Maturana: a biologia do amar

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Maturana: a biologia do amar Biólogo chileno propõe quebra de paradigmas para superarmos as mazelas do mundo contemporâneo

No dia primeiro de abril, Curitiba recebeu uma ilustre visita: a do biólogo chileno Humberto Maturana, uma das mentes mais brilhantes de nosso século. Ele veio para o lançamento de seu último livro, intitulado Habitar Humano, escrito em parceria com sua colega Ximena Dávila. Despido de qualquer aprisionamento teórico, Maturana é um dos cientistas mais respeitados no mundo, e seu último livro é um convite intrigante para a quebra de paradigmas e verdades do senso comum.

Humberto Maturana, durante o lançamento de seu último livro no auditório da Universidade Corporativa do Sistema Federação das Indústrias do Estado do Paraná (Foto: Henrique Kugler)

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á setecentos anos, Frederico II, imperador do Sacro Império Romano-Germânico, realizou uma experiência para determinar que língua as crianças falariam quando crescessem, se jamais tivessem ouvido alguém falar. Falariam elas hebraico (que então se julgava ser a língua mais antiga), grego ou a língua de seu país? Deu instruções às amas e mães adotivas para que apenas as alimentassem e lhes dessem banhos, mas que sob hipótese alguma falassem com elas. O experimento fracassou, já que todas as crianças morreram. No entanto, essa triste experiência mostra como a interação social e a comunicação – especialmente a linguagem – são vitais para a espécie humana. É o que defende uma das mentes mais brilhantes de nosso século, o biólogo, médico e filósofo chileno Humberto Maturana. Recentemente, ele e sua colega Ximena Dávila estiveram em Curitiba para o lançamento do livro Habitar Humano, após oito anos de reflexão e investigação. O título foi lançado no Brasil pela editora Palas


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Athena, e é considerado pelos estudiosos “um convite intrigante para a quebra de paradigmas e verdades do senso comum”. Premiado internacionalmente e com passagem por prestigiadas instituições, como o MIT (Massachusetts Institute of Technology) e o College of London, Maturana desenvolveu importantes trabalhos de ruptura paradigmática, principalmente na área da neurofisiologia da percepção. Ele tenta compreender a espécie humana pesquisando o funcionamento do sistema nervoso, estendendo essa compreensão ao âmbito social. Em uma de suas mais aclamadas teorias, cunhada de autopoiesis na década de 1970, em conjunto com o também filósofo e biólogo chileno Francisco Varela, ele sustenta que o ser humano tem a capacidade de produzir a si próprio, ou seja, de estar constantemente se construindo por meio da aquisição do conhecimento e se regulando por meio de interações com o meio. Maturana afirma que a espécie humana é essencialmente fundada na emoção – quebrando o paradigma do ser humano como intimamente racional – e que nos diferenciamos dos outros seres vivos por podermos reflexionar sobre tudo que nos cerca. Essas idéias, hoje amplamente utilizadas em diversas áreas, são conhecidas respectivamente como Biologia do Amar e Biologia do Conhecer. No ano de 2000, Maturana e Dávila fundaram o Instituto Matríztico, um espaço que favorece a ampliação da compreensão de todos os domínios humanos. Lá, estudos são desenvolvidos por meio de cursos, palestras e oficinas de reflexão. O nome do instituto faz alusão às sociedades matrízticas – sociedades pacíficas e igualitárias que supostamente habitaram a Europa em tempos antigos, e, segundo muitas evidências arqueológicas e históricas, foram datadas como anteriores a 4.000 a.C. Eram sociedades muito evoluídas, organizadas em torno da cooperação e do respeito por todos, inclusive pela natureza. Em entrevista exclusiva ao Comunicação Online, Maturana critica ferrenhamente a maneira de viver da sociedade contemporânea, e dá sugestões de como subvertê-la com educação, reflexão e amor.

Jornal Comunicação: Primeiramente, o que é o habitar humano? Humberto Maturana: É o viver cotidiano. É o que estamos vivendo agora, o presente. O passado na verdade não existe, ele é apenas a soma das experiências que nos fazem ser o que somos agora. Quanto ao futuro, ele também deve ser melhor entendido. O futuro pelo qual nos angustiamos nos faz negar o presente, e assim não vivemos. Então, com a idéia do habitar humano, queremos retomar a importância do momento presente, pois, ao final, é isso que realmente importa. JC: A sociedade atual é pródiga em riquezas e tecnologias. Mas também é rica em sofrimento, depressão e tristeza. Afinal, qual o problema com a nossa civilização, na perspectiva dos seus estudos? Maturana: Nós, do Instituto Matríztico, entendemos que os problemas com nossa civilização são a

dor, o sofrimento, a pobreza, a ignorância, as doenças. Mas, em essência, reconhecemos que a origem de nossas mazelas é simplesmente a negação do amar e do pensar. JC: Dentre todos os problemas de nossa sociedade, qual é o maior deles? Maturana: Crescimento indiscriminado da população. Esse é o maior de todos. JC: Por quê? Maturana: Porque ele traz consigo a maior exclusão de nível de vida do mundo natural. Quando a população aumenta, é necessário o incremento de educação, remédios, alimentação e habitação. Além de mais trabalho para viver dignamente. A população cresce mais rápido do que pode se sustentar. E isso causa o sofrimento.


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JC: Qual o rumo que a sociedade deve tomar para que, no futuro, ela possa ser mais justa e igualitária? Maturana: Eu penso que se não houver um controle de natalidade não haverá solução alguma. Mas não uma ação impositiva, e sim um espaço de entendimento de modo que as famílias recorram a ter menos filhos. Muita gente diz que a tecnologia resolve esse problema, que ela pode garantir os aspectos fundamentais para o viver igualitário. Mas ela não resolve. Não é um problema tecnológico, e sim um problema cultural. JC: Nota-se que em seus trabalhos anteriores você destaca bastante a importância da educação. Maturana: Sem dúvida. Para as próximas gerações e para esta. Porque educação indica gerar um espaço de conhecimento e entendimento do mundo em que vivemos. Um espaço de ações e de conhecimento que permitam guiar o viver de um modo que a dor do mundo possa ser remediada. JC: Como nós podemos contribuir para auxiliar as próximas gerações, nesse sentido? Maturana: Veja o que estamos fazendo. Por exemplo, vocês fazendo essa entrevista. Querendo ou não, vocês estão opinando. E essa opinião é uma ação. E fará com que as pessoas que leiam essa entrevista tomem conta de que vale a pena refletir sobre isso tudo que eu estou falando. E sobre nossas vidas privadas, podemos conduzi-las dessa mesma maneira, com essa consciência. E principalmente estar atento a nossa responsabilidade reprodutiva. Mas não adianta apenas teorizarmos sobre isso. É preciso agir na prática também. Por exemplo, imagine uma pessoa que fala que quer ter 5 filhos. Isso não é possível. Não por fantasia religiosa, mas porque não é bom para os filhos que essa pessoa tenha tantos filhos nesse momento. E não é bom para todos eles também. A demanda de tudo que precisamos para viver bem cresce muito mais rápido que a capacidade de reposição do meio. E viver bem não é viver rico, mas viver harmonicamente. JC: O que é viver harmonicamente? Maturana: Viver harmonicamente é viver com consciência das coerências do mundo que geramos. De

Lançado no Brasil pela editora Palas Athena, o livro Habitar Humano é um convite intrigante para a quebra de paradigmas e verdades do senso comum (Foto: Cristiane Takaya)

modo que o que fazemos seja gerador de bem estar, e não de dor e sofrimento. JC: Dentro dessa perspectiva, a democracia é um caminho válido? Maturana: A democracia é uma obra de arte do conviver. É o modo de conviver baseado no mútuo respeito, colaboração, co-inspiração. Devemos viver com consciência ética, com responsabilidade social e consciência sistêmica do mundo que estamos gerando. JC: Vivemos hoje uma real democracia? Maturana: Sim, claro. Mas, veja: muitas pessoas a entendem como um sistema político, então ela vai estar submetida a lutas de poder e dominação. E é importante destacar que são concepções diferentes. Sem dúvida uma democracia implica um atuar político, um atuar de acordo com a consciência do


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sistema da polis, da comunidade tradicional. Então quando alguém escolhe fazer do seu viver um viver democrático, convida a comunidade a viver na colaboração, na inspiração, de muito respeito, na consciência ecológica, consciência ética, na responsabilidade social, e a entender a natureza sistêmica do conviver. Sem subordinar esse viver democrático a um critério econômico, religioso ou científico. Por exemplo, nós do Instituto Matríztico necessitamos trabalhar para ganhar a vida, mas não nos orientamos em ganhar dinheiro. O objetivo é fazer o que fazemos com respeito à educação e à reflexão, de uma maneira que nos permita viver. Porque senão não comemos.

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nossas ambições, desejos, vaidades. Mas podemos também usá-las para o viver democrático. Claro que devemos saber da teoria, mas devemos também refletir. Diz-se que se a teoria não se aplica na prática, algo está errado, e devemos revisar então. Mas não se faz isso, normalmente. A teoria diz que isso é assim e, se não dá certo, é porque não fizemos o suficiente. A teoria me diz o que posso perguntar e o que não posso perguntar. Portanto ela é limitante. A ideologia faz isso. JC: Em sua visão, quais são os fatores que ajudaram o ser humano a adotar uma postura exclusivamente utilitarista e depredatória com relação ao meio ambiente?

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“Nossa cultura incentiva a competição, que é em última instância a negação do outro. É preciso lembrar que somos, originalmente, seres amorosos. E, em essência, reconhecemos que a origem de nossas mazelas é simplesmente a negação do amar”

JC: Isso tem a ver com o que o senhor escreveu sobre os animais, por exemplo. Eles nascem com a expectativa de que o mundo vai suprir suas necessidades. E isso de fato acontece. Mas com o ser humano, ao contrário, isso não acontece na sociedade atual. Maturana: Exato! Como os animais, criamos uma expectativa de que o mundo irá nos acolher. Mas somos traídos. O modo de vida dentro do qual estamos imersos não possibilita que a natureza possa suprir todas as nossas necessidades – não apenas no sentido material, referente às nossas necessidades físicas, mas também no sentido emocional e afetivo. JC: Criamos centenas de teorias para tentar explicar tudo que nos cerca. Como você vê essa teorização em larga escala do mundo à nossa volta? Maturana: É preciso termos cuidado com tantas teorias, porque se nos apegamos a elas só vemos o que elas dizem. Podemos inventar teorias religiosas, políticas e econômicas e usá-las para justificar

Maturana: A resposta que vou dar vai de encontro às mesmas respostas que algumas teorias dão a isso. Mas não estou fazendo a minha resposta dentro de uma teoria, mas dentro do entendimento humano. Quando uma pessoa começa a pegar o que precisa do ambiente natural para viver, com mais velocidade que o meio repõe, a pobreza aparece. Quando a comunidade se encontra em pobreza, há conflitos. Por isso temos de viver de outra maneira. Os recursos são limitados e, a não ser que inventemos um modo de compartilhar, aparece a competição e a luta. E isso acontece quando a população cresce, o espaço fica pequeno, quando os ‘frutos do bosque’ são insuficientes porque há muita gente coletando. Por isso há luta. Nós temos que compartilhar – e a tecnologia ajuda um pouco nisso, por exemplo a tecnologia agrícola. Mas a tecnologia, sozinha, como a utilizamos hoje, não resolve o problema. Simplesmente atrasa a solução e a população continua a crescer.


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JC: E ainda adotamos uma postura destrutiva em relação à natureza… Maturana: Essa é uma errônea maneira de viver! Tem a ver com a cobiça, a ambição, a apropriação. E há teorias que justificam isso tudo! Inclusive teorias econômicas. O problema é quando nos apegamos muito a um modo de pensar e não refletimos sobre ele. Podemos citar o exemplo da Igreja Católica, que se opõe à redução da natalidade. Para ela, todas as crianças concebidas têm de nascer. Mas ela não pensa sobre a conseqüência disso. Não vê o problema que isso vai dar, com o crescimento da população. Uma coisa é considerar o aborto condenável, e outra coisa é se negar a qualquer educação sexual que permita regular a natalidade. É necessário mudar o pensar! JC: O nicho do homem atual é a cidade e, como você afirmou em outras entrevistas, nenhum ser vivo vê além de seu nicho. Essa pode ser uma explicação de por que a maioria das pessoas não faz muito conquanto à crise do clima e do meio ambiente? Maturana: O nicho humano são todos os lugares que habitamos: cidades e campos. O que acontece é que grande parte da população está na cidade. E ela precisa ser alimentada. A comida precisa ser transportada. Então, uma verdade sistêmica demonstra isso facilmente: quanto maior a população, maior o cultivo necessário. E mais longe se tem de ir para levar os alimentos. Assim, aparecem dificuldades que se expressam como dificuldades econômicas, mas que na realidade são sistêmicas. Então, o fato de as pessoas adotarem uma postura passiva e apática em relação à crise ambiental é com certeza uma cegueira sistêmica. JC: Temos então um entendimento restrito de nosso habitar? Maturana: Sim. Estamos restritos por desejos, idéias, ambição ou teoria. Suponha que existam dois filhos. Um quer ser rico; o outro quer viver bem, em harmonia com o seu entorno. O que quer ser rico orienta todas as ações a acumular riquezas. O outro orienta tudo à coerência sistêmica de sua harmonia de vida. O que quer ser rico gera pobrezas inevitavelmente. E gera uma dinâmica muito especial, que gera pobreza pela riqueza.

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JC: E como curar essa cegueira sistêmica? Maturana: Com a educação, com o entendimento. Implica criar um mundo de consciência, reflexão. Um entendimento do mundo que se habita. Só que a educação não é para já. Como uma estrela. Porque estudá-la? Porque se conhecemos as estrelas, sabemos como é o universo em que habitamos. Não estudamos a estrela por ser estrela, por ser bonita. Em geral se encontram pessoas que as estudam para aumentar o conhecimento humano, de nosso habitar. Isso pode ajudar no viver. Essa é a esperança. JC: E as religiões em tudo isso? Podem ser repensadas com essa visão de mundo que você propõe? Maturana: Depende do que você pensa como válido. A palavra ‘religião’ faz referência à palavra ‘religar’. Então são âmbitos nos quais as pessoas se juntam em torno de crenças ou de que pensam saber, de algo místico. No momento em que faço parte de um âmbito e não penso, não reflito, acabo cego. Esse é o erro de qualquer religião.

“O problema não é entre religião e ciência, mas entre religiosos e cientistas” JC: Qual deveria ser a relação perfeita entre ciência e religião? Maturana: A terra é muito maior do que é. Existem comunidades científicas, religiosas, políticas, todas separadas, com seres humanos com modos de pensar distintos. Então, a relação deve ser de entendimento recíproco para que possam se respeitar. E se dar conta de que pertencemos a um âmbito muito maior que a de nossa religião, biologia ou opção política. E que além de tudo que fazemos, nós convivemos, acima de tudo. Por exemplo, um jovem muçulmano escutou uma conferência nossa em Istambul e, logo depois, veio


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(Foto: Henrique Kugler)

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Humberto Maturana e Ximena Dávila surpreenderam o público curitibano com uma apresentação descontraída e bem humorada

falar com nós, bastante contente. Por que se deu conta de que podia harmonizar a ciência com a sua religião. Se deu conta de que não estavam em oposição porque dizem coisas diferentes. Mesmo que digam coisas distintas, desde que se respeitem, podem se conciliar. Posso ser muçulmano e posso ser cientista. Mas o problema não é esse. É que a ciência quer explicar o mundo que geramos e a religião quer gerar um espaço de vivência de acordo com certas normas. O problema aparece quando um deles quer ser hegemônico. O problema não é entre a religião e a ciência, mas entre religiosos e cientistas. Como vivo eu, cientista, em fazer ciência? Como vivo eu, como pessoa, na religião? Vivo de fanatismo, vivo de exigências do que outros pretendem ou vivo de respeito a outras pessoas que pensam o mesmo? O mesmo vale para o cientista. Como estou fazendo ciência? Quero manipular

ou quero apoiar o tratamento humano, gerando bem estar?

gerar uma nova convivência no que nós chamamos da era póspós-moderna, que coloca a ética JC: Tradições e filosofias do orienno centro da sociedade. Devemos te, como o Budismo e o Taoísmo, reconsiderar nossa compreensão que inclusive são citados no seu do viver humano e assumir os livro, teriam algo a nos ensinar? aspectos éticos decorrentes da Maturana: Tudo pode nos ensi- consciência de habitar uma culnar algo. Mas não devemos acei- tura patriarcal-matriarcal como a tar nada sem reflexão. Quanto às que habitamos – a qual é baseada tradições do oriente, podemos e em relações de submissão, medo, devemos escutá-las. Não apenas controle, poder, dominação e auaceitá-las, mas também refletir toridade. E apenas sementes reflexivas poderão fazer brotar uma sobre elas. nova dinâmica existencial. JC: Qual será seu próximo trabalho? O que farão, a partir de agora, o instituto e você? Henrique Kugler & Luan Galani Maturana: Vamos continuar traMatéria publicada em 27 de abril de 2009 balhando com a Biologia Cultural, no Jornal Comunicação Online, jornal o entendimento do ser biológico e laboratório do curso de jornalismo da Universidade Federal do Paraná. Disponível tudo que ele traz consigo. em www.jornalcomunicacao.ufpr.br JC: É possível, no futuro, retornarmos à sociedade Matríztica? Maturana: Não. Não se pode retornar ao passado. Mas é possível




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