definitivamente, aquelas garrafas de vinho não eram boa ideia... Se dá conta que bebeu todas elas, sozinho. Se esqueceu de trancar a porta e agora não vai mais levantar. Puxa os lençóis e vira para a janela, com as cortinas abertas. Antes de pensar como será desagradável 68 ANTOLOGIa oi kabum!


acordar amanhĂŁ com a visita indesejada do Sol, ele adormece. Talvez nem consiga sonhar.]

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Lucas Valadares

PR OS A


Lucas Valadares

O carro parou lentamente na subida do morro, o olhar estava na janela e o foco em outro lugar. Era dia quando ele chegou, não queria descer do carro, era tudo tão estranho. Sua cabeça ainda estava desorganizada, o impacto fora grande, seu peito ainda não tinha se recuperado do golpe. Mesmo assim reuniu forças, pegou a mão de seu irmão e saiu. Ele não poderia perceber, mas o caminho até seu destino era enfadonhamente belo. O céu estava aberto, nenhum branco, apenas azul. Havia pássaros voando, o sol explodia totalmente indiferente enquanto o vento penteava o chão. Era realmente algo que ele apreciaria se não fosse a ocasião, se não fosse o vazio. 71


Precipitadamente achamos que o vazio é leve, que ele não ocupa espaço. Mas o vazio é um fardo grande que nos consome a mente sem permissão, apodrece nossos nervos. Não deixa espaço para qualquer calor.

72 ANTOLOGIa oi kabum!


Chegou a um local de atmosfera pesada que em nada condizia com o belo dia. Havia várias pessoas conhecidas reunidas. Luto, lágrimas, olheiras, pessoas que lamentavam uma perda. Nada fora do normal, todo velório é assim. Logo que chegou o garoto, percebeu ali uma sala morta, uma sala que exalava cheiros. Vapores de lágrimas tristes, arrependidas, incapazes e com remorso. Todos esses odores eram estranhos ao olfato inexperiente e virgem de partidas. Percebeu ainda que todos que entravam nesta sala saíam mais abalados. Todos assustados com uma coisa natural. Nunca entraria ali.

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Morrer é ridículo, passamos uma vida inteira construindo sonhos, gerando expectativas e no fim tudo fica pra trás A ceifadora é covarde, não nos dá chance de lutar, nos agarra e com um golpe frio e sem misericórdia nos abate. A morte é ingrata, não nos dá tempo para preparação, não deixa que choremos nossa própria partida, nem que possamos dar um último adeus, um abraço, um beijo carinhoso, nem mesmo um último sussurro. A morte nos deixa despidos, sem máscaras.

74 ANTOLOGIa oi kabum!


Ele como todo idoso tinha pressão alta e problemas cardíacos. No seu bigode sempre havia farelos, nunca deixava de apreciar uma bolacha, sempre comia alguma coisa, sua boca era um tanto nervosa. Estava sempre com cabelos negros penteados para trás. A verdade é que seu cabelo já não era mais tão negro. Os sopros do tempo desgastaram seu tom, e assim como a água desgasta as pedras do mar esses sopros tiraram-lhe a cor. Seu neto, assim como toda a sua família, sempre dizia para ele deixar os cabelos na cor natural, mas Sr. Otaviano nunca o fizera, achava que cabelos negros eram sinônimo de respeito e juventude. A vaidade, por mais estéril que possa ser, atinge todas as faixas etárias. Tinha três pernas, duas de carne e uma de madeira. Nunca viu com bons olhos a perna de madeira, mas aceitou usá-la depois de alguns incidentes. Mesmo com ela andava cansado, cada passo doía, eram pesados e lentos como se em cada perna estivesse carregando seus erros. Deviam ser muitos os seus erros, considerando que ele foi filho, neto, sobrinho, marido, pai de cinco crianças, tio de sei lá de quantos sobrinhos e avô de muita gente. Sr. Otaviano era bem idoso, já estava na casa dos oitenta, sofrera alguns acidentes nas rodovias cerebrais e, como todo idoso, tinha pressão alta e problemas cardíacos. Mesmo assim ainda era uma pessoa , agradável e disposta, dentro dos seus limites. Falava baixinho, um fraquíssimo perfeito, que entrava sem pedir licença pelos nossos ouvidos. Acho que por isso escutavam tão bem sua voz, somos muito mais propensos a uma voz que nos encoraja, do que a que nos reprime.

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É claro que Sr. Otaviano dava algum trabalho para sua família, como todo idoso. Tinha alguns problemas no joelho e por isso usava uma bengala. Não aceitava que a juventude o abandonasse como os dentes de leite o fizeram tempos atrás; e mesmo com o joelho falho insistia em sair de casa todo dia para trabalhar. Isso rendeu algumas dores de cabeça para a família, mas não vem ao caso. E como tinha a boca nervosa, sempre assustava as pessoas com seus engasgos. Emfim, todas essas características, embora não sejam todas, constituiam o Sr. Otaviano ou, para os íntimos, o Vô Tatá.

76 ANTOLOGIa oi kabum!


Em um lugar desagradável estava toda a sua família. Seus primos choravam, sua avó não saía do lado de seu avô. Seu irmão mais novo estava atordoado e choroso. O que o chocou foi o seu pai, ele estava chorando. Pela primeira vez ele viu seu pai chorando, não chorava desesperadamente, estava ali quieto, lembrando, escorado em uma parede, de vez em quando entrava para ver seu pai, algumas vezes ria de algo relembrado. Olhando seu pai não se sentia bem. Ele estava parado, atordoado, sua mãe veio a seu encontro, estava calma, com olheiras em volta dos olhos. Ela o abraçou forte, em silêncio. Sua mãe era uma mulher forte, mas naquele momento desabou, seus olhos viraram uma cachoeira e o lamento a dominou. – Eu fiz tudo que podia para segurá-lo, mas ele escapou, ele se foi, filho. Disse ela em prantos e o laço do abraço ficou mais forte. – Eu sei mãe. Ele disse. E a abraçou forte, não conseguia dizer mais nada. O corpo tremia, as pernas bambas, mãos frias e aquosas, coração espancava o peito. Nada disso, porém, era suficiente. Não conseguia chorar, seus olhos estavam bloqueados, mas não por vergonha, ele queria chorar, queria muito. Desejava que todos vissem o lamento de sua perda, mas estava incapacitado. Talvez algumas pessoas não chorem, talvez a dor seja tão grande que os olhos não se abram, por receio de não mais se fecharem. Talvez o choro não saia, talvez penetre na carne. É possível que ele também tenha perdido essa capacidade de expressão, que tenha ficado seco. Ele não era uma pessoa fria, amava muito seu avô, mas, contudo não chorou.

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Temos o hábito de enterrar nossos mortos a sete palmos no chão, para que eles não voltem à vida. Mas ali, uma cova rasa era atraente, o que não fariam para ver aquele sorriso sincero novamente? Ou ouvir sua voz baixa? Mas no mundo moderno as pessoas não renascem. Estava na hora do último adeus, todos se juntaram e caminharam para o destino final de uma pessoa querida. O caminho era um morro com pedras alinhadas de forma tosca para formar um calçamento. Um familiar distante começou a falar. Tinha uma voz grave, alta e firme, vestia uma camisa verde listrada, uma calça social e sapato de couro. Dizia palavras de consolo, uma bela passagem bíblica, falava do amor e da misericórdia divina. Sons que não sintonizavam com o peito de quem perdeu alguém.

78 ANTOLOGIa oi kabum!


Existem pessoas assim, adoram discursar, na verdade querem fazer o bem e levar consolo. Mas as palavras não se dobram a todos. Foi uma sequência de palavras estranhas que não se firmavam no ar e como mariposas sem asas caiam no chão.

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As pessoas mudam, as famílias são diferentes. A morte é sempre a mesma. E tudo o que ela nos da é dor, vazio e desamparo. Ficamos ali como crianças encolhidas esperando por amparo, mas a pessoa a nos amparar não nos toca, não sussurra. Ficamos ali esperando o tempo passar.

80 ANTOLOGIa oi kabum!


Em meio a lágrimas e murmúrios, duas flores caíram. As pétalas eram brancas como um sorriso, o centro era amarelo vivo, seguido de um caule verde puro. Duas flores diziam tudo, era um sorriso puro e amarelo.

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Avermelhado Lucas Valadares

Não sei direito porque ele veio, nem de onde veio, na maioria das vezes eu tentei ignorá-lo e deixar que ele perdesse a graça ou desistisse de suas ideias fantasiosas. Mas, como era de se esperar, o diabrete não se deixava persuadir nunca. Durante os primeiros dias, eu não sabia o que fazer, e no primeiro dia entrei em pânico. E não havia nada mais natural do que isso. Eu estava sentado na minha cama, tinha acabado de jantar com meus pais, falamos um pouco sobre coisas triviais, e meu pai perguntou quando eu ira arrumar um emprego, disse que logo, não que eu pretendesse mesmo arrumar um emprego, mas disse para que meu pai não se irritasse. Estava lendo um livro qualquer, desses que a gente lê porque disseram que é bom, ou talvez, estava ouvindo música no fone. Mais provável que os dois. Mas, lembro claramente de escutar um ‘’Oi’’, como o de um amigo íntimo que há muito não me via ou de um amigo íntimo, tão íntimo, que não se sabe mais até onde a intimidade se estende. “Oi”. Pensei: estranho estou ouvindo coisas. “Oi”. Outra vez pensei: estou ouvindo coisas. “Eu estou aqui!” Eu disse: agora estou enlouquecendo! E de fato estava, estou, os dois juntos, talvez, quem sabe? Lá estava na minha frente uma miniatura de demônio ou algo do tipo. Não tinha mais do que dois terços de metro, a pele não era completamente vermelha, como sempre achei que seria da sua estirpe, parecia com carne de porco. Estava completamente nu, e ostentava o pênis, que mais parecia uma terceira perna.

82 ANTOLOGIa oi kabum!


Olhei para aquilo e não senti medo. Na verdade, senti que deveria ter medo, mas não tinha. Isso me deixou mais assustado do que estar de frente para um diabrete falante e irrequieto. Ele não se importava com a minha aparente pertubação. Foi logo subindo na cama e arrancando meus fones, se é que eu estava mesmo de fone. Começou a falar coisas sem pé nem cabeça, as dizia e depois ria. Chutei ele para fora da cama, com força. Ele bateu na parede e caiu no chão. Ficou nervoso, voltou para cima da cama e mordeu meu pé. Doeu, os dentes dele eram afiados e pequenos. Chutei-o mais uma vez, ele caiu de novo e voltou para cima de mim. Mas dessa vez eu estava preparado, agarrei-o pela perna antes que me abocanhasse. – Me solta humano maldito! Como ousa!?! – O que é você? – Sou um demônio. O mais nobre de todos. Agora me solte. Coloquei-o na cama, agora estava mais calmo, mas continuava impaciente. Me contou sobre ele. Tudo. Disse sobre as torres do inferno, as mais altas que existem, que começam no chão, com bases tão largas que um vida humana inteira não seria suficiente para se chegar de uma ponta a outra, elas vão se afinando aos poucos em direção ao céu, são tão altas que sua ponta e mais fina do que um fio de cabelo. Disse que a ideia de arranha-céu veio da visão que um homem teve do próprio ínfero. Falou sobre os lagos de água gelada que usavam para torturar as pessoas com o corpo ardendo em brasa. Sobre as bestas cegas e famintas que espreitam por fora dos portões do inferno. Contava tão naturalmente, como se fosse a coisa mais comum, e de fato deveria ser para um demônio, mas não para mim, um humano medíocre. Passamos a noite inteira conversando. Perguntei sobre o céu, ele me disse que não sabia muito sobre lá. Falamos mais sobre o inferno, entendi que ele queria falar disso. Ouvi sobre os poços sem fim do inferno, deles se pode ouvir os gritos das pessoas que caíram, gritando nunca chegando ao fim do sofrimento de cair. Escutei sobre os desertos de sal de onde não se pode nunca escapar. E das harpias, meretizes de satã.

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Conversamos até tarde, tão tarde que peguei no sono sem perceber. Quando acordei estava atrasado para a escola. “Olha quem acordou” escutei. Era ele, estava sentado na minha mesinha lendo minhas poesias. Mandeiparar. Não gosto que leiam minhas poesias, ainda mais quando se é um demônio insensível. Ele respondeu que eu não precisava me preocupar, no inferno existem coisas muito piores do que aquilo, e riu. Chutei-o com mais força do que antes. Ele caiu no chão e ficou parado, gemendo como criança. Me preocupei, perguntei se ele estava bem. Ele não respondeu, estava chorando. Uma miniatura de demônio chorando. Em que mundo isso seria possível ou ao menos concebível? Nem nos meu sonhos delirantes, mais loucos depois de usar coisas ilícitas, eu poderia pensaria em um demônio chorando no meu quarto. – Perdão? – Pensei que você fosse diferente. – Eu? Por que ? – Achei que você entenderia. Você não mata as formigas não é mesmo ? – Sim, mas o que isso tem a ver com demônios? Eu não quero mais ficar no inferno, ser demônio não é uma coisa boa. – Você não gosta? – Não tenho opção. Coloquei-o na cama feito uma crianca. Me disse que os demônios não têm escolha, nascem demônios e são obrigados a fazer toda sorte de crueldade. Uma vez, teve que fazer um pai espancar o próprio filho até quase a morte, fez até coisas piores que não quis me falar. Contou que a maioria dos demônios gostam de ser ruins, quase todos, ele não. Só conheceu um que fosse como ele, disse que ele não suportou e se jogou num poço sem fim. Falou também sobre as perversidades que os anjos fazem com os da sua espécie, perfuram seus corpos, arrancam membros, amarram e os jogam do alto das montanhas,

84 ANTOLOGIa oi kabum!


como se fossem fezes das aves santas. Comecei a odiar os anjos por torturarem meu novo e indecifrável amigo. Enquanto ele me servia em taças malucas histórias, eu as bebia, e fui ficando bêbado. E ele continuava a chorar, cada vez mais alto. Eu continuava me embebedando. Não fui à aula, disse qualquer mentira para minha mãe. Havia um frágil demônio sentimental a ser consolado. Passei o dia com ele, escutando todas as coisas que se pode escutar de um demônio carente. Comecei a creditar no que ele me dizia, não pelo que ele me dizia, mas por como ele me dizia. Fiquei preocupado. O tranquei no guardaroupa. Comecei a escutar sons estranhos, gemidos baixinhos, abria a porta e o vi comendo minhas roupas. Peguei ele pela orelha a joguei na minha cama. – Tá bom, o que você quer? – Quero ficar aqui. – Não vai. – Vou. Saiba de uma coisa. Não há como discutir com um demônio, eles simplesmente fazem o que querem. Um dia, pouco tempo depois de aparecer, ele tentou me convencer de tacar fezes no carro do meu vizinho. Cochichou sobre as monstruosidades que o vizinho fazia com os animais da casa, confesso, fiquei tentado a fazê-lo, mas não fiz. A pequena tormenta em forma da anão não me deixava hora nenhuma, ia para todo lado atrás de mim. Na escola, no almoço... e o que mais me incomodava era que só eu podia vê-lo, várias vezes passei vergonha com as pessoas pensando que eu estava a falar sozinho. Depois de alguns dias comecei a reparar que ele estava diferente. A pele vermelha suíno estava clariando, como a de uma ave. O jeito inquieto e ansioso se acalmando, virando algo sensato.

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Os pequenos olhos cinza que giravam pelo globo como dançarinas bêbadas, passaram a dançar balé clássico. Poucos dias antes de me deixar, o surpreendi enquanto comia um monte de coisas na geladeira. Fiquei furioso, mas não consegui ser rude com a forma senil à minha frente. Tão diferente de antes. Tão frágil. Comecei a ficar vigiando, para impedir que caísse, que se perdesse pela casa. Olhando para que o gato não o atormentasse-retalhasse-matasse (o gato era a única criatura fora eu, que o via). Cada dia que passava ele ficava mais fraco, mais necessitado de mim. Disse-me que o mundo mortal não é lugar de demônios, que eles morrem se muito tempo ficarem por aqui. Disse que voltar ao inferno o salvaria, mas que preferia a morte do que aquilo. No fim, eu tive que passar um dia inteiro com ele na cama. É estranho o modo como eu me apeguei a essa coisa atormentada. Os dias com ele eram terríveis, mas depois que ele se foi, o terrível passou a ter outra definição. Era quase noite, o céu estava vermelho, creio que ele escolheu essa hora, para que sua pele ficasse vermelha como os raios indecisos e postiços que se formam no fim do dia. Pediu que eu o levasse até o quintal, tentou cuspir no gato no meio do caminho, sem conseguir. Disse algumas coisas que não entendi por causa da voz trêmula. Começou a se contrair, a chorar como uma criança de colo, me abraçou forte. O que poderia ser mais sincero do que isso? O abraço de um demônio em um humano? Chorei, acho que antes de morrer ele sentiu o toque das lágrimas, poderia jurar que o vi sorrindo. Passei um bom tempo cavando uma cova descente para ele. Meu pai perguntou, nervoso o porquê disso. Respondi apenas que era necessário. Ele entendeu, viu no meu rosto, e não disse mais nada. Cavei... Cavei...Cavei, foi uma cova pequena, uma cova que fosse a conta dele, que o abraçasse na noite eterna que chegava, como eu fiz há pouco. Não contei a ninguém. Guardo-o egoísta dentro de mim. Como um dragão escamoso em volta do seu avarento tesouro. Enterrado tão fundo que se eu quisesse tirá-lo sangraria. Meus dias terríveis chegaram ao fim, e eu nunca mais verei aquele demônio.

86 ANTOLOGIa oi kabum!


Estavam os dois no bote, navegaram sem rumo por muito tempo. Tanto tempo que não se lembravam mais de onde tinham partido, nem o porquê de partirem, todos caminhos pelos quais passaram e as tormentas vencidas. Os desejos, que outrora rasgavam a pele, ferviam o espírito, agora jaziam mortos, moribundos inertes no canto do barco. Navegavam por navegar. Sem destino, rumo ou outra meta qualquer. Estavam ali pelo simples exercício de existir. A vida passava e o nada permanecia, implacável. Já não cabia neles próprios, escorria por olhos e bocas, orelhas e nariz, pelos, umbigo e ânus. Escorria por seus corpos em cada caminho da anatomia esquelética , inundava o barco, despencava ao mar, se misturando por completo com o nada faminto de todo resto. Deslizavam lentos e mansos no barco marrom. Por um mar de calma intragável. Branco, vazio. Não havia vento que os empurrassem para frente nem maré qualquer que os puxasse para trás. Segundos sumiam, minutos se perdiam de vista, horas tragadas, dias piscados, semanas e meses e anos caídos, décadas consumidas inteiras. O tempo se esvaia vaidoso e corpulento, e os imortais morriam lentamente. Sonhos, vontades, medos, todos sugados pelos caprichos de não mais sentir.

“Quero Mergulhar”

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Disse o primeiro, o menor. Os dois tinham os corpos cansados, pele queimada, olhos brancos, pernas sem uso, tão atrofiadas que mal se notava. A cor da pele não tinha vida, cinza. – Não pode, disse o segundo, o delgado. Completamente igual ao primeiro, exceto pelos olhos tomados pelo negro – Sabe bem que estamos presos por essa corrente. Eu teria que ir junto. – Mergulha comigo. – Não quero. – Mas bem sei que seu cansaço é tão grande quanto o meu. – Verdade. – Então vamos. – Não. – Por quê? – Quero ficar. – Mas e a água – Que tem a água? – Nós nunca a vimos, nunca a tocamos. Quero senti-la, tomá-la em meu corpo e me completar. – Entendo, mas é algo que não me chama. Fico aqui, que é mais quieto, menos incerto. – Não entende a beleza da água? – Não vejo beleza em nada. – O nada dela é diferente, irmão. Preenche-me por inteiro. Quero a água. Já a amo tão fortemente que minha mente se inunda dela, meu peito se encharca e dos meus olhos ela escapa. – Não posso, aqui é meu lugar, a concha se fez meu lar. Não largo esse conforto. – Eu preciso. – Bem sei meu irmão, mas não posso.

88 ANTOLOGIa oi kabum!


– Uma vez! Mergulha comigo, divido-a com você. Mergulha comigo, irmão, e completo-me. – Se mergulharmos não voltará mais. Sabe disso. – Prometo. – Vocênão é capaz, eu o perdoou por isso. – Não pedi perdão. – Mas perdoo-o mesmo assim. Dias se passaram, e o dois homúnculos permaneceram quietos. Meses se passaram e nenhum movimento. A casca oca percorria o mar sereno branco, enquanto o tempo corria solto. Manhã e noite não se distinguiam. Ao passar de mais de um ano o menor disse: – Amo água!! Amo mais do que o infinito da minha vida vazia. Muito mais do que eu mesmo. Eu a quero, por um instante, por uma era inteira. Quero mais que tudo. – Nunca a tocou, não pode amá-la. – Amo o que não tenho com a força do desejo de ter. O querer me é mais forte do que o próprio ter. Toda vez que não a tenho a amo mais. Todo dia é crepúsculo de mim. Todo tempo me faço aurora do desejo de vê-la. E você é carrasco da minha paz. – Não diga isso, não posso. Não sou como você. – Você não ama! – Amo sim! – Ama o quê, então ? – Amo a concha, o meu abrigo. Nele eu posso estar, posso ser. Sempre posso ficar, e nunca preciso ir. A segurança que ele me dá. Não necessito de mais nada. Completo-me assim. – Não é justo. Tem seu amor todo dia. E o meu me é negado eternamente. – Não é justo, concordo. – Então me ajuda. – Como? – Vamos até a ponta da concha, de lá eu mergulho e você fica seco em sua casca. – Acho que posso fazer isso.

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– Mas tem uma condição. – Qual? – Não poderá tocar a água, nem mesmo olhá-la. Não é mais digno dela. Prometa. – Prometo. Assim foi, os dois caminharam pela concha, em partes que nunca antes tinham visto. E os olhos do irmão delgado se enchem com as formas reveladas de seu afeto. – Vou ficar aqui. Preciso estar aqui. – Não pode, prometeu. Tem de ir. – Ficarei aqui por algum tempo. – Quero a água, disse que me daria isso, é covardia negar o que já tinha me ofertado. – Cumprirei minha promessa. Mas agora fico, não abro mão disso. Lá ficaram por mais meses, e o irmão menor nada disse. Partiram depois de um ano. E caminharam até chegar a borda da concha. – Enfim poderei vê-la. – Então suba, te espero aqui. – Tem que subir também, a corrente que nos prende é pesada mas não é tão longa. – Não farei isso, tenho que estar aqui, sou completo com o que me cerca irmão. – É mais egoísta do que eu imaginava. Tem feito liturgias tolas e me vestido de pateta por todo esse tempo. Cumpra sua parte e deixo você em paz. – Ficarei aqui, e beberei dessa segurança que me cerca. Você que quer o incerto não percebe? Aqui temos tudo. – Aqui você tem tudo. Eu nada tenho! Não bebo porque o que para você é líquido , para mim é tão solido como o chão que pisas. Quero me completar, tem negado o que eu mereço a tempos, irmão. Levanta daí e cumpra sua palavra. – Você cairá na água e não mais voltará. Perderei minha segurança sem você

90 ANTOLOGIa oi kabum!


aqui, entende? Nos tempos em que cessei a caminhada, o fiz por capricho de estar com você. Meu espírito fraqueja com a possibilidade de você partir. Você é parte do que amo. Sem você ficarei só, irmão. – Não me importo. Irei ao que me completa, e você não tem o direto de impedir. Aceite-me como sou. – Vamos então. Assim subiram no canto da casca, e quase na ponta pararam. – Você fica aqui, como prometeu. Não pode nunca ter contato algum com água. – Então fico, te perdoou e te liberto. O menor prosseguiu. Te amo irmão, nunca se esqueça disso. Adeus! Quando viu a água não se conteve, caiu em prantos. Nunca em todos esses séculos de esgotamento a tinha visto. Apenas a imaginava, admirava cego. Não era como ele idealizava, era melhor, maior. Muito mais bela do que poderia imaginar. Mansa calmaria e ao mesmo tempo indomável vastidão. Sem pensar se jogou, antes de tocar a água sentiu um leve puxão na corrente que o prendia ao irmão. Agora ela estava rompida com o peso da força e do amor que cada um tinha em si. Ao se banhar na água a sensação era tão forte que ele mal pode se conter, seu corpo se contorceu em êxtase, gritou como nunca, o som correu pelo pulmão e rasgou a garganta. Riu como criança. A água, toda aquela água tomando seu corpo, nutrindo sua alma. Pensou: “Vou mergulhar, mergulhar tão fundo que nunca mais volto! Estava certo irmão. Perdão, não mais voltarei. Fico aqui, este é meu lugar. Me completo envolto nessa vida pulsante, no indescritível movimento incessante dessas águas. Mergulho e não mais volto, adeus, irmão!” Mergulhou, mais e mais fundo. Achou tudo o que procurava quando se perdeu nas águas do crescente nada que o cercava. Seu irmão nunca olhou para além da concha, como havia prometido. Já sabia, no momento em que o irmão o deixou, que ele não mais voltaria. Compreendeu e encontrou no seu mundo fechado o valor do que sempre soube estar lá. A liberdade de escolher criar laços com algo. Mesmo que não mais o veja, ele existe.

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Assim os dois homĂşnculos se encontraram no que perderam e perderam o que tinham encontrado. Cada um a seu modo. Cada um completo em si.

92 ANTOLOGIa oi kabum!


Lucas Valadares

1 Depois que meus pais se divorciaram eu fiquei morando com meu pai. Minha mãe continuou com a sua rotina de sempre: muito trabalho e pouco descanso. Morar com meu pai é bom. Ele trabalha em casa, se é que trabalha mesmo. A casa fica arrumada, ele cozinha bem e desde que eu tenha um bom argumento e o convença ele me dá o que quero. O pouco que eu via minha mãe quando morávamos juntos passou a ser quase nada, uma parcela ínfima do seu tempo para que ela pudesse se sentir bem consigo mesma e para que eu pudesse ao menos fingir estar contente.

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2 Ultimamente meu pai tem se mantido afastado de mim, o que deve ser bem pior para ele. Quando minha mãe se mudou da nossa casa poucas coisas realmente mudaram. Nosso convívio era tão pouco e o pouco que falávamos, nós três, era a noite na mesa de jantar. Claro, quando o silêncio não estava nos esmagando e a única coisa a se fazer fosse comer ou beber e olhar para o teto. Uma das poucas coisas de que me lembro da minha mãe era seu perfume de flor. O perfume que eu senti minha infância inteira fugindo de mim. Tentar tocá-lo era como abraçar fumaça, completamente inútil. Com o tempo eu aprendo que não se deve tocar nas flores ou nos seus espinhos, basta observálas e sentir seu cheiro. Eu fico imaginando o que se passava na cabeça do meu pai durante aquelas noites de silêncio. Minha mãe o esmagava, até mesmo agora que ele olha pela janela eu vejo o peso dela na sua carne. Para meu pai estar com minha mãe era ser condensado, pressionado, até que não sobrasse mais nenhum espaço para ser. Talvez por isso ele nunca fez questão da sua presença. Na mesma medida estar comigo é para meu pai ser livre, e por isso ele est sempre aqui. Mas e minha mãe ? O que eu era para ela? Sou o seu pedaço de carne que vive e pulsa de longe. E não a tem. O que meu pai era para minha mãe? Nunca tive essa resposta. O som do nosso jantar , aquela tensão silenciosa nos esmagando e todas as coisas que vieram a acontecer depois disso eram nossas vozes gritando desesperadamente todas essas perguntas de boca fechada. 94 ANTOLOGIa oi kabum!


3 Um dia antes da minha mãe partir eu os escutei brigando. Para mim já era estranho eles conversarem, brigar era inimaginável. Caminhei devagar pelo corredor, evitando o máximo possível chegar até lá. Consegui uma visão parcial da briga, vi minha mãe sentada em um banco, chorando.

Eu. Vi. Minha.

Mãe.

Chorar.

Não vi meu pai. Eu nunca soube o que foi dito aquele dia. O dia em que tudo mudou na minha vida. As vezes antes de dormir eu imagino meu pai tentando agradá-la e minha mãe deve ter sido rude e então meu pai abre sua boca e começa a vomitar litros e mais litros de verdades em minha mãe. Posso ver as verdades batendo no seu rosto e umedecendo seu cabelo, caindo no chão da cozinha, inundando tudo, sujando as paredes, e meu pai sem parar com o jarro incessante de frustração de um homem reprimido de uma vez só. Por isso minha mãe chorava. Mas e minha mãe? Quais eram suas verdades reprimidas? Eu nunca soube.

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4 Algumas vezes de madrugada eu saio de casa. Meu pai jamais pode saber disso. Até posso ver a preocupação na sua cara, só de pensar. Nesses dias, que saio de casa, eu ando pelo nosso bairro a esmo. Meu pai diz que não é um bairro seguro, que é violento. Mas de noite as sombras varrem tudo e o que fica é só silêncio. Eu e meu silêncio. Comecei a caminhar no dia em que meu pais brigaram a primeira vez, no dia que minha mãe chorou e pela primeira vez eu senti ódio do meu pai, amei minha mãe incondicionalmente. Nesses dias em que ando pelo bairro, gosto do frio que faz a noite. Eu poderia sentir o silêncio passando pela minha pele. Na primeira caminhada noturna eu corri, só depois passaram a ser caminhadas verdadeiramente. Caminhando eu consigo absorver muito mais do ambiente. Corri porque estava fugindo da minha mãe do meu pai. Corri tentando esquecer que a vida não faz sentido. Corri porque o passado é muito certo e meu futuro não existe. Corri do amor que sinto pelos meus pais e a forma como ele me consome aos poucos. Corri de todas as vezes que eu imaginei como seria minha vida se meus pais morressem e gostei da ideia. Corri da minha vontade de ser livre, do medo que cada vez mais eu tenho de ter que viver, das coisas que eu grito todos os dias no meu silêncio. 96 ANTOLOGIa oi kabum!


Corri, Corri, Corri. Corri.

Corri. Corri.

Corri. Corri.

Corri. Corri. Corri. Corri. Corri.

Corri. Corri,

Corri.

Não me lembro do quanto eu corri e nem para onde. Acordei no meu quarto, meus pais com os olhos vermelhos e minha mãe me olhando. Eu sei, pela dor interminável que eu senti nas minhas pernas e pelas bolhas brotando no meu pé, que eu corri da minha vida até desmaiar, mas ela me achou assim que eu caí.

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5 Viver sem meus pais seria um forma de liberdade para mim, uma maneira de eu finalmente conseguir falar. Na nossa família todos temos um peso e todos temos que suportar o peso uns dos outros. São os mesmos pesos, mas a forma como cada peso se manifesta depende de quem o carrega, pode ser esmagador ou leve. Eu posso sentir a todo momento a atmosfera densa aqui em casa, enquanto leio e escuto minhas músicas, eu sinto um mar de situações nunca resolvidas esmagando meu corpo. Talvez o meu quarto seja um porto seguro onde eu possa simplesmente existir. Hoje já faz mais de um mês que minha mãe saiu de casa, mas é como se ela ainda estivesse aqui, não ela, mas o que fazia com que sua presença – assim como a nossa – fosse notada nesse lar, nosso peso. A noite ainda escuto seus passos pelo corredor, o mesmo intervalo de tempo entre cada passada de pernas. Qualquer coisa dita, feita ou até mesmo as coisa que nunca foram ditas e feitas caem no chão como pedra.

98 ANTOLOGIa oi kabum!


6 Me ocorreu que a relação dos meus pais não foi sempre assim. Em algum momento eles se conheceram. Talvez através de amigos em comum, um ambiente em comum ou o próprio acaso comum. Nada disso importa de fato. Só o que veio a acontecer depois tem alguma relevância para mim, pois foi essa concatenação de eventos que me possibilitou escrever sobre minhas misérias. Eu vejo tudo se desenrolar na minha cabeça. Os dois jovens, com milhares de sonhos e ideais , querendo mudar o mundo. Meu pai com certeza não percebeu o que estava acontecendo entre eles. É provável, embora não certo, que minha mãe se negou a aceitar, mesmo sabendo. De fato eles se encontraram e daí a possibilidade da minha escrita surgiu. E também tudo o que veio a acontecer em nossas vidas depois disso. Eu queria tê-los conhecido quando jovens. Minha mãe é muito bonita e antes deveria ser completamente irresistível. Meu pai é um homem elegante e engraçado, talvez não tão belo quanto minha mãe, mas os dois são um casal que se completa.

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7 Meus pais se amam no silêncio. Enquanto se esmagam, mutuamente, calados. Meu pai também pesa sobre a minha mãe. Ele não é exatamente um santo. E nem deveria ser, tem sua cota de pecados e erros pairando sobre a nossa cabeça. Alguns eu conheço, outros não. Todos somos uma mistura de pecado e santidade, a diferença depende da proporção. Não é justo julgar meu pai por seus pecados e também não é justo santificar minha mãe por seus milagres. Eu vejo meu pai deixando a vida passar e por trás dos seus olhos há algo maior do que só ver. Ele pensa, e como um deus muda o mundo na sua mente. Mas não tem força para começar a moldar a sua realidade, mudando pequenas coisas. E fica passeando pela vida. Coisas minúsculas já fariam um grande estrondo aqui em casa. Um abraço apertado, uma oferta de paz. Mas também não o julgo. Ofertas de paz podem ser negadas. Em que momento meu pai deixou de ser um causador para se tornar um observador? Quando foi que ele desistiu e resolveu apenas olhar?

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8 Quando jovens, e antes dessa rotina devastadora tomar conta de suas vidas, meus pais se amavam. Se beijavam. Seus corpos jovens se encontravam. Ele passava a mão pelo seu rosto olhando em seus olhos, e os dois sabiam: não importa o amor e sim amar. Ela com a mão no seu peito, como se para afastá-lo ia se aproximando lentamente, juntando o calor da respiração de ambos. Ele a tocava enquanto se beijavam. Passeava por suas curvas. Cada um tinha o que fazer. Ela fingia estar no controle, querendo que ele a guiasse. Ele fingia guiar, enquanto não entendia como era possível isso acontecer. Faziam comunhão de fingir e sentir. Depois de gemer, gritar, morder e sorrirem os dois se viravam cada um para o seu canto, suados. E fingiam que nada havia acontecido, que entre eles só existia o vazio. E foi assim que eu nasci, do nada.

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9 Eu os odeio da forma mais pura possível. Eles me enjoam, me adoecem todos os dias. Eu os cuspo no chão e viro a cara. Gostaria que se fossem e me deixassem em paz. Eu poderia viver bem sem esse peso. Mas eu os amo. Da forma mais parasita possível. Dependo deles para ser eu. Os devoro silenciosamente enquanto vivemos. Sugo suas vidas e crio a minha. Isso é amar. Faço isso enquanto me calo. Amar é odiar a dependência.

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Maiara Cerqueira

PR OS A


“ENSANDECER: v.t. e v.i. Tornar(-se) sandeu, cair em insânia, enlouquecer, endoidecer.”

Maiara Cerqueira

Histórias de cavaleiros e castelos através de cartas e livros. Misturaram a realidade com os sonhos e criaram novas teorias. Propuseram a relatividade, a prioridade, a democracia, entre outras coisas. Falaram sobre as falhas da memória. Falaram sobre a desistência. Criaram lendas sobre persistir e perseverar até o fim. Buscaram. Podendo estar no mais alto de uma montanha, cercado por um belo dragão. Compararam suas buscas a uma princesa adormecida. Ou desmaiada. Fizeram pouco caso da sensibilidade e das necessidades. E, até agora, o mundo continua a definir o que é ser louco em vários conceitos, preconceitos, defeitos. Psiquiatria.

104 ANTOLOGIa oi kabum!


Lucraram com a loucura alheia. Juraram serem normais. Sem drogas psicoativas, sem psicodelia, sem música, sem saco. Mentiram. Todos eles. Tentaram nos salvar de nós mesmos diagnosticando erros irreparáveis. Negaram chances, venderam remédios. Vendem remédios. Todo um sindicato preparado pra combater. Combater o quê? Os próprios instintos. Se nos trataram como bichos, tentaram combater a naturalidade. Mas os quadros de Van Gogh ainda são debatidos, ainda tentam explicá-los. Porque deixaram a solidão se misturar com loucura, processos criativos se desenvolveram. O concreto se dissolveu, toda a dissolução virou cor. A fantasia também é real. Instrumentos de comunicação não nos protegerão das nossas novas máscaras. Romeu. Julieta. Casos de amor pela moral. A realidade se confronta com os devaneios.

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Se encarássemos tudo propondo sermos realistas ferrenhos, o que seria de nós? Astronautas e relatórios da ida do homem à lua. Ainda continuam a definir novos conceitos para loucura. As utopias não são vãs. “A loucura é uma amplificação dos sentidos e dos desejos.” Tentar, pode ser um ato de loucura. Tentaram. Em um caminho de delírios em uma busca por autonomia para a ascensão. E nem sempre por falta da sanidade defendida. Foram barrados por autoridades, mas ainda assim, tentaram ser livres.

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Olivia Janot

PR OS A


Olívia Janot

27 FEVEREIRO 2013 olhou o corpo de Marcela, o peito subindo e descendo preguiçoso sob o lençol… às vezes sentia como se fosse olhar pro lado e rir daquilo tudo em algum sofá do mundo real. compreendia todo o funcionamento do que vivia, compreendia o quarto, a insônia e Marcela. por vezes, achava até que os podia sentir, que podia se entregar e ser feliz, não porque era uma história feliz, mas por pertencer a ela, saber seu lugar. contudo, algo não lhe convencia. algo o mantinha solto, querendo chegar e partir com a mesma urgência, flutuando sobre tudo.

14 DEZEMBRO 2012 sou como um recipiente de sensações. minhas enquanto minhas; passadas quando cansadas. como a câmera, que serve pra produzir imagem, mas, na verdade, pra ser invadida pela imagem, pra virá-la de cabeça pra baixo e de alguma forma decodificar e registrar e compartilhar a invasão que lhe dá vida ou é a vida. a alma talvez seja o mundo, brincando de passar em nós como quem vai à montanha-russa ou pula no mar. só nos cabe acolher o que vier, selecionar os seus humores, bem guardar alguns amores. não parece mesmo, às vezes, assim, um vento que te atinge? 108 ANTOLOGIa oi kabum!


28 MAIO 2012 a instabilidade do tempo nestes dias estávamos sentados na escadinha da varanda da minha casa, num domingo tingido de bronze pelo reflexo do mormaço nas folhas secas do jardim que deixei para varrer mais tarde e já era tarde e Carolina falava agora sobre as telhas de argila ou das luzes de sua cidade ou sobre o frio tão caloroso daqui. Carolina falava muito sobre muita coisa. mas eu ainda me demorava no princípio da conversa, quando me contava suas histórias de amor. Carolina tinha mil histórias de amor por dia, era uma completa apaixonada. e pessoas apaixonadas tem algo que te contagia, algo apaixonante. ou pelo menos Carolina... Carolina era todos os meus silêncios, todo meu mistério e a inexplicável falta de apetite na janta. eu poderia ficar para sempre ali, mal ouvindo seu mantra, só sabendo de sua presença... mas Carolina fez silêncio. acordei de mim num susto e ela me olhava mais curiosa que ofendida “tava pensado o quê?”, quis que ela soubesse, mas eu conhecia as palavras bem demais. levantei e lhe estendi a mão “que preciso esticar as pernas!” e ela se puxou para muito perto de mim, de forma que tive que desviar para qualquer direção. e para lá caminhamos. caminhamos. no meu tempo. nele, me senti seguro o suficiente para segurar-lhe a mão novamente e, não para minha surpresa mas para minha surpresa, ela a apertou e começamos a correr e correr e corremos até o lago turvo e eu não sabia nadar como ela sabia, mas na excitação da corrida, pulei lá do alto, fazendo do meu corpo uma flecha, querendo chegar o mais fundo possível e tocar as pedras cheias de musgo com as mãos e depois trocar pelos pés. quando emergi, delirante como apenas os tolos tem o privilégio ser, não a encontrei. por um momento temi que as pedras lhe tivessem sido fatais e eu desejava também ter morrido quando sua voz veio do alto “você é louco?! vamos... eu preciso voltar, saia logo daí”.

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13 JUNHO 2012 saudável: aquele que possui saúde. saúde: estado pleno de bem-estar físico, mental, espiritual; estado do que é são, está normal. normal: de acordo com a regra, comum. comum: que é ordinário, de pouco valor, desprovido de graça, tedioso, chato. saudável: passível de saudades.

23 OUTUBRO 2011 se você quisesse ia ser tão legal eu faria seu jantar galinha com farofa eu dormiria do seu lado e acordaria e diria que te amo te quero e eu seria tão boba e apaixonada que você ia se irritar e falar que sou um saco e eu não ia me importar porque amar é mesmo brega eu riria da sua cara amassada de travesseiro que fica tão bonita de manhã sem maquilagem eu escreveria com o dedo no embaçado dos espelhos e compraria escovas de dente novas pra mim e pra você e eu cuidaria da sua dor e ficaria longe quando você precisasse ficar só eu trocaria seus lençóis de outros perfumes e sentiria ciúmes tantos ciúmes e já teria aprendido que ciúmes passam e amor não passa e que você é assim e eu gosto de você assim será que um dia você vai entender que eu gosto de você assim e le reste on s’en fout a única dor que não posso suportar é essa dúvida a dúvida a dúvida de não saber de ti e porque e minha cama de solteiro seria tão grande pra nós dois e nossa casa teria crianças correndo e gritaríamos os nomes delas que escolheríamos juntos e você diria que se nossos filhos sujarem seus livros de política com tinta é culpa minha e me pediria para levá-los ao parque pra você poder trabalhar e eu teria que trabalhar também pra pagar a babá que ficaria com eles no sábado à noite pra gente poder fazer

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mais outros e você me diria que eu não falo nada que você também sofre da dúvida e eu pediria pra você ficar como eu sempre peço e quem sabe um dia por descuido ou poesia você ficaria e eu seria mais feliz do que qualquer mortal

11 JUNHO 2013 dizia-se, e em certas colinas ainda sussurram, que a maioria das pessoas vivas não caiu na vida. sei que é verdade porque sou uma delas. vivemos debruçados à margem desse rio, sem entender que não é o reflexo, mas a sede que nos põe ali. ao ver alguém cair e embaraçar nossa imagem, nos embaraçamos também. e no justo momento nos afastamos em vez de mergulhar. o que se perde com isso eu não sei dizer, é conhecimento único dos afogados. a mim restou o estudo de uma outra linguagem, que tornaria o embaraço, gravidez. e a saudade da mulher que foi embora no rio.

01 DEZEMBRO 2013 me disseram que ela não falava há 3 anos e 4 meses, desde que descobriu que era muda de nascença. só chorou depois do tapa. não era de sua natureza falar e aquele tapa a impediu de descobrir sua forma certeira de comunicação. por culpa da fala, por culpa do tapa, por culpa do médico e dos professores da universidade de medicina, tinha perdido a chance de dividir o que lhe acometia a alma. as palavras a contagiaram de tal forma que já nem sabia entender nada sem elas, não sabia pensar sem elas, por culpa do tapa, não sabia. perguntei a ela se naqueles 3 anos e 4 meses havia aprendido algo sobre sua natureza, mas não entendi a resposta; perguntei se ela esperava ainda se comunicar mas não entendi a resposta, disse a ela que aquilo era

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muito estúpido, perguntei se valia a pena, gritei que não valia e fui embora frustrado.

17 MARÇO 2014 talvez eu viva o suficiente para morrer em uma época em que já se saiba fazer a tal autópsia cerebral capaz de ler tudo que se foi; cada morte será um livro e aquelas vidas não conhecidas serão decodificadas e publicadas e meu silêncio mudará uma nação. leiloarão meus lençóis dos mais fantásticos sonhos, alguns olhos renderão incríveis galerias, haverá um livro só de receitas esquecidas na madrugada e outro daquelas que o único tempero são os amigos; um filme inteiro sobre o prazer de sentar na janela para olhar a tarde e um sincero e oficial foda-se para todos os males do cigarro. organizarão minha genialidade perdida, as sílabas sem palavras e o caminho dos passos não dados. chorarão nosso amor atrasado e talvez finalmente criem relógios que se importem com o tempo mais que com as horas. talvez, com um corte preciso, respondam a contradição dos momentos eternos e o esticamento espaço-temporal que o escuro proporciona, talvez até descubram uma música que não cantei e com isso alguém fique rico e se case com você.

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ROBSON Amaro

PR OS A


Ferrão, o elefante Robson Amaro

Em uma selva bonita e maltratada, eis que nasce o novo bicho, aquele que ninguém dava nada. O elefante magro recebeu o nome de Luciano Ferrão. Sem entender nada, já nasceu levando sermão. Ferrão se demonstrava forte, apesar de ser elefante, e magro, sempre tinha alguém do seu lado. Tinha nascido lá em Exu, no nordeste. Cabra da peste. Com nome de abelha, o elefante Ferrão sempre voava por aí. Sem saber onde pousar, vivia a cair. “Não tenha inveja, Ferrão. Não cobice o que não é teu. Não faça maldades. Não ouse ser ateu. Pois aquele que te criou Jura que o mundo é teu”, jurava sua Mãe.

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Mas, mãe, estou morrendo de fome. A comida daqui parece não me servir. Me sinto perdido, no meio do perigo, de não poder sair. Força eu não tenho, nem sei onde encontrar. Só queria ser forte e saber pra onde voar. Tenho uma tromba enorme e nem trombeta sei tocar. “Não seja ganancioso. O mundo é perigoso. Não estou te dizendo isso mas mesmo assim vou dizer: fica por aqui, faz teu rejuntinho, que é o melhor pra você”, dizia e não dizia a Mãe de Ferrão. Esta ferida aberta, que nunca sara. Quero um dia poder ser maestro. Não sei se me convém. Mas tem algo de mal que me faz tão bem. Só de imaginar, um dia ser. O mais gordo, com marfim dourado. Com mandingas e poder. Seria eu o culpado de gordo ser, ou não ser? “Toma, meu filho, este chocalho quebrado, amarra no teu pé, não esqueça do alho, pendura no pescoço

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e segue tua fé”, pedia a triste Mãezinha. Vou por aí, fazendo barulho, apesar de quebrado, sinto um orgulho, como uma tatuagem, aquele apego, não sai do meu pé. Esta é a minha fé. O carma de olhar pra minha própria costela e me perguntar: Que elefante posso ser? Este que sempre me acompanha e não vejo, nem sei quem é. Já se passaram 40 dias, e você não me diz o que quer. Mas sei que este sonho é bom, o chocalho vai se acertar. Quando eu dormir terei atenção daquele que não quer falar. E Luciano Ferrão dormia, acordava no deserto, que se repete. Por 40 dias alguém o manipulava, como marionete. “Ferrão, por que não te contentas e volta pra casa? Apesar da tua bonita asa garanto que não podes voar”, quem falou foi o Porco, bonito e jeitoso, gordo e pecaminoso, vivido, cheiroso, sabido e gostoso, tinha conselho ao pé dos olhos, seria um lindo banquete se coberto

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com bastante óleo. Não posso parar, um dia serei maestro, preciso saber tocar. “Passaram-se 753 dias desde que teu chocalho gritou filhote tu ainda eras agora o encanto acabou e saber já não podes mais”, riu o Porco falador. Quando acreditamos eu não percebi o presente. Agora assim termina Minha vontade ausente? “Teu tempo acabou Vou te ajudar com o que você sempre quis Deita do lado daquele cacto E desiste feliz”, disse o Porco nojento. Com sede, mais magro do que antes, Deitou o elefantinho O voador dos elefantes Do lado do cacto E aos poucos... O sonho morreu de mofo A esperança de preguiça O grito de silêncio A vontade de desgaste O amor de ansiedade A alegria de chorar O abraço de distância

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A saudade de lembranรงa E o chocalho quebrado Sรณ gritou uma vez Tinha conserto. Foi pouco.

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Este livro foi impresso na gráfica da Oi Kabum! BH Escola de Arte e Tecnologia. Belo Horizonte, 2015. A Oi Kabum! é um programa do Oi Futuro, instituto de responsabilidade social da Oi, executado em Belo Horizonte pela Associação Imagem Comunitária. É também um dos núcleos do PlugMinas - Centro de Formação e Experimentação Digital do Governo de Minas. graficaoikabumbh@gmail.com graficaoikabum.concatena.org


Armando Azevedo Bruno Granato Clara Dias FRANCELINE RODRIGUES IAGO MARQUES Lucas Valadares Maiara Cerqueira Olivia Janot

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/ PROJETO

/ CO-REALIZADORES

/ PARCERIA

/ MANTENEDOR


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