Ensinar a viver – manifesto para mudar e educação. Um livro de Edgar Morin Krishnamurti Góes dos Anjos(*)
O
título dessa obra pode levar a nossa mente condicionada à um pensamento
compartimentalizado e monodisciplinar, a acreditar que estamos diante de algum compendio didático destinado aos que lidam com a educação e portanto, de interesse restrito aos profissionais da área. Entretanto, basta abrir a capa multicolorida para depararmo-nos com uma página negra onde letras brancas denunciam a amplitude de uma realidade brutal que interessa a todos nós: “A crise profunda em que vivem nossas sociedades é patente. Desregramento ecológico, exclusão social, exploração sem limites dos recursos naturais, busca frenética e desumanizante do lucro e aumento das desigualdades encontram-se no cerne das problemáticas contemporâneas”, da civilização que fabrica catástrofes econômicas, políticas, ecológicas e culturais de maneira sistêmica.
Quem faz estas constatações é Edgar Morin (93 anos), considerado um dos mais importante pensadores vivos da atualidade. É autor de mais de 30 livros e empreende neste ‘Ensinar a viver’, uma síntese de seu pensamento já exposto em obras anteriores. Para o autor (e para todos aqueles que desenvolveram um mínimo senso crítico também), entramos em uma grande época de incertezas sobre nossos futuros, o de nossas famílias e o de nossa sociedade. A humanidade mundializada, perplexa, dá-se conta a cada dia de um mal-estar que acomete não apenas aqueles que estão privados do bem-estar material, mas também aqueles que desfrutam desse bem-estar. Percebemos claramente os sintomas dessa perturbação que nos asfixia; esse desejo cada vez mais latente que vamos acumulando de escapar da superficialidade, da frivolidade, das intoxicações consumistas, do poder do dinheiro. Já ultrapassamos a primeira década do século XXI e não conseguimos encontrar uma mínima relação de serenidade entre corpo alma e mente, ao passo que estamos cada vez mais fartos do que o homo sapiens demens (expressão cunhada por Morin), inventou: o ódio, a maldade gratuita e a vontade de destruir por destruir.
Da página negra com letras brancas passamos ao subtítulo do livro: manifesto para mudar a educação. Por que o autor é incisivo neste ponto? Porque a educação é como se denomina a
parte maleável que liga a personalidade ao caráter, como definiu Julios d’Gales. E Morin, com a perspicácia da acurada observação que empreendeu ao longo de tantos anos, situa a educação hoje, no meio de uma espiral nebulosa de crises – a palavra crise já se tornou tão trivial que vem atrofiando a nossa tomada de consciência dos riscos que corremos -, e por isto mesmo torna-se necessário pensar com urgência na criação de um ensino preparatório para enfrentar as crises.
Em uma rápida retrospectiva histórica o autor nos lembra que “no decorrer do século XIX, teve início uma dissociação que hoje se tornou disjunção, entre dois componentes da cultura: o científico e o das humanidades. A cultura científica produziu conhecimentos que cada vez mais se distanciam dos caminhos das humanidades, que por sua vez não possuem senão vagos conhecimentos midiáticos das contribuições fundamentais das ciências ao conhecimento de nosso universo físico e vivo”.
Tal situação se agravou de tal forma ao longo do tempo, que atualmente já se exerce sobre a educação uma enorme pressão para adaptá-la às necessidades tecnoeconômicas e restringir a área das humanidades, que segundo alguns, não têm nenhum interesse prático. Cogita-se mesmo que o número dos cursos de história e os de literatura sejam reduzidos. Os de filosofia? Puro lixo. O imperialismo dos conhecimentos calculadores e quantitativos avança em detrimento dos conhecimentos reflexivos e qualitativos. Vivemos o mais completo desprezo entre esses dois ramos importantíssimos do conhecimento.
É por isto que justifica-se repensar todo o nosso sistema de ensino pois a escola atual não fornece os subsídios para a aventura da vida de cada um. Não fornece as defesas para se enfrentar as incertezas da existência, não fornece as defesas contra o erro, a ilusão e a cegueira, elementos inexoráveis da condição e da existência humana. “Ela não ensina o viver senão lacunarmente, falhando naquela que deveria ser a sua missão essencial”, formar seres humanos aptos para a vida. Formar seres humanos aptos passa por duas questões essenciais: desenvolver a compreensão humana, primeiro compreendendo a si mesmo para que possamos compreender o outro, porque isto abarca duas das grandes necessidades existências a serem atendidas. Ser reconhecido pelo outro e realizar as próprias aspirações. Nesta carência básica, reside a ruína de nossas vidas pois a sua falta tem determinado os comportamentos aberrantes, as rupturas, os insultos e os sofrimentos. Com efeito, a incompreensão traz em si os germes da morte.
Mas não basta. É preciso aprender a aprender. “Ao parcelar os conhecimentos em fragmentos separados, nossa educação não nos ensina senão muito parcialmente e insuficientemente a viver, ela se distancia da vida e ignora os problemas permanentes do viver. Cada vez mais poderosa e influente, a tendência tecnoeconômica tende a reduzir a educação à aquisição de competências socioprofissionais, em detrimento das competências existenciais que uma regeneração da cultura existencial e a introdução de temas vitais no
ensino podem promover”. Quanto mais nosso espírito quer ser autônomo, mais deve se alimentar de culturas e de conhecimentos diferenciados.
A crise da educação está imersa em outra de maior complexidade que é a crise da civilização, e uma educação regenerada (do nível primário ao universitário), poderia dar a contribuição vital no sentido de formar adultos mais capazes de enfrentar seus destinos, mais aptos a expandir sua qualidade de vida, mais preparados a se compreenderem uns aos outros. O que o autor defende finalmente, não é uma fórmula pronta e acabada, mas sim promover os meios de despertar e incitar as mentes a lutarem contra o erro, a ilusão e a parcialidade que na crise atual da humanidade e das sociedades são perigosos e talvez mortais. Perguntamos: tudo isso que está em síntese primorosa no livro de Edgar Morin, é ou não é do profundo interesse de todos nós?
A humanidade avança a partir de paixões criadoras, e todas as inovações transformadoras acabam por dar lugar a desvios frutíferos que permitem à essas ideias se disseminarem e se transformarem em tendências; depois em forças históricas. O conhecimento do conhecimento e a compreensão deverão firmar a nova arte do viver. Um viver sempre pronto a recomeçar, sempre pronto a reinventar-se. É isto que o nosso caminhar sobre a terra nos impõe neste século XXI. Ensinar a viver – manifesto para mudar e educação. Um livro de Edgar Morin - Editora Sulina – Porto Alegre – setembro de 2015, 183p. Krishnamurti Góes dos Anjos(*)É baiano de Salvador. Escritor e pesquisador. Autor de: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos e Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 22 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Possui textos publicados em revistas literárias na Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro publicado pela editora portuguesa Chiado, – O Touro do rebanho -, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014, na categoria Romance.