Reportagem Filhos do Fogo

Page 1

FILHOS DO FOGO

Longe da modernidade crescente na indústria, em pequenas cidades do Nordeste, homens forjados no fogo enfrentam ainda um cenário ultrapassado, seja nas condições de trabalho ou nas relações com aqueles que os empregam.

Por José de Paiva Rebouças e Esdras Marchezan / Fotografia: José Bezerra / Repórteres de Rua A boca de pedra parece querer engolir tudo que se aproxima, mas nem seus 800 graus de calor afugentam os foguistas que se revezam na produção. Durante três dias e duas noites ininterruptas, às vezes mais, cerca de dez homens enchem de lenha a garganta da caieira até que ela arrote. Depois saem de perto e descansam. Os foguistas enfrentam as labaredas pelo menos 140 vezes a cada turno de 12 horas para garantir a produção do óxido de cálcio, a cal, como conhecemos. Movimento repetitivo que não pode parar. Como a estrutura é arcaica, quase medieval, a fuga de calor intensa pode botar toda a produção a perder e o prejuízo para o industrial é imenso. Pior ainda para os trabalhadores que ficarão sem dinheiro.

Trabalhar na queima da cal é como ir ao inferno. De dia, com o

calor do semiárido nordestino, a situação é ainda pior. Principiantes costumam desistir, dizem os mais velhos, mas depois voltam por não conseguirem outro emprego. Trabalhar neste ramo não é questão de se acostumar, mas de sobreviver. Sem equipamentos de proteção, os trabalhadores envelhecem cedo. As mãos engrossam logo e a pele ganha uma pigmentação escura. Os pulmões precisam ser fortes, do contrário adquirem uma gripe sem cura. Além do calor intenso, a poeira da cal resseca as narinas e os lábios. O risco de queimaduras graves, de acidente ou de topar com animais peçonhentos preocupa mais os trabalhadores do que a ausência de banheiros, bebedouros ou refeitórios nas instalações. A remuneração é por dia trabalhado. Entre R$ 60 e R$ 70, dependendo da região. Quase ninguém tem carteira assinada e os que têm também não usufruem

de seus direitos, já que continuam recebendo apenas pelos dias que trabalham. Essas irregularidades que beiram o absurdo não são segredo para ninguém, mas eles dizem que não adianta denunciar. Alegam que, além de não resolver nada, os órgãos de fiscalização ainda tiram seus empregos ao fecharem as caieiras. É assim a vida de muita gente em cidades do interior do Nordeste, onde a forma rudimentar de produção da cal persiste e submete trabalhadores a condições grosseiras de trabalho, risco de acidentes e morte, e salários que nem dá para chegar ao fim do mês. No Rio Grande do Norte, os municípios de Governador Dix-sept Rosado e Apodi são os que possuem, hoje, o maior número de fornos de cal em atividades. Foi lá onde a equipe do REPÓRTER DE RUA conheceu as histórias contadas nesta reportagem.

UM RETRATO DO SETOR

Entre agosto e fevereiro, o trabalho nas caieiras dobra. É durante o período da cana de açúcar, no litoral, que se ganha mais dinheiro, mas também quando mais se trabalha. Somente no distrito de Soledade, comunidade de 2 mil habitantes do município de Apodi, a produção sobe de 700 para 3 mil toneladas por mês. Dezesseis das 22 caieiras produzem ininterruptamente. De acordo com a Associação Brasileira de Produtores da Cal (ABPC), 70% da cal virgem produzida, é usada nas indústrias siderúrgicas, de açúcar e de celulose. A cal hidratada (30%) é embalada para construção civil e outras atividades. Segundo o empresário Elson Marinho, no entanto, a cal potiguar é praticamente toda utilizada na indústria açucareira. O fornecimento para a siderurgia é quase que total dos estados do Para-


ná, São Paulo e Minas Gerais, que têm parques industriais modernos, cumprem as leis e produzem mais barato. Do que é produzido no Rio Grande do Norte, apenas uma pequena parcela é consumida aqui. O restante segue para Piauí, Alagoas, Maranhão, Paraíba, Pernambuco e Bahia, principais clientes das caieiras dessa região. O Brasil está entre os cinco maiores produtores da cal no mundo, com mais de 8 milhões de toneladas por ano, segundo o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). O Rio Grande do Norte representa apenas 6% desse montante, graças à presença de depósitos de rochas carbonáticas que ocorrem na formação Jandaíra, que abrange uma área aproximada de 21 mil quilômetros quadrados. Todo esse depósito de calcário que chega a espessura de 400 metros abaixo do solo é predominante nas regiões do alto e médio Oeste, Seridó e Agreste. Os municípios de Governador Dix-Sept Rosado e Apodi, que possuem dezenas de caieiras em atividade, são os líderes deste mercado. Essas quatro regiões concentram aproximadamente 180 caieiras, embora metade, ou mais, esteja desativada. Ainda assim, são responsáveis por uma média de 900 empregos, diretos e indiretos, podendo chegar a uma produção média de 6,9 mil toneladas da cal por mês. A ausência de regularidade na produção é o principal argumento, principalmente agora depois que as cimenteiras imprimem uma concorrência difícil de ser superada. Enquanto dependem de madeira, parte dela de baixa combustão ou extraída de forma ilegal, as cimenteiras utilizam como combustível o coque, material carbonáceo sólido obtido a partir da destilação do carvão mineral, importado da China. Embora chegue em navios, a compra em grande quantidade deixa o preço muito competitivo, sobretudo porque é usado em fornos de alta eficiência para produzir não apenas a cal, mas principalmente o cimento. De acordo com o presidente da Associação dos Produ

da Cal e Fornecedores de sua cidade, ele conta que os 35 associados estão muito preocupados. Empresário do setor há 15 anos, ele diz que o setor não tem mais como se sustentar, o que será um desastre para o município. -Se as caieiras pararem, mais da metade dos trabalhadores de Governador ficarão sem emprego, conclui.

Degradação ambiental

São inúmeros os impactos ambientais causados pela produção da cal. Estudo apresentado pelo bacharel em contabilidade Francisco Magno de Albuquerque Vianna aponta que os setores cerâmicos, da panificação e da cal do Rio Grande do Norte transformam em cinzas 175 mil metros cúbicos de lenha por mês. Atualmente, os donos de caieiras dizem utilizar podas de cajueiro, cascas de castanha e pneus velhos para manter os fornos acesos, mas alguns confessam que sem a lenha nativa o custo da produção fica muito alto. Diversas pesquisas realizadas pelas universidades do Estado denunciam que a permanência dessa ação predatória provoca uma catástrofe sem precedentes.

As pedreiras de onde se extraem o mármore, a pedra da cal e o paralelepípedo colocam em risco a vida e a saúde de muitas pessoas, mas o que fica na comunidade não é suficiente para transformá-la ou melhorá-la.

Em Soledade, por exemplo, a exploração do calcário tores da Cal de Soledade (Aspocal), Elson Marinho, essa destruiu grande parte do que é hoje o segundo mais concorrência não irá acabar com as caieiras, mas forçará importante sítio arqueológico do Brasil. O Lajedo de Souma transformação. Segundo ele, depois que as cimen- ledade guarda resquícios de animais pré-históricos que teiras entraram no ramo da cal, ele perdeu 50% de seus viveram na região há mais de 90 milhões de anos, além contratos e a produção na sua região caiu quase 70%. de indícios dos primeiros homens no continente ameriEm Governador Dix-Sept Rosado, o forneiro Josean Car- cano. Muitas ravinas foram extintas e continuam amealos disse que houve desaceleração geral em toda a pro- çadas. dução na cidade. Membro da Associação dos Produtores


Uma noite na caieira Sábado. Dez da noite. Quatro foguistas se revezam para dar conta do último dia de serviço. Três dias com duas noites e a pedra já está cozida. Domingo será o único dia de descanso. Na segunda, tudo de novo. Um rádio pendurado na parede, uma luz amarela e a boca da caieira a 800 graus iluminam o ambiente. Cada vez que o forno é abastecido, o fogo sobe a quase oito metros de altura, clareando os arredores.

quentinhas. Eles comem ali mesmo, uns em pé, outros sentados em tocos de madeira. Param de comer várias vezes para voltar ao fogo. Atiçam, apanham mais lenha e, como engrenagens de Sem luvas, óculos de proteção nem botas uma máquina, se repetem em movimentos adequadas, os foguistas tateiam de um contínuos. jeito peculiar. É preciso cuidado. Cobras e Cobertos de cinzas e carvão, os caieiros atraescorpiões aparecem com frequência na lenha. vessam os dias nesta pisada. Trabalham 12 No forno, o fogo pode saltar e incendiar alguém. horas sem parar até o próximo turno, quando Há dez anos neste serviço, Damião de Paiva, 46, outros chegam para continuar o serviço. Fiesquece tudo, durante a queima, menos a água. guras idênticas enroladas em trapos que, em -Se não souber trabalhar direito, cozinha o san- suas cabeças, substituem os equipamentos de gue, diz. Por isso, é um minuto no fogo, cinco segurança que não têm. Falam pouco e estão longe dele. sempre preocupados de falar o que não devem. Nas regiões das caieiras é sempre comum hisResignados, se submetem a seus patrões por tórias de gente que morreu porque seu corpo uma questão de sobrevivência, mas, sobretudo, “cozinhou” por dentro. Mentira? Quem vai por falta de apoio. duvidar? Alheios ao que acontece no mundo, os Antônio Barbosa, 42, o Cuca, Edivan da Costa, caieiros integram um grupo de trabalhado50, e Antônio Sobrinho, 49, são seus parceiros. res esquecidos. Um grupo feito em sua maioria Histórias parecidas, inclusive pela condição. por jovens de até 30 anos, ou de pessoas que Nenhum tem carteira assinada. estão há várias décadas trabalhando nas mes-Prefiro trabalhar solto, diz Edivan, que está mas circunstâncias insalubres e de ausência de nesta função há 30 anos. direitos. Homens que mantêm ativas economias Mas isso é o que todos dizem. O medo de afronde comunidades e cidades inteiras, mas que tar os patrões e perder a única ocupação que seguem invisíveis e assim temem desaparecer sabem fazer, cria neles discursos idênticos e um dia. repetitivos de proteção. Perto da meia noite, o filho do patrão traz as


Histórias que se repetem Nos lugares onde trabalhar na exploração da cal é uma das poucas atividades, não é apenas a paisagem cinza que se repete pelo caminho. Histórias

de acidentes nos fornos de cal são contadas em cada esquina, basta escolher uma. A

maioria delas nem chega aos órgãos de fiscalização. Mas para quem sofre, a lembrança fica encravada no corpo e na memória. Daquelas marcas que não se consegue arrancar. O uso de explosivos na exploração do calcário no Rio Grande do Norte diminuiu muito desde 2013, mas até esta data deixou muitas vítimas. Geraldo Joelinton da Silva é uma delas. Com 17 anos, perdeu a mão em um folguedo. Ficou traumatizado e inativo. Ainda de forma manual, a quebra de pedra nos lajedos de calcário é feita por dois instrumentos: a marreta de dois quilos, conhecida por marrã, e o ponteiro de ferro, também chamado de pixote. Para agilizar o trabalho, os buracos de marcação são cheios de pólvora prensada com barro, e os blocos de pedra racham com a explosão. No dia 1º de setembro de 2001, Geraldo se equivocou nos cálculos ao apertar a pólvora. De repente, o estouro. O silêncio depois da explosão era ensurdecedor, mas o medo muito maior. Sangrando muito, principalmente na mão esquerda e na cabeça, Geraldo ainda teve forças para pegar a bicicleta e sair pedindo ajuda. No caminho, vultos lhe guiavam numa busca desesperada por casa. -Eu não pensava em nada. As únicas palavras que eu conseguia dizer era ‘Deus’ e ‘mãe’, conta. Hoje, aos 33 anos, Geraldo só tem do trabalho a lembrança ruim do dia em que, por sorte, não morreu ainda adolescente.

45

dias internados num hospital não foram o suficiente para fazer Geraldo se recompor do choque provocado pelo acidente na caieira

-Quando cheguei em casa, entrei no banheiro e botei minha mão dentro de uma bacia de água para ver se passava a dor, lembra. Foram 45 dias no hospital ouvindo o estrondo na cabeça, tomando remédio controlado e passando por cirurgias na mão. Nenhum patrão apareceu para ajudá-lo. Sem carteira assinada, não teve direito a nada.

-Minha sorte foi o médico. Ele viu que minha situação era difícil e que eu não tinha ninguém, aí me deu um atestado pra eu me aposentar, diz sem qualquer orgulho. Sem uma das mãos, não teve mais como trabalhar nas caieiras. Sem estudo ou estímulo, acabou em casa vivendo a inatividade ainda na juventude. Ele não foi o único da família vítima das pedreiras. Seu sogro, conhecido como Chico Lindreza, ficou com sequelas numa mão e numa perna depois de uma explosão. -Não morreu disso, mas morreu pobre sem direito a nada, lembra. Muita gente aqui sofreu acidente, mas fica por isso mesmo, não se tem o que fazer, lamenta Geraldo, que hoje mora numa casinha doada pelo governo com a mulher e uma filha de cinco anos.

2

mil pessoas vivem, em média, na comunidade de Soledade, distrito do município de Apodi, no Rio Grande do Norte

22

caieiras já chegaram a produzir, ao mesmo tempo, na região de Soledade, em épocas de alta produção. Hoje, a realidade é diferente


Nada além do horizonte Antônio Adriano Pinheiro Rocha, o Didi, 27, é como um retrato do passado no presente. Apesar de jovem, carrega nos ombros uma angústia. Casado com uma estudante de 21 anos e pai de uma menina de 5, ele olha para frente, mas não vê muito do futuro. Parou de estudar no primeiro ano do ensino médio e não sabe quando vai voltar à escola. -Depois que fui pai não tive mais como conciliar estudo e trabalho. A gente termina o dia cansado demais, só tem coragem pra dormir, diz o menino que adora jogar vídeo game, uma das poucas regalias que conseguiu adquirir na vida. Há sete anos trabalhando na cal, amarga agora o fantasma do desemprego, embora tenha carteira assinada. Todo esse tempo, trabalhou na mesma empresa, mas só há seis meses teve seu primeiro registro trabalhista. No entanto, há dois não recebe salário. -O povo assina a carteira da gente, mas a gente só recebe se tiver trabalhando. É a mesma coisa de trabalhar solto”, reclama. No caso de Adriano, a caieira onde ele trabalha está fechando por causa da concorrência. Uma fábrica de cimento em Mossoró passou a produzir cal pela metade do preço, fazendo com que as caieiras percam seus contratos junto às indústrias. Enquanto não se resolve com o patrão, Adriano segue morando em um puxadinho na casa do sogro. Lá

tem o apoio da família que o ajuda a terminar sua casa numa vila próxima. Seus planos, por hora são poucos, mas o principal é fazer sua mulher voltar a estudar. -Ela parou quando teve menino, mas acho que agora vai voltar, conclui.

Um passado bem presente

A realidade de Adriano tem sido repetida há mais de meio século, quando as primeiras caieiras começaram a se instalar pelo Estado. No início dos anos 50,

eram pequenos fornos que forneciam a cal para as construções locais. Em Soledade, a família Targino é apontada como a primeira a começar a atividade, pelo menos é o que sabe contar Francisco Avelino de Morais, 74, seu Chico de Salú. Ele começou a trabalhar neste setor em 1960, aos 18 anos, e lembra que com o dinheiro que ganhava mal conseguia manter as compras da semana. -A sorte é que minha mulher ajudava, diz. E olhe que naquele tempo não existia a modernidadede hoje, como os tratores, caminhões e as pás-mecânica.


A timidez de Zé de Luzia Para Zé de Luzia, 55, tudo é motivo de riso. Num misto de seriedade e descontração, o homem atravessa a vida dentro das caieiras. Não sabe fazer outra coisa e fica desconsertado quando lhe perguntam sobre o futuro. Não é culpa dele, tem mais tempo na cal do que de casado. De muitas risadas e poucas palavras, Zé conta a sua história com o silêncio. -Não tem o que contar, é isso mesmo, diz. Mas não precisa dizer muito, basta olhar para ele para ver o que não foi verbalizado. Sem estudo ou qualquer benefício, acha que também não pode ter argumentos, por isso res-

ponde positivamente com quase todas as perguntas. -É, foi assim mesmo, desse jeito. Na caieira já foi foguista, secador, tirador de lenha e agora é separador de pedra. Retira de cima dos caminhõesas pedras não calcinadas. Nunca teve a carteira assinada e não sonha mais com isso. Seus únicos pertences, além das coisas de casa, são uma bicicleta velha e uma casa que ganhou do governo. Mas isso não lhe incomoda, porque o que lhe falta em bens sobra em disposição e alegria.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.