Resenha Crítica
Krishnamurti Góes dos Anjos
O viés histórico de cunho revisionista adotado por Fernando Cacciatore de Garcia em seu ensaio: Como escrever a história do Brasil: miséria e grandeza, começa a nos despertar a atenção para a necessidade de uma nova história para um novo Brasil da seguinte forma: “Na historiografia e ensaística brasileiras, encontramos muito mais razões que explicam nosso fracasso, e não nossa ´grandeza` e sucesso, muito mais dependência que nossa autonomia, muito mais descrédito que nosso prestígio”. E argumenta que o Brasil “é agora, queira-se ou não, aceite-se ou não, um país proeminente; contudo, falta-lhe uma história contendo uma ideologia que explique e justifique esse fato novo diante da mente brasileira, acostumada há séculos às humilhações intelectuais e morais das ideologias de superioridade, à opressão mental das metrópoles”. O bem realizado esforço do autor de nos oferecer uma visão do quanto foi aparada ou distorcida a história do Brasil para ajustar-se às necessidades políticas dos detentores do poder ao longo dos séculos, leva-nos à instrumentos de análise que abrem novos horizontes de percepção. Fernando de Garcia observa, atentando aos pormenores, questões como: A história e interesse nacional. Grandeza e miséria; A identificação com o opressor; A necessidade de seguirmos “exemplos nacionais anteriores”, e analisa também os espinhosos mitos e vezos da historiografia de uma ex-colônia a começar pelo mito da “descoberta” do Brasil. Segue estudando um fenômeno mental (por assim dizer), a que chamou de lusofilia, que vem a ser a identificação com o opressor em nossa historiografia que via de regra, desaguou no entendimento de que nossa “grandeza” não está em nós mesmos, mas na Europa, no passado luso, heroico e brilhante. O livro apresenta ainda estudos sobre outros mitos que impregnam nosso fazer histórico: O do fracasso (criação de culpa); Os mitos da cópia, imitação e do atraso cultural, e os vezos da censura, da importância e conquistas, tudo analisado a nos mostrar como, ao longo do tempo,
fomos colocados “em um beco mental sem saída, em que as tentativas de compreensão de nossa mente e história desembocaram nessa impiedosa, duradoura e ampla avenida da cultura do fracasso.” Em meio ao ensaio, na pagina 331, o autor nos faz ainda indagações que tocam fundo (ou deveriam tocar), na nossa identidade brasileira no sentido de despertá-la para uma nova consciência histórica: “Será possível que nada de bom tivemos na nossa história? Ou seja, tudo depende de nosso olhar sobre nós mesmos, sobre nosso passado, sobre nossas qualidades e feitos. Não conquistamos os difíceis trópicos? Não conseguimos formar e manter um país imenso? Não nos caracterizam obras artísticas de todo gênero que hoje podemos apreciar e com elas identificar-nos?” O refletir sobre tais questões já não seria um início de caminho para alavancar nossa inércia mental quanto à busca de soluções efetivas agora e já? Questão de vontade também, convenhamos. Pensemos nisto profundamente. O autor brinda-nos ainda com outros capítulos de especial interesse, dentre eles cumpre destacar pela profundidade de pensamento: A ausência do índio, do negro, dos miseráveis, dos cristãos-novos e dos imigrantes como agentes históricos e; O vezo da cegueira em relação à miséria, a corrupção e à concentração de renda. Ao longo do corpulento ensaio (624 p.) há reflexões que merecem tempo de reflexão: “Considero, mais uma vez, que seria infantilidade ‘mostrar que o rei está nu’, pois toda ideologia pode ser despida em público por quem não a veste como uma verdade útil. Isso ocorre pelo próprio cerne das ideologias que é idealizar a realidade em benefício dos objetivos de determinados grupos sociais. É isso que nos falta, uma ideologia nacional amplamente aceita, sobretudo hoje em dia, quando, pelo menos fora do Brasil, não há dúvidas de que somos uma nova potência, regional ou não, um novo ator global, um novo país protagonista, como queiram. E a harmonia brasileira do convívio de opostos, de diferentes raças e etnias e credos, não seria um campo fértil para uma construção ideológica que nos engrandeça diante de nós mesmos e dos outros países?” vale a pena referir outro questionamento: “Libertaremos nossa mente há séculos oprimida, para chegarmos a um equilíbrio entre um ufanismo de cabeça nas nuvens e um ufanismo de pés na terra?” É sabido que um país se sustenta também a partir de imaginários sobre uma identidade nacional. Mas é preciso que se diga (e o autor faz colocações nesse sentido), que não basta criar imagens para elas se tornarem imaginários (Brasil pátria educadora – recentemente, lembram-se?). É preciso sim construir uma ideologia, mas também saibamos fazer os efetivos acertos históricos necessários para acabar por exemplo, e de uma vez por todas, com nossa abissal desigualdade social. Não é criando mitos de “promoção de inclusão” somente via programas sociais de eficácia duvidosa que iremos ultrapassar esta grave encruzilhada histórica em que nos encontramos. E isto não será viável sem tocar no privilégio dos mais ricos (não é demais lembrar que a concentração de renda no país está ranqueada entre as piores do mundo). Estamos hoje no Brasil, como ‘reis nus’ para usar da mesma expressão do autor. Reis despidos de um país onde cresce a cada dia um ódio surdo de uns contra os outros, onde se lincha suspeitos em plena rua, onde se assassina parte da juventude negra, onde há um espantoso e escandaloso crescimento da população carcerária, onde os índios são há séculos
exterminados, sem que a maioria de nós verdadeiramente se importe, onde se formam a torto e a direito os estados paralelos das facções criminosas dentro do Estado. E, para finalizar a lista, e indo direto à um ponto fulcral, recorremos novamente ao pensamento do autor: “... uma das principais causas da corrupção entre nós é o estado de baixa educação de milhões de brasileiros que por isso nem em cidadãos podem constitui-se, que exijam das autoridades que se comportem não em benefício próprio, mas geral, cobrando o bom uso da massa de impostos pagos pela população”. Oportuno este Como escrever a história do Brasil: miséria e grandeza, porque pode provocar vigorosa e relevante discussão sobre o passado e presente brasileiros justo em um momento em que nos damos conta que para além do esfacelamento de nossos imaginários, e muito concretamente, já sentimos na pele o decréscimo das nossas condições materiais de vida. A ideologia da ‘crise instalada’, contra a qual ninguém pode a não ser sofrê-la, já nos açoita com o desemprego em massa, inflação galopante, reedição das velhas fórmulas de tributação excessiva e pior; os ensaios de autoritarismo que andam ocorrendo em virtude do nosso total descrédito para com a classe política envolta em todo tipo de safadezas. Estamos sim em seríssimas dificuldades. E o Brasil do futuro não chegará até nós com o potencial de ‘grandeza’ que efetivamente possuímos, sem que façamos o acerto de contas com o passado que este livro nos propõe. Talvez seja essa uma das principais causas de há séculos, sermos um país que está à espera de um futuro melhor, futuro que tem estado longe, para além de um arco-íris de ‘misérias’. Outubro de 2015. Como escrever a história do Brasil: miséria e grandeza, de Fernando Cacciatore de Garcia – Editora Sulina, Porto Alegre, 2014 – 624 p.