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34 SALVADOR DOMINGO 17/8/2008
na celebração. Dois meninos trazem as velas das laterais do altar para iluminar, um de cada lado, as “Palavras da Salvação”. Antes da leitura, o monge faz surgir incenso sobre o livro com o turíbulo e, no silêncio da manhã, só se ouve o barulho do metal. “Suba minha oração como incenso, diante de ti”, pensam consigo os monges, colocando nos ductos essa intenção do Salmo 141. Parte da assembléia fecha os olhos e levanta um pouco o queixo. O Evangelho fala das parábolas do joio e do trigo, do grão de mostarda e do pão sem fermento. A fumaça do incenso ainda paira sobre o livro, sobre os monges, sobre todos, erguendo-se contra a parede cor-de-rosa do altar. Além dela, palavras como perdão, mistério, paciência e amor trazem a paz e a pureza necessárias à contemplação. A catedral está iluminada apenas da metade para a frente, e o Sol ilumina em cheio o rosto de dois religiosos à direita do altar: eles parecem estátuas de beleza e magnitude. Na platéia, pessoas fungam, outras tossem e pigarreiam e duas crianças conversam bem baixinho. Um celular toca, o dono atende, e o sermão ainda trata de paciência e impaciência. Uma senhora de cabelo branco e rabo-de-cavalo abaixa a cabeça e fica a ouvir, como se aquele trecho fosse especialmente dedicado a ela. O cheiro de incenso alcança até o último quarto da basílica. O odor suave transforma tudo – altar, monges, objetos sagrados, público – numa grande nuvem perfumada. O celebrante lembra que "num mundo de fomes, mortes e mensalões, Deus está presente, Deus cuida de nós". Pois é, dessas coisas também sabem os monges. Eles acompanham o noticiário. Um menininho pede balas tic tac à mãe, que abre devagar a bolsa; o prior cita Erasmo de Roterdam, o mesmo do Elogio à
A costureira Doralice Maria de Jesus, 78, vem de Paripe com a neta Michele, 14
Quase 500 fiéis acomodam-se nos mais de 60 bancos de madeira maciça da igreja do Mosteiro de São Bento a cada domingo
Loucura: "Suporto a igreja na esperança de que ela melhore, assim como espero que a igreja me suporte". O menino enche a mão de balas e as joga na boca impulsionando a cabeça para cima. A mãe faz que vai guardar o resto, mas repete o mesmo gesto do filho, e abre bem a boca para receber cada pequena bala lá dentro.
para, com a autorização do celebrante, entrar em um belo solo instrumental. No altar, o religioso dá a volta na mesa principal, sacudindo o turíbulo com vigor. A comunhão vai começar. Acólitos incensam primeiro os religiosos, depois a assembléia. Raios solares entram por entre os vidros do teto e revelam duas grandes colunas de fumaça, inclinadas em ângulo de dez graus para a esquerda. "Tomai e comei, este é meu corpo", vai dizendo o monge-padre. "Tomai e bebei, este é meu sangue". Outro celular toca e, simultaneamente, um relógio faz bipe-bipe. O carro de som sumiu. "Eu vos dou a minha paz, eu vos deixo a minha paz", diz o celebrante – é a deixa para um gesto afetuoso em quem está ao lado. Homens e mulheres se cumprimentam e desejam "paz" uns aos outros. Dois amigos batem as palmas das mãos uma contra a outra, como no surfe. A trilha sonora é o canto do "Miserere Nobis" – e talvez alguém se sinta um pouco menos egoísta e miserável. Exatamente às 11h, o Sol ilumina o monge que primeiro toma a Eucaristia.
LATIM E DOAÇÕES Acabou o sermão. O órgão adianta notas do próximo canto. Um monge-cantor se confunde e um breve mal-estar toma conta dos cristãos, acostumados à perfeição da Schola Cantorum. Eles esticam o pescoço para o altar, mas com alívio o ouvem retomar a frase na quarta tentativa: "Et ex Patre natum ante omnia saecula...". O hino é tão bonito, mas um carro de som toca axé lá fora. Mais um celular toca; um homem sisudo atende e sai. O celebrante principal faz três pedidos: para que suportemos momentos de tensão na caridade e na verdade, para que os impacientes vejam fidelidade na lentidão dos prudentes, e para que as comunidades
superem diferenças individuais. Justiça e retidão são os temas do novo canto, em latim. Homens de rostos inexpressivos passam ao longo das fileiras, com caixas estendidas para receber doações dos fiéis. Segundo Dom Ângelo, 30, responsável pela assistência social do mosteiro, a missa dominical das dez é a única celebração com coleta da semana e arrecada de R$ 300 a R$ 400 por vez. O dinheiro é revertido para a compra de 20 cestas básicas, remédios, passagens, funerais e dois aluguéis de pessoas cadastradas. “Semana passada uma senhora veio me dizer que não precisava mais da ajuda. Fiquei contente com a honestidade dela”, conta. As bolsas abrem, mas pouco dinheiro sai. Uma caixinha está estendida diante do meu rosto, aguardando a esmola da mulher ao meu lado. Visivelmente cheia de notas de R$ 50 e de R$ 20, ela providenciou à ação social uma única cédula de R$ 2. Em outras caixas, moedas se acumulam. Lá no altar, Dom Ângelo reza pela caridade. O organista Flávio Queiroz, escondido no canto direito da basílica, se torce para a esquerda
A missa dominical das dez é a única celebração com coleta semanal de cerca de R$ 400 Mal ele deita o cálice de vinho sobre a mesa de mármore, tem início a tríplice fila da comunhão. Passam os Codes, os peruanos da TFP, e outras famílias. O menino das balinhas não vai. Olha a mãe, que passa a mão em sua cabeça como se sussurrasse: “Já está quase”. Os monges fazem o sinal-dacruz com a hóstia. Só se ouvem tosses secas e o som das muletas de Doralice, que pára para observar o altar lateral e descansar. As pessoas mais idosas, com dificuldades de locomoção, são atendidas sentadas, nos bancos mais à frente. Uma delas é Alzedith Lima Brasil, 89, simpática e elegante mãe de uma integrante do coral: “Adoro os cantos gregorianos”, diz. Do ór-
gão vem uma melodia bem aguda e celestial até cessar o movimento no altar. É quase o fim da missa. O celebrante pede que os fiéis tenham "uma vida nova" e ordena: "Inclinai-vos para receber a bênção". De semblantes tranqüilos, todos estendem as mãos à frente. "Ide em paz e que o Senhor vos acompanhe". O organista, agora com baixos bem marcados e acordes solenes, faz trilha para a saída. A atmosfera celeste se desfaz. – O senhor gostaria de uma carona até a Barra?, pergunta um senhor para outro. – Sim, aceito, muito obrigado! – Bem, meu carro está ali em frente. – Ah. Sim. O problema são esses pedintes desagradáveis... – Meu filho, estamos na Bahia! – Pois é... E eles seguem, espantando os pedintes até chegar ao carro. A família Codes também não dá atenção aos pedintes. Já fez sua doação. Doralice e a neta vão andando até um ônibus. São 11h15, o sol brilha ainda mais forte, e os monges preparam a próxima oração.