Histórias Invisíveis

Page 1

Histórias Invisíveis

Paulo Laurindo


Histórias Invisíveis

Contos

Paulo Laurindo Originalmente publicados no blog Certos Contos Incertos

São Paulo – Julho 2016


“As mulheres, como os sonhos, nunca são como as imaginamos” Pirandello



Oraldina

Coruja rasgou carreira por cima do telhado. – Vai-te, agourenta! Oraldina, devota, guardiã do Sagrado Coração, caiu doente de repente. Diminuta, 52 anos, seis filhos. O que é, o que é, não houve diagnóstico, nenhuma resposta. Caiu doente e possessa, assim: da noite pro dia, do nada. Passou a gritar, gritar incongruências, indizíveis. Quinze dias gritando, os vizinhos arrepiados com aquela coisa sem coisa. Que sucesso era aquele? Oraldina não fazia sentido, só gritava, gritos de horror, labaredas, queimadura, secura braba, garganta arranhada, navalha, cacos de vidro, álcool em ferida, osso quebrado. Pavoroso. Passados dias, quis ir para a rede. E ficou ali, se balançando, pra lá e pra cá. Nhec, nhec, nhec… Marido e filhos se revesavam nos cuidados. Mas que cuidados, se não havia, se não sabiam. Não comia, não bebia, só oscilava pra lá, pra cá. Nhec, tic, nhec, tac… A filha mais velha, grávida, veio visitar. – Não entre… vai perder a criança. Trouxeram o médico de aplicar injeção. – No braço… Porque lá nem pensar, onde já se viu, estranho enxergar minhas vergonhas.


O doutor tentou ser gentil mas, a espetada desacertou, a canela fina arribou e ai como doeu a masculeza do receitador que vergou e fugiu. Era deixar. Engruvinhou. Depois levantou, passeou pela casa, deu uma volta pelo oitão, encheu todos os potes com água e soltou os passarinhos. – Tá boa, alguns disseram saudosos da paçoca. Mas Oraldina não fez paçoca, não salgou carne, não preparou maria-isabel nem lembrou dos cajus no ponto pra cajuína, só perguntou do caçula. – Tá viajando. Foi levar encomenda. – Mande um telegrama pedindo pra ele voltar. E para a almofada de bilros, confessou: Quando chegar vou me esconder atrás da porta que é pra dar um susto nele. E riu sumida, imperceptível. Quando o rapaz chegou fez bruu e correu se rindo, levada. - Ô, Duquinha… não esquece de avisar pro capitão do barco que está guardado lá na tua casa que abasteça a despensa com muitas melancias… Vou ficar com sede durante a viagem. - Que viagem, mãe? – Ué, vou voltar pro Chapadão. E cantou. Versinhos do arco-da-velha. Do tempo do bufa. E a casa se encheu de perfumes. Quem era sério sorria, quem era alegre soltava gaitada. De onde tirava aquilo? E Oraldina ria, palitando o dente com a ponta da unha


miudinha como se tivesse mastigado gostosura. Quis cafuné. Veio a nora. – Faz daquele jeito. Gostava. A filha mais velha ensaiou muxoxo mas não era questão de gostar mais desta ou daquela, gostava do cafuné da outra e pronto. Na metade da tarefa, a moça ouviu um trec, na nuca. A cabeça rala tombou. Deitaram-na. Vieram as filhas. – Quero ir vestida que nem Santa Rita. Mas não usem a máquina, tem que ser costurada à mão. Vai saber porquê. As moças, esmeradas, gastaram tempo de sobra, adiando, adiando… E Oraldina rindo, mangando de toda coisinha, dessas tais coisinhas desprovidas de significância. Mangou das moscas, das formigas, das aranhas… Mangou do bode velho, das galinhas poedeiras, do garnisé… Só não mangou do marido que era enfezado. Pra ele declamou umas quadrinhas meio sem graça. – Endoidou? Queria chupar carambolas, mas engasgou, tossiu invisível. Lacrou os olhos. E acenderam velas. O genro pegou uma e botou-lhe na mão. Todos em volta. Nenhuma lágrima, já haviam derramados córregos uns, outros rios. Aguardaram munganga, não veio. Levantou o dedo e disse: – Prestem atenção, prestem muita atenção. Estão prestando atenção? Então… Tum! Sumiu.


Velaram-na no terreiro, sobre três tábuas e dois cavaletes. Tiraram fotografia. Todos de preto – Olhos inchados mas sorrindo. Só Oraldina de branco. Um anjo deitado nas nuvens. – Mãe está linda, não está? Falou a mais velha, ajeitando a mortalha. Um dia, as irmãs estavam deitadas na cama alta, a conversar miolo de pote, quando a mais velha sentiu um arrepio na espinha. – Que é?… É mãe? Silêncio. - É mãe mesmo, o que ela está dizendo? Exigiu assustada a caçula. - Espera… Ela tá reclamando da gente… Disse que esquecemos de mandar rezar missa… E que é bom a gente recolher os pedaços de requeijão que mordemos e escondemos nos buracos da parede senão, de noite, vai contar pro pai quem são os ratos que andam atacando a despensa. - Ave-Maria! E corre.



Eveline

Mãe de dois. Viúva. Funcionária pública aposentada por invalidez. Assou e comeu toda vida. O mais velho, mais responsável, parecido com ela, cuidou de cedo ir à luta e trouxe boas colheitas pra dentro de casa. Eveline se ria, seca e séria que era, cerca de meia hora dia. O mais moço, meio rude, meio pop, pulou de galho em galho até encontrar a filha do deputado e cuidou logo de embuchá-la. Ai, meu deus, onde é que tu estavas, senhor? Como é que, sendo onipresente e onisciente, não viste a burrada que o meu caçula fez? Nem para avisar no 4B, um telefonema pra vizinha bastava, carta anônima que fosse, mas que tivesse dado o ar da graça naquela fatídica noite, três de junho, 92. Se avisada a tempo, Eveline teria partido qual onça para cima do safado amado, dado uns bons trompaços naquela cabeça dura… Ô menino metido a fazer o que não tem serventia, meu deus. Mas Eveline, a costurar estava, a costurar teria ficado não fosse a agulha, num ato de rebeldia, espetar-lhe o dedo.


Não é dito que deus escreve certo por linhas tortas? Bem, foi isto que ela pensou naquela hora: aconteceu alguma coisa, aconteceu alguma coisa com o Bigu. E olhou para o relógio de parede, na esperança de que ainda fosse horas, na esperança que o tempo ainda não se tivesse esgotado. Só conseguiu respirar no dia seguinte quanto a polícia chegou em busca de saber se era verdade que foi dali que partiu o tipo encontrado no meio do canavial com o pênis enfiado na boca. Respirar é modo de dizer, Eveline devolveu ao ar todo o ar que tinha mantido represado nos pulmões durante toda aquela noite e quem sabe durante toda a história da raça em luta com as perdas irreparáveis e a estupidez humana. Porquê? O cabaço daquela menina valia tanto? Porquê, seu Honório, porquê? Só por que era o meu menino? Mas ele cantava bem, o meu neguinho, seu Honório, era um menino afinado, tinha intimidade com as notas… Mataste o meu passarinho, seu Honório. E não contente com isto, o senhor mutilou, de modo vil, o meu bichinho. Devolva o meu filho, seu Honório, devolva o meu filho que a tua menina engoliu. Fique com a tua honra, seu Honório, mas me devolve o que é meu de direito. Seu Honório discursou em plenário, puxou dos alfarrábios sofismas calibrados, vetustas e abusadas palavras, tudo para provar que sua filhinha havia sido seduzida, enganada, entorpecida e estuprada por um desqualificado sem eira nem beira que, não tendo mais o


que fazer na vida, deixou-se matar só para não encarar a sua autoridade de pai e cidadão servente de deus e da pátria. E em assim sendo, apelou para o inalienável direito (dele) de interromper voluntariamente aquela gravidez. – Não, seu Honório, esta criança é minha. Devolva o que é meu. O senhor não vai matar o meu filho duas vezes, esbravejou Eveline no alto das suas tamancas logo contida pelo meritíssimo que exigiu respeito na corte.



Josélia “O cérebro de uma criança automaticamente acreditará no que lhe é dito. Mesmo quando o que lhe é dito é uma besteira. E quando esta criança crescer ela tenderá a passar essa mesma besteira aos seus filhos” Richard Dawkins, O Vírus da Fé

Cicatrizes são troféus, disse ao encarar o agressor pela enésima vez e lembrou-se do caminhoneiro que morava na rua de baixo e duas vezes por mês estacionava seu FNMD9.500 no terreno em frente à meiágua onde, mal e porcamente, vivia guardada pela mãe que insistia em reprimi-la naquilo que, em seus pequenos seis anos, nem sonhava imaginar. Embora já tivesse ouvido das amiguinhas coisas horríveis que os adultos podem fazer uns aos outros, por gosto ou necessidade, pensava apenas em ganhar do papai noel aquela boneca de cabelo louro e cintilante, como os seus próprios. Do futuro, era o que esperava. Quanto ao resto, quando fosse a hora saberia o que fazer e isto não a preocupava nem um pouco nem mesmo naqueles momentos em que era injusta e severamente castigada por este ou aquele gesto, interpretado como leviano ou obsceno pela macerada mãe madrasta.


A vida é assim mesmo: julgamos, culpamos e punimos os outros baseados nas nossas próprias escolhas, nem sempre louváveis, guiadas pela ignorância, imediatismo ou mesmo aceitação em ser o que se é por absoluta incompetência em arriscar-se ser de outra forma. (…) Assim, como poderia ganhar aquela boneca de papai noel se não fizesse o que lhe mandavam fazer? E o caminhoneiro foi bastante convincente. Pediu-lhe que fizesse bem-feito, era necessário, pois papai noel só atende aos pedidos das meninas boazinhas. Flagrados pela mãe, tentou correr mas foi agarrada pelos cabelos e espancada sob alegação de que era uma sem vergonha, uma descarada, uma perdida, a única culpada por toda a desgraça do mundo, pois nascera mulher e mulher foi feita pra sofrer e fazer sofrer quem lhe caísse nos braços, para espalhar o inferno neste mundo de deus-dará… E não havia outra saída senão aceitar os cinco dinheiros que o caminhoneiro entregou-lhe a título de indenização por perdas e danos. Naquele ano, papai noel não cumpriu com o seu papel mas o fez no ano seguinte quando suas pernas grossas e seus seios tesos aceitaram os chamegos da professora primária, do guarda, do padeiro, do sacristão e de dois ou três doutores que às sextas-feiras davam plantão naquele buraco encravado na Serra Dois Irmãos, pertinho de Viçosa. Daí reparou que para ganhar o que quer que fosse deveria ser mais que boazinha, deveria tornar-se uma colecionadora de cicatrizes, afinal o que lhe pediram daí em diante passou-lhe a doer mais que o costumeiro, devido aos excessos de um e de outro ávido em lhe sacrificar no altar dos prazeres


humanos. A civilização tem destas coisas, ao mesmo tempo em que nos tira do estado de selvageria nos capacita a requintar cada vez mais o animal que nos habita, dotando-nos de técnicas sofisticadas de submeter e ser submetido, de sofrer e de fazer sofrer. Não demorou muito a perceber que, ao invés dos aguardados presentes ia, isto sim, acumulando dores, dores, sempre mais dores, não só na pele, mas dentro, lá onde ninguém chega, lá onde só você sabe o quanto dói uma saudade, disse Josélia certa de que fora agraciada com um poder maligno, porque não era uma questão de gostar ou de não gostar, era uma missão, sua missão, a sua parte naquele imenso latifúndio. – Está vendo aqui? Riscou com o indicador um traço que ia da sobrancelha esquerda até perto do lóbulo da orelha. – Esta ganhei quando tinha doze anos. Como deve ter percebido, o que quer que você pretenda fazer não há quem já não tenha feito antes. Não me ocorre novidades, meu caro. Não há dor que eu não já não tenha sentido, não há dor que eu já não sinta de antemão. Portanto, sugiro que, se queres mesmo ver-me sofrer faça-o aqui no lado interno da coxa, onde poucos pensaram marcar e que, ultimamente, reservo para iniciantes. Consinto tudo, desde que seja rápido. Só não permitas que te odeie por teres sido impreciso. Porque em mim, só aqueles que traziam na alma a marca dos verdadeiros peritos puderam, por suas inventividades, galgar este acidente humano que me tornei. Preste bastante atenção na tua saliva, se salivares pouco


durante o golpe, estanca, não foste feito para tais voos. Agora, se babares ao me ver entregue aos teus caprichos, aproveita e jogue por terra o último vestígio de sentimento que acaso ainda nutras dentro do teu peito. Já me deixei levar por muitos covardes, por mansos, por crédulos, por moralistas e até por donzelas e matronas invejosas da minha liberdade e da minha resignação, eu, sempre atraída por aqueles que machucam por machucar, que não aguardam qualquer recompensa que não a imediata satisfação e que, arrogantes, cospem sempre no prato que comem ao alardearem vitalidades como se fosse mérito próprio e não produto de outras dores. Que foi, vais desistir sem ao menos tentar provar do meu sabor, sem ao menos saber se é acre, se é doce, se azedo? Travo, amigo, meu gosto é travo confesso, já que não foste feito para as coisas verdes. Queres saber? Acabei por ganhar a minha boneca, vive comigo até hoje, cuido dela como cuido de mim mesma, banho-a, façolhe roupas novas, deixa-a à janela para apreciar a tarde, levo-a pra passear, conto-lhe histórias, falo do amanhã, de quando estiver crescida… Falo dos garotos, das suas brincadeiras irresponsáveis, do primeiro beijo, do primeiro sutiã, da primeira menstruação, falo de todos os príncipes encantados dos quatro cantos deste mundo, ensaio com ela subidas ao altar, falo da primeira noite, das noites seguintes, dos filhos que virão, dos netos que virão e, sobretudo, da minha satisfação de vê-la sempre com aquele sorriso no rosto… Ah, aquelas bochechas rosadinhas que gosto tanto de beijar e apertar. Desculpe, minha tolice é imperdoável. Agora por favor, afaste-se, devo prosseguir e se fores quem


eu penso que és, escuta, te peço, nunca, jamais, jamais tornes a dizer eu te amo, porque, eu, tola, posso acreditar, e aí não terás outra escolha senão matar-me, lenta e dolorosamente.



Belinha

Não foi Madalena perdoada? A partir daquele instante deixou de entregar seu corpo ao mundo. Passou a acompanhar o mestre, tornou-se pura. Figura, hoje, ao lado dos bons, justos e virtuosos. Madalena é a prova inconteste de que é possível domesticar o demônio. O segredo está em esquecer. Amputar a memória. Apenas no esquecimento a mulher iguala-se ao homem. (…) A natureza feminina é má e fraca. Fraca porque é má, má porque é fraca. Tende à ruína. Pelos sentidos. Acusasteme de fraco, incapaz de resistir aos teus encantos. Nunca estiveste tão certa. Em condenar-te. (…) Claro que existe bondade mas ela é um atributo exclusivamente masculino. Quem primeiro perdoou? De quem a mulher aprendeu o perdão? (…) Quem arrancou de ti toda pecha, todo estigma? Quem limpou tua barra, pagou tuas dívidas, curou tuas chagas? Quem removeu as cicatrizes que desfiguravam teu corpo? (…)


Quando te conheci… Tão perdida e tão linda. Te olhei nos olhos, penetrei na tua miséria para te resgatar das trevas, te devolver à luz. Tu tão refratária. O que peço? (…) O que para a mulher é gozo para o homem é missão. Que vale mais: teu gozo ou minha missão? Acaso devo renegar a potência, impedir a livre expressão da minha masculinidade? Quanto egoísmo! Existem outras, tão vítimas do pecado quanto tu, corrompidas e frágeis. (…) Lembro de ti, na sarjeta, pagando tributo à escória, tão suja, tão rameira, capaz de lamber o chão por alguns trocados… E no entanto, meu compromisso te trouxe até aqui. Eis a prova maior do meu amor. Minha constância. Alegra-te e cala. (…) És o meu troféu, meu prêmio mais cobiçado. Lutei por ti, lutei muito por ti, és meu ganho. E por tudo isto te fiz respeitável… Teu filho tem um nome, o meu nome. E falas em rejeitar meus desejos? – Quando fracassa a nobreza o que resta? – Não enten…



Dagmar

Escombros. Gigantesca metamorfose. Dolorida. Muito. Terramodificação. Novacomodação tectônica. De material, o de sempre: terra, pau, pedra, ferro, aço, plástico, lixo… De valor, nada: Eletrônicos, carros, móveis, brinquedos, utensílios domésticos… Tudo gasto, micharia, tudo passível de reposição mas, as vidas… Estas, com muita generosidade imaginativa, reencarnariam esquecidas das dores, das penas e do destino controverso? Por que somos assim, tão instantâneos, tão descartáveis. Por que nos tratamos assim, se somos da mesma matéria e desejamos as mesmas coisas? Porém tudo parece pequeno demais pra nós dois. Então nossa selvageria. Nosso pasmo apetite, força que nos aglomera neste monstruoso salve-se quem puder. Nós, mundiça. Pois é. Dagmar levava sua vidinha, pra lá e pra cá… Passinho apertadinho, miudinho, trocadinho… Crentinha em deus e na misericórdia divina que isto é coisa de se aguardar nestes dias apocalípticos. Deixara, ainda miúda, a roça no pé de serra agarrada à saia da mãe. Deram com os burros nestas imensas águas pra sentar praça lá pras bandas de Caxias onde meia dúzia de parentes já se espremiam nos trens da Central. Não mudou muito. Um tanto mais esquecida, talvez. E toca pensar na tal promessa ouvida da


boca nervosa do Juvenal, seu ajudante de pedreiro desnutrido de qualquer ilusão de montar casa e ter um bocado de filhos pra ajudar nas despesas. Melhor esperar ajuda de cima e, neste ponto, concordavam, andava difícil. – Deus tem demonstrado irritação com as misérias que andamos fazendo pela aí. Perdida a conta de quantas enchentes viveram. E sobreviveram. Endurecidos. Fazer o quê, se esta última deixara um cheiro de morte muito mais tempo que as outras? Fedor que insistia em deitar raízes e subir aos céus seus ramos folhas flores e frutos encarnados de incontrolável violência. Finalmente o fim do mundo, um juízo final deveras. Amém. Foi aí que sentiu o primeiro espasmo. Que nem descarga elétrica. Tal se tivesse abraçado um monte de fios descascados. Depois, sentiu engolido um liquidificador e, finalmente, aquele gosto de sal a escorrer do nariz. Não se deu conta de mais nada. Era só agonia e eis que uma voz fininha, fraquinha, suspira um exausto cansaço e diz a que veio. O noivo ouviu espantado e, descrente, tratou de buscar na memória algum adjutório. Conseguiu articular um surrado salmo. Suspenso, não encontrou luz senão aferrarse feito náufrago. Mas a voz, após insistir uma eternidade, extenuada evaporou. Ufa, que susto, este estranho malestar. Que coisa. Será que, de tão fraca, deixara-se possuir ou estava ficando doida mesmo? Na manhã seguinte, ao passar na onde fora uma esquina, onde alguns ainda insistiam em buscar restos de


lembranças, sentiu uma pontada na moleira e caiu em prantos contorcidos na frente de todo mundo. Seria uma vergonha não fosse o pedido de socorro vindo do oco de sei lá onde. Um gari decidiu cavoucar na direção da pista que o grito apontava. Não custava nada. Renovado, comprovou, batata: havia um corpo ali. Uma mulher, agarrada ao seu bebê, sufocados os dois, espremidos sob toneladas de entulho. O que se dava por perdido foi encontrado e pode ter um enterro decente. Graças. Mas de que jeito Dagmar sabia? Alguém disse: Os mortos falam. Os mortos falaram através da voz invisível de Dagmar. Deixa, santinha, deixa os mortos dizer o que quiserem. Porque nós queremos dar sepultura aos que foram cuspidos fora sem justa causa. O pastor e o padre disseram não. Ixe, que nem pensar. Que não se mexe com os mortos. Que isto é coisa de satanás. Que, se a gente não entende, é porque deus escreve certo por linhas tortas. Enquanto as autoridades discutem, a maioria clama: Dagmar, faça-nos um favor, filha de deus, traz a voz da minha mãe, do meu filho, na minha netinha, no meu marido, do meu primo, do meu irmão, da minha vizinha, do meu conhecido, até do cachorro alguém pediu. Que cansamos de desemparo. Ninguém merece fundir-se ao caos. Um mar de gente, um oceano de corpos ressurgidos, uma imensidão de almas que antes vagavam pelos umbrais da inexistência puderam ser encontradas, trazidas ao seio


dos agradecidos chorantes. Um a um, Dagmar os atendeu. Aprendeu, na sua pobreza, a ser solidária. Um a um, permitiu que, de dentro dela, gritassem, chorassem e apontassem o rumo. Alguns meeiros, outros nem tanto porém, todos tiveram, por último, instante de dignidade. Que é só isto que nos vale. Louva a Deus, criatura. Que tu és o nosso consolo. Porém, de tanto amanhecer o mundo, um dia, sem casar, anoiteceu a santinha. Como se nunca tivesse acontecido. De repente, os mortos sumiram. Ou quem sabe, a própria morte dera um tempo, desistira. Se não virou borboleta ou coisinha menor, dizem as boas línguas, bem pode ter encontrado um cantinho melhor pra sua vidinha sumida. E Juvenal, sem morrer, de volta aos vagões sem vozes, não sabia como mandar notícias.



Maria

“O delito maior do homem é ter nascido” Calderón de la Barca, A Vida é Sonho.

Maria era uma boa menina. Obediente, trabalhadora, afável, risonha e virtuosa. Possuía todas as qualidades de uma moça em idade de casar. Nascera numa família humilde. O pai, infelizmente, morreu quando ainda era pequena. Perdeu a mãe aos treze, a desafortunada. A partir daí passou a viver na companhia de uma prima, casada com um comerciante de miudezas, muito mais velha que ela. O casal acolheu-a como filha, a filha que nunca tiveram. Davam-se bem, levavam uma vida regular, uma ou outra ameaça mas, sem atropelos. Contudo, Maria notava um silencioso mal estar naquela casa. Raras eram as conversas. Sempre ocupados, tinham apenas uns poucos instantes à noite para trocarem meia dúzia de palavras sobre o que fazer ou não fazer e era só. Carinhos, para dizer a verdade, nenhum, não havia necessidade. Estavam ali por obrigação, ponto final. Uma ou outra vizinha se aproximava para trocar dois dedos de prosa,


vez por outra. Nada de muita intimidade dado o comportamento esquivo da prima. Maria entendeu o porque desta reserva, numa tarde, quando a prima soltou que não aguentava mais as mulheres do povoado, sempre em busca de um jeito de atazaná-la por não ter conseguido ainda ter um filho. Mas o que podia fazer? Não tivera a sorte das irmãs, parindo um filho por ano, a encher o mundo de bocas e braços. Sabia que não era normal, não podia ser, alguma coisa estava errada com ela, sim senhora. Mas Deus era testemunha e, sendo deus quem era, um dia iria agraciá-la com a dádiva de ser mãe. Fé e empenho não lhe faltavam. Desde antes de Maria chegar, já cumpria promessa de, duas vezes por ano, sair em romaria por mais de sessenta quilômetros, a pé, até a Capela do Salvador só para assistir missa durante uma semana e alimentar os pobres da região. Um dia, Deus faria a graça, a graça de ter uma esperança de verdade, já que no atual estado o que lhe vinha era só desgosto por ter nascido e nascido mulher. Maria agarrou-se à prima e chorou e rezou e pediu a Deus que olhasse por elas, que fosse generoso e que não as esquecesse naquele fim de mundo como se esquece de um traste velho, sem serventia, porque elas podiam ser fracas de posses mas seus espíritos ansiavam pelo que é justo e justiça era tudo o que elas não viam. No silêncio do seu cubículo, à noite, passou a orar com cada vez mais fervor, ansiava uma graça e, sobretudo, livramento. Exasperava imaginar-se com a mesma sina da prima. Pedia que, se viesse a conceber, que fosse um filho homem. Um menino homem forte o bastante para mudar


aquele estado de coisas. Para si desejava poucas coisas, apenas o suficiente, o necessário para manter-se viva. Mas pensava em todas as mulheres que conhecia, no seu medo, nas suas inseguranças, na sua dependência infindável em relação aos maridos, impedidas de frequentarem as escolas, de aprenderem um ofício além o de gerar e parir filhos para que se tornassem maridos e dessem prosseguimento do mundo tal como vinha sendo desde sempre. Ah, como almejava um milagre! Porque era assim, meu Deus? Sussurrava Maria nos intervalos entre um pai nosso e três aves marias. Então Maria sonhava, sonhava com o seu próprio filho. Um filho diferente, diferente de todos os filhos que conhecia. Um filho que olhasse para o mundo de um outro jeito e que fosse inteligente o bastante para encontrar o meio, a forma de fazer as coisas mudarem para melhor. Porque ela o ensinaria a ser menos mandão, menos ensimesmado, mais amoroso com as coisas que merecem amor neste mundo. Sonhava com o filho, homem-feito, a criar sua própria família, uma família de muitas mulheres, todas sabidas na arte da escrita, da leitura, mulheres capazes de escolherem seus próprios maridos não em função das posses mas da beleza dos seus sonhos e da força que possuíam para realizá-los, mulheres que pudessem andar pelas ruas com os olhos no horizonte e não voltados para o chão. Seu filho e suas filhas, suas netas, Maria sonhava. E acordava com um sorriso como se seu sonho já tivesse se tornado realidade: sua fé tornara-se confiança, confiança de que seu filho viria, tão certo como a luz deste sol que nos alumia.


Chegado o tempo de peregrinação, a prima e o marido partiram e Maria dedicou-se de corpo e alma a uma semana de jejum e rezas, tudo em benefício da prima para a qual solicitava graça. O casal retornou e passados alguns dias ouviu-se gritos de vivas e louvor por todo o vilarejo. A prima engravidara. Novos cuidados foram adotados para que os noves meses fossem completados dentro da mais estrita recomendação do padre e das vizinhas que agora acorriam diuturnamente com conselhos e cuidados. Era um novo tempo, anunciava o futuro pai, um tempo de alegria, de bençãos e muita fartura. A boa nova ecoou fundo no frágil peito de Maria. Aquilo foi uma resposta às suas preces. Durante as noites seguintes, não cessou de orar. Cada vez com mais entusiasmo. Uma noite, sentiu-se elevar-se até os céus, seu corpo sustentado por uma luz dulcíssima e lá no alto ouviu uma voz, quase um eco ressoando dentro do seu corpo, como se seu corpo fosse uma caverna escura e alguém lá de dentro pronunciasse bem alto seu nome. Quis abrir os olhos mas desistiu, não queria desfazer o sonho. E mais uma vez ouviu, aquela voz de veludo, vinda de todos os lados, de todos os cantos do mundo e ao mesmo tempo de todos os seus orifícios, ordenar-lhe que mantivesse a pureza do corpo e da alma pois nas suas entranhas seria gerada uma dádiva, dádiva cujo nome explodiu em sons de uma ladainha entoada por um coro de mil anjos no turbilhão da sua mente… Arrebatada, desmaiou. Quando o galo anunciou a aurora, ainda atordoada pela visão, procurou compreender o que lhe passara. Estava certa


de que algo havia alterado seu destino. Correu até a prima e contou-lhe o sonho. Teve o cuidado de evitar contar tudo, omitiu o final, justamente aquele instante de terror que sentiu pouco antes de desmaiar. Não queria alarmar o estado interessante da prima que, interrompendo a tarefa, mirou no fundo dos pequenos olhos de Maria e mencionou que também tivera um sonho na noite anterior. Que vira, como a via agora, o filho que carregava no ventre conversar com o filho de Maria mas não atinara sobre o que conversavam mas viu que o semblante dos meninos ficavam turvos e eles começaram a chorar, um choro longo e dolorido. E foi aí que Maria compreendeu o que a fez desmaiar. Daria à luz a uma inocência destinada a passar por tudo aquilo? Não, não tinha, não se daria aquele direito, por mais que seu desejo lhe ardesse. Maria casou-se. Encontrou um moço bom, um moço que sabia conversar e encontrar prazer em ouvir suas histórias. Histórias que nunca mais parou de escrever assim que aprendeu a rabiscar as primeiras letras que o velho mascate lhe ensinara entre uma visita e outra. Histórias de um menino nascido por obra e graça do desejo, cuja missão no mundo era a de espalhar o amor por todos os cantos da terra. Histórias de uma passagem estreita no alto de uma montanha, onde só se passa um por vez e bem devagar. Histórias de um lugar onde homens e mulheres, transformados, vivem guardados da tristeza, do sofrimento, do temor e da morte. Histórias tão populares quanto as bruxinhas de pano que Maria, todo mês, exibe como cria sua na feira do povoado.



Medusa A Nerino de Campos

Generosa,

abarrotou minha caixa de entrada com mensagens ansiosas e vadias… Paciente, estudou criptografia apenas para entender meu sistema de senhas… Angelical, abriu meus arquivos à procura de uma desavisada página… Solícita, sacudiu cada livro meu à caça de uma pétala morta ou de um papel de bala… Meiga, somou todas as letras do meu nome para sondar meus desejos… Diligente, soldou uma aliança ao dedo como se illo tempore estivera escrito nas estrelas… Previdente, auscultou meus sonhos à cata de segredos inconscientes… Perspicaz, seguiu meus rumos através dos postes como se eu fora aquele de uma flor na boca…


Compreensiva, antecipou-se às minhas esquinas com olhares furtivos e ladrões… Animada, examinou meus bolsos à procura de enigmas e mistérios… Justa, cheirou minhas roupas em desconhecidos e inimagináveis perfumes…

busca

de

Lógica, interrogou meus passos em busca de inventadas pistas… Digna, fixou aquele olhar de censura à minha suposta devassidão… Decidida, matou-me numa manhã de agosto com uma dose cavalar de sarcasmo… Altiva, confessou-se numa sacristia de subúrbio a amaldiçoar ad nauseam o dia que me conhecera… Inocente, passou a apregoar aos quatro cantos que fora nas minhas mãos lúbricas que experimentara o pão que o diabo amassou.



Dorinha

Moça bonita, jeitosa, falava e se vestia bem, cheirava que nem flor de laranjeira misturada com jasmim… Alta, atlética, pele de veludo, cabeleira preciosa, dentes e unhas afiadamente cintilantes, covinhas num sorriso encantador mas, tinha um defeito: era desaforada, a insolente. O Zé Wanderley era bem-posto, relações excelentes, uma ruma de diplomas e fotos com personalidades na parede, citações em colunas sociais, trânsito livre, se não em todos, ao menos nos mais atapetados e limpinhos corredores e salões de portas escancaradas ao timbre do seu heráldico nome, estufava-se por compreender as armadilhas das aparências e dos meandros desta vida cheia de salamaleques e nove horas porém, arrastava um defeito: gostava de xumbregar. Aplica-se aqui o ditado: juntou a fome com a vontade de comer. Dorinha queria mais, muito mais e Zé também, ah como queria, tremia de tanto querer. Conversa vai, conversa vem, ficaram íntimos, daquele tipo de intimidade que nem às paredes confessam. Ele, a gozar daquele deleite, tratado a pão de ló, a ambrosia, a lambuzar-se naquele néctar qual menino que descobre todas as fantasias de um vasto e fecundo mundo de delícias.


Ela, a dar corda e muito mais, pois desejava mais, via mais e queria além mas, o negócio, aquele aceite, que faz a alegria dos causídicos, notou, cuidava ele de, mineiramente, empurrar com a barriga um tantinho avantajada. – Quando é que vamos nos casar, Vavá? – Logo, Dorinha meu bem, logo. Deixa o tempo melhorar. Mas tempo era coisa que Dorinha não tinha lá em muita conta. Começou a encontrá-lo à saída da repartição, no bar, na igreja onde rezava o terço toda terça na companhia do devoto grupo do Sagrado e Trapassado Coração… Até no cemitério ela apareceu, na primeira sexta do mês, onde ele ia, religiosamente, depositar flores no túmulo da estimada, saudosa e falecida esposa. E quando sentiu que era hora de lançar a carga da brigada ligeira, chegou em pleno expediente, tonitruante, muito a fim de comida japonesa e de uma esticadinha ao show do Vando, lá no Chinelão. Wanderley pesou, mediu, isolou as variáveis, riscou e rabiscou umas equações, consultou gráficos, tabelas, planilhas, traçou uma curva de tendência logarítmica, fatorou os resultados e teve diante de si um quadro, se não dantesco, ao menos digno de qualquer filme-catástrofe. Foi bom? Foi. Mas chegou a hora do basta. – Vandeco, fala sério, você acha que pode se divertir, comer do bom e do melhor, repetir o prato sem qualquer cerimônia e depois, assim na maior, chegar pra mim e dizer que não quer mais, que simplesmente acabou? Olha, o meu


tio, que o eterno o tenha em bom lugar, sempre dizia: rapadura é doce mas não é mole não. É, meu professor de direito canônico gostava de repetir: melão é doce mas apodrece fácil. Matá-la ali mesmo, diante da audiência? Apertar-lhe a garganta, não, simular acerto de contas, plantar provas, forjar ligações, quem sabe afogá-la em banheira de hotel, eletrocutá-la com o secador de cabelos, talvez lhe servir comida estragada, uma boa opção seria fazê-la beber o Tietê… Com uma boa banca, (e conhecia trocentas), poderia pegar uns quinze, cumpriria três… A vida é bela. – E pode tirar desta sua cara sem vergonha este ar de quem elabora conspirações contra minha pessoa, sei muito bem me defender, viu. Está vendo estas unhas? Já abri uma avenida na cara de um sujeito duas vezes maior que você, seo moço. – Dorinha, fale baixo, estamos em público, mulher. – Fala baixo é o cacete. Você me seduz com conversa mole e agora pede para que eu fale baixo? Pois sim, vou gritar a plenos pulmões para que a secretária, o boy, a moça do café, os porteiros, os faxineiros, os seguranças, teus pariceiros, o teu chefe, o chefe dele, o chefe do chefe de todos os chefes – raios que os partam todos… Que a cidade, o estado, o país, o mundo, o planeta, o universo e o fundo do fundo de todos os buracos negros desta e de todas as galáxias deste contínuo espaço-tempo saibam o pinto pequeno que é o senhor José Wanderley Mendonça de Albuquerque Figueiredo e Morais. Enjoou da fruta, neném?


Agora vai ter que comer o caroço. Acordo feito, bufunfa na bolsa, Dorinha saiu esbravejando que não se faz mais homens como antigamente. Pior não foi o desembolso, pior foi figurar no ranking dos comédias dez mais da praça. Pois é, aqui se faz, aqui se paga. Basta encontrar um igual.



Fofinha O propósito, é preencher o oco de sentido

É cedo… Ele ainda não deve ter feito a barba. Costuma tomar café antes de ir pro banheiro. Adoro suas manias… O jeito que se ensaboa… Contemplando cada pedacinho do corpo com o toque das suas mãos e dedos justos e suaves. Com justo quero dizer, na medida – não são grandes nem pequenas, nem fina nem grossa mas são suaves que nem pele de neném bem tratado. Ele usa cremes… Tem uma prateleira só pra eles. Depois do banho, quente e demorado, é uma festa de capricho… Três toalhas brancas, daquelas bem felpudas (uma pequena para a cabeça, uma média para o tronco e uma grande da cintura pra baixo), que bem podia aparecer em qualquer revista de moda. Adoro… Adoro o jeito como penteia o cabelo, ajeita a gravata… Adoro o jeito como assobia nossa música predileta e sai brincando com as chaves do carro… Não vou ligar. Ele sabe que aguardo, que tenho paciência. Ele sabe que gosto que se prepare, que use seu melhor perfume, que não tenha pressa em escolher a camisa, a calça, os sapatos, as meias… Acho lindo que tenha vaidade… É o que mais gosto nele… O cuidado com a aparência e aquele jeitinho todo especial de adivinhar meus pensamentos antes mesmo que eu pense. Que nem daquela


vez que me esperou com aquele monte de frutas e o vinho que a gente tanto gosta… Foi, com toda certeza, a melhor noite da minha vida… Um sonho. Hoje é o meu dia. Ele sabe. Desde que ficamos noivos, combinamos de se encontrar um dia da semana que nem dois desconhecidos. Para ver até aonde a gente vai. Deus me livre da rotina depois do casamento. Me dá comichão só de pensar. Mas agora não tenho porque ficar ansiosa. Vou deixar pra ficar ansiosa quando ele me disser que é dia da gente conhecer o nosso futuro apartamento. Ele que está construindo… Não fica no melhor mas, pelo menos, está num dos melhores bairros da cidade. É tão bonitinho ele cuidando dos detalhes… Tudo de primeira e exclusivo. Gastar dinheiro com decorador pra quê? Não vejo a hora dele me apresentar aos criados como a dona da sua vida… Se segura, sua boba! Cuida de parecer uma dessas estudantes de universidade. Finja que está de férias. Isso, assim, bem atraente… Voluptuosa. Que palavra gostosa. Voluptuosa. Me arrepio toda só de pensar ouvir isso saindo da boca dele. Mas não pensem que sou gorda não. Ele não gosta. Vive pedindo pra eu não descuidar da silhueta. Não desvia, presta atenção: Quando ele surgir na esquina finja que está perdida, chegue bem devagar perto dele, peça informação sobre alguma atração turística, um lugar bonito de se visitar… Dê asas a conversa, peça conselhos sobre onde ir… Ouse um pouco mais: peça pra ele tirar algumas fotos suas no meio do tráfego em poses ingênuas e sensuais… Talvez o melhor seja logo simplesmente tropeçar e cair… Cair nos braços dele, é claro. Braços que quando me


sustentam sinto que sou mais leve que uma pena, mais leve que o ar, mais leve que todos meus pensamentos… Nos seus braços dispenso o mundo e tudo o mais… Nos seus braços parece que nasço de novo num paraíso só da gente, onde todos os meus desejos foram, são e serão satisfeitos pela ternura desse meu amado e eterno amante… E quando as crianças, Aurélia e Miguel – ela a cara dele e ele a minha cara – pedirem uma história para dormir, não serei eu apenas a contar dos nossos sonhos e esperanças… Ali, ao nosso lado, Carlos Henrique permitirá que sua voz grave preencha cada canto, conserte cada erro meu de pronúncia e encontre significados que nunca imagino que possam existir e abra espaço na nossa imaginação até os limites do infinito… Que estranho pensar assim… Mas perto dele sou capaz de tudo. Ah, Carlos Henrique, meu astro… Não é atoa que tens nome de personagem de novela… Deus te fez e jogou a forma fora. Às vezes me pergunto se mereço tanta felicidade e logo respondo sem pensar duas vezes: mereço sim. Mereço isto e muito mais… Ui, parece que é ele… Não, o carro dele não é desta cor e ele tem muito mais cabelo e os olhos são verdes… E os dentes brancos que nem flor de lírio… Detalhe, ele jamais usaria esse monte de fitinhas do Senhor do Bonfim enfeitando o espelho retrovisor. – Aí, fofinha… Sai por quanto o programa?



Milu

Vocês não vão acreditar no que vi na pia do banheiro Uma mosca enorme Precisa avisar a faxineira para limpar o banheiro direito Ontem lá em casa quando meu marido chegou do trabalho num pé d'água daqueles Soraia e Valquíria tinham acabado de chegar da escola Soraia tem doze anos Valquíria ainda vai fazer sete Estão lindas minhas filhotas Não faço sexo apenas para reprodução Faço bemfeito e gostoso Só não gosto que fiquem me apressando como fez o Viriato logo depois de tomar um banho de mais de uma hora e a gente aperreada para entrar no banheiro e ele a porta trancada Vocês imaginam Fiquei louca da vida Porque o Viriato trancou a porta do banheiro O que ele está querendo esconder de mim Ah se for o que eu estou pensando faço o maior escarcéu do mundo Roda a baiana a paulista a cearense Eu sou lá mulher de levar chifre de homem Eu não Já avisei pra ele que não venha com graça Ele que me apronte pra ver só Acabo com a vida dele e da rapariga Ai que está fazendo um calor dos diabos Diminui aí um pouco o ar senão vou congelar aqui que nem pinguim Ah ah ah pinguim não congela Só pinguim do Viriato congela de vez em quando ah ah ah Deve ser essa tal de menor pausa Ele anda meio sem gosto Mas menor pausa não vou dar para nele Não vou não Quero todo dia e se bobear toda hora que


pra ele não ter nada para gastar na rua Faço ou não faço bem Ando com uma pulga atrás da orelha Viriato anda meio arredio se fazendo de besta dizendo que anda cansaço de todo dia a mesma coisa o mesmo feijão com arroz logo ele que nunca foi homem de andar com fastio Fico de olho Por estas e outras queria ter nascido homem Na próxima encarnação quero usar calças Falar nisso tem aqui uns negocinhos aqui roupas de baixo de deixar homem com baba na boca Ah trouxe uns salgadinhos também Alguém anda necessitada de sutiã Tem camisola também Linda não é um amor Vai uma coxinha aí Pra quem não trouxe janta Não me venham com esse negócio de regime que isto é mal pra economia Aí nunca mais vi a Rosália A Carmem anteontem me ligou e disse que a Rosália no mês passado bateu no hospital com um quadro alarmante de virose múltipla verdade Eu já fui operada num sabe Mas tenho o maior medo de hospital Fico toda arrepiada Sabe como é hospital público né a Carmem disse que mandaram ela aguardar em casa o resultado dos exames para daqui a seis meses Minha sogra passou por isto a semana passada e olha que a velha se cuida Mas de vez em quando tem uns ataque de asma Deve ser bronquite encruada Minha prima curou a bronquite com chá de hortelã Eu gosto mesmo é de um licor toda noite Gosto de licor com bolo de chocolate Faço um bolo de ameixa com cenoura no fim semana que é uma verdadeira festa Até os vizinhos querem comer do meu bolo Não consigo encontrar uma boa receita para preparo de peixe Alguém conhece Meu cunhado é pescador e me trouxe uns três de quase dez quilos cada Minha empregada bem


que podia preparar mas é preguiçosa Não quero mais saber de carne Meu médico disse que eu fosse tirando aos poucos Mas porque esperar O melhor mesmo é tirar de vez Ando me sentido mais magra e mais sintonizada com a vida Gente e este relógio que não anda estou com uma fome danada e o Viriato ficou de me encontrar na saída do prédio hoje a gente vai dar uma esticada por aí Semana passada eu fui a um pagode lá na Freguesia Menina nem te conto Apareceu um crioulo de quase dois metros de altura com a cara do Adriano e me tirou para dançar Deu o maior rebu o Viriato com todas na cabeça quis tirar satisfação com o homem e acabou levando a pior Tá lá com um hematoma desse tamanho no olho Mas eu gostei Que mulher não gosta de ver dois homens brigando por causa dela E teus meninos como vão Meus filhos não me dão paz quando chego em casa ficam me puxando de um lado para o outro cada um querendo uma coisa e eu sou só uma para atender a todos eles Fico acabada Que tal experimentar esta blusinha Tão delicada combina contigo O hidratante é baratinho Se pedir um perfume e hidratante leva um batom de graça Aceito pagamento pro dia dez A gente faz qualquer negócio Isto aqui é Brasil Ficou ótima justinha Parece que foi feita para você Combina com a cor do teu cabelo Gostou que bom Tem um suflê de abóbora cereais sem falar nas coxinhas e não se aperreiem abro vale pra todo mundo Pode deixar que eu anoto Vai um salgadinho Que gorda que nada Gente eu cuido do meu produto É de primeira Feito com todo o meu amor Podem ficar sossegadas tudo dáite e láite Não esqueçam do bolo de ameixa com cenoura um pedacinho


Alguém vai querer empada Fiz hoje pela manhã Gente vamos comprar Tenho que pagar um terceiro celular e a prestação do videogame que dei de presente de aniversário pro meu filho Jorge Paulo Pois é Em se tratando de filho eu não economizo Faço de um tudo por eles Depois a gente morre mesmo e aí vai pensar o que fizemos nesta vida Você sabe que eu te adoro não Eu gosto de tu também mas não chega tão perto senão vão pensar mal de nós duas É que este povo é cheio de maldade Aqui a gente tem que tomar cuidado com o que faz e fala embora a minha vida seja um livro aberto Está um começo de noite linda Estou precisando espairecer um pouco Jogar um pouco de conversa fora Gente como este trabalho cansa



Simone

Todo

dia fazia tudo igual. Assim vinha nos últimos quinze anos. Acordava às seis, banhava-se, preparava o café, levava as crianças à escola, passava no supermercado, pagava uma ou outra conta, telefonava para uma amiga, voltava para casa, ligava a televisão, preparava o almoço, trocava de roupa, telefonava para outra amiga, ligava o computador, lia os e-mails, enviava os relatórios atrasados para a empresa de consultoria que trabalhava, dava um ou dois pitacos nos sites de relacionamento que participava, saía para pegar as crianças, passava no escritório do marido e lá iam todos de volta para casa para jantarem, trocarem algumas palavras, ajudar nas tarefas escolares das crianças, verem um filme na TV e depois cama, talvez um pouco de carícias e… Dormir, que ninguém é de ferro. Nos finais de semana, uma saída pro restaurante, cinema ou teatro; uma visita, uma festa de aniversário, uma reunião de família, uma formatura, uma exposição… E assim ia dando conta de seus dias sem uma reclamação que fosse, sem um muxoxo qualquer, fazendo das tripas coração para não pisar no tomate, afinal escrevera certo dia numa página do seu diário adolescente que aos vinte e cinco anos casaria com um cara legal, teria duas filhas e viveria feliz para sempre.


O que havia esquecido é que “para sempre” nunca é para sempre, é enquanto dura. Como tudo nesta vida tem seu prazo de validade é preciso estar atento para a hora do baque, para a hora do dragão. O que a gente não sabe é quando será, em qual momento acontecerá. Às vezes a gente nem percebe mas já houve o baque, o dragão já apareceu faz tempo e tornou-se comensal. Nesses casos, a pessoa pode ficar se perguntado o que está acontecendo, porque as coisas não estão do jeito que queremos, porque nada anda, porque essa rotina e coisa e tal. E pode acontecer que sejamos surpreendidos. Para a maioria das pessoas a intuição nunca falha. Mas ela nunca nos dá a pista certa, é como um cachorro que late repentinamente sem nos dizer de pronto o que está acontecendo. Temos que ter a coragem de investigar. É nessas horas que podemos nos defrontar com surpresas, com o desconhecido. Naquela manhã de sábado, acordara na mesma hora, banhou-se, preparou o café para o marido e as filhas, recolheu a roupa suja, dirigiu-se à área de serviço, colocou na máquina de lavar, primeiro as peças menos sensíveis, calculou uma quantidade de sabão e ligou. Olhou no relógio, já eram passados quase trinta minutos das sete, decidiu aguardar mais um pouco antes de acordar todo mundo – estava preocupada com o casamento de uma prima logo mais às quatro, ainda não havia comprado o presente mas já sabia mais ou menos o que dariam e decidiu sentar-se. Com mãos cruzadas sob o queixo, fixou-se num ponto no ladrilho da parede, reparou num pingo de sujeira mas desviou o olhar ao sentir o corpo pesado. Algo lhe oprimia os ombros e


visualizou a imagem de um camelo. Emitiu um uh baixinho, quase irônico, no mesmo instante em que era arrancada da cadeira pela visão assustadora e brutal da máquina de lavar. Não lhe ocorreu perguntar o porquê daquele monstro sem cabeça, de boca enorme, estar ali diante dos seus olhos. Um dragão decapitado, mas, mesmo assim, movente. Quem o decapitou, foi a pergunta que surgiu enquanto era arremessada contra a parede por aqueles braços finos de fios, ardentes como brasas, a lhe queimarem a pele alva por debaixo do robe de seda. Debateu-se contra o amontoado de cuecas, calcas, meias, blusas… cuspidas por aquele estômago dentado… Lutou contra a falta de ar que azulava seu rosto sem maquiagem… As teclas presas, arreganhadas e famintas, buscaram o seu pescoço na tentativa de sugar-lhe a vida, toda a sua vida. Tentou articular um grito, tentou chamar pelo marido mas guardou-se: aquele era seu momento, aquele monstro era o seu monstro, necessitava vencê-lo mesmo que lhe custasse tudo, lutaria com unhas e dentes para derrotá-lo. Uma onda de energia varreu-lhe as veias num relâmpago. Deu um potente chute no que considerou o centro baixo da máquina, sentiu o pé machucado e arrastouse até o quartinho de despejo. Armou-se. De posse de uma vassoura e uma pá de lixo, partiu para dentro com tudo. Assemelhava uma ninja com anos de aprendizagem com o mestre de todos os mestres; Ártemis, lutando ao lado do pai contra os Gigantes; Atena, ao lado de Odisseu, combatendo os pretendentes de Penélope… Com a vassoura como espada e a pá como escudo, o estrago não foi maior porque aquele


barulho, aquela algazarra toda, finalmente despertou o esposo e as duas filhas que, assustados, correram para acalmá-la, abraçá-la, aconchegá-la e protegê-la. Sentaramna numa das poltronas da sala, entre beijos e toque gentis no seu sedoso cabelo todo desalinhado… Quando Simone, finalmente, decidiu fitar nos olhos da família, sussurrou com um sorriso maroto: – Sabem aquela máquina de lavar que pensamos em presentear a priminha? Melhor não.



Rosália

Querida

amiga, escrevo estas mal traçadas linhas para saber como vai você e ao mesmo tempo falar um pouco de mim. Desde que saí daí não tenho parado de pensar no que seria da minha vida se tivesse me casado com o Joelmir. Acho que foi melhor assim, agora tenho certeza de que meu casamento com ele não teria dado certo. Ninguém aguenta ser passada para trás assim com ele fez comigo. Na maior cara dura. E ainda por cima com aquela criatura que eu considerava quase como uma parente. Cheguei a levá-la para minha casa quando os seus pais tiveram que se mudar para Brasília. E no que deu você sabe bem. Na noite em que peguei os dois deitados na minha própria cama só pensei em morrer. Mulher nenhuma merece isto. Ainda mais que eu fazia de tudo por ele. Mas deixa pra lá. Vou levar a minha vida e esquecer. É só disso que preciso. E você? Espero que já tenha encontrado teu príncipe encantado. Não esqueça de me avisar quando ele aparecer. Quero acompanhar tudo, tintim por tintim. Não é porque me decepcionei que não vá me alegrar com a tua boa sorte. Desejo sempre o melhor para você. Você sim, é uma verdadeira amiga. Sinto muito a tua falta. Queria que tivesse outro jeito da gente poder conversar.


Olha, por aqui vai tudo mais ou menos. Estou trabalhando numa casa de família. Uma agência de emprego me mandou aqui. Ela é médica e ele engenheiro. Mas sabe como é, cada um no seu lugar. Moram num prédio bacana, com piscina, campo de futebol e tal, numa rua onde não passa ônibus, onde não tem um papel de bala pelo chão e tem segurança pra tudo que é lado. Cada prédio tem, pelo menos, dois homens vestidos de preto no portão e um que fica dentro da guarida. Tem uns que até estão armados. Às vezes me sinto como se vivesse numa prisão. Mas é quase isto mesmo, meu quartinho não tem janela e parece uma gaiola, tão apertado. Se eu tivesse mais estudo talvez conseguisse um emprego melhor mas, isto ainda vai demorar, ainda nem terminei o supletivo. Difícil é encontrar tempo para estudar. Começo meu dia às cinco e meia e tem dia que só consigo parar depois da meia-noite. Folgo apenas uma vez por mês. Mas vou levando, como Deus quer. Quem precisa tem que se sujeitar. O que mais me deixa triste é o modo como eles me tratam. A dona Ximena, minha patroa, vive me repreendendo, que não devo falar alto, que falar alto é falta de educação. O seu Horácio não perde ocasião de dizer que falo errado, vive corrigindo tudo que falo, chega a dar agonia. É tanto não devo, não devo isto não devo aquilo, que não devo assistir novelas, que não devo ver o Sílvio Santos, o Gugu mas, o que devo assistir então? Na minha televisão só pega isto. Não é que nem a deles, que parece uma janela, pendurada na parede e só passa


programas em inglês, como é que eu posso ter uma dessas se o meu salário mal dá pra eu guardar um pouco e mandar todo mês o que prometi pra mãe? Outro dia, a dona Ximena disse que devo sempre andar de uniforme quando saio na rua, mesmo nos dias de folga, que a cidade é muito violenta, que é para eu não ser confundida com ladrão. Vai vendo. Isto já está me torrando a paciência. Sabe o que mais me dói? É ser tratada como um ninguém. Sabia que nem em sonho empregado pode usar o elevador social? A gente tem uma entrada lateral e só pode usar o elevador de serviço. Parece que nós não somos gente. Esse povo parece que não caga, não mija, não chora, não tem sentimentos. Às vezes penso que eles acham que estão nos prestando um favor por nos empregar em troca de um salário mal pago. Ah, sabe que já tem dois meses que não recebo nada? Eles foram passar o fim de ano no estrangeiro, passaram quase vinte dias, e quando voltaram vieram com uma conversa que o limite do cartão tinha estourado e que eu aguentasse uns meses até a situação voltar ao normal. Eu perguntei quando eles iam assinar minha carteira. O seu Horácio me disse que eu não me preocupasse que ele estava vendo se a firma dele pode me contratar mas que isto demora e que eu tivesse paciência. Tenho deixado eles me enrolarem porque você sabe que não conheço ninguém por aqui e não posso voltar para Xaréu, não por agora, ou até conseguir esquecer tudo o que passei por aí. A vida não tem sido nada boa comigo, amiga. E ainda por cima tem o filho deles, nem acabou direito de sair das


fraldas e vive se engraçando comigo. Sabe o que o safado me disse outro dia? Que se eu deixasse ele entrar no meu quarto de noite, ele me daria uma televisão bem maior que a que os pais me deram. O danado vive me agarrando por trás, na lavanderia, na cozinha… É só os pais saírem pro trabalho começa o meu calvário. Vivo fugindo do engonço. Ele pensa o quê, que sou mulher da vida? Você me conhece, só vou para a cama com um homem que eu amar de verdade. Talvez este dia nunca aconteça, talvez eu acabe mesmo ficando para tia. Mas não vou ceder de jeito nenhum. Embora o peste pareça um artista de cinema. Eu sei o que ele quer. Não posso bobear, porque nessa parte eu sou o lado mais fraco da corda. Não quero sair daqui com uma mão na frente e outra atrás. E se ele me engravidar? Aí sim é que a porca torce o rabo. A família dele vai querer cuidar de mim e do meu filho? Duvido. Pois é, de amargura basta o que já tenho passado. Acho que ele pensa que porque a gente não tem toda a instrução deles não tem caráter, ou que a gente é trouxa. Pois estão muito enganados: quem faz aqui, aqui mesmo paga. Veja só como são as coisas. A filha dos meus patrões, nem se formou ainda e, uma noite, durante o jantar ouvi uma conversa de que ela ia para a Europa conhecer o mundo. Só vendo, parece que a casa veio abaixo. A dona Ximena disse que nem pensar, que ela tinha que continuar os estudos, que gastaram muito com o estudo dela e ela não podia fazer isto não, que ela ia ficar sem a mesada dela e coisa e tal e sabe o que aconteceu? A menina foi. Juntou o que tinha e foi. Ontem o irmão dela me disse que ela está lá,


trabalhando de doméstica para se sustentar. Pode? Só pode ser castigo, não é? Vou parar por aqui que já tá na hora de preparar a jantar. Até a próxima. Da sua amiga de sempre, Rosália.




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.