Era uma vez um menino surdo que amava um camelo. Esse menino chamava-se Kori, embora ainda não soubesse isso porque não conseguia ouvir. Via os pais, os irmãos e todos quantos conhecia a mexerem a boca, no entanto não era capaz de associar aqueles movimentos a som algum. Contudo, quando se referiam a ele, reparava que os seus lábios se abriam e ficavam redondos, mostrando os dentes. Ele era, portanto, Lábios redondos, Boca esticada: Ko-ri. A mãe apontava para ele e dizia: – Lábios redondos, Boca esticada. Assim o entendia Kori. De seguida, a mãe apontava para si própria e pronunciava, devagarinho: – Mahfuda. Kori lia: Lábios colados, Boca aberta, Dentes sobre lábio, Lábios esticados, Boca aberta. Assim se chamava, para Kori, a sua mãe.
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O pequeno tinha oito anos e morava em Smara, um dos acampamentos de refugiados onde vivem os sarauitas, no deserto argelino. E isso era tudo quanto já tinha visto na vida, a hammada: pedras, areia interminável, jaimas, uns pobres quartinhos de adobe, os currais dos animais, alguns edifícios maiores caiados, entre os quais estava a sua escola, uma bandeira esfarrapada e o céu. Nada mais. Nem um bocadinho de erva, nem uma árvore no horizonte... Naquela floresta de jaimas e exíguos quartos de adobe viviam outras crianças, mulheres e homens. De vez em quando passava um carro, um autocarro ou um camião. Alguns camiões traziam água para os depósitos de zinco, outros, botijas de gás. Nos carros costumavam ir homens sérios, lançando fumo pela boca. Os meninos do bairro de Kori corriam atrás dos carros, agarravam-se aos seus para-choques, caíam, riam-se, tornavam a levantar-se e voltavam a correr. Amiúde, os miúdos atiravam pedras aos carros e, às vezes, estes paravam e de lá saíam os homens sérios, muito zangados. Ao verem sair os homens sérios, a pequenada fugia. Kori andava numa escola especial, com outros meninos que também não eram como os demais: meninos cegos e meninos com o olhar perdido e a boca quieta. Ali, aprendia a apertar os sapatos, a desenhar animais, carros, jaimas e homens.
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Entre todos os animais que costumava desenhar, havia um que o atraía mais do que nenhum outro: o camelo. Os camelos fascinavam Kori. Gostava dos seus movimentos lentos, quando os homens os levavam atados com um cordel preso numa argola que lhes atravessava o nariz. Maravilhava-o a serenidade com que aguentavam o seu cativeiro nos pequenos redis.
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Ficava assombrado com aquela altura descomunal, a sua grande bossa e a cabeça inclinada, quase pendurada no pescoço. Quando os via, Kori imaginava a sua vida no deserto, e sonhava acordado que ia montado num deles, como tinha visto fazer várias vezes a outros meninos mais afortunados do que ele. Kori desenhava camelos no seu caderno, uma e outra vez, e quando voltava a casa detinha-se nas cortes do acampamento para contemplar os camelos de verdade. Ele julgava que os camelos falavam porque também mexiam os lábios como as pessoas. Não sabia que eles engolem primeiro tudo o que lhes cabe no estômago e que, a seguir, o devolvem à boca para ruminarem depois, pouco a pouco. O movimento das suas mandíbulas e dos seus lábios, mastigando, levava-o a crer que os camelos diziam palavras. Os currais dos acampamentos eram feitos de uma película metálica, barras de metal velho, latas prensadas e peles de camelos mortos. No deserto não há madeira, e a pouca que há é queimada aos bocadinhos, em fogareiros sobre os quais se ferve o chá, ou em fogueiras maiores para cozinhar ou cozer o pão. Na maioria dos redis havia cabras: pretas, ruivas, brancas, pretas e brancas, brancas e ruivas. Umas eram
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grandes, de enormes chifres, e outras pequenas: meninos de cabra, pensava Kori. Mas, quando punha as mãos do lado de dentro do curral, as cabras fugiam ou tentavam mordê-lo. Por isso, preferia os camelos, que ficavam quietos e, achava Kori, falavam como as pessoas. O rapaz rondava muitas vezes uma corte onde havia uma grande camela. O animal era dos seus tios, que viviam ali perto. Quase todos os dias lá ia vê-la e ajudava a tia a dar-lhe a comida. Depois, enquanto ela a ordenhava, não perdia pitada, vendo o jato branco a jorrar sobre a taça de metal. Quando a tia se ia embora, Kori fazia-se de distraído para ficar a sós com a camela, aproximava-se e procurava falar com o animal. Esta olhava-o com ar altivo e movimentava os seus lábios. Que será que lhe dizia? O miúdo sabia que as pessoas falavam assim, mexendo os lábios, embora não as entendesse, nem a elas nem aos camelos. Kori movia os seus pensando coisas como «gosto da tua grande bossa», ou «queres comida», ou «gosto do leite de camela». Mas ela movimentava os dela sem que Kori entendesse o que lhe respondia. A camela estava muito gorda. A tia trazia-lhe mais comida do que nunca, e ela continuava a engordar. Uma tarde, quando voltava da escola, o animal tinha ao seu lado um pequeno camelo cor de caramelo.
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E, agora, a camela já estava novamente magra. Kori tinha visto que acontecera o mesmo à mãe por duas vezes. Primeiro ficava gorda, cada vez mais, até que um dia a sua barriga voltava a ficar igual à de antes, e ao seu lado aparecia um bebé. Assim apareceram, como que por magia, os seus irmãos mais novos. Kori pensou que fora isso que acontecera à camela: tinha tido um menino. Um menino de camelo. Na língua dos sarauitas, um camelo recém-nascido chama-se huar. Mas Kori também não podia saber isso. A tia estava no redil com a camela e o filhote, o huar. Nisto, apontou para a cria e disse qualquer coisa a Kori. Ele sorriu. Gostava muito do novo camelo cor de caramelo. Era todo desengonçado, mal se segurava nas patas, compridas e frágeis. E o seu pelo parecia macio, apetecia acariciá-lo. O huar procurava as mamas da mãe e metia-se debaixo da sua barriga. De vez em quando, a progenitora lambia-lhe a cara. Kori ria, radiante. A tia voltou a apontar para o huar e perguntou ao menino, levantando a mão, o que é que ele achava daquilo. Kori assentiu, com entusiasmo, o que queria dizer que gostava, e muito. Abria os olhos o mais possível, como se quisesse que o huar entrasse neles.
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