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m microfone para a voz, outro para o violão. Inédito, o pedido pega de surpresa o diretor-técnico da Odeon, então uma das maiores gravadoras do Brasil. Como pode um baiano de 27 anos, em seu primeiro compacto, apresentar tanta ousadia? Tampouco Tom Jobim, o maestro e arranjador, aceita facilmente os desejos do amigo genioso, capaz de parar tudo para reclamar de erros imperceptíveis da orquestra. Quanto trabalho para gravar duas faixas! Mas João Gilberto provoca, falando baixinho e calmo: "Tom, você é preguiçoso". E caem todos na risada. Um a um, os detalhes da gravação vão sendo acertados pelo baiano, dotado de ouvidos com sensibilidade microscópica, acostumados na infância a prestar atenção no som do silêncio das noites em Juazeiro, quando, a partir das 22 horas, não havia luz elétrica, apenas os batuques dos terreiros distantes e o murmurar das águas do rio São Francisco. Demoram dias até que os músicos, o maestro e o técnico de som sintonizem, juntos, a freqüência da rádio-cabeça de João Gilberto. Em 10 de julho de 1958, enfim, as duas músicas são finalmente gravadas. Com Chega de Saudade, de Jobim e Newton Mendonça, e Bim Bom, composição própria, nascia uma nova estética da música popular brasileira – batizada depois de bossa-nova à revelia do criador (João prefere chamá-la simplesmente de samba e até retira a expressão bossa nova, ao cantar Desafinado, espécie de hino do movimento, de Jobim e Mendonça). Rótulos à parte, a novidade misturava ritmo de samba sobre harmonias dissonantes com sua voz suave, entoada como em uma conversa e dividida em compassos adiantados ou atrasados em relação ao

«Você estava sendo rápido, mas não bonito. Vê bem qual dedo que tem que vir antes nesse acorde» João Gilberto para Roberto Menescal

acompanhamento. Algo que João inventara dois anos e meio antes, em seu isolamento criativo entre o quarto e o banheiro da casa da irmã mais velha, Dadainha, em Diamantina (MG). Uma invenção tão intrigante que, 50 anos depois, ainda leva platéias ao delírio. No Japão, em 2003, os aplausos finais duraram 25 minutos. Nos últimos anos, Joãozinho, como é chamado em família, nem teve tempo de se apresentar no Brasil. Mostrou sua arte em Tóquio, Argentina, Barcelona, Londres, Milão, Nova York. Mas este ano, ele fará quatro apresentações no País, pelo Projeto Itaúbrasil, em comemoração ao aniversário da Bossa Nova. Em 5 de setembro, virá ao Teatro Castro Alves, casa onde já se apresentou três vezes, recebeu vaias por ter se atrasado por uma hora e meia, em 1978, e onde se espera que ares-condicionados, microfones fora do padrão e ruídos não incomodem o músico que tanto precisa de silêncio.

TANTÃ Ele foi embora de Juazeiro aos 18 anos, depois que o pai lhe cortou a mesada, direto para Salvador, onde cantou em programas da Rádio Sociedade. No ano seguinte, chegou ao Rio de Janeiro, convidado para ser crooner da Garotos da Lua. Em

mente, o lema: "Champanhe, mulheres e música, aqui vou eu!". Mas, antes de atingir o estágio de astro, Joãozinho sofreu com a incompreensão da família e a dureza do mercado da música. Primeiro, foi a falta de dinheiro. Entre 1952 e 1955, desempregado, depois de ser demitido por faltar a um show da Garotos da Lua, penou a solidão, a dureza do mercado da música, conheceu a fome e o sono em bancos de praça. "Ele virou um hippie, de cabelo comprido, andando nas ruas, dizendo bobagens como: a árvore! as flores!", diz o também baiano Acyr Bastos Mello, 83, que demitiu o crooner ausente entre palavrões impublicáveis – mas, anos depois, voltou a ser amigo dele. O juazeirense viveu por algum tempo de bicos, como o de palhaço mudo em um espetáculo musical. Segundo o livro Chega de Saudade, de Ruy Castro (Cia. das Letras), João Gilberto chegou ao fundo do poço naquela época. Com a ajuda de Luís Telles, no entanto, pôde se reencontrar. O amigo o sustentou por uma temporada em Porto Alegre e lhe recomendou ir para a casa da irmã mais velha, em Minas Gerais. Por ver o irmão grudado ao violão, sem sair de casa nem para ver o céu durante oito meses, Dadainha resolveu levá-lo de volta a Juazeiro. A essa altura, João passava as horas a repetir o mesmo acorde – exercício comum entre instrumentistas, mas feito com uma intensidade que preocupou a família. Regina Cussa, 77, conterrânea e amiga, lembra que ele gostava de entrar numa canoa e exercitar sua arte em paz, isolado à beira do Velho Chico. "João conversava muito com os pescadores, que deixavam uma canoa para ele usar". O pai, um comerciante, censurava a musicalidade exacerbada do filho e dizia coisas como: "Joãozinho está ficando tantã". Seu Juveniano mandou o

O amor, o sorriso e a flor: em passagem por Salvador, em 1978, João ganha rosa de uma fã

rapaz, então, com 26 anos, passar por avaliações psiquiátricas em Salvador. No Hospital das Clínicas, a equipe chefiada pelo médico Nelson Pires o liberou depois de uma semana de entrevistas e exames. A "loucura" dele era aquela nova estética, que ampliaria a consciência de quem estava preparado para recebê-la. Como Caetano Veloso, então, um menino de 16 anos, sem dinheiro para comprar discos, que gostava de ouvir Chega de Saudade no bar de Bubu, em Santo Amaro. O gingado inovador fez Caêtas (como Caetano é chamado por João) descobrir o samba dentro do samba-canção, forma musical predominante nas rádios da época, e entreouvir "a mão do primeiro preto batendo no couro do primeiro atabaque". Foram os cariocas classe média alta da Zona Sul (Carlos Lyra, Roberto Menescal, Nara Leão, Ronaldo Bôscoli), no entanto, que primeiro tiveram contato com aquilo,

entre hospedagens que alteravam a rotina dos anfitriões e visitas imprevisíveis cheias de momentos especiais — como quando João brincou com uma sobremesa feita por dona Dulce, mãe de Menescal. Sentado à mesa da cozinha, ele passou horas a dizer "Giselda", levando a colher com o doce para cima no "Gisééélll..." e, para baixo, ao finalizar "da". Menescal se diverte ao lembrar da cena: "Eu olhava para a minha mãe, e nós não sabíamos o que dizer".

NA TERCEIRA MARGEM – Você quer tocar com o João Gilberto? – Claro! – A que horas você termina aqui? – Às três. – Às três e meia, apareça no hotel tal. E lá vai um baixista, feliz, ansioso e cansado depois de uma noite de trabalho para tentar acompanhar o baiano em Retrato em branco em preto. Na quinta tentativa, o

músico desistia. A história é contada por Luis Carlos Miele, 70, que tinha a incumbência de produzir um show de João no Canecão, no começo dos anos 70. Mas o artista, já detentor de seis prêmios Grammy pelo álbum Getz-Gilberto, não queria tocar com a orquestra contratada e decidiu rodar as casas noturnas do Rio para descobrir talentos. “Não deu: os baixistas não sabiam se acompanhavam a voz ou o violão”, lembra Miele. Tudo piorou quando a equipe de cenografia criou para o músico uma estrutura de acrílico. "Querem que eu cante num orelhão, rapaz", queixou-se João. E cancelou a apresentação. Quando as exigências do baiano são ouvidas e os espetáculos acontecem, suas reclamações viram atração à parte. Em Los Angeles, João ameaçou deixar os palcos por falta do microfone AKG 414. Parou o show para criticar a acústica do Credicard Hall, durante a inauguração da sala, em FOTO ARQUIVO A TARDE


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