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A vizinha Eliane Mattos, 58: bilhetinho debaixo da porta

e mantém as tradições católicas da família, cultivadas por Patu, a matriarca. Na TV, João coloca volume para assistir às lutas de boxe, esporte do qual entende tudo, assim como pingue-pongue e futebol. Torce para o Vasco, conforme Tiãozinho. E lê poesia. Conhece, de cor, poemas inteiros de Drummond. Contudo, não escuta música. "Ele fica ouvindo a rádio-cabeça", diz Miúcha. Não pratica posturas de yoga, mas senta em posição de lótus e estuda a obra de Paramhansa Yogananda, mestre que recomenda: "Seja calmamente ativo e ativamente calmo". Nos últimos três anos, dedica-se com afeição à filha Luísa, que teve com Cláudia Faissol — agora também sua empresária, segundo a Folha de S.Paulo. Mas a maior parte do tempo, o baiano passa mesmo a desconstruir e reconstruir canções em seu violão. Às vezes, senta-se diante de um encontro de paredes para aproveitar a reverberação e escutar melhor o som que produz. "Ele acha que não tem nada que seja tão fascinante e tão divertido quanto explorar todas as possibilidades harmônicas e rítmicas do violão", analisa Miúcha. "Não adianta não querer errar. O lance é não errar", disse certa vez João Gilberto para Tuzé de Abreu, 60, enquanto tocava uma de suas séries de estudo. "De tanto tocar, ele descobre o que cada

Fachada do Degrau, onde o cantor pede comida diariamente

NÚMEROS DE JOÃO

R$ 2 mi cachê estimado para a miniturnê brasileira

17 álbuns lançados

122 canções gravadas

206 faixas gravadas

3 filhos

7 irmãos

18 idade com que saiu de Juazeiro

música pede", analisa o integrante da Orquestra Sinfônica da Bahia (Osba), que fez parte do staff de João em espetáculos internacionais. Com uma voz cada vez mais alta, por falar do amigo que tanto ama, Abreu completa: "João toca a música, no sentido de tocar, assim (coloca a mão bem suavemente sobre o antebraço da repórter), sem agredir as cordas, usando apenas a força necessária". O resultado é um volume de som que nunca passa do mezzo piano, o que faz do silêncio das madrugadas os melhores momentos para estudar. "A música que vem do paraíso de Deus é a que surge do silêncio, quando está todo mundo dormindo, as televisões desligadas, os telefones quase mudos", ensina João Donato, parceiro de composições e de noitadas musicais. O próprio João Gilberto explicou em 1971: “Quando eu canto, penso num es-

João Donato, 73: “Eu ligo, mas ele não atende (...) Antes da tecnologia, ele deixava o telefone tocar e adivinhava quem era”

paço claro e aberto onde vou colocar meus sons. É como se eu estivesse escrevendo num pedaço de papel em branco: se existem outros sons à minha volta, essas vibrações interferem e prejudicam o desenho limpo da música".

EM ALFA O silêncio também marca seus passos fora do apartamento do Leblon. Ano passado, o baiano veio para Salvador, sem alardes, e presenteou um dos mais precisos pesquisadores de sua invenção com uma virada de noite fenomenal. Das onze às nove da manhã, dividiu o violão com o maestro Aderbal Duarte, 58, com quem só tinha falado por telefone. "Ele me tratou como se fosse um filho", disse o maestro, que estuda a obra do juazeirense há 30 anos e fará um show em comemoração aos 50 anos da Bossa Nova, na quarta-fei-

ra, às 21 horas, no Teatro Sesi do Rio Vermelho (veja dez videoaulas de Duarte sobre a sonoridade de João Gilberto no site da Muito). No encontro, João pediu a Duarte que afinasse seu violão, uma tarefa que costuma entregar a admiradores profissionais. Um deles foi Almir Chediak, autor da maior coleção de songbooks do Brasil, assassinado em 2003. Por dois anos e meio, Almir viu apenas a mão do baiano passar-lhe o instrumento e pegá-lo de volta por entre uma fresta da porta. "Meu irmão gostava tanto de João que, uma vez, quando trocou as cravelhas do violão dele, guardou-as como lembrança", conta Jesus Chediak, 66, diretor- cultural da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). "Na primeira vez que eu o vi tocar, foi como se, estando acostumada a um filme preto-e-branco, passasse a ver colorido",

conta Miúcha. E não só a música de João provoca esse estado. Sua presença, dizem amigos, também. "Não só nós, mas todos os que conhecem João, de perto, sabem que junto dele se entra em alfa. A sensibilidade das pessoas e do ambiente vem à flor da pele e à flor do ar", escreveu Luís Galvão em Anos 70: Novos e Baianos (Ed. 34). A viúva de Galo, um dos companheiros musicais de João em Juazeiro, também guarda lembranças mágicas. Um dia, o amigo do marido entrou na casa, a cumprimentou e se deitou na cama de casal para esperar por Galo. "João Gilberto é assim, simples e alegre", diz Ananda Lima, 84. O crítico musical Tárik de Souza, 60, é um dos poucos jornalistas do mundo que pôde passar seis horas a sós com ele, sob a condição de não anotar nem gravar nada. Publicada na Veja, em maio de 1971, a en-


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