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DE “SANTIAGO” A COUTINHO João Moreira Salles diz que “o essencial não é a verdade factual, mas a convicção do que é dito” no documentário
q O filme “Canções”, de Eduardo Coutinho q “Memórias de passagem”, de Marco Stroisch q O Leminski de “Ex isto”, de Cao Guimarães
editorial
Cinema além das incógnitas x e y
O LADO C atravessa o território da dualidade B versus A e alcança um lugar além das precárias antinomias do cinema experimental x mercadológico, contracultural x oficial, mundializado x local. O LADO C — um nome intuído pela produtora Flávia Person — nasce como o relato da terceira margem, de onde vêm João Moreira Salles e Eduardo Coutinho para discutir um cinema em que tudo é verdade, no contracampo em que os filmes não realizados (mas tornados reais por obra da intenção) nos cartazes da mostra “Meia-rampa” esboçam uma atitude criativa nem complacente e nem crítica, mas “borgeana”. De “Canções” e “Santiago” a “Memórias de passagem” e “Mulher azul”, ou do rascunho de produção de “Linha do mar” e “O relojoeiro” a um possível recorte do novo cinema em Santa Catarina, essa primeira carnação do LADO C avança, quadro a quadro, como instantâneo, ou como documento da arte sétima que procura renovar o texto (e o discurso) sobre cinema e audiovisual. Uma arte de tipo C que ousa levar o Descartes de Paulo Leminski para a luxuriante Amazônia — no filme “Ex isto”, de Cao Guimarães — e berrar: “Parto espaços como entre um aumento e um afastamento em cujos limites cai como luva a minha vertigem.” Dessa mesma espécie de espaço sem limites, e por iniciativa da Cinemateca Catarinense e do Fundo Municipal de Cinema de Florianópolis, surgiu este LADO C.
dezembro/2011
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Antonio Carlos Santos | Doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor no Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul). Cláudia Cárdenas | Mestre em Literatura pela UFSC, lecionou na Unisul. Roteirista e diretora, realizou os filmes “Road Movie” (2004), “Cruz e Sousa, a volta de um desterrado” (2007) e “Dispositivo cinematográfico — La beauté des images” (2011), entre outros. Fausto Douglas Correa Junior | Doutorando em História na Universidade Estadual Paulista (Unesp/Assis), é pesquisador em História da Arte e História do Cinema. Autor do livro “A Cinemateca Brasileira — das luzes aos anos de chumbo” (Unesp, SP, 2010).
FUNDO MUNICIPAL DE CINEMA
Iur Gomez Presidente Reno Luiz Caramori Filho Diretor de Comunicação e Difusão Natália Poli Diretora Financeira Flávia Person Diretora Administrativa
Cláudia Cárdenas Presidente Sulanger Bavaresco Vice-Presidente Sandra Ouriques Secretária
Diretoria (gestão 2011-2012)
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Conselho (gestão 2011- 2013)
Referência à arte cinética de Eadweard Muybridge e a seus estudos de movimento animal e humano que antecipavam o cinema, a sequência da capa de LADO C # 1 é parte da fotonovela “Desconstruindo Gabriela”, da artista Marina Borck, produzida numa oficina ministrada pela jornalista e fotógrafa Rosana Cacciatore. Ela cita “nu descendo a escada”, de Duchamp, que citava a mulher nua na escada de Muybridge. Cinema estático.
Marina Moros | Pós-doutoranda em Literatura na UFSC, ensaísta, fotógrafa e videomaker. Pedro MC | Cursou fases de graduação de Design Gráfico, Letras e Cinema. Trabalha com Design e Web desde 1994. Documentarista, dirigiu “Paisagem urbana” (2007), “Maciço” (2009) e “Entrelinhas” (2009). Ricardo Weschenfelder | Mestre em Literatura pela UFSC, publicou o livro “A linguagem do vídeo” (Ed. Garapuvu, 2009) e realizou os curtas de ficção “Jesus” (2005) e “Se eu morresse amanhã” (2009) e os documentários “Miramar, um olhar para o mundo” (2002) e “Hassis — uma autobiografia inventada” (2006).
é uma publicação da Cinemateca Catarinense — ABD/SC e Fundo Municipal de Cinema de Florianópolis (Funcine)
CINEMATECA CATARINENSE
O LADO DE FORA DO C
LADO C Dennis Radünz Edição Patrícia Galelli Edição (assistente) Ayrton Cruz Planejamento gráfico Denize Gonzaga Revisão Flávia Person Natália Poli Coordenação Gabi Bresola Assistente de Coordenação
Cláudia Cárdenas Flávia Person Natália Poli Ricardo Weschenfelder Conselho editorial Cinemateca Catarinense Travessa Ratclif, 56 Centro — Florianópolis/SC Telefone: (48) 3224-7239 Funcine (Fundo Municipal de Cinema) Rua Antônio Luz, 206 — Forte Santa Bárbara Centro — Florianópolis/SC Telefone: (48) 3224-6591
DOCUMENTÁRIO
Eduardo Coutinho testemunha em “Canções” as confissões programadas da pessoa comum
Memórias além da verdade/mentira Marina Moros e AntOnio Carlos Santos
“C
ada memória apaixonada tem suas madalenas”, escreve Cortázar. Em “Canções”, novo filme de Eduardo Coutinho, o motor é a música. “A música ajuda a memória a mentir”, justifica o documentarista que esteve na Universidade Federal de Santa Catarina, em outubro, participando da 5a Semana de Cinema da UFSC. Faca só lâmina, Coutinho desarma o mito: “ora, quem acredita que o que ela conta aconteceu mesmo? Claro que é mentira”. Num palco de planos fixos já ensaiado em “Jogo de cena” (2007), os gestos e as músicas de uma memória inventada recriam no documentário as personagens e temas das canções: mulheres traídas, conquistas, perdão do pai. Não é exatamente a singularidade das histórias contadas o que nos comove no filme de Coutinho, mas sua curadoria das afeições. “Essa é a minha homenagem ao melodrama”, diz o cineasta que relutou em falar sobre o filme, já que o que estava prevista era a apresentação de “Um dia na vida” (2010), produzido por João Moreira Salles. “Vim para fazer essa exibição clandestina. Para debater o conceito. O que é um filme. Assistir isso na TV é uma coisa. Uma hora e meia de televisão na sala escura é outra. Na verdade, para vocês é muito mais agradável ver um filme sentimental como o ‘Canções’”, disse, tentando evitar as perguntas da professora Cláudia Mesquita, da Universidade Federal de Minas Gerais/ UFMG, que conduziu o debate sobre “Canções”, o filme que ganhou prêmio de Melhor documentário no Festival do Rio 2011. “Um dia na vida” foi montado a partir de 19 horas de captação de imagens da televisão aberta e, como sua exibição esbarra em problemas legais, só é mostrado em universidades, sem muita divulgação, e sempre com o cineasta presente para os debates. O dispositivo espacial criado para “Canções” parece uma derrisão do próprio documentário: se em dado momento de “Jogo de cena” o mecanismo — mistura de relato com encenação — era tornado explícito com a mistura dos relatos de pessoas comuns, com as repetições realizadas por atrizes facilmente reconhecíveis e o emba-
ralhamento das fronteiras quando nos damos conta de que há atrizes se passando por pessoas comuns, em “Canções” o acidente acontece. O palco, a entrada e saída dos entrevistados pelas pesadas cortinas, a interpretação das músicas engendram a paródia e nos movem para esse outro lugar do testemunho: a memória forjada. Mesmo o enquadramento quase sempre aproximado — que impede o acesso a uma paisagem outra que a do minimalismo verbal criado pelo uso exclusivo da entrevista como estratégia narrativa — reforça a armadilha que Coutinho prepara para o espectador: a afeição do rosto tornado choro ou riso ou constrangimento ou balbucio nos aproxima e torna cúmplices de uma confissão programada que não deixa de ter um gostinho de déja vu. A repetição é aqui a ordem possível, o lastro. Consuelo Lins, autora do livro “O documentário de Eduardo Coutinho”, conta que, desde “Santo forte” (1999), o cineasta dispõe de algumas equipes que fazem a pesquisa das personagens e lhe relatam, antes da entrevista, suas histórias: “a seleção daqueles com quem o cineasta vai conversar é feita a partir de relatórios escritos, conversas com os pesquisadores e algumas imagens realizadas pela equipe. Coutinho só entra em contato com os entrevistados no momento da filmagem. Além disso, o entrevistado deve partir do princípio de que é a primeira vez que Coutinho está escutando o que ele diz”. Em “Canções”, Coutinho entrevistou quarenta e duas pessoas em sete dias. Dezoito aparecem na montagem final. O ACASO DIRIGIDO “Filmar o outro é confrontar a minha mise en scène com a do outro”, escreve o diretor e crítico Jean-Louis Comolli. Esse é justo o procedimento de filmagem de Coutinho. O método, esboçado em “Cabra marcado para morrer” (1964-84) — o clássico do documentarista, iniciado antes do Golpe de 64 e retomado vinte anos depois — e esgotado em “Canções”, é aquele próprio do documentário centrado na entrevista e na fala do entrevistado provocada e dirigida para um único lugar: o cineasta e sua opacidade.
Como avalia Jean-Claude Bernardet, “se, nos primórdios do cinema direto, a entrevista era uma tentativa de encontrar o outro, após a fase de criação dessa linguagem que se tornou automatismo, ela hoje remete mais ao cineasta do que ao entrevistado”. E Coutinho tem plena consciência da repetição e do esgotamento de seu modo de filmar; esgotamento, vale lembrar, que representa toda a trajetória de um autor que marcou como ninguém a forma documentário. Por isso também um certo tom ranzinza, uma má vontade de falar sobre “Canções”. Se nesse filme podemos ver ainda alguma coisa, é porque o acaso dirigido, se é possível pensar uma tal expressão, ainda produz em nós, espectadores, as surpresas que nos tocam: afinal, do clichê mais brega, Coutinho consegue sempre nos provocar em relação às questões teóricas que envolvem o documentário: verdade, mentira? Armação, lágrimas encomendadas? Espontaneidade, encenação? Questões que nos aparecem depois, já que “Canções” ainda produz em nós, espectadores, algum efeito. Na pior das hipóteses, o efeito de constatação de uma obra realizada que se arma com “Cabra marcado para morrer” e passa por “Santa Marta — duas semanas no morro”, “Boca do lixo”, “Santo forte”, “Babilônia 2000” e “Edifício Master” até “Jogo de cena”, para citar apenas alguns documentários. O forte de “Canções” é a encenação da memória, o jogo da memória reinventada a partir de canções que teriam marcado a vida das pessoas que dão seu testemunho; um testemunho, claro, de uma vida comum, de uma vida qualquer, de uma memória que está além da verdade/mentira e que só nos interessa como algo que salta do tempo e nos atinge sem que saibamos muito bem explicar porquê. Essa, a mágica de Coutinho, o dispositivo que aqui, depois de tantos anos de elaboração, se despede de nós, espectadores, através da canção. Um fecho em tom de melodrama com todas as cafonices que a vida nos brinda ainda neste início de século. Depois de “Canções”, só mesmo filmando a televisão.
Déa e sua canção: a música ajuda a lembrar-se de si
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entrevista
JOÃO MOREIRA SALLES
“Todo filme é um filme-limite”
T
oda entrevista é notícia de uma guerra particular. Notícia de uma batalha ôntica e íntima. João Moreira Salles, o autor de “Santiago” e “Entreatos”, resumiu suas perdições e procuras numa conversa na grama da Universidade Federal de Santa Catarina, onde participou da 5.a Semana de Cinema, e discutiu os limites da verdade no documentário, o modo como a câmera estereotipa a vítima nas narrativas de denúncia, a finitude, Eduardo Coutinho e Jorge Luis Borges. Relatos da vida no nicho do documentário, porque toda entrevista, no limite, é cinema. Entrevista concedida a Adriane Canan, Fábio Brüggemann, Flávia Person e Iur Gomez
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LADO C | Há dois anos você publicou um artigo na “Folha de S.Paulo” dizendo que o documentário vivia dentro de um gueto. Podemos resgatar essa afirmação? João Moreira Salles | Claro. Mas vou começar do zero, pois não lembro muito bem [essa afirmação]. Paradoxalmente, é muito difícil, no Rio de Janeiro, abrir o jornal, procurar a programação, e não encontrar um documentário, provavelmente brasileiro, em tela. O que não é verdade para outros lugares do mundo. Então, tem uma certa cultura do documentário no Brasil. O que talvez eu tenha dito, pelo menos o que me ocorre, é que — e isso é resultado de muitas conversas com Eduardo [Coutinho] — a gente ouve muito documentarista reclamar da vida e chorar pitangas. A história do gênero sempre foi essa. Quero dizer, o documentário sempre teve um público muito restrito. Jamais poderá competir com a ficção. Então, dizer que documentário não tem público é um pouco de redundância tola. Porque, de fato, ele não tem público e jamais terá público. O que não significa que ele deva se sentir à vontade no gueto em que está. Acho que tem uma diferença entre a palavra “gueto” e a palavra “nicho”. O documentário é um gênero cinematográfico de nicho. Assim como é o cinema experimental. Você não pode, enfim, embarcar no cinema experimental com a pretensão de levar milhares de pessoas às telas. Elas não irão. A mesma
coisa vale para o documentário, o que não significa que a gente não queira ampliar o número de espectadores. O gueto eu acho que é exatamente isso — uma postura ideológica de dizer: “Não. Nós somos um cinema para poucos e nós nos orgulhamos disso.” LADO C | Você acha que o exibidor também tem culpa? João | O documentário toca em questões que são mais incômodas. É muito mais fácil você distribuir o entretenimento do que a discussão. Eu não estou aqui querendo fazer nenhuma relação de gênero. Eu quero dizer que o documentário se equivale à poesia. A ficção é o sonho. O documentário está restrito ao mundo e às contingências do mundo real, das quais as pessoas querem escapar. Elas querem fugir disso. É natural. O que não quer dizer que o documentário não tenha arte e não tenha ficção. Coutinho é um que vive dizendo: “Se vocês acham que os meus personagens estão sendo espontâneos e sendo o que são na vida real, vocês não entendem nada do que eu digo. É atuação e teatro, mas é de outra natureza.” LADO C | Há ficção na sua construção? Como você trabalha com isso? João | Claro que tem. Essas fronteiras são grandes discussões teóricas no documentário. Eu não chego a dizer, como muita gente tem dito nos últimos anos, que essa é uma discussão superada e artificial. Não acho que
seja artificial. É importante saber que existe uma diferença, mas o espectador não precisa saber. De fato, para o espectador, tudo é cinema. Quem precisa saber, é essencial que saiba, e tem responsabilidade de saber, é o diretor. Para o diretor, nem tudo é permitido se ele está fazendo um documentário. Mas, se for diretor de ficção, tudo é permitido — pode encenar a tortura, o horror ou o caos, o que seja. Em documentário, não. E por uma razão: o filme tem consequências para as pessoas que participam dele, elas existem, e a vida delas corre em paralelo ao filme. E isso você jamais pode esquecer. Então, para o diretor, é essencial que saiba que está lidando com pessoas reais e que há consequências simbólicas pelas quais ele é responsável. Há diretores, extraordinários, que acham que o que estou dizendo é uma bobagem. Para eles, tudo é cinema e não há nenhum compromisso. [Werner] Herzog é um diretor desses. Ele acha que não há nenhuma diferença, nem para ele como diretor, nem entre documentário e ficção: tudo é cinema. O Herzog mente descaradamente e não vê nenhum problema nisso. E eu acho que ele tem razão, porque em relação ao espectador ele não tem pacto nenhum. O pacto de que, como é documentário, é verdade factual, é alguma coisa que existe na cabeça do espectador, mas que nunca foi contratado entre o diretor e o espectador.
Tem uma pessoa que diz o seguinte no filme dele: “Você tá me filmando aqui, você provavelmente acha que eu cheguei ao fim da linha e que eu sou o que restou. O fim do fim.” Quis dizer o seguinte: “Aqui, ao menos aqui, eu sou dona do meu destino. Eu era empregada doméstica em Copacabana. Eu acordava às quatro da manhã pra pegar três ônibus, chegar em Copacabana, pra ser maltratada pela madame, minha patroa, que mandava eu fazer ovos mexidos às onze horas da noite e eu tinha que voltar para casa. Dormia duas horas e voltava para lá, era uma vida do inferno. Aqui, eu decido meu horário, eu ganho meu dinheiro.” Saiu da escravidão. O que não quer dizer que ela esteja numa situação boa, mas é preciso ver e é preciso ouvir essa pessoa. Para
da descoberta do mundo tem muito mais possibilidade de se manifestar no filme dele do que naquele que já vai de régua e compasso, tendo esquadrinhado tudo e sabendo que filme vai fazer. LADO C | O Eduardo Coutinho não me parece muito preocupado se o personagem está expressando a verdade ou não... João | Para o Coutinho, todo mundo está dizendo a verdade. O essencial não é a verdade factual. Ela é, e deve ser, para o jornalismo. Para o documentário vale a convicção do que é dito, a verdade do enunciado. Se a pessoa diz com paixão, essa paixão é verdadeira. Uma grande história, dita sem convicção nenhuma, é uma história que não serve, que não vale, portanto ela é jogada para fora do filme.
entrevista
LADO C | Nesse caso, estamos abordando a questão ética. Às vezes o diretor se posiciona com certa soberba. Queria que você, enquanto diretor de documentário, falasse da sua reflexão quando está diante da personagem. João | Em conversa com Coutinho [no debate da 5.a Semana de Cinema da UFSC], as pessoas perguntaram o tempo todo, incansavelmente, e perguntam isso em qualquer outro lugar: “Como é que você consegue?”, “Como é que as pessoas falam?”. E não tem uma resposta mágica. É uma relação de um momento da filmagem, no momento do encontro, uma relação de iguais. Ele precisa desesperadamente que a outra pessoa dê a ele alguma coisa e a pessoa se sente desejada, que é o que todo mundo quer na vida, e é por isso que a pessoa diz. Não se sente usada, nem manipulada, mas percebe, talvez pela primeira vez, que de fato o que ela tem a dizer sobre sua vida — no cinema do Coutinho, vidas anônimas — interessa. Tem uma curiosidade no Coutinho que tem uma dimensão moral. É como se ele dissesse, sem dizer: “o que você tem a falar sobre sua vida me interessa profundamente. E eu quero te ouvir”. Pronto, basta! Não é fácil chegar a isso, porque, se você não consegue por estratégia, ou você desenvolve isso ao longo do tempo, porque essa é a sua visão de mundo e de fato as pessoas te interessam, ou isso é facilmente percebido pelo entrevistado. Por exemplo, você vai filmar um menino de rua no Rio de Janeiro e ele já sabe como deve se comportar diante de uma câmera, sabe o que a câmera espera dele — o rosto de uma vítima social — e como ele quer aparecer na TV, então é isso que ele faz para você. São pessoas que já aprenderam que é isso que a televisão quer e é o que a maioria dos documentaristas faz. A maioria dos documentaristas faz filmes de denúncia social. A denúncia social efetiva precisa de uma vítima social, portanto, você vai atrás da pessoa não porque você se interessa por quem ela é e pelas questões dela, mas para que ela cumpra o papel desse tipo social de vítima. O Coutinho não faz nada disso. Ele se senta em frente da pessoa, e quer saber coisas que jamais alguém se interessou, é o dia a dia, a vida afetiva, se ela ama... Um filme exemplar do Coutinho é o “Boca do lixo” (1992), sobre catadores de lixo, que são sempre a imagem buscada para representar a miséria. É o grau zero da dignidade. Quer dizer, vamos para o lixão para filmar a criança descalça, provavelmente catando lixo, e, se possível, colocar no quadro um urubu. Aí é perfeito! Quer dizer: “Um urubu e um menino, os dois disputando um pedaço de carne podre... É isso que a gente quer.” O Coutinho vai para esse mesmo mundo, mas sem fazer esse julgamento, e descobre que nesse lugar onde as pessoas só viam a miséria e a exploração, e, portanto, são as vítimas, também amam, se apaixonam, têm um sentido de beleza, cantam... O que não quer dizer, em nenhum momento, que não seja um lugar de sofrimento e de exploração, mas não é só isso. As pessoas são suficientemente inteligentes e têm uma imaginação suficientemente rica para, mesmo naquele lugar, inventarem formas de tornar a vida possível.
“Você vai filmar um menino de rua no Rio de Janeiro e ele já sabe como deve se comportar diante de uma câmera, sabe o que a câmera espera dele — o rosto de uma vítima social — e como ele quer aparecer na TV.”
você chegar a uma conclusão que, mesmo ali, há dignidade. Eu estabeleci, uma vez falando sobre isso, uma tipologia dos documentaristas, os com mapas e os sem mapas. Os com mapas já sabem qual o caminho antes de sair e vão para o mundo já sabendo mais ou menos o que o mundo pode dar. Colhem as imagens que confirmam aquilo que sabem de antemão. E, por outro lado, têm aqueles que saem sem mapa, no sentido de que tudo que acontece pode servir ou não, cabe escolher, embora estejam sujeitos a surpresas. Não estou dizendo que há uma maneira melhor ou pior de fazer documentário. Agora, sem dúvida nenhuma, o sujeito que vai para o mundo sem as respostas, enfim, sem saber de antemão o que vai encontrar, alguma coisa
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entrevista
LADO C | Há uma fronteira entre o ficcional e o não ficcional... João | É quase como se você dissesse: essa questão da fronteira não interessa, mas a força da narrativa. Essencialmente você tem que comunicar uma emoção, um afeto, uma alegria, uma tristeza, uma dor. Como documentarista, saber que é importante minar essa visão positivista do espectador. Eu acho que o Coutinho faz isso muito bem no cinema dele. Eu costumo dizer, e cada vez mais estou certo disso, que o Coutinho talvez seja o único cineasta em atividade no Brasil que possui uma obra. Tem vários cineastas brasileiros com filmes extraordinários, mas não compõem necessariamente uma obra. E no caso do Coutinho sim, pois existe um raciocínio sobre cinema que vai sendo tecido de filme a filme. LADO C | Quando assisti ao “Santiago” [documentário de 2007 de João Moreira Salles], não me interessou se o personagem existiu ou não, mas como você o construiu. E a primeira coisa que pensei foi em Jorge Luis Borges. Para
“Santiago nasceu na classe social errada, no século errado, no continente errado e no gênero errado: imagina o que era, na década de 20, ser homossexual e pobre numa pequena aldeia no interior da
Argentina.”
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mim, é um personagem totalmente borgeano: o modo como você o apresenta borgeano. João | Eu também. Borges estava na minha cabeça o tempo todo. E depois do filme pronto, Borges por quê? Para começar, é um personagem que confundiu a memória com a realidade. Ele não sabe mais direito o que é a realidade. É um personagem que reuniu o mundo todo num mesmo lugar: isso é o Aleph. Você tem a história universal naquele pequeno apartamento. E depois do filme pronto, Santiago já morto, o filme exibido, um dia eu estava com insônia e resolvi reler [o conto de Jorge Luis Borges] “O Aleph”. Subitamente me dou conta que quatro ou cinco frases que o Santiago diz e escreve são tiradas diretamente do Borges. Nunca me ocorreu que ele tivesse lido Borges. Ele leu Borges e ele glosou Borges sem dizer que era Borges. Como eu voltei ao filme treze anos depois [das primeiras tomadas], de fato, concretamente, eu não sabia direito o que estava vendo. Não sabia o que eu tinha pedido para ele dizer e o que ele dizia de um modo próprio. O que
foi ensaiado e o que era espontâneo... E não faz a menor diferença. Quais eram os planos da casa que foram cenografados, nada disso eu me lembrava. Então, eu estava na frente de um material que me confundia. E cheguei à conclusão que não fazia a menor diferença eu saber ou não, o importante era que aquilo virasse cinema, virasse um filme. LADO C | Qual é sua angústia? João | É a de todo mundo: encontrar um sentido. É por isso que eu fiz “Santiago”. É por isso que eu admiro tanto Santiago. Ele conseguiu, recebendo todas as cartas erradas do destino, inventar um sentido para a vida dele. Imagina um sujeito que nasce com tudo errado: na classe social errada, porque ele gostaria de ser aristocrata e nasceu numa família pobre. No século errado, pois gostaria de ter nascido na Renascença italiana e nasceu no século XX, que ele considerava bárbaro e selvagem. No continente errado — ele achava que isso aqui era uma miséria. Queria ter nascido na Europa, aliás, como a maioria dos argentinos, mas ele gostaria de ser europeu e certamente não estar no terceiro mundo. Ele nasceu no gênero errado. Você imagina o que era ser jovem, na década de 1920, homossexual, numa pequena aldeia no interior da Argentina, e pobre. Devia ser um horror! Dificílimo! E, no entanto, com tudo isso, ele tirou um coelho da cartola. Porque ele inventou essas genealogias do mundo aristocrático e isso deu a ele um sentido. Ele foi mais feliz naquela casa do que muitas pessoas que lá moraram e que eram donas daquela casa. Isso é uma mágica extraordinária, é uma inteligência extraordinária. Isso dá um sentido. Eu imagino que para quem tenha fé e religião talvez seja mais fácil. Para quem não tem é mais difícil. Como permanecer? O que justifica acordar de manhã e fazer alguma coisa? Essa é a minha angústia. A da permanência. LADO C | Até que ponto você se distancia da personagem? Pois em “Santiago”, por exemplo, além de ser diretor, você tinha uma relação afetiva. João | No caso do Santiago, isso é parte intrínseca do filme e da história. Ele é parte das minhas memórias, da minha infância e juventude, e de maneira misteriosa me influenciou muito. Então, não havia como ter uma relação que se restringisse apenas ao filme. Por que o filme fracassou da primeira vez que eu tentei fazê-lo? Por uma razão muito simples: não sabia que eu também era personagem. E tentei fazer um filme em que só ele falava, eu não. Em que eu construí um personagem sem tornar clara a relação, fundamental, afetiva, de classe, tudo aquilo que permeava nossa relação. Eu não existia no filme. Era um filme, ele falou de Borges, eu tinha lido Borges, e eu dizendo: “eu vou fazer um filme sobre um personagem borgeano. É Santiago, mas eu vou tratar o Santiago como se ele tivesse nascido em outro lugar. E eu nunca tivesse o visto, como uma ficção, uma construção”. E é claro que isso fracassou. Era artificial, não existia, era falso. O filme só passou a existir quando, treze anos depois, eu revendo o material, me dei conta do óbvio: eu era personagem também. A casa me representava, minha voz era presente e eu precisava incluir isso no filme.
a situação tinha mudado. Então, um abraço no [ex-ministro da Casa Civil José] Dirceu ou um tapinha nas costas do [ex-tesoureiro do Partido dos Trabalhadores] Delúbio Soares, pessoas que não tinham nenhum significado quando o filme foi feito, poderiam derrubar um presidente da República. LADO C | E como é a relação com a personagem no momento da filmagem? João | Por exemplo, toda vez que o Coutinho está na frente de um personagem, sabe que só tem aqueles dez ou quinze minutos para produzir alguma coisa e que, se não acontecer naquele único encontro, se perderá para sempre. Com essa consciência, há certo desespero, um bom desespero, de fazer com que tudo seja aproveitado. É como andar numa corda bamba sem rede de segurança. A conversa que pode
te ver”. Ao mesmo tempo uma dádiva daquele momento, o sublime e a tristeza. O sublime do encontro e a tristeza da despedida. Era ali e não seria em outro lugar. E isso é muito maravilhoso! E isso acontece em graus diferentes em todos os encontros que o Coutinho tem com seus personagens. LADO C | E isso acontece também com seus personagens? João | “Santiago” eu tentei fazer quando tinha 31 ou 32 anos e, em parte, o filme também fracassou porque eu não entendia a questão da passagem do tempo, que era um elemento crucial para o Santiago. Por que ele repetia aqueles nomes em voz alta? Por que é que fazia aquelas listas? Era uma tentativa de segurar o tempo. Uma concepção quase grega de morte. Quer dizer, enquanto a pessoa é lembrada,
na tela. A relação da pessoa projetada na tela com a que você filmou, de carne e osso, para o documentarista, é sempre de diminuição na experiência. Você transformou a pessoa em outra coisa e, portanto, você tem responsabilidade sobre essa transformação. Eu tive uma experiência com o filme do Lula [“Entreatos: todos os homens do presidente Lula”, 2004]. Porque ele foi feito e levei um ano e meio para montá-lo. O filme estreou, as pessoas viram, ele cumpriu seu ciclo. Aí, cerca de seis meses ou um ano depois, estourou a história do mensalão. Então houve uma campanha do DEM para que o filme voltasse a cartaz. O Cesar Maia queria impetrar um mandato judicial para me obrigar a exibir — seria o único caso no Brasil [de obrigar judicialmente a exibição de um filme]! Ele acabou de resolver o problema do cinema brasileiro! Todo mundo reclama de não ter espaço para exibição e, se isso se tornasse uma coisa corrente, seria deslumbrante. Todo filme é obrigado a estrear e ser exibido num circuito amplo! Eu não permiti, evidentemente. Mas por quê? Porque
ser repetida várias vezes não tem o grau de drama e de intensidade. No caso do Coutinho, há essa consciência muito clara — acontece agora ou nunca mais. Acompanhei as filmagens de “O fim e o princípio” [de Eduardo Coutinho, 2005] no interior da Paraíba, e isso foi levado às ultimas consequências. O Coutinho não tinha pesquisa nenhuma. Tocava na casa das pessoas, que eram geralmente velhas, e elas abriam a porta. Ele sabia que era ali que aconteceria alguma coisa. Era um filme sobre velhice e morte e aquelas pessoas de oitenta ou noventa anos morreriam logo depois — como várias morreram — e o Coutinho também é uma pessoa de certa idade. Então, havia um componente quase erótico, no sentido do amor que se estabelece nessa relação do entrevistado com o entrevistador. Teve uma personagem que ele se aproximou quase que fisicamente. Há uma atração, que não é atração sexual, mas no sentido de pensar: “o que você está me dizendo é tão bom, tão bonito, tão maravilhoso que eu tenho uma gratidão eterna por você e eu nunca mais vou
ela não morre. O maior horror do herói grego não é morrer no campo de batalha, mas é não ser lembrado pelo poeta. Enquanto Aquiles for lembrado por Homero, viverá para sempre. Quando você morre no mundo grego, atravessa o rio do esquecimento [Letes]. O Santiago tinha isso na cabeça dele. Aquelas pessoas eram importantes para ele, então [as] conservava vivas na memória. Está ligada à ideia de que as coisas passam, as pessoas morrem, o mundo muda. Quando se tem um pouco menos idade, entende-se isso intelectualmente, mas não está nas vísceras. Então, “Santiago” só se tornou possível quando estava com 42 ou 43 anos, quando essas questões [do esquecimento e da finitude] começavam a existir dentro de mim. De fato, todo filme é um filme-limite.
entrevista
Não há uma lei universal e eu diria que, se talvez existisse uma lei universal sobre a relação com personagem, ela se resumiria ao seguinte: a relação que você tem com o personagem se restringe ao filme e não à vida. Se você tiver a obrigação moral de ter que se relacionar com todos que você filmou, fora do filme, a sua vida acaba. E, de fato, tem que haver uma consciência que a pessoa que você filma se transforma em outra coisa na hora que o filme fica pronto. No primeiro momento, ela é a pessoa que você aperta a mão, sente o calor do hálito, está no mesmo ambiente. Depois ela se torna uma imagem no viewfinder. Já tem um grau de separação nisso. Então ela se torna um material bruto na ilha de edição e fragmentos de pessoas que você começa a remontar na ilha. Depois ela se torna um filme projetado
(Depois da entrevista, João Moreira Salles seguiu para o jogo Avaí X Bogafogo, no estádio da Ressacada. O Avaí venceu por 3x2)
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“MEMÓRIAS DE PASSAGEM”
Curta de Marco Stroisch revisita o campo de corvos da Ditadura Militar e liberta o novo cinema catarinense da ilusão moderna
Intenção e movimento
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Pedro MC
ensar sobre um filme, para mim, é um exercício de concatenação entre intenção e contexto. A obra vai, mesmo sem querer, movimentar símbolos relacionados ao seu tempo, cabendo à crítica a especulação sobre o espetáculo. Cabe-me encontrar subtextos. Um dos expoentes do novo cinema catarinense, Marco Stroisch imprime em seu último curta-metragem “Memórias de passagem” (2011, 15min, 35mm, vencedor do Edital Catarinense de Cinema e Prêmio Funcine Armando Carreirão 2008) uma certa plasticidade em torno de um tema violento. Pode-se perguntar se a plasticidade tem veleidades de criação autoral, ou seja, se o diretor intenciona utilizá-la gramaticalmente numa narrativa cinematográfica clássica ou pós-moderna. Dessa forma — e conteúdo — pretendo perceber qual caminho trilha o cinema realizado aqui. O primeiro plano abre com um suave traveling para a esquerda, numa pan vertical. A câmera vem do chão, subindo das ruas, pessoas passando em primeiro plano. A narração em off já na abertura indica que temos aqui um distanciamento. Um olhar de aproximação é sugerido pelo movimento de câmera. Algo está para ser revelado. Desvelado por trás das folhas impressas o rosto do personagem Nilton, interpretado por José Ronaldo Faleiro, lendo um jornal. Ao fundo, a figueira da praça XV compondo uma moldura ramificada e flutuante. A árvore encerra inúmeras significações no campo simbólico. Uma delas é que todo o passado, presente e futuro se encontram nos ramos e caminhos. Nesse primeiro plano, a intenção do autor não evidencia essa busca pelo símbolo, mas acaba a imagem ela mesma se achando. A figueira por um momento deixa de ser significante inventado da cidade pitoresca, emergindo como símbolo universal, uma árvore apenas, complexa. O caminho é dado pela direção da manchete de jornal, no segundo plano em over shoulder: “Encontrada ossada de desaparecidos políticos.”
Penso que Marco Stroisch joga num simbolismo entre planos do real e da ficção, contaminando, mesmo que em nível interno, a percepção expressiva sobre o tema. Na manchete do jornal, é ele mesmo na foto que representa um dos militantes de esquerda mortos pela Ditadura. Essa indicação demonstra que o autor/diretor/produtor/montador traz uma história que é apenas uma ficção, sem inspiração em personagens reais, mas que significam um momento atual, dentro de um exercício de inspiração sobre a recente história da sociedade. O distanciamento proposto pela narração em off no início reafirma que o protagonista da história é outro. Não reconhecemos essa alteridade pelo que já foi dito no conjunto audiovisual até agora em Santa Catarina, mas numa espécie de ruptura de uma continuidade. Vale lembrar que num especial de tv sobre o Grupo Sul, Stroisch personificou um dos integrantes (o filmador de imagens, Armando Carreirão). E, numa obra recente, traduziu aos dias atuais o imbróglio do famigerado primeiro-longa-metragem-inacabado-do-grupo-sul, “O preço da ilusão”. O que o motiva, no entanto, a escrever, dirigir, produzir e montar um filme sobre a Ditadura? A descontinuidade do nosso cinema pode ser uma resposta. Mas será que a tradução dessa disruptura também se dá pela linguagem? Sua busca pela memória encontra uma intenção. Não é no cinema feito em Santa Catarina que ele se inspira, mas na criação sobre a descontinuidade. Jogando contra a tradição de filmes ruins, o curta “Memórias de passagem” traz uma narrativa cuidadosa e alicerçada no primor técnico de produção, como demonstra o plano a seguir com o título do filme. A câmera elevada gira em sentido horário, a mesa de dominó e os jogadores num ponto de vista, digamos, de um relógio, do tempo. A escolha do artifício inscreve o filme de Stroisch na estética pós-moderna, se levarmos em conta que a gramática narrativa
da ficção catarinense ainda sente o preço da ilusão “moderna”. E aí o movimento de câmera se torna mais importante que a própria motivação. Mas esse movimento é isolado e o filme encontra caminhos que às vezes destoa pela “narração do texto” pelos atores e outras vezes ganha força pela dinâmica eficaz da montagem. Inserção de plano em que o torturado ofega, de cabeça para baixo. Não cabe psicologizar a intenção do autor, mas como mídia de expressão, o torturado transmuta, talvez, a situação dele próprio como produtor de cinema catarinense. Numa metáfora forçada, a ruptura por opressão.
“Jogando contra a tradição de filmes ruins,
‘Memórias de passagem’ traz uma narrativa cuidadosa e alicerçada no primor técnico de produção.” Lembro do pôster do filme Novembrada (1998), de Eduardo Paredes, lindamente desenhado por Rodrigo de Haro, a figura do enforcado, de cabeça para baixo. Extrair da memória insumos para a criação tem vindo de um estado de dor coletiva, que de alguma forma se traduz em “Memórias de passagem”. Com pouca tradição, o cinema daqui não rompe, porque não há com o que romper. Sente na pele a dificuldade de encontrar um caminho contemporâneo. Essa tradução só é válida levando em conta o contexto do novo cinema
“MEMÓRIAS DE PASSAGEM” catarinense (e o que é ser catarinense? o imaginário tem fronteiras?) O contexto é o mesmo que leio num exemplar da publicação “Cinesofia”, de 1994, revista editada por entusiastas que escreveram sobre a importância de realização de editais, programas de distribuição, de fomento estatal. É o que seria conivente propor novamente, pois a disruptura (a falta de tradição cinematográfica) gera continuidade. O que a linguagem não traz, em seu bojo, é um exercício maior de experimentação, ou um exercício mais amplo. E o corte é na carne. No jantar, o bife sangra, o presente encarnado pelo neto ganha uma pan vertical, enquanto lê um livro infantil, “Quem vai ajudar o lobo mau?”. O movimento vai para o alto e para os corredores. Corta para o porão com a sessão de tortura. Escuro, água jorrando. Presente, sessão de análise, quadro “O campo de trigo com corvos”, de Van Gogh. Ramos e caminhos. O do meio, sem saída. Corta para rua Fernando Machado com grande profundidade de campo e distância focal curta, o personagem em profusão — ou memórias em foco —, até
diminuir oprimido pelas linhas de fuga sem saída. Dois anos de análise sem falar nada. Caminhar para onde? “Eis-me, portanto, sozinho na terra, tendo apenas a mim mesmo como irmão, próximo, amigo, companhia” é o início do livro “Os devaneios do caminhante solitário”, de Jean-Jacques Rousseau, que o personagem Nilton observa com frequência na vitrine de uma loja. Um casal o reconhece na rua e, com entonação incômoda, calcada numa métrica insistente de “falar manezinho” de quermesse, a câmera se move novamente. Flui sobre o antigo parreiral da praça XV com os petit pavês desenhados por Hassis se movendo como ondas. As pessoas passam pela rua, mas o som não é o da rua, é violino e piano clássico quase lírico, sobre um personagem épico e raso. Sua intenção está ali, a confrontação com o passado. As ondas do balde de tortura ecoam e refletem assimétricas. Voltam os flashbacks. Do double de zero no dominó de hoje para o jogo no passado. Double de nada? O que restou a Nilton depois de tanta violência? Qual violência?
O livro de Rousseau como objeto faz sentido agora quando a lógica do oprimido é reviravoltada. Trazer do passado memórias doloridas também inflige dor ao algoz. Qual o papel de Nilton na Ditadura? Vamos colocar ele representando a memória coletiva deste nosso estado, talvez? Em contraponto com o algoz confrontado em “Um tiro na asa” (2005), de Maria Emília de Azevedo, Stroisch compõe uma narrativa que consegue não deixar o personagem se transformar num tipo, tornando-o redondo. Essa intenção indica na cena final que o algoz vive, que o que existe de continuidade é, a meu ver, uma permanente violência do estado perpetrada ao produtor cultural. Não há mais o que extrair do passado como referência, e antes de partir para o novo é preciso mostrar que a aflição está ali presente, na memória, na rua. Cabe ao cinemanovistas catarinenses, como Marco Stroisch, encontrarem um caminho para a expressão audiovisual contemporânea, rompendo com receitas já não tão modernas. “Memórias de passagem” parece ser um ponto de partida.
O carrasco analisado: Nilton (José Ronaldo Faleiro) revive sessão de tortura
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exposição
rnando Weber | Marina Borck | Aline Dias e Diego Rayck Augusto Benetti | Bil Lühmann | Corpo Editorial | Jessé rres | Jimson Vilela | Jorge Luiz Miguel | Kamilla Nunes | ra Monteiro | Leandro Pitz | Leticia Cardoso | Lucila vilela Marcos BG | Marina Moros | Natália Cardoso | Pedro MC | iscilla Menezes | Radji Schucman | Rodrigo Poeta | Ruth eyer | Teresa Siewerdt | Fernando Weber | Marina Borck line Dias e Diego Rayck | Augusto Benetti | Bil Lühmann | rpo Editorial | Jessé Torres | Jimson Vilela | Jorge Luiz guel | Kamilla Nunes | Lara Monteiro | Leandro Pitz | ticia Cardoso | Lucila vilela | Marcos BG | Marina Moros Natália Cardoso | Pedro MC | Priscilla Menezes | Radji hucman | Rodrigo Poeta | Ruth Steyer | Teresa Siewerdt
Meia-rampa Cartazes de filmes inventados
Marina Borck
A
exposição “Meia-rampa” partiu do convite feito a artistas criarem cartazes de filmes que não existem, sendo seu conteúdo, forma de construção e design livres. Filmes ideais, autobiográficos, etéreos, escrachados, infanto-infinitos, fotonovelísticos, com cara de road movie, cara de road movie a pé, rancorosos, românticos, literários, descrentes, e aqueles onde o filme acontece só nos créditos. A exposição aconteceu em junho de 2011, instalada na rampa de acesso principal — do Centro de Cultura e Eventos da UFSC — ao 15.o FAM (Florianópolis Audiovisual Mercosul), intervindo no espaço de passagem dos espectadores ao festival. Os cartazes eram reorganizados diariamente criando um fricção entre a real programação e a promessa dos cartazes anunciados, permitindo uma construção de sentido coletiva sobre o material proposto.
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Corpo Editorial
Fernando Weber
Aline Dias e Diego Rayck
Augusto Benetti
Bil Lühmann
Corpo Editorial
Jessé Torres
Jimson Vilela
exposição Jorge Luiz Miguel
Kamilla Nunes
Lara Monteiro
Leticia Cardoso
Lucila Vilela
Marcos BG
Leandro Pitz
Marina Moros
FICHA TÉCNICA Concepção, curadoria e montagem: Maíra Dietrich, Eloah Melo, Pedro MC e Reno Caramori Filho. Realização: Associação Cultural Panvision.
Marina Moros
Natália Cardoso
Pedro MC
Priscilla Menezes
Radji Schucman
Rodrigo Poeta
Ruth Steyer
Teresa Siewerdt
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SESSÃO COMENTADA
“Tenho comigo uma espera que não sai. Caminho e ela vai junto”
Mulher azul
“A
mulher azul” da novela homônima de Renato Tapado (Ed. Bernúncia, 2002) tornou-se a “Mulher azul” (2011), de Maria Emília de Azevedo, o curta vencedor do edital Cinemateca Catarinense/Fundação Catarinense de Cultura de 2007. A passagem do texto à tela foi tema da conversa da “Sessão comentada” do Cineclube Pitangueira — em 18 de outubro, na Casa das Máquinas, Lagoa da Conceição —, em que a diretora relatou também a experiência de filmar em Arles, no Sul da França, e conviver 24 horas por dia com as cinco pessoas da equipe de produção na própria casa das locações de “Mulher azul”. Maria Emília de Azevedo rememora: “A gente não sabia, mas a trajetória da equipe foi também a trajetória da personagem: sair de um lugar e ir para outro sem saber o que vai acontecer.” participaram desta sessão: Cláudia Cárdenas, Fábio Brüggemann, Flávia person, Gabi Bresola, Iur Gomez, Luiz Colares, Maria Emília de Azevedo, Natália Poli, Rafael Schlichting e Rosana Cacciatore
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Iur Gomez | Maria, a impressão que eu tenho é que você foi bastante fiel à obra do Renato Tapado. Há um momento em que você deixa a literatura dele? Maria Emília de Azevedo | É bastante interessante a questão da adaptação do livro porque, na verdade, não é a adaptação de uma obra, mas de um texto. Utilizamos o texto poético e criamos algumas situações que não estavam na criação do Renato para essa personagem, transpondo essa linguagem literária ou poética para a cinematográfica. Cláudia Cárdenas | Qualquer interpretação não é definitiva já como leitura. Passando para outro meio, é outra coisa sempre! Maria | É outra coisa e nós colocamos outras mais. Só quando houve a oportunidade de ir à França que eu comecei a entender a festa, apenas induzida no texto do Renato. Em outro país, a festa teria o sentido mais antropológico, o de entrar em ambientes, ver as pessoas daquele lugar, suas emoções, as comidas, conhecer a música. E, aí sim, câmera na mão: quisemos quebrar a rigidez da fotografia, que é a da personagem. Iur | Sempre pensei que esse azul não fosse uma cor, talvez eu continue completamente equivocado. Não sei se os azuis do filme me incomodam, ou não, mas me fazem questionar
bastante. Ela veste maiô azul, na primeira cena está coberta por um lençol azul... Maria | O [diretor de fotografia de “Mulher azul”] Charles [Cesconetto] mostrou, há duas semanas, o filme em Marselle e uma das observações que fizeram é que esse é o filme da “Côte d’azur”. Acabei assumindo isso, embora saiba que o azul nesse caso seja relacionado a um estado emocional, de alma. Fábio Brüggemann | Maria, a maioria das pessoas tem como uma adaptação literária a ideia da literatura que tem um enredo, uma história, um acontecimento. O texto do Renato não tem absolutamente nada disso. “A mulher azul”, para mim, desde quando li, é uma mulher de palavras, não é real. É o Renato travestido em linguagem. Se o poeta é aquele que se transforma em linguagem, para mim é o Renato de saias. Falo isso na minha interpretação como leitor. A obra me dá esse direito. Ela é uma mulher falsa porque não menstrua, não mostra o seio, não trepa. Você falou, numa outra ocasião sobre sua relação com a coisa pictórica, ou seja, você deixou o cinema um pouco de lado e fez um filme de quadros. Transformar o filme numa questão pictórica não seria a solução para esconder a falsidade dessa mulher? O outro ponto é algo técnico para mim. Acho que faltou uma espontaneidade na narração. Não
na narrativa, e sim, na narração. Você teve um desafio enorme, talvez o pior possível, que foi pegar uma obra que não tem uma narrativa... Maria | Um texto poético. Fábio | Sim, mas parece que você quis preencher com imagem um texto que não é visual, mas para dentro, literário. Em alguns momentos ele parece um audiovisual mesmo, uma imagem com um texto. Não seria pelo modo de narração da atriz? E se você resolvesse não incluir o texto, se você esquecesse completamente dele? O [Akira] Kurosawa foi adaptar Shakespeare e esqueceu Shakespeare! Ele pegou, leu, enfiou na gaveta e fez o seu próprio Shakespeare [em “Ran”, 1985]. Maria | É por isso que eu defendo que esse roteiro é adaptação de um texto e não de uma narrativa. Quando adaptamos um conto, um romance, no sentido de que se tenha uma narrativa, optamos por incluir ou não determinado acontecimento, ou até criamos outros acontecimentos. Nesse caso, adaptamos um texto e criamos algumas situações que não existiam. Talvez essa condição de mulher falsa esteja lá porque, de fato, não há acontecimentos. É a adaptação de um texto poético e não de uma obra literária, o que envolve certa diferença. Cláudia | O que me incomoda no filme, como mulher, é a situação de carência. Essa mulher
Luiz | Uma coisa que muito me chamou a atenção foram os quadros. Quando você falou que quis mais fazer pintura do que cinema, era isso mesmo! Tinham quadros belíssimos ali! Você fez mais uma adaptação: a pintura dentro do cinema. Maria | Num determinado momento, quando viajávamos de trem para Arles, olhei para a Patrícia [Teotônio, atriz] e vi [Amadeo] Modigliani nela! Tem inclusive um momento em que ela desloca o pescoço, não sei como faz isso... Fábio | É engraçado, Van Gogh morou em Arles. Maria | Foi muito legal a identificação do rosto angulado dela com essa lembrança. Claro que reforçou ainda mais o retrato para mim, que sou apaixonada por Modigliani. E tem um momento, no início do filme, que ela não fecha o olho e também não o deixa aberto, mas o mantém exatamente na altura das pinturas do Modigliani. Iur | Isso foi sua orientação ou acaso? Maria | Foi acaso. Quer dizer, o que fizemos foi identificar isso e, como já vínhamos no desenho de trabalhar com retratos, ficou mais próximo. Claro, não foi acaso o enquadramento, fechar o quadro como Modigliani faz, o cabelo — eu pedi para que ela o prendesse em alguns momentos para reforçar a imagem do pescoço alongado dela. Mas o momento do olhar foi emocionante! Estávamos ali na câmera e ela fez o olhar exato! Rafael Schlichting | Ela viu a referência? Maria | De pintura, não. Geralmente trabalho referência de pintura com o fotógrafo e tiro toda a referência imagética do ator. Cláudia | E o roteiro, você dá? Maria | Dei o roteiro e tirei. Talvez seja uma incompetência de direção minha, mas acho muito difícil dar referência de imagem para ator e depois não ter problemas. Instiguei a melancolia, forcei para que viesse à tona. Nós todos da equipe temos uma amizade de muitos anos e ela estava entrando naquele grupo. Na casa, ela ficou instalada num quarto, que era também o da personagem, sozinha. Os outros estavam sempre em dupla, pela acomodação. Ninguém se aproximava muito dela. Natália Poli | Foi você que escolheu o texto e convidou o [roteirista] Marcelo [Esteves]? Maria | Estávamos escrevendo “Um tiro na asa” e nos encontrávamos todos os sábados num desses cafés da Lagoa. Num dos dias, imediatamente propus a adaptação de um texto. Na mesma hora o Marcelo disse saber que o texto era “Mulher azul”. Foi algo muito legal a coincidência, essa coisa que a gente não sabe por onde passa, essa comunicação, essa metafísica! Ele ficou muito feliz em adaptar esse texto sem narrativa. Fábio | Mas existe uma narrativa. O texto não tem, mas o filme tem. Maria | Sim, a gente criou uma certa narrativa. Fábio | Tem começo, meio e fim, você percebe toda a situação. Cláudia | Uma narrativa pode não ser linear, não ter começo, meio e fim e ainda ser uma narrativa... Rosana Cacciatore | Imagem é sempre narrativa.
SESSÃO COMENTADA
acaba sendo carente demais, na espera, isso me irrita! Mas o que me incomoda como leitora e realizadora é a interpretação do texto. Parece-me que ela não o compreende. As pausas são de meio de frase, parece que ela não está ali, sabe? Aquelas palavras não formam tecido com a atriz, sentimos que ela não entendeu o que está lendo. E isso até diminui a carga poética que o texto do Renato poderia acrescentar. Fábio | Algumas partes do texto poderiam ser ditas por um homem e não faria a menor diferença. Iur | É um texto humano, universal. Angústia, ausência e solidão são universais. Há momentos muito femininos e outros que são humanos. Cláudia | Mas é uma menina que está ali. O filme se chama “Mulher azul”. Fábio | Maria, me fala dessa intenção, desse ritmo quase que decorado. Maria | Eu optei por isso, Fábio, para não correr o risco de cair naquela coisa contrária. Fábio | Melosa? Maria | Exatamente. É muito difícil colocar essa questão da poética e da própria poesia, de uma maneira tão formal, digamos. A poesia falada, colocada verbalmente, pode ser muito perigosa. Fábio | É uma linguagem para ser lida. Poesia tem que ser lida, não dá para ser ouvida. [Stéphane] Mallarmé falava isso. Maria | Fiquei com receios de pesar demais para o outro lado e ficar piegas. Fábio | Ainda mais num texto em que o mais importante é a construção da linguagem e não aquilo que ele quer dizer. Cláudia | Sim, ele trabalha com a forma. Maria | Claro, isso é composição. Cláudia | Quem faz cinema também trabalha com o conceito do filme. Fábio | Acho ótimo que a intenção tenha sido essa! Não tinha pensado nisso ainda, de que o oposto poderia levar ao piegas. Cláudia | Ainda apostaria no meio termo, numa leitura. Daria mais trabalho porque é muito difícil encontrar ator que dê muito de um texto. Fábio | Não acho que seja uma adaptação. Uma adaptação se configura quando o texto é transformado. Maria | Concordo que tenha alguma outra coisa entre essa adaptação que você agora se refere, Fábio, e a adaptação livre do Godard, por exemplo, mas eu não sei o que é. Luiz Colares | De linguagem, talvez? Fábio | Mas a linguagem da poesia ainda está no filme. Cláudia | Acho que sempre é adaptação quando você passa um texto para o cinema. O nome é técnico. Fábio | Mas o texto do Renato está ali, intacto. Cláudia | Sempre é adaptação no sentido que não há como manter a literatura, você mesmo falou isso. Como que essa mulher azul, feita de palavras, vai virar a mulher de carne e osso? Ela se torna de carne e osso exatamente porque é sempre adaptação. Fábio | A imagem sim é uma adaptação, mas o texto está ali. Cláudia | O cinema não é texto. É preponderantemente um filme-imagem.
Maria | O que acho interessante, me distanciando um pouco da autoria, é que se trata de um recorte, num momento, de uma personagem. Talvez eu já estivesse um pouco cansada de fazer personagens pesados, no sentido de corpo mesmo, como o Cruz e Sousa [de “Alva paixão”, 1995] ou o Hector [de “Roda dos expostos”, 2001] que, embora não seja historicamente uma referência, tem um certo peso porque representa algo. O próprio Antônio, de “Um tiro na asa”, representa um tempo, uma geração, uma classe. E “Mulher azul” não representa nada. Apesar de trabalhar o feminino,
não representa o feminino. Não é uma feminista, mas também não sabemos quem é. Não é uma personagem fechada. Cláudia | Quase uma não-personagem. Maria | Sim, exatamente. Pode ser que, inconscientemente — e percebo isso agora, conversando com vocês —, eu já estivesse muito cansada das personagens que criavam uma grande pressão para dar conta delas. “Mulher azul”, talvez nesse sentido, tenha sido mais tranquilo. Para mim, como autora, não importa o que ela fez antes ou vai fazer depois. É um momento apenas.
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A via-crúcis da cultura cinematográfica
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FICHA TÉCNICA “Via-Crúcis” (1972), 16mm, 10’, p/b. Produção: Diretório Central dos Estudantes/ UFSC. Argumento, roteiro, fotografia, montagem e direção: Deborah Cardoso Duarte e Nelson dos Santos Machado. Som: Deborah Duarte. Elenco: José Henrique Moreira, Álvaro Reinaldo de Souza, Ester Bratting, Marcus Bratting, Olinda Machado, Vera Collaço, Nei Gonçalves e Yara Koneski.
Fausto Douglas Correa Júnior
dialoga com a tradição de seu campo e meio específico, ou seja, o cinematográfico. Assim como quase toda a produção experimental dos anos 1950/60, “Via-Crúcis” é fruto intimamente relacionado à circulação de filmes de arquivo, promovida pelas cinematecas e cineclubes do período. É difícil precisar quais teriam sido os filmes exibidos pelos cineclubes do Sul do país no período, mas alguns exemplos podem ser citados sem medo de erro: parte da produção das vanguardas francesas da década de 1920, do cinema expressionista alemão e do cinema soviético de Eisenstein, Pudovkin, Dovjenko, esses que estão entre as influências dos autores dos filmes “Via-Crúcis”, “Novelo” e “Olaria”. Mas os ci-
xistem gêneros cinematográficos cujas expressões caíram em certo desuso, caso dos chamados “cinema amador” e do “cinema experimental”. O fato é que muita história está por trás desses conceitos, histórias ligadas a certas concepções de cinema. Não por acaso o contexto que será comentado aqui — quando esses gêneros atingiram suas mais significativas expressões — marca também o início do segundo grande momento do movimento de cultura cinematográfica no Brasil (e no mundo): a cinefilia do pós II Guerra, estritamente ligada ao fenômeno do cinema moderno, do qual o Neorrealismo Italiano foi a primeira grande expressão. É possível enxergar tal florescência por trás de um único filme, “Via-Crúcis” (1972) — curta produzido em Santa Catarina pelo Grupo Universitário de Cinema Amador/GUCA, com direção de Deborah Cardoso Duarte e Nelson dos Santos Machado —, mas não o farei por meio da análise imanente, ou “comentário”. A ideia aqui é traçar um esboço histórico da conjuntura na qual o filme se insere, tendo como objetivo apontar as relações entre os diversos braços de um amplo e difuso projeto de sistema cinematográfico então em curso no Brasil, que, inspirado e inspirando movimentos de cultura cinematográfica semelhantes no mundo, tentavam estabelecer (e mesmo institucionalizar) modos de produção diversos daqueles dos quadros da grande indústria cinematográfica. Como bem ressaltou o historiador Henrique Pereira Oliveira, a pequena, mas importante, produção do GUCA estava estritamente ligada não apenas à renovação do panorama cultural de Florianópolis a partir do final da década de 1940 (cujos marcos principais GUCA em ação: Vera Collaço, Olinda Machado e Marcos foram a realização do I Congresso CaBrattig em cena de “Via-Crúcis” (1972) tarinense de História, em 1948, e a criação do Círculo de Arte Moderna/CAM), mas tam- neclubes e as cinematecas não se restringiam bém às mudanças da vida social na capital do a exibir tais filmes e eram, na época, o verdaestado a partir da reorientação das atividades deiro circuito alternativo de cinema no Brasil econômicas para o turismo e a industrialização (e no mundo), responsáveis — ao lado dos da pesca. A produção seria, assim, um retrato grandes festivais do período — pela difusão das disputas em torno de modelos de desenvol- do cinema moderno, do neorrealismo italiano, vimento para a região, entre a tradição local e o à nouvelle vague francesa, do cinema polonês avanço do capitalismo sobre essa tradição. No moderno ao cinema novo brasileiro, alemão, entanto, “Via-Crúcis” está longe de ser um fe- asiático e latino-americano. nômeno isolado e de se resumir a esse conflito Ao lado do trabalho de difusão de filmes, cultural, e somente consegue dar uma resposta tínhamos uma importante safra de críticos do ponto de vista da forma a esse mesmo con- (tais como Paulo Emílio Salles Gomes e Franflito, por perceber que esse transcendia o âm- cisco Luiz de Almeida Salles), que ajudavam bito local, sendo que parte fundamental dessa a dar organicidade e historicidade a todo o resposta diz respeito ao modo como o filme movimento, das cinematecas aos cineclubes,
dos festivais à crítica engajada (no sentido de ocupar o espaço público), sendo aqui preciso destacar o referencial local: a crítica de cinema publicada na revista Sul. E são as qualidades excepcionais de “Via-Crúcis” e de “Novelo” que levam a pensar os vínculos entre o local e o universal. Em rápida pesquisa na Cinemateca Brasileira (São Paulo), deparei com um oceano de referências e de documentação relativas a festivais de cinema amador no Brasil (e no mundo), que pode revelar todo um universo ainda a ser explorado por pesquisadores e produtores. Mais do que criar uma indústria cinematográfica, todo esse movimento visava à liberdade de um espectador cultivado por diversas referências da história do cinema apresentadas de forma organizada e acompanhadas dos mais diversos suportes de complementação (crítica, catálogos e publicações em geral). “Via-Crúcis” é, a um só tempo nesse panorama, causa e consequência desse processo.
CRÔNICAS DA DITADURA Assim como “Novelo”, “Via-Crúcis” representa a criatividade e a liberdade do indivíduo reprimido pelo meio hostil, ambas presentes na própria forma do filme, nos enquadramentos dos planos, no ritmo que alterna imagens fixas tomadas de diferentes ângulos, com câmera na mão, e balanços vertiginosos apropriados ao objeto enfocado: a angústia do meio opressor que arranca o couro e as unhas de proletários crucificados. Se “Via-Crúcis” enfoca um personagem pobre, um operário, “Novelo” mostra outro lado da moeda na deriva das aflições. De um jovem universitário que se sente sem perspectiva num mundo que lhe parece estranho e ameaçador. O cenário para ambos é a cidade de Florianópolis com seus conflitos e transformações, mas os dois filmes se tornam assustadores quando recordamos que foram realizados no início (“Novelo”, 1968) e no auge da repressão da Ditadura Militar (“Via-Crúcis”, 1972), momento sombrio da história, sobretudo no que toca ao (des)respeito às liberdades civis e aos direitos humanos, e por isso mesmo pouco afeito a esperanças, seja para um jovem trabalhador cujo couro era arrancado, seja para um jovem estudante universitário que entrava na vida adulta.
c de crítica
“A árvore da vida”, detentor da Palma de Ouro 2011, procura o Céu na vidência do real e encontra um Paraíso de catálogo de autoajuda
Cosmologia new-age
O
Ricardo Weschenfelder
cineasta norte-americano Terrence Malick acredita, como o teórico André Bazin, na verdade da imagem. Ou melhor, na revelação sublime do real na imagem. Mas como o Deus que falha, que abandona seus filhos, a natureza da imagem também possui suas artimanhas, seus equívocos. No filme “A árvore da vida” (2011), a crença na imagem entra em conflito entre a captura da transcendência do real e a criação de imagens artificiais. O texto do filme explicita — por meio da voz em off da mãe — a divisão de representação do mundo entre a Natureza, egoísta e tirana, e a Graça, bela e generosa. O discurso do cineasta oscila entre esses dois polos e, como seus personagens, põe em questão a fé na imagem verdadeira. O filme ganhou a Palma de Ouro em Cannes em 2011 e gerou debates polarizados na crítica que se dividiu entre a elegia visual e a megalomania filosófica. Não há dúvida de que o longa-metragem deixa a mesmice atual do cinema hollywoodiano, mas, convenhamos, não se trata de nenhuma salvação (para forçar a analogia religiosa) do cinema. Uma família nos anos 1950 que vive aparentemente o paraíso na Terra perde o filho mais velho e a partir daí vive o luto permanente. A narrativa despedaçada do filme alterna a
memória dos personagens em torno do núcleo familiar. Os vários pontos de vista e de tempos sobre o vazio deixado pela morte do filho escavam traumas e ressentimentos. O elo entre passado e presente parte do filho do meio. Ele vive em estado de culpa pela dissolução da família e descrente quanto ao mundo atual, em sua visão, ganancioso e predador. O filho trabalha em um grande prédio, moderno, de vidro, e vê a cidade lá de cima. Sempre está subindo no elevador, porém nunca alcança o céu. A Natureza venceu? A presença do pai é pesada, sobretudo, dentro de casa. O silêncio à mesa é ordem. Carinho e agressão se confundem aos olhos dos filhos. O domínio da mãe é o jardim, a liberdade demarcada. O pai é terra, força. A mãe, água e ar. As brincadeiras com a mangueira e o balanço são gestos maternos, descolados da matéria física. Quando o pai está fora de casa, pequenas subversões infantis são permitidas. Natureza e Graça em conflito. Em “A árvore da vida”, Malick aproxima — no conteúdo e na forma — formulações recorrentes a dois cineastas da segunda metade do século XX: Ingmar Bergman, através do tema da perda da fé, e Andrei Tarkovski, na busca pela metafísica da imagem. O que Malick coloca de novo é que aparentemente acreditando no realismo da imagem, o cineasta macula à sua linguagem imagens de
síntese (imagens geradas por computador sem referente da realidade) problematizando, assim, a natureza ontológica da criação de imagem. O cineasta — Deus no seu mundo ficcional — enquadra a vidência realista da imagem no enxame dos passarinhos voando entre os arranha-céus da metrópole, numa borboleta que dança em torno da mãe ou no balanço singelo da cortina ao vento. Em contraponto, surgem imagens artificiais do cosmos, de seres marinhos e até de dinossauros. O formalismo excessivo das imagens que buscam sempre o céu, a luz e a clarividência em movimentos de câmera que evocam espíritos que pairam sobre os personagens mais parece um catálogo audiovisual de autoajuda. O predomínio das cores azuis e brancas, as vozes off sussurradas e a música de coral completam a estética new-age do filme. O final do filme poderia muito bem caber numa obra espírita da franquia de Chico Xavier ou em um programa de final de ano da Rede Globo. Todos os membros da família se reencontram no Paraíso. As desavenças afetivas e remorsos do passado são reconfortados. A sensação, ao final dessa suposta viagem cósmica, é de vazio. Alguns, menos céticos, podem me aconselhar que o vazio promove reflexão e pureza de espírito. Para mim, trouxe, na real, esse texto descrente.
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ensaio
“Besteiras dessas bestas cheias de bosta, vítimas das formas em que se manifestam, tal qual lobriguei tal dentro das entranhas de bichos de meios com mais recursos. E os aparelhos óticos, aparatos para meus disparates? Este mundo é feito da substância que brilha nas extremas lindezas da matéria. No realce de um relance, sito no centro de um círculo, uma oitiva diminuta descreve uma dízima do período de ponto de vista definitivo. Vigiando, evidenciar-nos-emos.”
“Catatau”, Paulo Leminski
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ensaio
Ex isto, poesia em tempos de proconsumers
“E
Cláudia Cárdenas
x isto” é uma profusão de imagens absurdamente belas, contundentes, fortes. E, no entanto, não pode ser nunca chamado de um filme maneirista, ou de uma estética superficial e sem alma. Ao contrário, em “Ex isto”, Cao Guimarães parece encontrar a vocação do seu cinema, um ser para dizer o outro, para se dizer a partir do outro, para se contradizer contra dizendo o outro, a contra pelo, a contra imagem. Imagino Cao, maravilhado, nas locações amazônicas, bradando as frases de “Catatau” sem absolutamente dizê-las. Essa tarefa recai sobre mim ao resolver escrever para dizer o filme: “Palmilho os dias entre essas bestas estranhas, meus sonhos se populam da estranha fauna e flora: o estalo de coisas, o estalido dos bichos, o estar interessante: a flora fagulha e a fauna floresce... Singulares excessos...” Vamos dizer de uma vez, isto é outra história. “Ex isto” é uma obra cinematográfica que se apropria de “Catatau”, romance de Paulo Leminski. Não é literatura filmada, é cinema. As apropriações são da ordem não de uma adaptação da ideia que norteia ou desnorteia o romance, mas da ordem da canibalização do texto palavra. “Ex isto” é outra história. Cao Guimarães opera o princípio da antropofagia que o texto mesmo indica como caminho para ser devorado e torna imagem não uma cartografia imagética do texto de Leminski, mas sua digestão, o que empodera em imagem a obra de Cao. “Ex isto”, se o é, é com Leminski. Não a partir de, não sobre, mas com. Num processo de gestação de um nome que se faz imagem, que se gesta imagem. Ou como diz Leminski sobre o “Ex isto”, de Cao Guimarães (inversão que se permite no ato de pensar como dobra): “Narciso contempla narciso, no olho mesmo da água.” “Ex isto” se apropria do personagem René Descartes, Renato Cartesius, o que renasce outro em terras do pau-brasil e lhe dá um corpo-imagem. Em Cao, seguir Descartes em sua aventura em terras tupiniquins é criar este espaço tempo movimento que só existe no cinema. E no cinema de Cao Guimarães a perspectiva sempre é a do deixar ser. Seguir o personagem numa aventura de filmagens de apenas duas semanas e deixar ir, deixar ser, libertar, mas sem esquecer o quadro, o écran, matéria da arte cinematográfica. Ao seguir o personagem, o ator, livre de roteiros ou intenções pré-moldantes, pré-fixadas, repentinamente, ali, surge inteiro diante
de nossos olhos. Vemos o trabalho de busca do personagem, assistimos João Miguel vesti-lo, despi-lo, retomá-lo, emprestar seu corpo para que venha essa criatura que toma vida própria, trazendo à tona as questões não da literatura, mas do cinema, da reflexão sobre o cinema, ao mesmo tempo em que questiona as cartesianas certezas de tudo. Descartes, passageiro de um espaço-tempo estrangeiro, recriado para habitar a contemporaneidade da criação de “Ex isto”. Surgem as camadas de se filmar assim tão perto do real, a lente tão próxima, um narrador tão em primeira pessoa que, se não move os lábios, todo ele se move e pulsa e treme e vibra e vive perante a câmera. Dessas camadas surge o ator, essa superfície tantas vezes obscura do ato de representar. E ele deve surgir, é o que sugere “Ex isto”, é o que se deixa de ser para vir a ser outro. É o parto do personagem central de Catatau, é o parto do narrador de “Ex isto”. Cinema reflete. “Reflete e fica a vastidão, vidro de pé perante vidro, espelho ante espelho, nada a nada, ninguém olhando-se a vácuo. Pensamento é espelho diante do deserto de vidro da Extensão. Esta lente me veda vendo, me vela, me desvenda.” Cao Guimarães trabalha a montagem do filme de modo a inserir a busca do narrador/ ator pelo personagem/ser. De uma geografia desconhecida, parte barqueiro vendo a si mesmo em plano e contraplano num jogo de míriades de um olhar cada vez mais atônito com o deparar-se com o eu mesmo. Cao utiliza-se dos recursos da linguagem cinematográfica para explorar esta sensação do eu dilacerado ante um outro de tal magnitude de diferença que é ele mesmo redimensionado pela vastidão de um espaço tão outro e que tornar-se-á tão dentro. Uma viagem para dentro de si mesmo numa cartografia desconhecida, idílica, selvagem. E Cao segue as indicações de Leminski para criar as imagens da vertigem do personagem Descartes: “Parto espaços entre um aumento e um afastamento em cujos limites cai como uma luva minha vertigem.” E entre essas brechas espaciais surge nova camada onde estão os signos de um Brasil que se divide em suas imagens ícones: da arquitetura do poder — planos da arquitetura de Brasília; da arquitetura que é mais do que sintoma, marca da busca por um Brasil possível; do espaço urbano popular que concentra o imaginário da busca, na imagem da esperança do trânsito da migração em busca de uma vida melhor — a Rodoviária; da mata, rios, veias e coração da terra brasilis, representada pela fúria da natu-
reza — a Pororoca, dos mitos de criação brasileiros indígenas, afro, cristãos do batismo nas águas, ritos de passagem de um Brasil selvagem e sábio, indígena e negro, selvagem e urbano, ancestral e moderno. “Trago o mundo mais para perto ou o mando desaparecer além do meu pensamento: árvores, sete, um enforcado, uma vela acesa em pleno dia! Escolho recantos selecionando firmamentos, distribuo olhares de calibre variado na distância de vário calado.” Imagem ser tempo e movimento composta no ritmo de brechas especiais da montagem destas imagens mosaico de nossa cultura antropófaga e saborosa que vem com toda a força e exuberância tomar a tela inteira, tomar o personagem por completo, tomar o ator de surpresa, o entorno todo dentro. O cogito transforma-se de Penso, logo existo para penso, logo “Ex isto”. As certezas fluem para a imponderabilidade, para a não identificação. Se “Ex isto”, passo a flutuar na derivação do possível poético, da poesia de uma imagem ilimitada. Penso, logo deixo de ser isto para ser devir, vir a ser, sempre “Ex isto”. Possibilidade do diverso, da diversificação, da metamorfose contínua e vivaz do ser que se faz em relação com o outro. Antropofagia é inclusão. Em tempos de oportunismos temáticos visando sucessos de bilheteria, grandes distribuidoras garantindo profícua vida ao cinema nacional enquanto engendram esquemas de venda que chegam a nortear os roteiros e mudar os rumos dos desejos dos realizadores cineastas, nada mais profundamente próprio ao tema Diversidade e ao mesmo tempo tão longe de qualquer oportunismo e buscas por bilheterias pré-direcionadas, pró-consumidoras e indigeríveis. “Ex isto”, parte de um convite feito a Cao pelo Itaú para uma série de filmes sobre outros artistas, um trabalho de encomenda, portanto, e, no entanto, ou até mesmo por esse fato, torna-se um bom exemplo para pensarmos o que é um trabalho artístico em cinema. “Ex isto” é arte cinematográfica brasileira de excelência, pensamento vivo, cinema vivo, que se faz com o outro, sem certezas pré-formatadas, sem buscas por bilheteria ou hits de sucesso, um ato de amor genuíno. Como não se deixar tomar por inteiro quando o objeto é arte? Este milagre que só se opera na relação com o outro. Nesta época de mercado e proconsumers, dá mesmo vontade de gritar com Zé Celso, com Cao Guimarães, com Oswald de Andrade e com Leminski por uma antropofagia mágica que desperte uma busca menos óbvia e gere fomes outras para o nosso Cinema.
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LÁ DO CÊ
TEORIA E PRÁTICA D“O GATO”
Presidente da Cinemateca, Iur Gomez, anuncia Edital 2011
TRÊS MILHÕES SÃO REALIDADE O Edital Catarinense de Cinema foi aprovado no dia 13 de dezembro pela Assembleia Legislativa de Santa Catarina, em substituição à lei anterior, com uma série de alterações propostas pelo coletivo do audiovisual, representado pela Cinemateca Catarinense, entre as quais a desobrigação de finalização dos filmes em 35 mm. As categorias de premiação serão longa-metragem de ficção; longa documental; média-metragem de ficção; média documental; curta-metragem de ficção; curta documental; pesquisa e desenvolvimento de projetos de documentário e de roteiro de longa-metragem de ficção; e, ainda, curta-metragem de ficção e curta documental destinado a diretor estreante. O Edital 2011 foi lançado na cidade de Chapecó, na abertura da Mostra Nacional de Documentários Ó o Doc Aí, uma produção da Cinelo — Associação de Cinema e Vídeo de Chapecó e Região. No evento, a Fundação Catarinense de Cultura (FCC) assegurou o incremento de R$ 1,1 milhão no valor do incentivo, chegando ao total de R$ 3 milhões. A publicação oficial do Edital Catarinense de Cinema 2011 está assegurada para o mês de dezembro, com previsão de abertura de inscrições para janeiro de 2012.
A Novelo Filmes e o Fundo Municipal de Cinema (Funcine) promoveram, de setembro a novembro, a I Oficina de Realização Audiovisual, que abordou na teoria e na prática o processo de criação de um filme e selecionou, entre dezessete roteiros inscritos, cinco projetos para desenvolvimento. Cada equipe foi formada por diretor, roteirista e produtor e, pelo processo de ‘pitching’, foi escolhido para produção o projeto “O gato”, um suspense psicológico de Christiano de Almeida (roteirista), Juliana Basseti (diretora) e Neca Gamarra (produtora). O curta-metragem foi orientado pelos ministrantes da I Oficina e será montado pela Novelo, com apoio da Orbital Filmes e da Onda Sonora.
DICIONÁRIO: o ator Ivo Müller se vê no vídeo assistente
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TODO MUNDO QUER O QUEIJO
ESTRANHOS NA BIBLIOTECA
Entre os orientadores da I Oficina de Realização Audiovisual, destaque para Cíntia Dommit Bittar, diretora do curta de ficção “Qual queijo você quer?”, o grande sucesso catarinense de 2011 que enfoca a crise conjugal dum casal na terceira idade. Produzido com o modesto orçamento de R$ 30 mil, integra a seleção oficial do IV Paulínia Festival de Cinema, 39.o Festival de Cinema de Gramado, 22.o Festival Internacional de Curtas de São Paulo, 11.a Goiânia Mostra de Curtas. O filme foi premiado no 13.o Festival do Rio, com o Prêmio de Melhor Curta, e no Festival de Cinema de Juiz de Fora Primeiro Plano, com os prêmios de Melhor Atriz para Amélia Bittencourt, Melhor Ator para Henrique César e Melhor Trilha Sonora para Mateus Mira.
O curta de ficção “Dicionário”, de Ricardo Weschenfelder, será lançado no início de 2012. Rodado nas cidades de Timbó e Blumenau, o filme é uma adaptação do conto “O guarda-noturno”, de Lindolf Bell (1938-1998), publicado em 1986, e fala sobre os sentidos além da compreensão humana e de como a razão pode adentrar o inexplicável. Um cavalo em plena Biblioteca Central da Universidade Regional de Blumenau cria a atmosfera onírica do filme. “Dicionário” foi o único projeto de Santa Catarina contemplado pelo Edital do MinC 2009 — Concurso de apoio à produção de obras inéditas de curta-metragem.
LÁ DO CÊ UMA PARCIALIDADE AFETIVA O documentário “ASP.DOC”, de Ana Lucia Vilela, Aline Dias e Julia Amaral, lançado em dezembro, conduz a um contato com a trajetória, as reflexões e a vida privada de Carlos Asp, artista que tem no cotidiano sua principal matéria. Estão presentes as “apropriações” de caixas de papelão e a sua oralidade é entrelaçada a uma narrativa visual que inclui imagens captadas pelo próprio Asp em super-8. As realizadoras têm formação em artes visuais e optaram por assumir a relação de amizade com o artista, problematizando assim a suposta imparcialidade do gênero documentário.
OLHO DE ROGÉRIO RAMIFICADO A produtora Câmera Olho finaliza e edita o longa “Raízes subterrâneas”, que teve início em 2007 e foi realizado com um roteiro que apenas indica as sequências, dando extrema liberdade de criação na própria locação. “Zulú anárquico”, outra produção da Câmera Olho, inspira-se na estética do catarinense Rogério Sganzerla e deve resultar num curta documental que alude ao cinema antropofágico do autor de “O bandido da luz vermelha” e em um longa de ficção do diretor Rafael Schlichting, que procura o poético e ensaístico.
UM OUTRO VIVENDO A SUA VOZ A Vinil Filmes filmou em outubro o curta “O homem dublado”, de Renato Turnes, com roteiro e atuação de Malcon Bauer. É a história de um homem comum que, como todo brasileiro, teve formação audiovisual baseada em filmes e programas de TV dublados. Um eclipse solar, no entanto, causou pânico na população e, como efeito do fenômeno, o homem passa a ter sua voz dublada. Ora fala como mulher, ora como criança, e acaba demitido. Profissionais reconhecidos fazem a dublagem do personagem de Bauer que, curiosamente, não emite um único som durante toda a comédia de realismo fantástico.
PEIXE VIVO FORA D’ÁGUA FRIA “JK no exílio”, documentário de Bertrand Tesson e Charles Cesconetto, registra o desterro voluntário do ex-presidente Juscelino Kubitschek na França, em 1964. O episódio da vida do fundador de Brasília foi reconstituído, na maior parte, pelos relatos da Maria Alice Berengas, sua fiel secretária que ainda hoje vive no exterior. Lançado em Diamantina, a cidade natal de JK, e exibido no segundo semestre em Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo e Florianópolis, o filme rendeu ao produtor e diretor Charles Cesconetto a Medalha JK, que premia o mérito de brasileiros que tenham prestado serviço de relevância à comunidade.
● “Projeções do contemporâneo” foi o tema da 5.a Semana de Cinema da UFSC, em outubro, com os documentaristas Eduardo Coutinho e João Moreira Salles (ver páginas 3 a 7 de LADO C) e o Ciclo Novos Realizadores na programação principal da semana organizada pelos estudantes do Curso de Cinema da UFSC. Foram cinco mesas-redondas que abordaram temas como políticas públicas para TV; ensino de cinema nas universidades; e produção e crítica cinematográfica, com oito oficinas de formações específicas, e cerca de cento e setenta participantes. ● Foi realizado de 11 a 15 de novembro, no Cine Itália, o I Festival Internacional de Cinema de Balneário Camboriú, Cineramabc. O evento exibiu longas inéditos, nacionais e internacionais, e curtas catarinenses, e promoveu oficinas, palestras, debates e premiações. Beto Brant exibiu e dialogou sobre seu novo longa “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios” e o documentário “Praça Walt Disney”, de Sérgio Oliveira e Renata Pinheiro, se destacou na programação nacional. Entre os internacionais, o filme francês “Tomboy”, de Céline Sciamma, foi premiado com a “Coruja de Ouro” de Melhor Filme, por indicação do Júri Popular. A novidade do festival foi a Mostra Internacional de Filmes em Novas Mídias, que corria paralela às outras mostras, e privilegiou os novos meios de produção e os novos suportes de exibição audiovisual. ● O 13.o aniversário da mostra de vídeos catarinenses Catavídeo contou com a presença de José Mojica Marins, vulgo Zé do Caixão, que discursou sobre o terror no cinema brasileiro e exibiu seu mais recente longa “Encarnação do demônio”, o terceiro da trilogia iniciada em 1964, com “À meia-noite levarei sua alma”. Além da programação especial, que incluiu “A noite do chupacabras” e a presença do diretor Rodrigo Aragão, e da mesa de discussão intitulada “Filmes: faça do seu jeito”, a mostra exibiu 88 produções de/com catarinenses e ofereceu seis oficinas gratuitas, em oito dias de evento no Cineclube Ieda Beck, Fundação Badesc, SESC Prainha e Teatro Armação. O Catavídeo, que surgiu na Cinemateca Catarinense, hoje é realizado por Alquimidia.org e Exato Segundo e foi agraciado com a Medalha de Mérito Cultural Cruz e Sousa/2011.
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rascunho de produção
“Linha do mar”, de Felipe Vernizzi, aborda o sonambulismo de menino
Dois novos curtas de O Mago Realizações “O relojoeiro”, de Rodrigo Amboni, evidencia as relações homem-tempo
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