Dez Histórias de Horror e Mistério
Paulo Laurindo
Originalmente publicados no blog Certos Contos Incertos São Paulo, 2016
Imagem da capa: Boy and Skull, Magnus Enckell, 1893
A Mudança
Porque a vida é que nem um rio: Espremido entre as margens segue, Sinuoso, em direção ao mar
Como explicar? Foi assim, de repente. Quando a gente não conhece alguma coisa não é possível imaginála. Só pensamos o que conhecemos. Por isso nos assusta a surpresa. E leva um tempo até que familiaridade se instale, que aceitemos o fato consumado. Só aí é possível pensar no depois, no adiante. No início, uma dor de cabeça. Que começou a incomodar daí uns três dias. A ida ao médico resultou num pedido de alguns exames, uma receita e um retorno para dali a um mês. Um mês. É um bom prazo. Pra que tudo volte ao normal ou a gente perceba que o buraco é mais embaixo e a coisa começa a ficar feia. Batata. Exatos 30 dias depois, com chapas, exames e uma enxaqueca de matar o guarda, dei entrada ao hospital mais próximo com um quadro agravado agora com calafrios e medo, muito medo. Um medo inexplicável. Um medo de tudo. Um medo de mim mesmo. O médico que me atendeu pediu calma, disse que consultaria um especialista e voltaria no final da tarde.
Do leito em que me encontrava, dava pra ver o corredor. E o que vi me assustou mais ainda. Macas e mais macas atravessavam o meu campo de visão como um carrossel. Aquilo me enjoou e gritei pela enfermeira. Nada. Só um corre-corre generalizado, uns gritos, umas suplicas, ordens, pedidos, telefones… E a TV ligada num canal religioso: Só Jesus salva, só Jesus salva, só Jesus salva. Gritei novamente. Mais alto. Senti uma pontada nas costelas. Uma fisgada. Uma dor profunda. Uma dor em onda, vindo, vindo, vindo, crescendo, ganhando corpo, meu corpo. Gritei, gritei… Pedi, implorei, chorei… Rezei, conjurei todas as possibilidades, ansiei por uma mão, um ombro, uma palavra, algo que arrancasse de mim aquela dor que parecia vir do fundo do universo. Sim, aquela dor era universal. Todos e tudo a estavam sentindo. O universo gritava de dor. E ali, naquele leito revirado, quedei. Fechei os olhos e pensei no final. Uma hora a dor haveria de passar. Sumir. Voltar para o esquecimento de onde nunca deveria ter saído. Assim são as coisas: nada dura para sempre. Certo disto, respirei fundo e deixei que minhas mãos chegassem até o meu peito e que minhas unhas se cravassem sobre a minha pele em chamas. Gentilmente, meus dedos foram afastando os tecidos e penetrando até os órgãos, arrancando-os um a um. Um oco tomou conta de mim. E nem me preocupei mais em respirar, acabara de jogar meus pulmões na cama ao lado… Meus olhos, minha faringe, meu estômago, fígado, baço, rins… Tudo, retirei tudo… Ficou só o oco. E a dor não sumia. Foi então que percebi que tudo vinha do cérebro. Era ele que estava fazendo isto comigo. Decidi arrancá-lo também e me joguei de encontro ao chão. Senti meu rosto se espatifar, e pedaços de mim se espalharem pelo quarto.
Tinha me livrado de tudo e ainda sentia dor. Que mais me restava fazer? Imobilizado, sem vida, arrastei-me até a janela e senti a luz. Seria uma boa hora para respirar fundo mas já não me ocorria nenhum movimento familiar. Perdi completamente a noção de ser. Mas se eu não era mais eu, quem eu era agora? Foi aí que pisquei não com um mas com vários olhos e voei em direção ao sol e não senti mais dor. Nunca mais.
Primeira Refeição do Dia
Agarrou-o pelos cabelos e puxou. O corpo esquelético caiu de bunda no chão. Escorado na terceira vértebra lombar pelo bico do coturno ficou sem saber se gritava pelo puxão, pela queda, pelo chute ou pela humilhação. Na dúvida, deixou que a dor rugisse e não mais se debateu. Não que estivesse rendido. Não estava. Decidira a muito que viveria mesmo que por teimosia, de pura pirraça e não seria agora que daria o gosto de vê-lo fraquejar. Não senhor, aguentaria. Mais uma vez aguentaria. “É a vida”, pensou, “cada um na sua”. E a dele nunca foi diferente. Sempre lascado. E lascado por lascado, lascado inteiro. Só faltava uma coisa: um “berro”. Não uma máquina qualquer, mas um trêsoitão de responsa, importado, daqueles cujas balas, em vez de abrir um buraco, explodem em mil pedaços a cabeça do sujeito. Ao menos assim teria uma chance. Porque é foda não ter uma chance. – Entra aí, vamos dar um passeio. Por pouco, por tão pouco… Uma questão de passos… Se tivesse alcançado o outro lado da rua… Se aquela moto… por que a moto decidiu entrar na história? Se, se, se… – É, vamos levar a criança pro parque de diversão. A merda dessas situações é que você sabe o que te aguarda e mesmo assim, paga pra ver. Tudo é possível. Nada se parece com o fim. O fim é desconhecido. Tudo pode acontecer: os caras podem mudar de ideia; o carro
pode capotar; um avião, um raio… Um meteoro pode cair. Que tal uma nave espacial descer e abduzir todo mundo? Ou um super-herói que, pra cumprir a missão do dia, o salve no último minuto? Até Deus pode intervir. Taí, por que Deus não intervém? “Te desafio: faça este carro derrapar e cair num precipício. Mate estes dois filhos da puta e me deixe viver. Mas antes me responda uma coisa: quem foi o desgraçado que deu autoridade pra estes putos fazerem o que fazem com neguinho que nem eu? Estas bostas não merecem a comida que engolem e cagam: roubam, matam, estupram e de noite vão ao culto com mulher e os filhos. Miseráveis espalhadores de inferno. Todos teus servos, senhor. Armados e loucos. Tudo não é feito em teu nome? Sabes disto melhor que eu, que não inventei o mal deste mundo. Que sou apenas o efeito. Da tua semelhança. Mas não vou te culpar por nada do que me acontece. Sou homem, tenho responsabilidade. E digo: só por sadismo justifico todas as porradas que levei e que ainda levarei nesta latrina que é minha vida. Só pelo prazer da dor justifico não ter me tornado humano, igual aos que vejo no cinema, na televisão, nas revistas, todos sorridentes, cheios de saúde, de alegria, de futuro… Só por um ódio profundo de mim, me nego o futuro. Quero acreditar que na próxima curva o pneu desta viatura vai estourar e aí o careca perderá o controle e o carro rolará ribanceira abaixo se espatifando lá no fundo do buraco envolto num mar de chamas. Vamos, Deus, faça o teu abracadabra. Do resto cuido eu”. – Você acredita em vampiros? “Que porra é essa? Tiro, facada, fogo, veneno, os cambaus… Tudo bem, a gente sabe donde vem, o que é e pronto, mas isso, que papo é esse? Se quer me assustar, parabéns, conseguiu. Porque de todas as porras que
enfiam na cabeça da gente esta faz tremer as bases. Esse negócio de vampiro cheira a sexo. O que este cara está insinuando? Puta merda, é melhor morrer. Ah, se uma bomba atômica caísse sobre nossas cabeças agora. Pra não sobrar nem pensamento. Tudo, tudo menos isto”. – Falei com você, merdinha: acredita ou não? O veículo para. – Vem cá, vou te mostrar uma coisa. – Desce, grita o segundo. “Pra que se dá ao trabalho de dizer desce se me arrasta pra fora e me joga contra um muro numa quebrada escrota no fim do mundo”? – Encosta aí. E o golpe do cassetete rasga o canto esquerdo da sua boca seca. Um filete de sangue ralo escorre. Os olhos do policial tornam-se injetados, rubros. Com sede, os dois homens da lei, salivam diante da primeira refeição do dia.
Afeição Mortal
Definhava a olhos vistos a menina. Novinha e tão fraquinha, gente. Sem ânimo, sem cor, sem vida. Pálida e frágil feito folha de papel-arroz. Pelos cantos, desenxavida, voz sumida, aérea. Foi uma gravidez normal. A mãe com saúde, corada, roliça, apetite e disposição de estivador… Aliás a família inteira gabava-se de nunca precisar de médico ou remédio. A bisa se fora aos cento e vinte e cinco ainda enfiando linha no fundo de agulha, bebendo uma garrafa de vinho e tirando o gosto com fatias generosas de mortadela com limão todos os dias. Aos domingos era comum, ora na casa de um, ora na casa de outro, mesas ecléticas, fartas e francas: feijoada, macarronada, rabada, moqueca, churrasco… Tudo regado a litros e litros de cerveja, vinho e amistosas jarras de caipirinhas. No entanto, o que havia? No começo, achava-se que era dengo, excesso de mimo. Nos braços de uns e de outros, sempre coberta de carinhos, agrados e esperanças. Primeira filha em família grande sabe como é. Aquele monte de tios e tias, primos… A parentada toda de olho na posteridade: vai ser isso, vai ser aquilo. Mas depois, como explicar aqueles cambitos no lugar de pernas, aquela cabeça diminuta, aquelas órbitas fundas e cinzas no alto da cara, aquele cabelo escorrido e ralo, aquele nariz adunco, aquelas unhas de górgona…? Corre aqui, ali, exames, receitas, tratamentos, nada, nada dava resultado. Nenhuma esperança, nenhuma melhora. Apenas gramas e mais gramas de
peso, a cada dia, perdidas. Desse jeito vai sumir, era o comentário favorito desde então. Comer comia mas, não adiantava. Estava, como dizia os mais velhos, só pele e osso. O que acontecia? Que doença era aquela? Pensaram em recorrer às religiões mas desistiram. O pai desistiu. E fez promessa de buscar uma explicação, um diagnóstico, uma cura. Por que sua menina, aquele pedacinho de gente que toda noite dormia em seus braços, sofria? Pobrezinha, que destino. Pode morrer a qualquer hora. Jamais conheceria as delícias da vida, do amor, da amizade… Mas o mundo dá voltas. Um dia a verdade apareceria, clara, cristalina, radiante como sol de verão. E o pai obstinado virou, mexeu, consultou deus e todo mundo. Abraçado aquela maçaroca de papéis e chapas, resultados de exames, mil bulas, era de praxe vê-lo nos corredores das faculdades de medicina, clínicas e hospitais de ponta, a questionar diagnósticos, procedimentos, sugerir pesquisas, envolver-se em campanhas e voltar para casa arrastando o mesmo desânimo, o mesmo descrédito, a mesma impotência. Uma noite dessas, ao chegar em casa lá pelas tantas, exausto, seguiu até o gabinete – o quartinho das tranqueiras, como dizia a mulher. Arriou-se na velha poltrona e quase adormeceu não fosse um sobressalto. Pareceu-lhe ouvir a voz da filha. Impressão. Mecânico, ligou o computador e acessou a câmera colocada no quarto da pequena. Há quanto tempo não olhava aquilo? Instalada logo após o nascimento, a câmera ajudava a monitorar o sono da criança. Mas quem se lembrava disso? Há quanto tempo não via as gravações. Ficou curioso e resolveu assistir a última. Despreocupado, deixou correr. Que veria? Nada a não ser o corpo da filha
num sono inquieto, um sono agitado, prum lado, pro outro, seu rosto esquálido em esgares silenciosos. Baixou a cabeça e pareceu buscar forças. Foi quando ouviu novamente o gemido. Um gemido ou um grito? Definidamente, um pedido de socorro. Ergueu a cabeça e o que viu disparou seu coração. Quis gritar mas era tarde. Enquanto todos dormiam um sono profundo, acabara de sofrer um infarto fulminante, diria a atestado de óbito. No monitor, quem visse, não acreditaria na imagem, lutaria contra todos os pensamentos sensatos, não encontraria uma explicação plausível, estaria diante do inacreditável e, entre palpitações e engasgos, nos diria que vira o espectro da enérgica avó (que decidira morar com eles e insistia em dormir no quarto da neta) transparente, deformado, gelatinoso e embevecido a lamber e lamber o doce e inocente corpinho.
Monstros e Miséria
A um menino bonito ofereço o trono do mundo Dalton Trevisan Boa Noite, Senhor
Vivia de sono perdido. Desde tempos. Angústia viscosa. Acostumado atravessar longas noites de lá pra cá, de cá pra lá… Vez por outra, tomado de assalto no meio de uma cochilo, escorria ao encontro de buraco negro. Desassossego pensar em dormir. Nossos monstros são nossa miséria. Uma noite, tarde da noite, decidiu correr em busca das lembranças e antes que uma luz brotasse, realizara o penoso trabalho de separar fantasias de fatos. Descobriu o elemento, o motivo. Tinha em mãos o fio da meada. O homem quer vingança. O menino deseja sangue, muito sangue. Baba de lesma em dente de ouro. A alma vaga ganha corpo. Havia de ser rápido. Não haveria apelação no seu tribunal sumário. Para complicar o enredo, também ele em julgamento. Seu único medo: Matando-o, mataria também a si mesmo? Correria o risco. Era fraco da cabeça, invejoso. Acabou preso, arrombado dia e noite na cadeia, virou mulherzinha de gangue, comeu merda, bebeu catarro, cagou sangue, vomitou toda bondade e nada nem ninguém o salvou.
Mas deixou-se escapar e agora, por onde passa, sente os olhos dos santos e dos anjos cravados em si. Como é possível, santos e anjos são incapazes de ódio e no entanto, seus olhos ferem… Causei-te mal? Não, fui até decente contigo. Grandinho, podia ter gritado, corrido… Mas não… Posso dizer que foi consensual?… Morto, que mais direi? Queres o que? Profanar meu túmulo, moer meus ossos, misturálos à urina sarnenta de um cão? Adiantaria? Escapaste, esta é a verdade. Pense na possibilidade… Talvez eu tenha te amado. O que me inocentaria? Naturalizar-me?… Diante da sanha dos tormentos, naqueles porões famintos, não tive como provar nem uma coisa nem outra. Agora, terás a chance de redimir a nós dois. Cinco tiros. Um corpo. E o menino paralisado com medo de partir. Das sombras, emergem mulher e menina. – Nossa vez, diz ela. Jamais voltaria a dormir.
O Homem de Olhos Vermelhos
Yu é um velho assustado. Caminha arrastando seus enormes testículos. Horrivelmente magro, sem nenhum fio de cabelo no corpo, queixa-se do eterno cansaço. O velho Yu é um “laibon”: quem deveria construir pontes entre o céu e a terra. Mas Yu vive separado da sua aldeia. E bem longe da caverna onde um dia entrou para recolher guano e usar como fertilizante na sua lavoura. “Engai tudo dá, mas ele não gosta quando a gente pega coisa sem permissão. Neterkob foi criado pra isso. Pra ajudar na ponte. Mas Yu não tem forças e agora tem que carregar seu corpo feio por aí”. Na fronteira entre o Quênia e a Tanzânia, chovem histórias sobre homens que expelem sangue por todos os orifícios do corpo até a morte. Histórias que Yu desdenhou. Ali todos sabem que nas entranhas da montanha Kitum moram milhares de espíritos ruins que gostam de roubar a seiva e a alma humana. Yu pode ter escapado da terrível morte mas paga um alto preço por ter tocado naquela merda sagrada. “O pequeno virá destruir o grande”. Nas profundezas do tempo, algo aconteceu. Algo invisível despertou no fundo da caverna fria, escura e úmida. Algo foi morar nos intestinos dos resistentes morcegos. Um minúsculo filamento capaz de codificar sete proteínas, dotado de mecanismo que engana o sistema imunológico dos organismos que infecta, nasceu.
Mas não nasceu do nada. Desde muito estava dito que algo viria combater o mal que viceja na superfície do planeta. “Seriam os estrangeiros? Será por isso que Engai e Olapa detestam estranhos. Pois é, os forasteiros chegaram com suas máquinas. Máquinas famintas. Máquinas que arrastaram árvores que arrastaram terra que arrastaram bichos… Máquinas que fazem feridas no corpo da terra… Máquinas que despertam demônios…” O homem de olhos vermelhos caminha entre o vivo e morto. O homem de olhos vermelhos não chega a ser um homem. É uma coisa. Um passado tenebroso. Yu nunca o viu, mas sabe que está próximo. Chegará a qualquer momento. Yu não tem medo mas pensa que se pudesse voltar… “Agora compreendo a raiva de Engai. O espírito ruim veio roubar a beleza dos masai”. Diante da fogueira, Yu busca iniciar uma conversa com a sombra da sombra de Neterkob. Mas percebe que é tarde. Neterkob não o ouve mais. Neterkob partiu. Todos partiram. Até as vacas. Só sobrou Yu e o homem dos olhos vermelhos. E o encontro será inevitável. A Yu só resta aguardar o acerto de contas.
Os Cães Não Revelam Seus Sonhos
Faziam por diversão, era engraçado. O dia perfeito era sexta, mas podia acontecer em qualquer dia da semana desde que dois deles estivessem sem nada pra fazer. Isso a partir de quando, meninos ainda, moradores na mesma rua, decidiram fazer a primeira experiência com um gato malhado que perambulava nas redondezas. Acostumado a filar livremente a boia ora aqui ora acolá, foi fácil armarem uma arapuca no caminho do felino. O bichano, diga-se, por conta da velhice ou por não ser lá muito esperto ou talvez pela ausência do olho esquerdo, caiu feito um patinho no surrado golpe de um nem tão apetitoso petisco. Porém uma vencida sardinha, encontrada esquecida numa lata no fundo da geladeira da casa daquele que mais tarde se revelou o cérebro por trás das muitas e cruéis traquinagens, é sempre uma sardinha. O pobre miau sobreviveu ao ensaio, mas pelo tempo que lhe restou de miserável não mais vagabundeou, nunca mais olhou de frente para qualquer ser humano, preferindo se confundir com as margens plácidas dos riachos poluídos que cortam a cidade a lamber suas numerosas, profundas e pútridas feridas. Mas eis que o grupo cansou dessas pequenas travessuras e resolveu encarar coisas mais sérias. Abandonaram os pequenos animais. Começaram a encarar os de grande porte. E daí para o bicho homem foi um pulo. E não direi que a passagem foi tranquila. Não, o novo objetivo exigiu deles um extenso e exaustivo aprimoramento técnico. Por conta principalmente da
logística necessária que os permitisse perseverar naquele esporte. Sempre buscando os mais fragilizados, conseguiram realizar caçadas das quais se orgulhavam e costumavam ilustrar suas conferências nas constantes horas felizes. Prostitutas, homossexuais, índios, negros… Consistiam suas presas favoritas. Pela quantidade e disponibilidade. Podiam ser encontrados em qualquer lugar e a qualquer hora e o mais importante: ninguém jamais reclamaria a falta. As onze e dez, o telefone tocou. Combinaram o encontro para dali a meia hora, na Praça da Matriz. Seria uma daquelas noites em que o time estaria completo. Naquela noite, a orquestra faria soar o instrumento favorito de cada. Ocasião de demonstrar perícia e sabedoria nas respectivas especialidades aprimoradas ao longo de mais de duas décadas de prática e estudo. Gozaram antecipadamente ao constatarem que aquela seria uma noite diferente, talvez uma noite memorável. Haviam finalmente acertado que era hora de deixarem uma marca, de anunciar o partido ao mundo. Era chegada à hora da grande revelação, o dia do requinte, onde todo o know-how acumulado seria aplicado num único escolhido: aquela figura com o cabelo tingido de fogo, envolto em tanta sujeira que era impossível lhe discernir as feições, logo ali à sombra de uma marquise, a acariciar seu ensebado cão. Estavam de olho nele fazia dias. Tinham catalogado hábitos, trajetos e companhias. Finalmente o encontraram só. Bastava apenas que a armadilha funcionasse. E funcionou perfeitamente. O homem – era um homem? – caiu na cantada: uma noite de sexo, drogas e rock n’rool. Mas o cão não. Rosnou desconfiado enquanto o amigo disse quieto e ele obedeceu e ficou a olhar o estranho sexteto, entre risadas
e galhofas, sumir no fim da rua escura. Esperou sentado nas patas traseiras. Aguardou sem mover um músculo. E o assobio veio. Longo e agudo, depois trinado. Esgueirando-se, colado à penumbra, no sobe e desce das ruas tortuosas, o cão seguiu seu faro até um descampado, lá no fim dos trilhos da linha de ferro. Escondido entre as montanhas de sucata e lixo industrial, em meio as dezenas de armazéns fantasmas, assistiu os últimos e dilacerantes instantes do companheiro. Se fosse humano, teria vomitado, mas como era cão lhe ocorreu uivar, porém conteve-se para não atrair para si a ira daquele inesquecível quinteto com suas horripilantes manobras para extrair do homem sons e expressões inimagináveis. Após o festim, acompanhou-os na despedida da noite e gravou de cada um o local exato de morada. Quase manhã quando o cão conseguiu a atenção de praticamente toda a população de sarnentos da cidade, reunidos através de uma vasta rede de comunicação que chegou a incluir alguns ratos, pombos e milhares de baratas. Lá no ermo onde o camarada tinha sido dopado, torturado, esfolado, empalado, esquartejado, triturado e transformado em pó, diante de uma sôfrega plateia, o cão latiu sua indignação e revolta. E todos farejaram o ar em busca dos ignóbeis vestígios. E quem podia uivar, uivou em uníssono uma raiva e angústia que fez a lua estremecer de pavor. Dali, por cinco fartas madrugadas, e daí em diante, o cão e seus incontáveis e variados parceiros, não precisaram mais remexer o lixo em busca de alimento, afinal agora sabiam onde encontrar comida, a suculenta carne com a qual podiam encher suas panças como nunca sonharam em suas vidas.
O Homem que Ressuscitou a Morte
Quinhentos
anos. Já não lembrava a magia que usara. Teria sido mágica, a escolha? A motivação, esquecera. O motivo de aceitá-la. A imortalidade. Amor ou necessidade, ideal ou covardia, medo qual? Sabia que estava feito. Enquanto ele, cansado e eterno, entediado de partidas. Todavia. De acompanhar tudo e todos. Todas as lembranças. Sem exceção à regra. De possuir a si o tempo todo, mesmo que ainda e apesar. A troco, tal poder de sobrevivida? Merecimento de que, burlar a própria morte? Eliminando-a. Não a extinguira, ele mesmo? Recorda. E volta cada instante. A cada vez que finge-se de morto volta-lhe lembrança e o tormento. Que nem cicatriz. Ali, esculpida. Na alma. O fato, o acontecido. Aquela primeira escolha. Quinhentos anos. O forro da poltrona já mudara de cor e forma tantas vezes. Repetidas e incontáveis vezes. Quantos modos assumira, de quantos jeitos a dispusera até chegar àquele estado, relativo conforto? Havia sumido aquela ponta de mola incomoda, sim. Tão dura. A cutucar-lhe: tal lâmina, tal sangue, tal morte e coisa e tal. Enquanto permanece ali, sentado. Mais um tanto. Mais um pouco. Fica. Um pouco ainda tanto. Só. Uma eternidade. Urgente encontrá-la. Ressuscitá-la. Oferecer à vida qualquer sentido. Mas qual? Além das baionetas, dos fuzis, das ogivas, dos morteiros, dos obuses, dos balaços da polícia, das guerras químicas, das prisões ilegais, das torturas, dos vírus artificiais, da fome, das rodas dos automóveis, da fumaça, das cidades asfixiantes, do gosto
incerto da comida rápida, do desemprego, dos ambientes doentios, mas massas comandadas, das drogas, da violência gratuita, da banalização, da insensatez, da barbárie, da intolerância, das condições precárias, da miséria, das brigas de trânsito, das crises conjugais, das vinganças frias, dos genocídios, dos ciúmes, das paranoias, dos complexos psicológicos, das teorias conspiratórias, das escravidões, das servidões, do sadismo, da opressão, dos preconceitos, da arrogância dos juízes, da insolência dos burocratas, dos dogmas religiosos, das traições, das calúnias, da infâmia, da vergonha, do vexame, da injúria, da indignidade… Em qual rumo seria a morte encontrada? Teria que cometer novamente o mesmo crime, quantas vezes? Teria que produzir a mesma desgraça, pecar novamente contra o sagrado, buscar a maior de todas as aviltações, envilecer, degradar e degradar-se a um outro ponto sem retorno? Humilhar-se-ia outra vez no mesmo sacrifício? Devolveria a César o que seria de César e à esperança vácuo? Mas qual, qual injúria inda não cometera? Para que a roda rodasse e um novo sinal fosse exposto às testas e dele não restasse outro que não fosse pó. De qual ultraje novamente surgiria? Profunda afronta virginal sentença, fecunda teoria, outro teorema, outra teologia… Que outra justiça nos permite nosso senso enviesado de justiça. Trazer luz a luz, fazer surgir dentro da noite um outro dia, um outro sol, outro poema acontecido para o não sempre amém. Um poema sucedido de eras. Um inventado poema distante de toda rima. Por novo, de novamente, de outro. Modo. À maneira de um poema longo, longo quanto estes 500 vividos. Onde não existisse nenhuma alegria que não fosse morrer. Porém, uma morte decente, a morte que
nos compete, a morte que desejamos, a morte que queremos. Não aquelas outras mortes, a legislativa, a judiciária ou a executiva. Estas mortes que nos impomos. Uma só morte apenas. Singela e natural morte. Tal qual um cair de folha em plena manhã de outono. Um cessar de tudo quanto os antigos artigos contam. Um sumiço. Um sumiço abrupto, sem remorso e sem censura. Sem choro nem vela. Simples, que nem palavra amável. Que ao dizê-la, acabe. Com tudo e embora.
Não Tenho Cabeça Devo contar uma história ou sugerir cenas? Aguardaria que estivésseis interessados em jogos Foster Wallace Diário de Homem Vazio, Dublin, 1956 Ao amigo Saint-Clair Mello
Não
tenho cabeça… “Como é mesmo o nome dela”? Não tenho cabeça pra mais nada. É um buraco só, cada dia mais fundo. Decidi sentar-me aqui, assim posso observar todos que entram e saem desta birosca e talvez me lembrar dalguma coisa afora estas grades numéricas, estes gráficos, estas estruturas, estas formas… Num minuto parecem me dizer tudo sobre o universo mas logo se transformam em bobagens, tolices saídas da cabeça de um biruta, sem qualquer valor prático. Ela anda muito nervosa ultimamente. Andam todos muitos nervosos ultimamente. Andamos. Há uma urgência, um severo “para ontem” suspenso no ar. Será alguma tempestade, um cataclismo, um estado de sítio, a última guerra mundial…? Nada de bom é ouvido. Sim, há um nervosismo inexplicável, um efeito sem causa pairando… Como é possível, não haver razão para ela estar nervosa? Para nós estarmos nervosos. Nada, diz ela. Nada! Sempre lacônica, esta que estou a forçar minha cabeça a lembrar-lhe o nome. E nós, o que dizemos? Quando apenas ela fica nervosa, vá lá: é apenas ela a ficar
nervosa com algo que nem ela nem ninguém consegue explicar o porquê. Mas quando todos à volta começam a ficar nervosos, é bom botar as barbas de molho porque algo de muito sério e/ou grave está para acontecer. E eu não quero ser pego de calçar curtas. Um homem prevenido vale por dois, acabo de me lembrar. E é bom que eu lembre de coisas deste tipo, coisas que neste contexto não fazem o menor sentido. Embora saiba que a falta de sentido não resolverá o problema dela, vocês sabem: esta coisa dos nervos. Tenho perdido horas, dias a fio, a prescrutar o futuro. Meu destino e o dela, mas nada, nada mesmo se revela. Para ser sincero, alcanço quando muito um amontoado de bolhas opacas e densas a bubuiar bubuiando dentro do meu cérebro. Chega a ser divertido. Acaso fosse artista plástico e estivesse à cata de alguma ideia para uma instalação… Mas, qual! Não é por aí, estou à espera de algo mais prático. Aguardo algo mais útil, algo que possa explicar o nervosismo que têm atacado a todos ultimamente, principalmente a ela, que já não consigo lembar mais o nome. Ontem chamei-a de “ei, psiu”. Ela ficou puta. Disse que nunca lhe tive o menor respeito, que sempre fui insensível às suas emoções, desejos e vontades e que, quando nessas horas, passa a examinar o passado não vê virtude em nenhuma das minhas ações, só reprovação. E nisto se resume nossa relação. Um rosário de mágoas. Ah sim, disse mais: que está acorrentada a mim por estas coisas todas não resolvidas e pela pressão da sociedade que exige que ela seja o que sua natureza não aceita e que, enfim, não tem força ou coragem pra romper com este círculo porque cuidei de minar-lhe a autoestima. Do que diabos ela está falando? Ora, presumo que
tenha feito o que era possível fazer. Nunca fui melhor nem pior do que sou hoje, pelo menos me sinto assim, acho que sempre fui quem sou. Que mais poderia ter feito, que mais posso fazer para que ela se sinta em casa, amparada, amada, benquista…? E mesmo não conseguindo lembrar-lhe o nome não quero de modo algum que ela ultrapasse o regime das palavras. É melhor assim, para nós dois. Não seria útil para ninguém isto aqui terminar em tragédia grega. Surgiu-me agora: posso, a partir de hoje, começar a elogiar tudo que ela disser ou fizer. A mais completa fuleiragem dita ou feita por ela, em qualquer dia hora e local, posso lá estar a dizer que é a coisa mais maravilhosa do mundo. No fundo, penso que compreendo como ela se sente. Costumo envergonhar-me de muitas coisas. E nestas horas que não me sinto nada confortável costumo dar um tapa na testa na tentativa de me livrar de pensamentos incômodos. Às vezes funciona, noutras preciso trazer a parede de encontro à testa. Enfim, não tenho mais tempo para acostumar-me com outra pessoa – pressinto. Enquanto ela, terá que aceitar que não tenho mais cabeça pra nada e embora continue a jurar que farei tudo diferente (ela quer me fazer acreditar e chega às vezes a me convencer de que posso fazer diferente), quando as coisas começam a bubuiar dentro da minha cabeça sinto que perco um tempo danado a buscar entender o que realmente está a se passar com a gente e porque, de uns tempos pra cá, entre nós, tem aumentado o nível de nervosismo. De minha parte, acho que em parte tem a ver com o fato de que esqueci completamente o nome dela. Mas juro que tenho feito um esforço para lembrar. Onde foi que deixei minha cabeça?
O Despossuído
Acordei e não me vi. Pensei: estarei no banheiro, na cozinha ou diante da janela a olhar pro céu nublado nessa manhã com promessa de temporal? Esqueci. Dormi um pouco mais. Assustou-me o barulho de furadeira no apartamento do lado. Deve passar das nove. Atrasado. Tudo bem, tenho boa desculpa. Mas onde estou? Era pra eu estar aqui, vestindo as calças. Atravesso o corredor, vejo a porta do banheiro… Aberta e ninguém. Na sala, na área… Tampouco. Onde fui parar? É brincadeira: pique esconde, não tem a menor graça. Vamos, apareça, temos muito a fazer. Devo estar escondido em algum lugar. Debaixo da cama, nada. Guarda-roupa, estante… Devo estar nalguma daquelas caixas de bugigangas. Vasculho: como é possível perder-me, sem mais menos, do nada, assim. Não, certamente estou esquecido nalgum bolso de calça. Pretas, bejes, azuis… Nada. Na escrivaninha. Envelopes antigos, documentos, contas, recibos, notas, cupons fiscais e panfletos de propaganda… Onde? Em nenhum pacote, não entre as páginas das revistas, dos livros… Nem no lixo estou. Onde, onde então me esquecera? Tenho notado uma certa estranheza, umas ausências, sei lá. Deve ser a idade. Normal. Desgaste, só pode. Daí não ligar, deixar passar, não dar muita importância, mesmo porque sempre acabo me encontrando em algum lugar. Ora embaixo do tapete, ora nalguma prateleira, na caixa de ferramentas, no meio daquele monte de parafusos (não sei porque guardo tanto parafuso, pregos, pedaços de arame…). Teve dia que me encontrei sabe onde? Dentro do forno de micro-ondas,
encolhido, qual grão de pipoca esquecido de pipocar. Deu dó me ver naquele estado. Mas graças a ajuda do meu médico (cara muito legal) pude recuperar um pouquinho de mim mesmo, ali tão pequenino dentro das pílulas escarlates. Se não fossem elas… Teria alcançado a condição de… Sei lá. O que existe de mais ínfimo neste mundo? Pois é, grande mesmo só as menores coisas que me assustam. Tem horas que imploro um choque elétrico. Divaguei. Perdi o foco. Deixe-me ver: estava comigo na noite passada. Lembro vagamente, sentia-me feliz, em paz. Ah, sim: fiz alguns comentários logo depois de ter lido aquela história do homem que virou suco. Coisa improvável, disse. E mais: que os escritores procuram chifres em cabeça de porca. Dá nisso: piram na maionese e nos levam junto. Preciso de realidade, realidade nua e crua. Sim! Selei um pacto. De que não leria mais ficção. Foi isso. Concordei que doaria todos os meus livros ao primeiro orfanato que encontrasse na lista telefônica; que, dai em diante, me preocuparia apenas dos noticiários e de manuais técnicos; que isto bastaria para estabelecer um bom e saudável sentido para a vida. Pergunto: está acontecendo de verdade? Como é possível sentir-me assim, tão despossuído? Será que existe um termo médico que defina este estado? Se não existir uma denominação, se não constar de nenhum compêndio, se ninguém ainda mencionou tal façanha, terei oportunidade de virar objeto de estudo. Serei uma aberração, um descuido da natureza é o que serei. Volte aqui, negligente. Cansei desta mania de sempre optar pela maioria, deste desejo de ser igual a todo mundo. É isto mesmo que queres, sumir de vez de mim? Evaporaste assim, sem sequer deixar ao menos um bilhete, um abraço de despedida, uma palavra de adeus,
qualquer lembrança, conforto que seja, para os dias que se seguirão desacompanhado de mim, sem pai, sem mãe, sem entes nem aderentes e agora sem a mim mesmo para chamar de meu. Esquece. Vou trabalhar. Fazer de conta que tudo continua como antes no Quintal de Abrantes. No ponto de ônibus, com certeza, não estou. Talvez já esteja sentado diante do computador finalizando aquelas tabelas que comprometi-me entregar até o meio dia. Tudo é muito estranho. E ainda por cima este cartaz a gritar que traz o meu amor em sete dias. Simpatia garantida ou o dinheiro de volta. Não, o discípulo das sete deusas não pode ajudar-me. Gosto de mim mas não posso dizer que me amo. Será que tem a ver? Caracas, agora fiquei deprimido. Custa-me sangue, suor e lágrimas construir-me e agora esta é resultado? Abandono, sumiço de mim. Espera aí, mas aquele ali sou eu. Lépido e fagueiro como se não houvesse culpa. Que faço do outro lado da calçada? Volte aqui, seu safado, como ousa? Fiz que não ouvi, fingi que não era comigo. A cada dia aparecem mais doidos. Vou continuar meu caminho como se houvesse amanhã. Um passo de cada vez, receitou-me o doutor. Alguém do outro lado da rua parece que viu um fantasma. Melhor me proteger. Gente louca é capaz de tudo. E pior que não há um policial pra tomar uma providência. Eu, hein!
O Quarto Escuro “Só do amor há de surgir meu desdém e minha ave anunciadora; não do pântano” Nietzsche, Assim Falava Zaratustra
Tirara tudo? – Tem mais. – Onde? – Por aí, escondidos. – Estou atrasado. – E daí? O espaço precisa estar limpo antes da lua cheia.
– Que diabos tem a lua cheia com isto? – É o prazo. – Dane-se o prazo. – Como assim, pensei que tivéssemos um acordo? – Sei lá… É muita porcaria. – Agora não tem mais volta. – Estará limpo na lua cheia, satisfeita? Subiu a escada chutando os degraus. Aquelas biqueiras faziam um barulho miserável. O ranger das dobradiças o deixava mais irritado ainda. Permitira chegar àquele ponto e agora o prazo. O cacete! Desarmaria aquela bomba? Cansaço, saco cheio. Deu uma de bonzinho, falou manso. Mas, e o esporro de ontem? Ainda tinha nos ouvidos os gritos e as ameaças, ameaças que já estava acostumada a receber todas as manhãs embora fosse dele a tarefa de livrar-se das tralhas, teias de aranhas, ninhos de ratos e legiões de baratas e percevejos a impedirem
vida naquele cômodo. Talvez por isto. O cheiro acre da umidade gretando mofo nas paredes (pobre pintura – pálido e carcomido azul) infiltrou no seu cérebro a lembrança do momento em que decidira candidatar-se ao combate, quando simulara possuir culhões, determinado a trazer àquele ambiente um ar de bons modos. Agora, raiva e melancolia. Atolado em areia movediça: naquela cloaca (ou seria covil?). Nenhum imigrante boliviano seduzido pela fortuna se submeteria àquilo, com certeza, quanto mais crianças e muito menos uma mulher com pretensões artísticas. Muquifo. Era assim, destinado ao fracasso? Onde vivia o bom senso, a autoestima? Tinha que ser assim? Detonar, permitir que uma enxurrada levasse tudo pro ralo. Mania de reformar, de jogar uma capa por cima para depois dizer que sim, temos alternativa, criamos novas possibilidades. Mês que vem novos buracos, algum encanamento esquecido, uma precária instalação… Mexer na estrutura nem pensar, botar abaixo e construir deveras – fora de cogitação, pois não? É assim que o mundo gira e a lusitânia roda quando o prazer acaba. Ali, prisioneiro da própria lambança, comprometido até o talo. Vale a pena cuidar de quem não cuida de nós? Vamos lá, mecanicamente, só mais um dia. Amanhã será diferente? Já não cria. Só mais um dia, quem sabe… No mundo do GPS, com margem de erro de aproximadamente poucos metros, todos conseguem chegar aonde desejam, na melhor relação custo beneficio. Assim, vale a pena fazer cálculos? Somar, dividir, subtrair, multiplicar. Porque não permitir que as sensações induzam percepções e danem-se as referências espaço temporal? E esta contagem em escala descendente, tendendo a zero, zero que nunca encontra.
Poderia, se quisesse, atravessar aquela parede, não poderia? E porque o faria? Para flagrá-la? Jamais entraria no quarto para flagrá-la, embora sonhasse muito com isto (e ela nunca dera bandeira). Poderia entrar naquele banco e sair de lá impunemente com uma tonelada de dinheiro, quantos golpes na praça, resolveria? Poderia não cumprir com o trato, poderia deixar quantos projetos pela metade, poderia interromper a ação, poderia colocar uma bomba no alto daquele edifício, sair pelo parque atirando a ermo e depois sentaria no meio-fio… Curtir o escorrer da meleca pela sarjeta afora, poderia jogar toda a merda do mundo neste ventilador, não poderia? Então, terminaria o trabalho? Chega de brincadeiras enigmáticas. Diferença que se alastra e se alarga. Fosso, intransponível. Vai e vem, chove não molha, faz de conta, falta de… No tempo de colégio aprendera este modo de interpretar as coisas, como se soubesse tudo o que era para saber e mesmo nunca tendo acertado mais que cinquenta por cento das questões nas provas, continuava a dizer que estava acima disso tudo, que era só uma questão de tempo, um dia descobriria seu talento inato e aí o mundo iria ver com quantos paus se faz uma canoa. A outra ficara lá, a espera de que ele um dia voltasse, após servir ao exército, fazer o maior sucesso com uma banda de rock e ter conseguido comprar aquele anel de noivado que deixara prometido na tarde da despedida. Quantas histórias, quantos enganos, desde que… Chega! Bosta n'água não era. Poderia ser quem quisesse, a qualquer hora. Era alfa. O menino e a menina entraram. A menina deixouse sentar no primeiro degrau, enquanto o menino desceu dois e debruçou-se no corrimão.
– Está olhando o que? – Vai estar pronto no dia do meu aniversário? – Seu aniversário? – Sim, daqui a três dias, você esqueceu? Olhou a folhinha: lua cheia. Seguia por atalhos, travessas, vielas, becos escuros, sempre se esgueirando… Fugia de que? – Este quarto não possui janelas, vai ser difícil morar aqui! – Não vou morar aqui, será o meu quarto de brinquedo. Ali ficará o computador, adiante a estante, a televisão… Construí na escola um sistema solar, vou trazer para pendurar no teto, não é legal? – É, legal, um quarto assim, assim… Queria sair, como faz todo mundo mas, não era todo mundo, não era tão grande assim. – Volte para a sala. – Você prometeu. – O que prometi não importa. A menina fez sinal para o menino que apagou a luz. – Bem que a vovó dizia que esta casa era assombrada, disse a menina a correr na frente.