iconoclastias entrópicas

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ICONOCLASTIAS ENTRÓPICAS

KADU TOMITA



'Autumn gets me badlly'. Architectural Association, Londres. 11 de junho de 1989.


4 KADU TOMITA / ICONOCLASTIAS ENTRÓPICAS

White Oak Plantation em 1978. Teste de um módulo do Generator, em escala real. Fotografia colorida. 17,8 x 17,8 cm. 1 Acervo do MoMA, Nova Iorque, 2002.

‘A Gilman Paper Company estava originalmente localizada no norte do Vermont, onde ainda existe uma pequena cidade que leva o nome de Gilman. Na década de 30, o pai de Howard Gilman realocou a companhia e a fábrica de papel para o sul (dos Estados Unidos), perto de Saint Marys, Georgia, e comprou uma grande propriedade arborizada situada tanto na Flórida como na Georgia. A White Oak Plantation era um antiga plantação de arroz ao longo do rio Saint Marys, que forma parte da fronteira entre os dois estados; seus prédios originais já desapareceram faz tempo, mas as ruínas das senzalas ainda são visíveis. Localizada na Flórida, ao norte de Jacksonville, e olhando para a outra cabeceira do rio, na Georgia, a plantação é alagadiça junto a orla fluvial, com antigos arrozais marcando a paisagem. A vista do outro lado era uma algo reminiscente da África: arbustos impenetráveis entrecortados por caminhos d’água e salpicados por árvores truncadas, onde as aves se empoleiravam. […] Quando você estava lá, havia a sensação de ter pisado num lugar que era completamente removido do mundo exterior.’ 1

Em 1997, Pierre Apraxine adquiriu uma série de desenhos relacionados ao Generator, instalando um novo circuito pelo qual as ideias de Cedric Price, já amplamente discutidas na Architectural Association (sua alma mater), chegavam agora às salas do MoMA. Curiosamente, o envolvimento de Apraxine como curador de desenhos arquitetônicos visionários, porém não-construídos, começa em 1975, comissionado também por Howard Gilman. Isso o colou em posição privilegiada dentro desse círculo, fato que o conduziu a conhecer e interagir extensamente com Price no outono de 1976, durante sua viagem entre Nova Iorque e a Flórida1. O encontro define um novo paradigma para a exposição do curador, que a princípio seria uma coleção de arte mínima e conceitual, estratégia de promoção da Gilman Paper Company como uma empresa progressiva. Ele reconhece em Price um senso visionário acoplado as realidades sociais da época, mas ainda alinhado a um discurso de ênfase na natureza do efêmero - monumentos que são dedicados ao ego, mas que expressam sua própria potência como exercício arquitetônico.


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Em entrevista à Paola Antonelli, curadora de arquitetura e design do MoMA, Apraxine revela o briefing de Price para o Generator, escrito num pedaço de guardanapo após a visita conjunta à White Oak Plantation. ‘Uma construção que não contradiz, mas potencializa o sentimento de estar no meio do nada; ela deve ser acessível tanto para o público quanto para convidados privados; criar um sistema de privacidade que conduza a impulsos criativos, e mesmo assim ... acomodar audiências; respeitar as condições silvestres do local enquanto se impõe como monumento, e respeitar a história do local ao mesmo tempo que promove inovação.’ 1

ENABLING Enabling pode ser traduzido de diversas formas, mas os termos que aqui nos interessam são facilitador, catalisador e/ou possibilitador. Royston Landau identifica esse conceito como termo central da filosofia de Price, em texto dedicado à abertura da amostra sobre o arquiteto, (organizada por Ron Herron, verão de 1984, Architecture Association) 3. A exposição inflamou uma discussão à respeito da dimensão ética da obra, pautada no “efeito que a arquitetura deve ter sob seus usuários ou observadores” - paradoxalmente, a própria discussão se encontrava ausente no modo expositivo 4. Landau vê como fundação das preocupações filosóficas de Price uma extrema semelhança com o utilitarismo de Jeremy Bentham, que situa na ideia de prover o indivíduo com capacidade de utilidade como um ideal para a organização da sociedade. A tomada de tal posição acontece depois da hipernormalização da arquitetura moderna dentro do setor público britânico, e a insensibilidade destes artefatos em lidar com as diferenças individuais. 3 Para entender Price, é importante entender a geração de arquitetos britânicos formados no final da década de 50. Neste momento, o Reino Unido vivia uma explosão urbana pós-guerra, com a instrumentalização burocrática de toda o complexo produtivo para a construção de conjuntos habitacionais, escolas, parques industriais e até mesmo cidades inteiras. Esse período testemunhou a ascensão da arquitetura como arte social, acompanhado de uma forte euforia otimista e uma crença positiva num mundo em perpétua incrementação. Ao mesmo tempo, Howell, Voelcker e os Smithsons se separavam do CIAM e fundavam o Team X com a missão de inserir a sensibilidade ao social como uma discussão urgente dentro do movimento moderno. 3 Aparentemente, a tarefa da profissão era romper preceitos universais ortodoxos, como modo de abrir espaço para manobras genuinamente humanas.

Modelo-planta do Generator, que, curiosamente, tem as mesmas dimensões de um tabuleiro de xadrez. Lápis de cor em papelão perfurado. 45,7 x 45,7 cm.


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A filosofia do enabling e a crítica alinhada a possibilidade tecnológica, dois termos inerentes a crítica arquitetônica priceana, já se encontravam no Fun Palace (1961) e no Potteries Thinkbelt (1964), outros dois objetos de estudo da mostra de 1984 da AA. Fun Palace consistia numa estrutura metálica munida de grua, um prelúdio do que viria a definir o senso estético de sua arquitetura, que encontrava em dispositivos móveis a possibilidade de recriar significações a partir da interface usuário-obra. Potteries Thinkbelt trata da apologia à impermanência num território pós-industrial e decadente, confrontando a noção de 'centralidade' argumentando a partir da 'rede'. De fato, Price era avesso ao 'centro' como termo âncora, e em seu manifesto 'Autumn gets me badly' (1989, AA) 2, assume uma posição crítica a uma abordagem estabilizada na repetição de preceitos clássicos e redundantes. ‘Nenhum desses projetos [de Price] tem um centro. Centralidade na arquitetura - pensada como pedra fundamental, mas na verdade um transtorno - demanda uma aceitação por parte do usuário de um equilíbrio pautado pelo formalismo clássico.’ ‘Arquitetura como processo voltado ao futuro irá gerar uma serie de intervalos (construções) frequentemente fora de equilíbrio.’ ‘Uma roda, quando girando, é uma mancha visual; quando estática, é redundante.’ 2 Perspectiva do Fun Palace, desenhado em 1961 em Stratford, Londres. Marcadores, tinta, grafite, giz de cera e carimbo sob papel vegetal. 16,5 x 40,3 cm. Acervo do MoMA, Nova Iorque, 2002. 1

Royston Landau marca em 1961 o início da investigação de Cedric Price em direção à tecnologia da informação, numa aula magistral na Architecture Association no mesmo ano. Ela diz respeito à uma contaminação perceptiva que toma lugar em diversas disciplinas a partir de uma reformulação elusiva da ciência da informação, alimentada pela descoberta da molécula do DNA por Watson e Crick’s. Price, a partir desta reflexão, compõe uma teoria das relações entre comunicação e informação aplicados ao ambiente construído, e formula um modelo que parte dos primeiros assentamentos humanos, momento em que a informação circulava apenas por voz e era transportada a pé. Ele defende que os saltos de desenvolvimentos relacionados a ocupações extensivas dependeram da tecnologia de transmissão das informações; a distensão desta ideia abre como possibilidade novas conceituações de posicionamento na paisagem em relação aos aparatos de transmissão de dados. 3 Subsequentemente, os resultados da pesquisa tiveram interferência nos projetos da Oxford Corner House (1966) e no Oakland County Adult Education Network (1966). Mas o ponto culminante, sem dúvidas, é Generator (1978-80).


7 GENERATOR KADU TOMITA / ICONOCLASTIAS ENTRÓPICAS

O terreno que Praxine visita, em 1976, junto a Price e Gilman 1, é o sítio de exercício projetual do arquiteto a partir de 1978, quando inicia uma exploração da noção de inteligência artificial, mais especificamente, da transformação do ambiente em si em um artefato inteligente. Há um dado retroativo: segundo Landau, uma “arquitetura que não simplesmente reage, mas aprende, lembra, e quando necessário reaprende, e aí, então, responde apropriadamente” 3. O computador do Generator, comissionado a John e Julia Frazer, representa uma tônica ao descrever uma maquina autônoma, que poderia entediar-se e começar a fazer mudanças não-solicitadas. A “necessidade de mudança” como valor intrínseco a programação, e consequentemente, seu funcionamento e desenho de experiência. 7 O visitante chegaria em uma clareira, de dimensões similares a Grosvenor Square, onde estaria montado uma matriz ortogonal de montagem aberta e constante - entraria primeiro numa sala onde fica o computador central, que induziria os usuários a operar uma grua, e embaralhar os 150 cubos espaciais pelo grid. O terreno estaria coberto por uma infraestrutura básica consistente em blocos de fundação, tramos estruturais e elementos de drenagem. Os cubos, equipados com ar-condicionado, foram projetados em madeira laminada, com 4 metros de lado, e foram precisamente detalhados para encaixar em esperas metálicas. Eles poderiam receber corredores, telas, fechamentos serem passíveis de abertura ou não, tanto de vidro como madeira, e combinados tanto ortogonal quanto diagonalmente, garantindo uma continuidade de serviços básicos e de comunicação. 1 As preocupações primordiais da carreira de Price estão lá: o desvinculamento entre construção e terreno, que tenderia a uma arquitetura de contêineres, ou seja, de commodities, num processo análogo a indústria automobilística, inclusive na obsolescência programada; e a parcialidade dos artefatos, potenciais em suas variações, tentativa de uma prática livre de valores absolutos, mas dessa vez em uma lógica cumulativa e não apenas a partir de uma totalidade permanente de componentes cinéticos (como no Fun Palace). Para Reyner Banham, o conceito essencial que a exposição de 1984 na AA não conseguiu capturar, mas que marca presença se olharmos para Price mais de perto, é uma abordagem própria em relação ao evento - o tempo operacional. 4

Perspectiva do Generator em operação. Impressão eletrostática, sobreposta por aerógrafo, tinta, grafite, giz de cera e carimbo. 20,6 x 54,6 cm. 1 Acervo do MoMA, Nova Iorque, 2002.


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‘Não o tempo cronológico ou histórico, mas o tipo e a gestão de tempo que estão envolvidos na sequência de mudanças ou rearranjos que são comuns no uso cotidiano de todos os prédios, mas que são deliberadamente intrincados nos designs mais marcados de Price. […] Se você arranja os trabalhos de Price em ordem cronológica, você percebe que eles não tem qualquer tipo de desenvolvimento sequência. […] Eu acho que deve ser isso o que faz alguns se perguntarem se Price tem qualquer tipo de ‘gosto visual’.’ 4

Falar em um gosto visual significaria, para os que se perguntaram, declarar algum tipo de essência da beleza, como se ela fosse a mesma desde Vitruvius. Para Price, significa apenas estabelecer um relação compreensível com uma tendência vigente de comportamentos, incluindo aqui uma “moda arquitetônica”. 4 Há oposição clara ao transcendental; bom e mau gosto são aspectos relacionados ao cotidiano e a imagem do mundo como ela se apresenta hoje, mesmo que haja uma repetição residual do clássico. Entendendo ambos como prescrições em funcionamento e suas descrições possíveis, em um tempo cíclico, retroalimentado, é possível nutrir-se tanto do sincrônico quanto do diacrônico, e colocar-se fora da ilusão da moda e do belo. ‘O tiro certeiro, de desenho permanente é subtrativo, pois só pode mudar entropicamente, decaindo lentamente ao longo do tempo. Qualquer outra coisa deve envolver a intervenção de designs que não fazem parte da concepção original. Uma estrutura inconstante, imprevisível, porém, pode ser alterada sem romper o conceito original, mas também parece implicar algum condição a qual a construção e suas partes devem retornar de tempo em tempo. Fora deste ciclo está o outro ciclo de qualquer outra construção transitiva, que contempla o retorno ao terreno limpo quando suas funções implicadas foram observadas, ao invés do destino terminal do monumento como pilha de ruínas enterrada.’ 4

Banham nos lembra da importância destes dois regimes para o esquema do Generator: a obsolescência e o tempo de contato da cápsula ao ambiente poderiam ser determinados, ao passo que quando expirado o processo, ela poderia tanto ser inserida em outro cluster de cápsulas, como poderia ser rearranjada e receber um novo propósito. 4 Ao estabelecer uma mediação entre diferentes tempos operacionais como estratégia projetual, algo que geralmente acontece de modo não-compreensível na tradição arquitetônica, Price define como paradigma a inserção profissional numa lógica cíclica, num ofício que é tão marcado pela instituição do ateliê. Existe um questionamento ético da necessidade de cruzar as fronteiras do campo da arquitetura praticada no agora.

Maquete de estudos do dispositivo de jogo. Impressão eletrostática enquadrada. 21 x 29,5 cm. Acervo do MoMA, Nova Iorque, 2002. 1


9 COMPUTADORES ENTEDIADOS KADU TOMITA / ICONOCLASTIAS ENTRÓPICAS

Em uma carta a Price (1979) 5, John Frazer narra que o Generator deveria “ter uma mente própria, que desafiaria não apenas a usuários, mediadores, arquiteto e programador, mas também a si mesma”. Há a ocorrência da concepção tanto do espaço como das regras do jogo, além de meta-regras que possibilitam a retroatividade entre o desejo dos ocupantes e das máquinas. Price pode aparentar, a primeira vista, abordar o desenvolvimento tecnológico com um certo otimismo; entretanto sua crítica é elucidada em seu manifesto de 1989 2, e parte diretamente da limitação colocada a utilização de bancos de dados como uma mera ferramenta de simulação, uma retradução a uma representação humana. Apontando uma situação de um descompasso entre a capacidade do computador de realizar tarefas infinitas, e a do usuário de realizar decisões, a solução seria a possibilidade dos computadores também exercitarem o tédio, o que resultaria em duas práticas. ‘Primeiramente, o computador entediado produziria seu próprio conjunto de soluções possíveis para uma dada serie de circunstancias, sendo ele encarregado ou não. Em segundo lugar, é possível que o computador poderia estabelecer uma nova linguagem ou sistema de pontuação que possibilitaria a comparação do que era, até o momento, considerado incomparável.’ 2

Price inaugura uma discussão ética a respeito da inevitabilidade de mudança da profissão frente a uma nova ferramenta, e vê como papel futuro do arquiteto a formulação de novas ferramentas de comparação para estes aparatos. 7 Uma atitude tecnológica, como diria Gilbert Simondon, é aquela na qual um indivíduo não está apenas preocupado com as entidades técnicas, mas também com a relação entre elas. 6

Price explode o desenho assistido por computador (CAD). Impressão colorida enquadrada. 21 x 26,7 cm. Acervo do MoMA, Nova Iorque, 2002. 1

O computador de John e Julia Frazer. Plástico, metal, fios encapados e adesivos. 10.8 x 78,7 x 52.1 cm. 1 Acervo do MoMA, Nova Iorque, 2002.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1 ANTONELLI, Paolla. The Changing of the Avant-Garde: Visionary Architectural Drawings from the Howard Gilman Collection. New York: Museum of Modern Art, 2002 2 PRICE, Cedric. Cedric Price Talks at the AA, AA Files, No. 19, pp. 27-34. Architectural Association School of Architecture, 1990. 3 LANDAU, Royston. A Philosophy of Enabling: The Work of Cedric Price, AA Files, No. 8, pp. 3-7. Architectural Association School of Architecture, 1985. 4 BANHAM, Reyner. Cycles of the Price-Mechanism, AA Files, No. 8, pp. 103-106. Architectural Association School of Architecture, 1985. 5 FRAZER, John [Carta a PRICE, Cedric]. Letter mentioning ‘Second thoughts but using the same classification system as before’. Generator document folio DR1995:0280:65 5/5, Cedric Price Archives. Montreal: Canadian Centre for Architecture, 1979. 6 SIMONDON, Gilbert. Du mode d’existence des objets techniques, pp. 181. Paris: Aubier, 1958. 7 BOURBONNAIS, Sébastien e ROSE, Julie. The Indetermination Between Machines, Log, No. 25, pp. 63-70. Anyone Corporation, 2012.




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