Mário de Sá Carneiro. Antologia Poética

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Mário de Sá-Carneiro ANTOLOGIA POÉTICA Ilustrações de Tiago Manuel



Mário de Sá-Carneiro ANTOLOGIA POÉTICA

Ilustrações de Tiago Manuel Edição literária de António Gonçalves



ÍNDICE

O LORD

9

A QUEDA

10

ESTÁTUA FALSA

13

EL-REI

14

O FANTASMA

17

O RECREIO

18

PIED-DE-NEZ

21

APOTEOSE

22

ÁPICE

25

ÚLTIMO SONETO

26

SALOMÉ

29

O RESGATE

30

FIM

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Autor: MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO

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Ilustrador: TIAGO MANUEL

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Treze poemas em cada livro, treze poemas como treze luas, como os treze poemas do calendĂĄrio lunar. A lua, esse ser cambiante que muda a sua face de espelho circular. Senhora das marĂŠs, astro da fecundidade. Ritmos lunares para dar medida ao tempo, ao tempo poĂŠtico.


Mรกrio de Sรก-Carneiro ANTOLOGIA POร TICA



O LORD

Lord que eu fui de Escócias doutra vida Hoje arrasta por esta a sua decadência, Sem brilho e equipagens. Milord reduzido a viver de imagens, Para às montras de joias de opulência Num desejo brumoso — em dúvida iludida... (– Por isso a minha raiva mal contida, – Por isso a minha eterna impaciência.) Olha as Praças, rodeia-as... Quem sabe se ele outrora Teve Praças, como esta, a palácios e colunas – Longas terras, quintas cheias, Iates pelo mar fora, Montanhas e lagos, florestas e dunas... (– Por isso a sensação em mim fincada há tanto Dum grande património algures haver perdido; Por isso o meu desejo astral de luxo desmedido – E a Cor na minha Obra o que restou do encanto...). Paris – setembro de 1915.

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A QUEDA

E eu que sou o rei de toda esta incoerência, Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la E giro até partir... Mas tudo me resvala Em bruma e sonolência. Se acaso em minhas mãos fica um pedaço d’ouro, Volve-se logo falso... ao longe o arremesso... Eu morro de desdém em frente dum tesouro, Morro à míngua, de excesso. Alteio-me na cor à força de quebranto, Estendo os braços d’alma – e nem um espasmo venço!... Peneiro-me na sombra – em nada me condenso... Agonias de luz eu vibro ainda entanto. Não me pude vencer, mas posso-me esmagar, – Vencer às vezes é o mesmo que tombar – E como inda sou luz, num grande retrocesso, Em raivas ideais, ascendo até ao fim: Olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso... .………………………………………………… Tombei... E fico só esmagado sobre mim!... Paris 1913 – maio 8.

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ESTÁTUA FALSA

Só de ouro falso os meus olhos se douram; Sou esfinge sem mistério no poente. A tristeza das coisas que não foram Na minh’alma desceu veladamente. Na minha dor quebram-se espadas de ânsia, Gomos de luz em treva se misturam. As sombras que eu dimano não perduram, Como Ontem, para mim, Hoje é distância. Já não estremeço em face do segredo; Nada me aloira já, nada me aterra: A vida corre sobre mim em guerra, E nem sequer um arrepio de medo! Sou estrela ébria que perdeu os céus, Sereia louca que deixou o mar; Sou templo prestes a ruir sem deus, Estátua falsa ainda erguida ao ar... Paris 1913 – maio 5.

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Mรกrio de Sรก-Carneiro Lisboa, 1890 - Paris, 1916


É pelo ano de 1890 que nasce em Lisboa, na rua da Conceição, o poeta Mário de Sá-Carneiro, aquele que veio a ser um dos poetas mais singulares do século XX. “Um pouco mais de azul – eu era além.”

A morte de sua mãe e as constantes viagens de trabalho do pai ditam que fique entregue aos cuidados dos avós e de uma ama. Desde muito cedo, porém, o pai proporcionou-lhe viagens pela Europa, com uma especial preferência pela cidade de Paris, que viria a ser a cidade onde se instala e vive alguns dos seus mais intensos momentos pessoais e literários. A sua curiosidade e entrega à escrita manifestam-se desde cedo, com as suas primeiras obras a aparecerem em 1899: poemas e pequenas peças de teatro. É na dramaturgia que vem a fazer novas incursões e será no Liceu Camões que escreverá a peça Amizade com o seu amigo Tomás Cabreira Júnior, amigo este que se suicida no Liceu Camões e para quem Mário de Sá-Carneiro escreve o poema “A um Suicida”. Mas a sua escrita fazia-se também em registos como o jornalístico e o crítico, tendo editado o jornal O Chinó e colaborado com poemas e contos na revista Azulejos. Esta sua constante e diversificada atividade na escrita leva-o a publicar o livro Novelas no ano de 1912, ano este em que conhece Fernando Pessoa, de quem se torna amigo e confidente. Prossegue os estudos com a inscrição em Direito numa passagem muito curta por Coimbra, mas será em Paris onde se vai instalar para frequentar este curso. Não será este que o irá animar a viver por lá, mas antes os cafés e as esplanadas, que se tornam o seu sentido de vida, e por ali se encontra com Santa Rita-Pintor. Esta é a cidade que o deslumbra e que o alenta na sua constante inquietação. “Ó meu Paris, meu menino, Meu inefável brinquedo... – Paris do lindo segredo Ausente no meu destino.”

A Primeira Guerra Mundial força a sua saída de Paris e, de regresso, passa por Barcelona para de novo se instalar em Camarate. Retoma os encontros com os amigos dos cafés da baixa lisboeta e avança numa direção conjunta com Fernando Pessoa para o lançamento da revista Orpheu, envolta em acesas polémicas, não deixando, no entanto, de ser um marco do Modernismo português e uma manifestação de audácia e originalidade daqueles que nela colaboravam. Paris não deixa de ser o seu destino, tendo regressado e por lá voltado a deambular na escrita de poemas, no mergulho da sua existência que se torna instável, o que o vai deixando num voo sem regresso. Depositou nas palavras tamanha verdade, assistindo-as com o seu Eu, como só assim se pode ver na sua inquietude e na sua plenitude. “Todo me incluo em Mim – piedosamente.”

Põe termo à sua vida em Paris com o suicídio, como sentido encontrado para acabar com a sua angústia. antónio gonçalves

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Tiago Manuel Viana do Castelo, 1955


Quando recebi o convite para ilustrar a poesia de Mário de Sá-Carneiro, aceitei o desafio com a confiança de quem conhece bem o chão que pisa. Não quero com isto dizer que foi fácil a empresa ou que de tais cuidados tirei prazer. As obras que nos ajudam a compreender a vida raramente estendem o vocabulário até ao contentamento. Os poemas publicados neste livro foram escritos entre 1913 e 1916. Ao lê-los, senti que as palavras do poeta desenhavam a minha vida direita pelas linhas tortas do mundo que conheço, em tudo quase igual ao mundo que ele conheceu cem anos antes. A mesma dor, os mesmos medos, as mesmas nuvens sombrias antes da catástrofe. Dito assim, eu escrevi os poemas e ele fez os desenhos. Tudo é realidade e reflexo no espelho estilhaçado da vida. Hoje ainda vejo o meu rosto; amanhã, só a luz tocará a superfície onde se apagaram os meus olhos. NOTA: Dizem que Mário de Sá-Carneiro amou uma mulher e morreu. Mas há melhor maneira de gastar a vida?

Tiago Manuel Viana do Castelo, 03/10/2012.

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Se eu apagasse as lanternas Pra que ninguĂŠm mais me visse, E a minha vida fugisse Com o rabinho entre as pernas?...


Este livro convida-o a ler um poema por dia, ou por semana, ou mês lunar. Depois, pode deixá-lo a repousar numa estante, aberto na ilustração que quiser, que é, nem mais nem menos, a leitura que Tiago Manuel fez das palavras do poeta, para deleite dos nossos olhos e do nosso olhar mais pessoal.

Desfrute-o!

Coleção: Treze Luas

© do texto: Mário de Sá-Carneiro, 2012 © das ilustrações: Tiago Manuel, 2012 © desta edição: Kalandraka Editora Portugal Lda., 2012 Rua Alfredo Cunha, n.º 37, Salas 34 e 56 4450-023 Matosinhos - Portugal Telefone: (00351) 22 9375718 editora@kalandraka.pt www.kalandraka.pt

Faktoria K de Livros é uma chancela da Kalandraka Editora Edição literária: António Gonçalves Impresso em Gráficas Anduriña Primeira edição: novembro, 2012 ISBN: 978-989-8205-90-2 DL: 349749/12 Reservados todos os direitos (Os poemas e os textos desta obra foram fixados e compostos ao abrigo do novo Acordo Ortográfico.)




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