Instantes Paulo Laurindo
Imagem de Capa: Broadway Boogie Woogie, Piet Modrian Poemas originalmente publicados no blog Certos Contos Incertos
Todo poema ĂŠ uma desculpa para ganhar um beijo
1 Na caverna Permito que me toquem as imagens Brilham nas paredes ecoadas Soterradas de relâmpagos Cúpulas de claves ogivais Entoam notas mudas de um concerto Pontuam o traço pausas em espectro Um ângulo soçobra retocado No enlevo altissonante de uma curva Ondas reticentes respiram inexatas Sentenças acridoces exalam da rocha Acordes perfuram o hálito aveludado do céu O ruído incauto e suspeito ilude e frustra Desintegra o sentido figurado da paisagem Um corpo resvala na sirene Vozes amplificam a espera Rasga o sol uma ária inaudita Deslocada por completo do contexto Ó minúsculo mundo de lonjuras A calçada é um campo de opostos O asfalto uma via de mão única Na sala dormitam sonhos aguardados E nenhuma vocação para o mercado
2 Desnudos sentidos me despertam Uma canção abismada de nascente Surpreso busco retê-la malogrado Tola mágica que asfixia o silêncio Numa cantiga abusada de mistério Sombras bruxuleiam e me captam Rumos arrancam-me em alentos Cedo à cata de algo que me some Cerram-se os olhos rotos de ver Rotineiros olhos que me ramam No sussurro brando desse oceano Brilhos e clarões ingentes e castos Nomes sóis pulsantes de pronúncias Sintaxes puras auroras revivescidas Convocadas no eco desta chama Cavo é o que resta desta história Um fonema em forma de paisagem
3 No sussurro do vento Lateja a melodia Quiça pequeno gesto Suste toda agonia Na folha o acaso expande A letra que acaricia Ó que hora tão tardia Fraqueja lágrima Liberta o que seria
4 Não tenho mortos para enterrar nem túmulos para enfeitar Um dia voei através das nuvens e atravessei o mar Sereno em muitas brisas não cedi à vertigem das fronteiras Fui bem-vindo em tantos braços bafejado em muitos dons Dedos diligentes e suaves Balsamaram minhas asas com presságios Longe vi o dia e a noite recriarem suas órbitas e em uníssono Estrelas cantaram auroras em concertos virginais
5 Morrerei um dia O tempo que esperei valeu Logo parto Produto exclusivo do acaso Numericamente inconcebível Imponderável conjunção Incerto eis que vivo Quantas jornadas Indas e vindas tantas Nesta singularidade Entropia que me aguarda
6 O edifício de alamedas cintilantes Esvoaça o pardal em panfletos monocórdios A horta de alcalinos sussurros Contempla a arma de artérias basculantes Um pé mecânico dolente vagueia A cidade arde dança e fere e foi hoje Que a ácida cópula palmilhava o ar E na lâmina esse engastado gosto de baunilha
7 Vou no rumo, Dizia meu avô Analfabeto de letras Que não lhe dissesse respeito Pra que cálculo Se adivinhas Após o jantar Era apenas diversão – O que é teu Mas os outros usam mais? Ia no rumo, meu avô Quase sempre acertou No dia que pensou Ter dado o pulo do gato A vida ingrata o despejou Foi assim que meu avô O ingênuo ladino Ensinou-me a contar
8 De montanha a grão de areia em segundos Vale a vida essa pena ser vivida? Aquele sofre para compreender Aqueloutro diz que o trabalho enobrece Já disseram várias vezes que a virtude é o meio Conquanto desde sempre conhecer é poder comprá-lo Só desejo morrer para poder dormir Disse Hamlet um nobre convencional Mas num universo de fantasmas traições e vazios Há que se confiar em alguém de verdade? Do suicídio nem me falem os jovens Com seus catálogos de guloseimas e espirros polifônicos A última geração nesta nau de insensatos na qual vogamos Ponto obscuro da galáxia a encenar um melodrama familiar Familiar ao ponto de nos fazer indiferentes e esquecer Que não faz nenhum sentido viver ou morrer Eia então empurremo-nos colina acima Nós outros os condenados até que nos consuma Se vale a vida essa pena ser vivida
9 À margem de ofícios sonolentos Vigia impassível onipotente ponteiro Devaneios flutuantes martelam teclas pungentes Dedos ociosos acariciam tediosa garatuja Esgares e ais ilustram submissa hora Ainda bem que hoje é sexta-feira
10 Colho as idades e os versos todos saudade Nascidos assim dessas tardes quase outono O ar em minhas mãos e um sábado carnaval Vinho fumo e bálsamo Janaína estrela minha nadir Tua pele e a tua anima toda em mim querubim Ah que longa espera Mirabela este ocaso em mim Abalos sísmicos me açulem já invento um jardim Saúdo as horas e os fugazes instantes que vivi
11 Estala meu coração mas seja brando Preciso terminar o poema Por que a pressa não te apoquentes Se queres estalar estala Mas estala feito casca de semente Estala mas não estales inutilmente Nem deixe que a dor súbita te cause espanto Porque a dor esta dor nunca tem pena É sempre igual dor é dor e não combina Com o que tu meu coração dizes que sente
12 Meu coração é um estranho dançarino Uma fantasia um quadro de Ernst Um espelho um anjo que guardo em casa Meu coração irregular Desconfortável e rude Tão mal-entendido Quem disse que vai mudar Meu coração Deseja ser nascido de novo
13 A verdade nunca esteve t達o nua Desde o instante em que a impostura decidiu Desnudar-se do manto da vergonha e travestida Posar elegantemente de virtude
14 Em todo aniversário Divido-me em pedaços Quantos forem os abraços E em cada abraço compartido O meu melhor é ser contigo Pois em tua lembrança Eis-me de novo renascido
15 Apesar do mosquito Do volume morto a que chegamos Dos lucros obscenos dos bancos Dos políticos corruptos incapazes e estúpidos Da mídia partidária Dos ciclos intermináveis do ouro Das perenes e calculadas extinções Dos partidos dos inteiros e das fracções Das diásporas e migrações Da desigualdade militante Da justiça seletiva Da deliberada violência Do precário amanhã Das onerosas certezas Dos crimes de lesa natura Das indignidades humanas Das árvores sem frutos das cidades Da imobilidade urbana Da paralisia dos sentidos Das dores e omissões que esqueci e esqueço Do monte de cacos que junto todo dia Amanhã vou te ver meu amor
16 Ó minha tristeza Dá um tempo Vá te peço aflição Vá ver se estou na esquina Diga-me sem fingir Nasci pra sofrer saudade Bobagem Basta nascer pra ter um fado
17 Unidade orgânica sensível Limitada no tempo e no espaço Origem comum Reunião geofisicoquímica Sucessão infinita de relações Singular na história Traços característicos Capaz de pensar Sobre si e sobre as coisas exteriores Capaz de sonhar Fazer evoluir transcender Finalidade e propósito? Nomear-se e nomear o mundo
18 Na varanda meu olhar distante Mergulha nas águas da lua cheia Viajo nos acordes do poema Antevejo a calma no galope Teu mistério essa beleza Ocorra dia eu descubra Não te fará mais bonita Do quanto te sei agora
19 “Escrevo porque não gosto do mundo onde vivo” José Saramago
O que há de singular Em ti é teu sintoma Aquilo que ergues Pesado penas Querer é perder Viver é tencionar Ceder é existir e Precisar não padecer
20 Acordei e o dia estava azul Quando ouvi o gosto verde do mar Uma canção abriu-me a janela E meus olhos seguiram teu aceno Enquanto um beijo se desenhou o ar Porém a invejosa rua insistente Cuidou de evaporar meus pensamentos Manchar de anseios minhas palavras E emudecer as sombras enquanto chovia em mim Meu costumeiro mormaço Ó impiedosa esquina sois O limite do meu cansaço Sigo tarde neste dia azul que finjo Ser o futuro da minha dolorida saudade
21 Apenas um instante Este aquele e o outro E um outro aqueloutro Todos instantes Aqui agora amanhĂŁ E sempre pra sempre Quanto futuro Ficou no passado Quanto passado Nos restarĂĄ no futuro De quantos instantes Resulta a soma Desses tudo
22 Do alto deste prédio (Porque colinas não há) Contemplo incerto Uma praia horizonte Ah meu caro Nietzsche De tua imensidão poética Darias por falta Deste sublime teco De bom grado e livremente Escolhi um pequeno lugar No meio do paraíso Diante da tua porta
23 Quantas vidas Morres todo dia Quantas mortes Vives todo dia Todo dia Meio que sinto Este artifício Meu temor É amanhecer Imerso em vício
24 Deixemos de lorota O mundo é feio E ninguém é feliz A inocência tem prazo de validade O silêncio é o eco do grito E a beleza armadilha truque Nada é de graça Tudo é esforço e responsabilidade Encanta-se quem pode E eu nunca estive tão sozinho Viver é um risco calculado Um exigente faz de conta
25 No dia que conheci Eliane Brum Percebi que o tempo corria Que a vida seguia atrás E já não era a mesma Que tudo estava diferente Do que era ontem Ao lê-la percebi o quanto me foi arrancado Que um tanto de mim já não está mais aqui Que pedaços de mim simplesmente sumiram E ali vi então que o mundo marcha à minha revelia E não reconheci mais as coisas não reconheci Aquilo que até ontem me era próximo e familiar Quanto tempo passei sem reparar Que é assim que de repente tudo passa Tudo acaba bem antes da gente acabar
26 O mito é a meta E isso é só metade Sigo nesse esforço Esqueço de todo credo Se calo sei que padeço Se grito certo estremeço Em todo começo choro Em todo fim entristeço E se os passos meço É que vivo onde faleço O que trago inconfesso É simples é só excesso Essa pedra de tropeço Inteira no meu avesso Se não posso o que peço Vou pra onde amanheço
27 Patifes velhacos descarados Maliciosos insolentes desprezĂveis E outros que talvez queiras acrescentar Exigem gentilezas maneiras delicadas Tratamento nobre fidalguia Fofoque conspire intrigue envenene traia Mas nunca jamais grite Pois isto os magoa muito A corja
28 É fácil fazer o fácil Não requer prática Tampouco habilidade O fácil é fácil Em conta o menor esforço Se fosse difícil porque tentaria Qualquer desconforto Melindroso e dócil O fácil não dói Não exige não custa Fácil é ser fácil ó alma boa E provável ó corpo limpo E seguro ó mundo doce e estável
29 A cidade não me despreza A cidade me ignora Houve um tempo Que me divertia por aí Deitado na grama dos jardins A flertar com o sorriso das meninas Que passeavam por canções alheias Naqueles começos de tardes Em que tudo possuía um leve sotaque de sonho Uma breve atmosfera de porque Temia apenas as ressacas e os arranjos dos chefes Prontos para evitar e corrigir os impasses Houve um tempo em que tudo parecia mais fácil A bebida era sólida e o pão não derretia no ar Zelávamos por nossa inocência e tínhamos nome
30 Morrer é parar de envelhecer José Saramago Minha única certeza é que vou morrer um dia Penso nisso ao menos uma vez por hora Ao pensar na minha morte Ao tocar os limites da minha liberdade Compreendo outros e melhores modos de viver Afinal não a temo mas detestaria acabar dependente Doente e inadequado No meio da semana Atrapalhando o tráfego Meu ideal de morte Seria nalguma poltrona em final de dezembro Cercado de netos por todos os lados Ou talvez a terra possa se abrir E me receber com braços de amante generosa Ou quem sabe magicamente desaparecer Numa nuvem de borboletas Penso que essas mortes perdi-as anos passados Não fui um bom menino não tenho sido um homem bom Por isso pelo resto de tempo que me resta Continuo a pensar na minha morte O mais naturalmente possível Para não mais impingir castigo nem sofrer mais mal algum
31 Segue o teu destino Rega as tuas plantas Ama as tuas rosas O resto é a sombra De árvores alheias Ricardo Reis Duas noites Uma antes Outra depois Entre as duas Um dia breve Mitanga curumim-mirim Curumim curumim-guaçu Aba apiaba tijubaê Sentado ao sol Dono de si Contempla A eternidade Do instante
32 Quando me deixo levar pelo silêncio sinto Que todas as palavras do mundo já foram ditas Quem sabe inventasse uma novinha Para dizer ao teu ouvido esta antiga novidade Meu remédio qual é galega enluarada senão o perfume Da flor de laranjeira no teu travesseiro E o Dom José dos teus lábios? Sejas então meu barco e meu cais Que ando à deriva perdidinho de amor Sejas minha ilha meu refúgio que ando triste Neste enorme mundo de distâncias e perdições Sejas meu vento e minha inesperada calmaria Que ando desconfortável de tanto navegar abismos e constelações Por fim sejas minha doce estrela guia que jamais sussurrarei Em minhas noites de cansaço o teu lindo nome em vão
33 A obra em si mesma é tudo: Se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; Se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus Machado de Assis (Brás Cubas) É tudo cena Esta vida feita de atos Ah se a vida fosse um livro Se a vida fosse um livro E eu um leitor generoso e digno Talvez conseguisse entender O enredo além da página Se a vida fosse um livro Penso que agradaria àquele amor Iria ao limite e mesmo que me perdesse Teria como voltar renascido A tempo de compreender Que se a vida fosse um livro Este poema nunca teria ponto final
34 O filósofo não pode ignorar leis naturais O poeta tem obrigação de transgredi-las Na caminhada matinal Encontro na rua ao lado seu vigia A manobrar com esforço uma escada O “bom dia” costumeiro não veio Rindo ele brada – Se as coisas fossem pesadas pra cima A gente vivia voando Surpreso concordo E maravilhado prossigo Mais adiante estanco atrapalhado Se as coisas fossem pesadas pra cima Quantas toneladas uma borboleta pesaria
S達o Paulo, 2016