A Dona da Pensão

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Copyright 2014 by Leandre Dal Ponte

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, a gravação ou transmissão total ou parcial, através de qualquer meio, sem autorização expressa do autor

Depósito Legal na Biblioteca Nacional de acordo com o Decreto nº 1825 de 20 de dezembro de 1907.

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FICHA CATALOGRÁFICA

Catalogagação na publicação: Carmem Maria Macagnan CRB-9/498 Editor: José Fernando Nandé Projeto gráfico e direção de arte: Iko Pessoa de Mello Tiragem 3.000 unidades

Dal Ponte, Leandre A Dona da pensão/por/Leandre Dal Ponte. 2. Ed. Pato Branco: IMPREPEL, 2014 298p. il col. ISBN 978-85-98764-47-4 1. Saúde pública - Brasil

cdd 20 Ed.

www.adonadapensao.com.br

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Minha casa é um misto de pensão e rodoviária. É gente que do interior chegam a Curitiba em busca de consultas e tratamentos médicos.

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Prefácio - Quem luta pela vida não pode esperar 1 - Deus ora nos tira, mas sempre nos recompensa 2 - Mesmo na dificuldade, a vida nos dá coisas boas 3 - Estar do lado de dentro do coração das pessoas 4 - Acolher é oferecer abrigo em nossos corações 5 - Temos que entender a vida, ciclos e as mudanças 6 - Tem que se sentir útil para a doença não vencer 7 - A luta contra a doença é uma batalha constante 8 - Enquanto houver vida, que haja esperança 9 - Para vencer a doença temos que ser guerreiros 10 – Viver para o outro é ajudar nós mesmos 11 - O encanto da vida está no encontro de outras vidas 12 - A sombra da árvore que acolhe viajantes

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têm fé

e esperança Aos que

em seus corações

dedico este livro e a chave da

pensão 11


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a casa da vida

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Prefรกcio

Quem

luta pela vida nรฃo pode esperar 15


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O sol se levanta todos os dias e sob sua luz a vida se desenrola. Ele nos mostra que há uma ordem natural nas coisas e que seu calor é pura compreensão e dádiva do Divino que nos envolve. Mas, do que nos adianta esse passar constante, essas vidas que nascem e se renovam, século após século de transformação e sentimento, se não registramos para o conhecimento das gerações futuras nossas alegrias, pesares e padecimentos? Do que nos vale apenas sentir e não deixar gravado em algum lugar a energia de toda essa gente e a luz que brilha sobre nós nessa brevidade que chamamos de existência? Ao dar-me conta de quantas histórias vivenciei dentro das paredes da Casa de Apoio Ideal, percebi que seria possível escrever um livro, ou melhor, muitos livros, pois diariamente conheço pessoas e vivo com elas o drama e o sofrimento que é o “lutar pela vida”. São milhares que, assim de repente, passam a enfrentar uma nova realidade, jamais pensada ou sonhada, em que são confrontadas com sentimentos nunca antes experimentados; e que, de uma hora para outra, tornan-se lu-

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tadoras involuntárias, contra um adversário implacável chamado “doença”. Ao apanhar-me pensando nisso, logo me veio à pergunta: escrever um livro? E para quê? Motivos para não fazê-lo, naquele momento em que a ideia me ocorreu, foram muitos, mas, quando submeti essa pergunta ao tribunal do meu coração, a resposta me pareceu simples: devia fazê-lo sim. Escreveria, pois sou mais uma brasileira que desenhou a história da própria vida associada a muitas dessas histórias e vidas. Pois não é raro o dia em que preciso pegar pela mão e encorajar aqueles que sofrem não apenas com a doença – mas também com o descaso – a buscarem a fé e a espe-rança para não desistirem; buscar forças para que não parem de lutar e coragem para enfrentarem firmemente, talvez, o pior momento de suas vidas. Assim pensando, acreditei que este livro contaria uma grande história, feita de pequenas histórias, como retalhos, pedaços que se encaixam e formam uma vida; e que cada um que passa pela Casa de Apoio Ideal é mais um retalho que se junta nessa grande colcha de pessoas que caladas sofrem.

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Então, cada página do livro teria que estar destinada a juntar esperança e vida – simples assim –, numa costura a alinhavar também um grande grito entalado na garganta das pessoas. O grito de quem precisa de atendimento digno, O grito de quem tem urgência de viver, O grito da Raquel, O grito da Clarisse, O grito da Antônia, O grito do Patrick. Do João. Da Maria. Do José. Enfim. O grito dos anônimos cansados de esperar por promessas que não se realizam num sistema burocrático, muitas vezes injusto, e que se tem que contar com a sorte e muita fé para a busca da cura. Mais que isso, este livro tem o compromisso que trazer força e esperança para essas pessoas, gente que luta pela simples oportunidade de continuar vivendo e também mostrar que elas são importantes, mesmo que doentes ou com a vida por um fio. Elas, essas pessoas de quem aqui falo, têm nome, têm endereço e têm urgência. E que, assim, o grito dessa gente seja o grito de todos nós, que também sonhamos com uma Saúde melhor e digna para todos os brasileiros.

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Portanto, ao trazer à luz este livro, acredito que eu possa deixar nestas linhas um pouco da minha contribuição sobre a organização da Saúde em nosso país. Ao relatar essas histórias que pude ver na frente dos meus olhos, também poderei confessar que por inúmeras vezes me decepcionei comigo, tomada pela impotência de não poder ir além das minhas forças. Isso em razão de quase sempre me deparar com muitos entraves no caminho especialmente

a

vontade

daqueles

que

deveriam estar preservando a vida, ajudando as pessoas e em vez disso, jogavam na vala comum da indiferença o desespero do seu semelhante, por conta de trâmites burocráticos e descaso. Fatos lamentáveis, por mim testemunhadas e que custaram a vida de muita gente. Ao mesmo tempo em que deixo minhas impressões de cada história vivida e tantas vezes a minha indignação, ainda confio que será possível mudar essa situação pela qual passamos. E mudar para melhor. Mas para isso é necessário o envolvimento de pessoas realmente comprometidas com a saúde de nosso povo e que saibam o significado da

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compaixão e da solidariedade, sentimentos quase que extintos nos dias atuais. Eis, pois, o objetivo deste livro: apresentar a dura realidade do que é verdadeiramente ser paciente. Histórias reais, Porém, desconhecidas da maioria das pessoas. Nas páginas seguintes, lido com a fragilidade da vida, portanto, adianto-me no pedido de desculpas aos leitores e leitoras se acaso me considerarem dura demais na descrição da realidade. Este livro é todo real. Não há nele uma linha sequer de ficção, porque ele foi escrito a partir de histórias verdadeiras de gente de carne e osso. A única coisa que fiz, para não expor em demasia algumas persona-gens foi substituir nomes e localidades. Mais nada. Diante disso, não adianta dourar a pílula, dizer que o sistema é ótimo e funciona, enquanto todo mundo sabe que isso não é verdade. Há problemas sérios e urgentes a serem resolvidos. Quem está na situação daqueles que aqui descrevo pode tudo, menos esperar. Porque muitas vezes esperar sig-nifica o pior: a morte certa numa fila qualquer.

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Assim, vejo que alguns se agarram, desesperadamente, até mesmo à improvável possibilidade de recuperação para seus enfermos corpos, mesmo àquelas possibilidades que se lhes parecem as últimas.

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CapĂ­tulo 1

Deus ora nos tira, mas sempre nos

recompensa

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Capítulo 1

“Os filhos são herança do Senhor; uma recompensa que ele dá”.

Minha casa é um misto de pensão e rodoviária. São gentes que do interior chegam a Curitiba em busca de consultas e tratamentos médicos. Nos ônibus que na “pensão” estacionam, em regra quase sempre cheios, alguns dos pacientes estão acompanhados de seus familiares. São crianças, adultos, gente da terceira idade; pessoas simples com seus temores e incertezas, outras com dúvidas (Salmos. 127:3) apenas sobre o que a vida lhes reserva, mas todas, invariavelmente, com alguma esperança, mesmo as desenganadas por anteriores diagnósticos médicos. Em quase quinze anos nesse trabalho de acolhida, pude confirmar algumas verdades sobre o ser humano. Uma delas é que a esperança realmente nos move, nos sustenta a vida. Podemos ver isso nos 29


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olhos de todos: uma luz brilhante, a pulsar com calor, que diz da vontade daqueles que querem viver. Assim, vejo que alguns se agarram, desesperadamente, até mesmo à improvável possibilidade de recuperação para seus enfermos corpos, mesmo àquelas possibilidades que se lhes parecem as últimas. Para essas pessoas, o corpo pode estar doente – e até negar resposta ao que se quer – porém, o espírito para frente as impulsiona, reunindo nelas próprias descomunal força que não podemos explicar, mas que certamente tem por origem a esperança. Por isso, depois de ver tantas coisas, sofrimentos e recuperações impossíveis dentro do que se conhece na Medicina, caso me exi-gissem em única palavra definir o que é esperança, responderia sem medo de errar que ela, a esperança, é a vida. Não se vive sem esperança. Sou leiga em religiões, mas noto que todas pregam a esperança. Por simples observação ou curiosidade, verifiquei que, seja qual for a religião que nos é mostrada, a esperança está presente em seus princípios e ensinamentos. Porém, também observo que poucos conseguem entender em pleni-

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tude o seu significado. Dessa maneira, creio que, talvez, o sofrimento seja colocado em nossas vidas justamente para nos dar conta de que viver envolve um grande compromisso pessoal renovado diariamente com a esperança, porque a cada manhã dirigimos aos céus nossos propósitos de superação dos problemas que nos atormentam, pequenos ou graves, fúteis ou realmente existentes. Rezamos, oramos, pedimos, porque acreditamos, e acreditar é ter esperança e fé. Triste deve ser aquele que não dispõem do mínimo traço de esperança dentro de si. Essa ausência da esperança na alma deve ser o maior tormento para uma pessoa, o que não consigo imaginar e muito menos desejar a ninguém. De certa forma, todos os testemunhos de mo-mentos difíceis que aqui apresento em brevidade – verdadeiros presentes e dádivas para o meu coração, que expressam a esperança na vida, que também podemos traduzir por fé – deram-me um novo entendimento do que é viver. É como se eu tivesse um pacto, nunca combinado, de troca de experiências com essas pessoas acolhidas na “pen-

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são”, em que sempre julgo dar pouquíssimo em relação ao que ganho de amor, carinho e afeto, expressões da esperança que conforta suas almas. E escrever suas histórias é apenas uma pequena parte da minha enorme gratidão por essas personagens terem um dia compartilhado de meus dias, frequentado minha vida. Com esse pensamento e intenção, como se fosse hoje, aqui faço a lembrança de um drama, o da família Santos. Gente simples do interior, do Sudoeste do Paraná, com a filhinha Raquel de três anos que, já em tão tenra idade, embora nascida com saúde, passou a sofrer com um tumor na cabeça. Nos primeiros dias em que conheci o casal e a filhinha deles, principalmente, foi me possível ver a vida fluindo naquele pedacinho de gente, |criança de tudo. Nessa época, 2001, eu mesma preparava as refeições dos hóspedes da Casa de Apoio Ideal, que havia sido recentemente inaugurada. No jantar, eu costumava preparar sopas de arroz ou macarrão, que se recomendavam para uma pequena clientela que sofria

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de vários problemas de saúde. A própria mãe servia Raquel, mas retirava todo o caldo da sopa ao colocá-la no prato, separando somente o arroz e o macarrão para a filhinha, que não suportava mais sopa, em virtude de suas várias passagens por internamentos em hospitais. A pequena Raquel sofria assim, na sua pouca idade, com a impossibilidade de se comportar como toda criança. Com a doença, de uma hora para outra, ela perdera seu direito de decidir ou pedir até mesmo o que queria comer e a oportunidade de ser o que era: uma cri-ança com todos os seus desejos e caprichos infantis. Mas, da mesma forma que temos a esperança a nos acompanhar, temos também a fatalidade, que muitos traduzem como destino. Numa cirurgia para tratar o tumor, a pequena Raquel não conseguiu se recuperar totalmente e passou a viver no leito do hospital em estado vegetativo. Um tre-mendo golpe na fé de todos que aguardavam a recuperação da menina. Entretanto, não na esperança da família que se obrigou a mudar para Curitiba e acompanhar a evolução do quadro clínico de Raquel.

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Primeiro veio para nossa cidade o pai, depois a mãe e mais uma filha pequena, que passavam o dia em frente ao hospital aguardando os horários de visita, pela manhã e à noite. Ao chegarem à capital foram morar num bairro distante, exigindo que pegassem várias conduções para chegar até o hospital. De início, embora com a ajuda financeira da prefeitura de sua cidade para o aluguel e outras despesas, os pais não conseguiam cobrir todos os gastos, sobremodo o de transporte com a passagem de quatro ônibus diários. Dessa maneira, eles visitavam a criança pela manhã e passavam o restante do dia na calçada, aguardando para fazer a visita noturna. Foram várias semanas assim. Meses até. E é lógico que a situação nos comoveu. Um dia, não suportando ver mais tanto sofrimento, começamos a oferecer as refeições e moradia para a família em nossa casa. O pai, pessoa muito honesta e íntegra, em troca começou a fazer pequenos trabalhos de manutenção na Ideal. Não demorou muito tempo e o contratamos como auxiliar de serviços gerais. Depois de mais algum tempo, como atendente de

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portaria, com o controle quase que total na recepção das pessoas e seus familiares, até que chegasse a oportunidade de ele contratado como motorista de nossos ônibus, e também com sua eposa, como de auxiliar de cozinha. Os anos foram avançando e a pequena Raquel não tinha progressos em seu quadro, continuava em estado vegetativo. Mas, mesmo assim, a família persistia na esperança, com as visitas diárias ao hospital onde ela estava internada. A irmã de Raquel também cresceu e precisou ser estudar. Primeiro numa escola em que pouco aprendia. Mas, por meio de um pastor luterano, conseguimos uma bolsa de estudos para ela no Colégio Martinus, um dos mais conceituados da cidade. A realidade dessa menina chamou a atenção até dos professores: franzina, pequena para a idade que tinha, e compartilhando de todo aquele sofrimento com a doença da irmã, com a falta da mãe e de colo. Uma prova viva de que, com a doença, todos da família adoecem juntos. Além do mais, a natural atenção dispensada pelos ad ul t o s a s u a i r m ã i n t e r n a da , n ecessa -

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riamente a obrigava também a ser “adulta” grande e forte. Coisa muito difícil e que lhe acarretou dificuldades de aprendizagem e até problemas de convivência com os coleguinhas, pois ela relatava para eles todos os horrores de outro mundo paralelo e ignorado pelas pessoas, onde o sofrimento havia se tornado muitas vezes natural e a morte mais natural ainda. Mas isso seria minimizado com a providencial intervenção dos professores, que deram à menina a oportunidade de fre-quentar a escola em período integral, fato que a afastava, pelo menos por boa parte do dia, do peso enorme a que teve que carregar, especialmente para uma criança. Felizmente, soube enquanto preparava este livro, que a irmã de Raquel se tornou uma bela moça, continuando seus estudos e que acabara de passar no vestibular do curso de Odontologia. Mas voltemos à Raquel. Enquanto sua irmã iniciava escola nova, a mãe das meninas engravidou novamente. Uma ótima notícia para aquele casal que tanto sofria com a querida filhinha internada em estado vegetativo há quase oito anos. No dia 17 de janeiro de 2008, nascia a terceira filha do casal

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e, sete dias depois, Raquel morreria no hospital. A tristeza da morte foi precedida pela alegriado nascimento. Fato que nos fez meditar por muito tempo, retirando algumas lições que considero inesquecíveis e que, de certa maneira, nos servem de consolo em nossa fé. Lembro-me da atitude quase insana do pai que aguardava dia e noite, com chuva ou sol, na calçada do hospital, para ver a sua filha, quem sabe pela última vez. Da mesma forma, recordo-me de sua serenidade, de sua capacidade de tratar bem as pessoas, num perambular por entre a aceitação e a esperança. Um homem que sofria, porém sem revolta – e quantos que conhecemos que, diante do menor problema, ao enfren-tarem pequenas contrariedades naturais na vida se desesperam e passam a agir de forma agressiva, como se houvesse um grande culpado pelos seus infortúnios?! Não. Não há culpados. Porque creio que tudo acontece a seu tempo e com um propósito de bondade que desconhecemos. São histórias como essas que nos renovam a fé, pois se Deus ora tira, Ele sempre nos recompensa, porque insondáveis são os

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caminhos que o Senhor nos oferece. Assim, Raquel não passou por este mundo em vão. Ela, sem abrir a boca em seu lamentável estado vegetativo, agia como uma professora que, pacientemente, também nos ensinava a ter paciência e esperar por dias melhores. Enquanto Raquel não via as mazelas do mundo, o mundo ao redor de si se modificava e tornava-se mais belo. Seus pais e sua irmã, que a amavam verdadeiramente, se sacrificaram de todas as formas para seu bem-estar, mas, ao mesmo tempo, cresciam como pessoas dentro de uma realidade nunca imaginada. Se ela não tivesse sido, lamentavelmente, internada em Curitiba, eles poderiam ter continuado no interior, continuado suas vidas como haviam planejado, trabalhado com outras coisas e contribuído para formar uma realidade que ficou apenas em sonho, agora distante e, talvez, sem sentido. Nós mesmos, todos que conheceram Raquel, recebemos a graça de alcançar um pouco mais de compreensão sobre nossa natureza humana. Compreendemos intuitivamente o que se deve fazer, em repostas às perguntas dos grandes filósofos e

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homens de ciência: o que é viver? – E que hoje respondo: é doação, é amor ao semelhante, é ter esperança.

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Mas a vida é surpresa e às vezes sustos, bons ou ruins.

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CapĂ­tulo 2

na dificuldade, a vida nos dĂĄ Mesmo

coisas

boas 43


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Capítulo 2

Bemaventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia.

Na condição de “dona da pensão e supervisora de rodoviária”, conheci milhares de pessoas. Acompanhei a história de boa parte delas e me tornei amiga, algumas, inclusive, passei até mesmo a considerar parte da família, porque nos ligamos, conversamos e nos visitamos. Sinto-me muito grata a Deus pela oportunidade de viver assim: compartilhando a vida de outras pessoas, vivendo seus dramas e alegrias e podendo de fato ser útil em momentos . (Mat. 5:7) difíceis para elas. Pela minha casa e “pensão” circulam em média mais de 400 pessoas por dia. Gente do Paraná e também de outros estados. Procuro conversar e conhecer todo mundo na medida do possível. Tenho prazer nisso, em acolher bem, em tratar com respeito a quem aqui chega e, sinceramente, não 45


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espero nada em troca, porque isso já me faz muito feliz. E nesses meus agitados dias, uma das pessoas que tive a alegria de conhecer e conviver foi a Tânia. Na “pensão”, dos que chegam a gente, só se vai conhecendo a história aos poucos. E com a Tânia não foi diferente. Nunca perdemos contato, mas, somente agora, depois de alguns anos, ela me relatou em detalhes tudo que passou e que eu só sabia por partes. Havia seis meses que Tânia não vinha se sentindo bem. “Uma dor do lado esquerdo, debaixo da costela, estava me deixando preocupada”, contou-me. Quando a dor começou, ela procurou um Clínico Geral. O diagnóstico não era preocupante: dor muscular, porque, talvez, ela frequentasse academia e fazia alguns exercícios que pode-riam gerar aquela dor. Na época, com 38 anos, Tânia julgava-se com uma saúde ótima. Mas aquela dor continuava a incomodá-la. Como o tratamento não estava dando resultado, ela começou uma maratona, de consultório em consultório. Cada médico pedia um tipo

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de exame. Chegou até a procurar ortopedista e psicólogo porque não achavam o motivo da dor. Poderia ser psicológico, foi o que um deles disse. Ao todo, ela passou por onze médicos. Agora não era só dor, mas também febre e alteração nos hemogramas – que é um exame que avalia o sangue de um paciente e pode indicar alguma doença. Tânia já estava para ser encaminhada para Curitiba quando foi fazer exames de rotina com o ginecologista. Ao comentar sobre sua situação, o médico perguntou se ela tinha feito algum exame de ultrassom, porque poderia ser o baço. Tânia disse que não para feito tal exame e o ginecologista resolveu pedi-lo. No resultado apareceu uma lesão no baço. O especialista que fez o exame achou por bem não comentá-lo e a mandou procurar novamente o outro médico, aquele que a havia recomendado. Na realidade, Tânia nem queria saber o que realmente era. Ela me disse que, ingenuamente, ficou feliz por ter um diagnóstico e que poderia se tratar e certamente ficar bem. Somente em outro dia ela o levaria ao médico, que a estava tratando daquilo

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que nem sabia bem o que era. Ao mostrar o exame, toda contente, o médico começou a falar e Tânia parecia não entender muita coisa, como se ainda não houvesse “caído a ficha”, tomada que estava de um branco repentino na memória, sem ter a certeza se tinha ouvido direito. Tânia pediu para o médico repetir tudo e com todas as letras. E novamente, com a resignação dos profissionais, ele disse: “Você tem um linfoma e precisa procurar um oncologista”. O chão se abriu aos pés de Tânia. Ficou sem rumo. Suas pernas tremiam. Saiu do consultório desesperada, entrou no carro e telefonou para o marido que chegou quase que imediatamente. Ela só pensava que iria morrer. “E meu filho de apenas sete anos, que depende de mim para tudo, como iria ficar?”, perguntava-se em choro e desespero. O menino fora adotado recém-nascido, porque tanto ela quanto o marido supostamente tinham problemas de reprodução e não conseguiam ter uma criança. O casal entrou numa fila para adoção e encontrou aquele ser que veio a suprir todas as necessidades de pai e mãe. E, agora, aquela criança poderia perder sua mãe novamente.

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Tânia só conseguia chorar quando entrou no hospital do câncer de Pato Branco, região Sudoeste do Paraná. Uma senhora que estava lá esperando, talvez pra consultar também, aproximou-se para lhe dar consolo e disse que todos estavam lá pelo mesmo motivo, que era pra ter coragem e que tudo iria dar certo. Após o médico verificar os exames e examiná-la, ele resolveu marcar a cirurgia para aquela mesma semana, pois não poderia esperar mais tempo. Foram dias agonizantes e noites sem dormir, com tantas coisas passando pela cabeça de Tânia. Ela me confidenciou que só quem passa por isso pode entender: “O medo toma conta da gente, só em pensar que talvez eu não teria mais tempo pra ver meu filho crescer, é desesperador...”. E assim passaram os dias até a cirurgia, que transcorreu bem. Mas, logo em seguida, Tânia começou a passar por outros dramas: o tratamento quimioterápico; o sofrimento de todo mês enfrentar aquilo; a queda de cabelos, que deixa a autoestima lá nos pés.

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Dessa maneira, passaram-se nove meses e oito sessões de quimioterapia. Ela recebeu alta, mas ainda se preparando para a radioterapia que iria fazer em Curitiba. Antes, havia passado pela cidade de São Paulo, no Hospital Sírio-Libanês, para realizar o exame “Pet Scan”, que se detecta a existência de células cancerígenas no organismo. Muito parecido com uma tomografia comum, só que com maior precisão no resultado. Alguns dias mais tarde, Tânia recebeu os exames que comprovavam a cura. Seu organismo não tinha mais células doentes. Sobre esse momento ela me disse: “As lágrimas escorriam no meu rosto, como no primeiro dia em que entrei no consultório; porém naquela hora, as lágrimas eram de alegria, eu tinha vencido o câncer com muita coragem; enfrentei sempre de cabeça erguida sofrendo por dentro, mas firme. Não vou dizer que em algum momento não desanimei, principalmente à noite, quando o medo se transformava num monstro que me atormentava. Mas, durante o dia, eu procurava não demonstrar e sempre estive confiante em Deus, pedindo pela

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minha saúde; e todos a minha volta me animando e rezando pela minha recuperação, principalmente minha mãe, que jamais demonstrou desânimo quando estava próxima de mim”. Um ano após ter feito a última quimioterapia, Tânia tornou a se sentir mal, com muita cólica e dores de cabeça. Ela precisou correr ao médico e explicou: “o medo de ter que passar por tudo novamente nos persegue; então, qualquer dor nos assusta”. Marcaram o ultrassom para o outro dia, porque, a princípio, seria um mioma e, se confirmado, outra cirurgia seria necessária para eliminá-lo. Mas a vida é surpresa e às vezes sustos, bons ou ruins. Tânia me disse que nunca vai esquecer a cena: o médico realizando o exame sem nada comentar, “num silêncio de deixar a gente nervosa, simplesmente não falava nada”. Quando terminou, o médico, talvez tão surpreso quanto ela, comentou: “Tânia, você esta grávida! Não sei como, mas já está com três semanas!!”

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Imaginem o susto e o estado de espírito da minha amiga que completara 40 anos e recebia aquela notícia que desejara tanto. E aqui, eu coloco as palavras de Tânia para descrever aquela hora tão mágica: “Precisei passar por toda essa provação para receber aquele milagre. Sim. Só poderia ser um milagre, uma recompensa por tudo o que eu passei. Foi mais uma alegria pra mim e toda minha família, não teve quem não chorou quando dei a notícia. Hoje, meu filho, a quem dei um nome de anjo, está com cinco anos e tenho certeza que foi um presente de Deus. Ele, junto com o nosso primeiro filho, completa nossa felicidade. Não sei o dia de amanhã, ninguém sabe. Mas sei que Deus me deu uma família para amar e completar minha felicidade”. Ao ouvir atentamente essa história, constatei a verdade no ditado popular que diz que Deus escreve certo sobre linhas tortas e que Ele sempre nos guarda uma surpresa, que, às vezes, podemos julgar ser algo ruim, mas certamente não é, porque somente Ele conhece em profundidade nossos corações e reais necessidades. Havia em Tânia o desejo de maternidade que foi suprido num belo

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gesto de adoção. Ela tornou-se mãe e demonstrou seu amor por aquela criança já no primeiro momento em que soube de sua grave doença. E se perguntava o que seria dela, ainda com sete anos apenas, com a vida toda para ser vivida. Que fizera aquela pobre criatura para merecer o desaparecimento de duas mães em tão pouco tempo? Quem cuidaria dela com tanto amor e carinho? – Ao tomar conhecimento desses fatos, é justo pensar que aquela criança cumpriu também o seu papel, porque ela despertou em Tânia todas as forças para que o pior não acontecesse. Foi a criança desconhecida num primeiro momento e o desejo de criá-la que fizeram minha amiga se empenhar nos tratamentos, buscar a cura, manter em seu coração a esperança de que tudo iria melhorar. E que principalmente o pesadelo iria acabar. E num e-mail que recebi, Tânia nos recomenda: “Nunca desista. Por mais dura que seja a realidade, não esqueça que existe um Deus acima de você que tudo pode.Confia nele e lute por você. Arecompensa virá quando você menos espera!”.

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estar com o outro implica em interação

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Capítulo 3

Estar

do lado de dentro coração do

das pessoas

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Capítulo 3

“Amá-lo de todo o coração, de todo o entendimento e de todas as forças, e amar ao próximo como a si mesmo é mais importante do que todos os sacrifícios e ofertas".

Intriga-me o amor incondicional, aquele em que as pessoas não se importam com a própria vida para salvar a vida de outra criatura. Caso nos fosse possível arranjar uma escala para medir o amor, creio que esse tipo de amor, o incondicional, estaria na primeira posição, pois é inquestionável, porque é a verdadeira essência de tudo aquilo que prega a filosofia cristã e todas as religiões: o amor ao próximo. Sei que neste mundo repleto de egoísmo e às vezes até mesmo hipócrita, falar do amor ao semelhante parece algo desconexo da realidade. Neste Século XXI, iniciado há (Marcos 12:33) pouco mais de uma década, as notícias que escutamos, ou acessamos por imagens na TV ou na internet, não são nada animadoras: fala-se de tudo, da violência em todos os 59


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cantos da Terra; fala-se dos abismos de ódio que os homens cavam diariamente para si mesmos, porém, pouco se fala do amor, daquele que vem do fundo da alma, que não é exigente e que não pede algo em troca ou pagamento. Aliás, espalha-se pelo vento do ceticismo justamente o contrário disso: tudo tem seu preço, tudo virou mercadoria que pode ser comprada, vendida e negociada, até o próprio amor. Por isso, dedico este capítulo para os desacreditados, aos que, infelizmente, perderam por um mo-mento a fé e guardam em seus corações mirradas esperanças quanto ao valor do espírito do homem. E digo aos que custam a acreditar que esse verdadeiro amor límpido e desinteressado possa existir. Ele existe e várias vezes tive a oportunidade de presenciá-lo. Poderia citar vários exemplos para ilustrar o que digo, mas apenas este será suficiente, porque é o testemunho dessa esperança que devemos ter na humanidade, aqui abordada a partir de uma notícia de televisão que, por vias indiretas, também me colocava dentro do contexto do que

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vou contar. Num domingo de fevereiro de 2012, já próximo das nove da noite, enquanto preparava o encerramento das atividades daquele dia na Ideal, escutei a repórter da TV anunciando: “Transplante inédito: filho e afilhada doaram parte dos fígados para o assessor de informática Darci Bladt no Paraná”. Imediatamente pensei comigo que um grande passo havia sido dado e que se Deus quisesse, e haveria de querer, tudo terminaria bem, pois esse anúncio era apenas parte do desfecho da história da minha amiga professora Ivone e seu marido Darci que, pela simplicidade, ganharam um lugar no meu coração desde nossos primeiros contatos e conversas. Digo parte, porque, ainda, naquele domingo, paciente e doadores estavam internados na UTI, esperando a recuperação de suas cirurgias. O que nos colocava emr orações para que tudo transcorresse da melhor maneira possível. O drama do casal, como a própria professora nos descreve em livro, iniciara-se a partir da luta enfrentada pela família contra o vício do marido e que se transformar em doença. Para a dedicada esposa, ao

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lidar com o alcoolismo – e, depois enfermidade – surgiam pelo menos duas grandes indagações: quais são os motivos que levam uma pessoa a trocar a feliz companhia de seus familiares por esse vício? Como um pai amoroso, dedicado e trabalhador consegue de repente trilhar um caminho obscuro que tanto mal fez a si e àqueles que o amam? Ainda sem encontrar as respostas para suas per-guntas em momento tão aflitivo e que mexia com toda a sua família, Ivone descrevia as consequências: “Como resultado da terrível opção pelo vício, veio as primeiras crises, que o levou aos comas, às internações e deslocamentos, geralmente à noite, e ao diagnóstico do agravamento da doença por meio de uma encefalopatia, em que o doente passa a ter crises constantes de alteração neurológica, afastando da realidade”. Ivone havia, portanto, tomado consciência de uma situação nova e desesperadora. E de forma abençoada, no meio das atribulações e dúvidas, ela encontrou forças na mesma fonte em que todos buscam a refrescante água para suas inquietudes:

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na fé. Para ela, como descreve, restava dobrar os joelhos: “Sim, força e serenidade para discernir nesse momento (...). Sim, torcida pela vida dessa pessoa tão amada por todos e tão esquecida de si mesma”, pensava Ivone. E foi com a força do pensamento positivo e a crença em Deus, que a professora e o marido entraram na fase da peregrinação aos consultórios, marcada pelo desânimo de alguns e as forças positivas dos “anjos” que surgiam nas suas vidas, desde um motorista de ambulância, atendente em posto de saúde, enfermeiros, até médicos e autoridades públicas bem dispostas e conscientes da responsabilidade de seus trabalhos. Ivone é uma pessoa fabulosa, pois mesmo nesse sofrimento todo, ela encontrava tempo para meditar sobre o que acontecia. Tempo para agradecer as orações, carinho e a troca de energia em torno do mesmo pensamento que era a recuperação do marido, que ela mesma chamava de alma gêmea. Eram manifestações de pessoas anônimas em sua maioria, que ela conhecera durante os internamentos nos hospitais, enfim, por onde andava,

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além de alguns membros da própria família que estavam sempre por perto. Mais tarde, ao analisar esses tristes dias de expectativas, ela notou, por muitas vezes, que. embora algumas pessoas estivessem próximas, não estavam juntas, pois para Ivone o “estar com o outro implica em interação”. Esse era o seu pensamento inspirado por Leonardo da Vinci, esse grande sábio da humanidade, verdadeiro ser de luz, que um dia disse que “para estar junto não é preciso estar perto e sim do lado de dentro”. Neste ponto, a professora nos mostra como é gratificante sentir que as pessoas realmente se interessam pelo seu problema, ao ligarem, ao conversarem, ao darem uma palavra de alívio e incentivo. Coisas que, às vezes, nosso coração só fica sabendo depois, porque foram feitas no mais firme propósito de ajuda desinteressada. Como sua irmã distante, que ligou para ela para dizer que as pes-soas de seu círculo haviam completado o número de mil ave-marias na intenção da recuperação de Darci. Não obstante todo esse carinho recebido de anô-

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nimos e desconhecidos, parece que a vida exigia ainda mais do casal, pois os médicos comunicaram à família que um transplante de fígado seria o único caminho possível para salvar Darci. Porém, eles se perguntavam: transplante de que forma? Teriam que esperar na fila? E será que encontrariam em tempo hábil um doador compatível? A solução para todas essas dúvidas demoraria um ano para ser dada integralmente. Com a necessidade do transplante, os familiares foram orientados a procurarem, entre eles, alguém com o mesmo tipo sanguíneo para a doação e com um grande detalhe: Darci tinha um sobrepeso e precisava de um fígado que suportasse trabalhar numa pessoa com o seu porte físico. Depois de alguns exames, não foi encontrado um fígado de tamanho compatível, embora Natanael e Julian, o filho e a afilhada do paciente, apresentassem a compatibilidade necessária. Assim, um paciente cirrótico, com peso aproxi-mado de 70 quilos, precisa da doação de um fígado em torno de 560 a 700 gramas. Pesando 86 quilo-gramas, Darci precisaria de um fígado de cerca de 860 gramas.

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Os médicos informaram que Natanael e Julian, individualmente, nada podiam fazer, pois não tinham volume de tecido hepático adequado, em margens seguras para garantir o sucesso da cirurgia e a sobrevida do receptor. Um desalento para todos, principalmente para os doadores, que não vacilaram nem por um momento na intenção de doarem seus órgãos para salvar a vida de Darci. Eles torciam por uma solução porque em seus corações já haviam se decidido movidos pelo amor incondicional que citei no início deste capítulo. Amor que nada mede e nada pede em troca. Os dois jovens, o filho com apenas 22 anos e a sobrinha com 26, pouco se importavam com os riscos envolvidos, o amor falava mais alto e pouco valeria a vida se eles não fizessem algo para aquela pessoa que eles amavam muito. Em Curitiba, depois de mais um internamento de seu marido na Santa Casa, Ivone debatia-se com a necessidade do transplante, única cura possível para ele. Mas havia fila para isso e, além do mais, os critérios médicos de encaminhamento colocavam restrições a pacientes com o quadro de

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encefalopatia do seu esposo. E foram novamente os “anjos” que a ajudaram a superar mais este obstáculo, apesar da burocracia que envolveu o caso, havia a mobilização de pessoas anônimas, autoridades e políticos para autorizar o transplante. Diante da necessidade urgente de um novo fígado para o marido de Ivone, os médicos do Instituto para Cuidados do Fígado (ICF) opinaram por um transplante em que não se utilizaria um órgão proveniente de um cadáver, como normalmente ocorre em casos semelhantes, e sim partes do fígado de doadores vivos de mesmo tipo sanguíneo. Nesse momento, é fácil imaginar a alegria dos possíveis doadores, Natanael e Julian, que estavam prontos desde o começo para fazer qualquer coisa na tentativa de salvar a vida de Darci. A técnica, proveniente da Coréia do Sul, exploraria a capacidade regenerativa desse órgão, quer seja no paciente, quer seja nos doadores. Um dos médicos explicou depois para a imprensa que havia resistência das autoridades em

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autorizar a cirurgia que seria realizada em Campina Grande do Sul, Região Metropolitana de Curitiba. A resistência das autoridades nacionais da área de saúde estava centrada no risco do transplante intervivos, em que se colocavam em perigo a vida de três pessoas, o marido de Ivone, que estava precisando da doação, e os doadores, o filho deles e a sobrinha. “Retirando uma porção menor, mas de duas pessoas, conseguimos a quantidade de fígado suficiente para quem está recebendo”, explicava um dos cirur-giões que haveria de participar da cirurgia de transplante. E aqui faço um parênteses dedicado à burocracia que permeia as repartições públicas de nosso país. Fato lamentável, principalmente quando se trata de salvar vidas, porque inventam regras e se esquecem das particularidades de cada caso, de cada paciente. O problema todo esbarrava na permissão necessária das autoridades para que os médicos realizassem o seu trabalho. Além do mais, o SUS não cobriria os gastos com dois doadores e com isso os documentos necessários para

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a liberação da cirurgia dormiam em alguma gaveta de Brasília. Por telefone as coisas não aconteciam. Ivone havia conseguido um número de telefone para cobrar dos responsáveis a aceleração do processo. Ligava, ligava e ligava. Em todos os horários possíveis. Manhã, tarde, de madrugada. E nada. Nem mesmo atendiam – A quem recorrer? A solução foi localizar pelo Google o endereço da repartição pública responsável e começar a passar e-mails com a ajuda de amigos. Inclusive grupos de motociclistas se envolveram nos apelos numa grande corrente pelo transplante de Darci. Até que o assuto chegou ao Senado e o processo começou a tramitar novamente. Logo veio a liberação para o procedimento médico, porém com várias exigências, como, por exemplo, a assinatura dos doadores se responsabilizando pelos riscos e a informação de que o SUS estava relutante em pagar a cirurgia para os dois doa-dores, porque o costume era pagar para somente um doador. Ou seja, caso a professora e sua família não tivessem movido mundos e fun-

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dos, talvez, pela burocracia, o processo todo ainda estaria em sono perpétuo numa gaveta de algum funcionário que trata os problemas urgentes de saúde como a compra de algum item de manutenção que ele julga desnecessário para os órgãos do governo. Vencidos os entraves burocráticos e depois de uma infinidade de exames nos doadores e receptor, todos foram internados no hospital. É lógico que por ser inédita em nosso país e de interesse de todos, principalmente das pessoas que estão na fila por uma doação de fígado, a intervenção cirúrgica recebeu atenção da imprensa brasileira. Até mesmo o Jornal Nacional noticiou o fato, destacando o trabalho da equipe médica. Felizmente, num raro clarão na cabeça dos burocratas que comandavam a saúde brasileira, a cirurgia foi custeada pelo SUS. Financiamento que, a partir daquele momento, valeria para todos os pacientes que passassem pelos mesmos procedimentos. E assim foi anunciada pela imprensa a inédita cirurgia: O aposentado Darci Moacir Bladt, de 52 anos, que desenvolveu uma cirrose

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por consumo excessivo de álcool, recebeu parte do fígado do seu filho, Natanael Bladt Filho, de 22 anos e da sua sobrinha, Julian Bladt, de 26 anos. Essa cirurgia ocorreu no final de 2011. E, num dia de abril do ano seguinte, fui surpreendida com um livro que ganhei, acompanhado de um pequeno bilhete e dedicatória: “Leandre, sinto-me lisonjeada em estar compartilhando esta história com você, meu esposo tinha enorme apreço por sua pessoa. Forte abraço!”. O bilhete estava assinado pela professora Ivone Lucia S. Bladt, que me mandara de Capanema, cidade do interior do Paraná, o seu livro “Exemplo de fé, força e coragem; a resistência necessária para superar os obstáculos”. Comecei a ler o livro e fiquei encantada ao saber que o nosso esforço, a dedicação dos nossos 50 colaboradores voluntários e estagiários que trabalham na Ideal estavam naquele livro, reconhecidos e descritos. Nas suas muitas idas e vindas para a capital paranaense na tentativa do transplante de fígado para o marido, Ivone passou várias vezes por nossa casa e assim des-

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crevia essas passagens: “O cansaço da viagem era compensado pela estadia. Ficávamos em casa de apoio, a melhor de Curitiba, era a extensão de nossa casa. A dedicação e o carinho nessa casa foram fundamentais para nosso bem-estar durante todo o processo, antes e depois do transplante. As atitudes de cuidados com as pessoas doentes são impressionantes nesse lugar.” (Página 35). Era evidente que, pela repercussão que teve a cirurgia na imprensa nacional, eu conhecia boa parte da história da professora Ivone; entretanto, não sabia dos detalhes revelados no livro que li num fôlego só. Foram lances dramáticos que nos fazem pensar de onde seres humanos como Ivone e seus familiares tiraram tantas forças para superá-los. Confesso que estou muito emocionada ao contar um pouco da história dessas pessoas maravilhosas. A perseverança dessa mulher guerreira, incansável em sua luta e fé, o amor incondicional do filho do casal e de sua afilhada e sobrinha são coisas que não acontecem todos os dias nem são obras do acaso. Essa capacidade

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de desprendimento, demonstrada pelos dois doadores nos faz renovar a fé na humanidade, nos faz acreditar no coração do homem vivendo por este mundo cada vez mais marcado pelo egoísmo, pautado pelo individualismo do querer se dar bem a qualquer custo, fechando os olhos para o sofrimento alheio, para tudo aquilo que estamos sujeitos e que boa parte das pessoas finge ignorar. Os fatos narrados, boa parte deles inspirados no livro da professora, parecem querer contar, nas entrelinhas, que existiu uma conspiração divina para que essas pessoas se encontrassem econtribuissesm para recuperação do marido da Ivone. De outra forma, como explicar parte de uma cidade, e outras pessoas anônimas em sua maioria, unidas em oração em função de uma única pessoa, que alguns nem mesmo conheciam? Como justificar, no meio de todo aquele desespero, uma equipe médica preparada para fazer o que nunca tinha sido feito ou experimentado em nosso país? Como não notar a resolução inédita

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dos problemas enfrentados pelos envolvidos diretamente no transplante para que ele fosse liberado pelas autoridades de saúde, o que não é tão comum em se tratando da burocracia, infelizmente implantada em vários órgãos públicos brasileiros? Que força divina era aquela que movia tudo e todos em torno de um objetivo: salvar a vida de um homem ainda jovem? Deixo que cada um dos leitores encontre as respostas que certamente estão no bojo da própria história, porque cada um tem suas convicções religiosas, políticas e filosóficas. Porém, de forma particular, reafirmo aqui as minhas próprias convicções, baseadas no poder da fé, na infinita esperança que move adiante a alma humana. Nesses anos de dedicação à Casa de Apoio, lembro-me de ter ouvido vários obrigados, agradecimentos sinceros pelo nosso trabalho. Não que fosse necessário. Não que isso fosse primordial para nós. Entretanto, certos obrigados são especiais, e o obrigado do senhor Darci é inesquecível, pois está no contexto de minha

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criação, daquilo que prezo e julgo ser exigência para o mundo atual, tão desumano e econômico em gestos de carinho e sinceridade. Fui criada no interior. Nossa família contava com poucos recursos. Comecei a trabalhar cedo numa loja de material de construção. Entretanto, a penúria não impediu minha família de me dar uma boa educação, principalmente por parte de minha querida mãe. Educação que a gente diz que vem do berço. Em que o respeito ao semelhante está sempre em primeiro lugar. Isso eu nunca perdi; a vontade, que sempre esteve comigo, de fazer as coisas com o coração, respeitando as individualidades, esquecendo-me às vezes até da vida pessoal em alguns momentos, porque a importância está no outro, naquele que necessita de você numa hora grave de sua vida. Naturalmente você vive para o outro. Os antigos sempre nos disseram para trabalhar e fazer bem feito, com o coração, com a máxima dedicação que você puder. A isso eu acrescento: o reconhecimento é apenas o resultado dessa filosofia de vida e, com toda a sinceri-

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dade, doe amor e o amor virá em dobro em sua vida. Assim, o obrigado do senhor Darci vai estar sempre expresso pelo seu singelo gesto que nos veio em bela surpresa. Depois que recebeu alta do hospital, ele voltou a me visitar e pediu para tirar uma foto comigo. Tiramos a foto e após algum tempo, comovida, recebi a imagem num porta-retrato. Hoje, esse porta-retrato tem um lugar especial aqui na Ideal. Ele está aos pés de Nossa Senhora Aparecida. Essa foi a maneira que arranjei para homenagear Darci e toda sua família e dizer o meu obrigado também por me darem esse testemunho que compartilho agora com vocês, leitores e leitoras. Essa história nos mostrou novamente que, com fé e esperança, a vida pode nos reservar lindas surpresas, inclusive o amor incondicional de pessoas iluminadas pelo bem, pelo verdadeiro amor ao próximo; amor que raramente sai das páginas da Bíblia para nos visitar neste mundo. Para finalizar este capítulo, vou colocar aqui algumas citações que julguei importantes no livro

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da professora Ivone e que desejo que nos sirva para uma boa reflexão: sobre a fé e aflição da doença: “DEUS PAI, eu suplicava: - “por que me abandonaste?” Como é pequena nossa fé. Ele estava presente e cuidando de tudo. No hospital, neurologistas, médicos de plantão no setor de emergência, não deram esperanças. Passei o resto da noite – que noite! – muito fria, início de junho, em nossa região faz muito frio, na capela do hospital. Na minha frente, o altar, a bíblia, as imagens de Nossa Senhora e Francisco de Assis, ou será que era Santo Antônio? Não sei, rezei até amanhecer o dia...” (Pg. 15). Sobre as atitudes: “Houve nestes instantes uma pessoa que me impressionou com suas atitudes. A acompanhante de um senhor já idoso com problemas pulmonares, e esta o cuidava com tamanho carinho e dedicação que logo ao chegar ao quarto que iria dividir com eles, me emocionei ao ver a cena; recostada na cadeira ao lado da cama, com a cabeça reclinada sobre o corpo do pai, adormecida estava esta pessoa, e o destino nos aproximou. Ao despertarem os dois, pai e filha, nos apresentamos e compartilhamos experiências e o fato pelo qual nos encontrávamos nessa situação...” (Páginas 22 e 23).

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Do amor incondicional dos doadores: A tranquilidade e a serenidade desses dois anjos, meu filho e a sobrinha, era indescritível. Como poderiam eles estar nesse estado, sabendo que estavam próximos de uma cirurgia complexa e que estariam sofrendo risco de vida, E nada, nada, faria com que voltassem atrás ou desistissem de seu propósito. Era admirável vê-los com tanta disposição, faziam graça da situação que os esperava. Quanta coragem! Muito se fala em doação de órgãos, mas, dificilmente, pessoas saudáveis e no auge da juventude se submetem a este tipo de intervenção. Dietas, jejuns, exames, injeções, soro, medicação, cuidados pós-cirúrgico. Todos esses fatores fazem parte do processo que passam os doadores. A dor está presente em alguns momentos, o medo ao acordar da anestesia, a expectativa de ver o resultado no receptor. Quem não pensa sobre todos esses procedimentos no momento que decide doar uma parte de seu corpo? Costumo pensar e observo nas pessoas, que há uma grande distância entre falar e fazer. O medo ou a falta de atitude paralisa as pessoas, é necessária muita força de vontade e ser perseve-rante até atingir o objetivo ou a meta. Observo a falta de atitude em muitas situações que exigem emergência.

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São admiráveis as pessoas que repetem o ato de Jesus, há mais de dois mil anos doando sua vida pela humanidade. Foi assim que se referiu um paciente à espera de um fígado de cadáver, pouco antes de meu esposo entrar para o centro cirúrgico, no momento da visita no quarto, motivado pela ideia de passar força e coragem para ele. Pessoas se comoveram com esse transplante, outras encontraram força diante das dificuldades da vida, outros se sentiram mais corajosos até em passar pelos mesmos procedimentos, ou cirurgias menos complexas. O exemplo repassado pelos três protagonistas dessa história ficará na lembrança de muitas pessoas que presenciaram sua força e coragem, tanto da parte dos doadores como da parte do receptor. Foi sem sombra de dúvidas, um milagre. São modelos de inspiração para muitos que se encontram em situações semelhantes. (Páginas 35, 36 e 37. citações in “Exemplo de Fé, Força e Coragem”, livro escrito pela professora Ivone Lucia Schwengber Bladt).

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São gente que chega do interior em busca de consultas e tratamentos médicos. Nos ônibus que na “pensão” estacionam, em regra quase sempre cheios, alguns dos pacientes estão acompanhados por seus familiares.


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Capítulo 4

Acolher

é oferecer

abrigo nossos

em

corações 81


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Seja constante o amor fraternal. Não se esqueçam da hospitalidade; foi praticando-a que, sem o saber, alguns acolheram anjos. Lembrem-se dos que estão na prisão, como se aprisionados com eles; dos que estão sendo maltratados, como se vocês mesmos estivessem sendo maltratados.

(Hebreus 13:1-3)

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Dos mares profundos só notamos a superfície. Muitas vezes calmas. Outras vezes agitadas. Mas só a superfície. Neste mundo cheio de afazeres, muitos tem a importância que damos a eles, fica difícil ver o que por debaixo da água, embora tenhamos curiosidade. O navegar constante nos obriga a ignorar o que se esconde e faz a água calma ou agitada. Assim. também nos comportamos com as pessoas. Quantas vezes nossos problemas, que julgamos bem maiores do que na realidade são, nos impedem de ver o fundo do coração daquele que está na nossa frente, suas agitações, necessidades e dúvidas? Aqui na Ideal, sempre somos surpreendidos com uma nova revelação, com uma nova história, que as pessoas guardaram com elas e de repente revelam numa carta, num simples bilhete ou num singeloagradecimento. Tenho comigo guardadas várias dessas mensagens de carinho, pessoais oudirigidas a todos os nossos colaboradores, geralmente reveladas depois do fim do drama pessoal daqueles que aqui passam.

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Todas essas mensagens são de extremo valor, porque servem de medida do grau de satisfação dos usuários da casa e principalmente como incentivo para continuarmos procurando fazer cada vez melhor nosso trabalho para garantir o atendimento com qualidade para quem está atravessando um momento grave de sua vida. Além desse retorno, ficamos sabendo como as pes-soas valorizam nossos gestos, mesmo que os con-sideremos como parte de nosso ofício, de nossas obrigações diárias. Dentre tantas mensagens guardadas, vou revelar aqui algumas, não só para ilustrar o que afirmo, mas pelo valor da história dessas vidas. A primeira vem assinada por uma mãe que por aqui passou e a tudo observava atentamente. Ela começa me dizendo que talvez eu não tivesse a noção de como é bom chegar num lugar como a Ideal, cansada de horas e horas de viagem, e ter um lugar para descansar, uma comida quente, um sorriso no rosto para nos receber. “Posso falar por mim, que cheguei aqui como ‘ca-chorro perdido’, assustada e insegura”, escreve

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essa mãe. Ela narra que morava em São Paulo e muitas vezes passou fome com seu filho, esperando atendimento. E como quase todo brasileiro que depende do serviço público de saúde, ela afirma ter dormido em filas para marcar consulta e que já foi maltratada em hospitais: “quantas vezes tomei chuva, quantas vezes passei frio, com meu filho e minha mãe que me acompanhava”. Essa mãe disse em sua carta que chegou a Curitiba nervosa ao extremo, pois seu bebê de quatro anos tinha o diagnóstico ainda a ser confirmado de uma fibrose cística e muitas outras doenças associadas. Entretanto, ela diz que seu nervo-sismo se dissipou ao ser recebida com um sorriso no rosto e gentilezas em perguntas e gestos tão simples: “você sobe a escada por ali”; “quer ajuda com as malas?”; “você tem médico amanhã”. Depois a satisfação de encontrar um quarto limpo e arejado para ela, sua mãe e filho. Na hora do jantar ela se espantou com tanta comida, “tudo delicioso mesmo”. Mas sua maior surpresa foi ser chamada ao amanhecer, quando batiam na porta, pelo próprio nome: “ônibus para levar ao

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médico e para buscar...” Seu sentimento de estar “em casa” ficou claro quando descreveu os dias que passou com a gente: “na semana que se seguiu, eu já era da casa. Fizemos amizade com os outros usuários, com as meninas da recepção e limpeza (...) lidar com a doença não é fácil, mas se sentir em casa, mesmo estando longe, nos ajuda muito”, observou, ao mesmo tempo em que informava que sua estada em Curitiba teve que ser acrescentada de mais uma semana, porque seu filho havia piorado um pouco. Aliás, o menino já chamava o quarto de “meu quarto” e a Ideal de “minha casa” e que até a sopa “a cozinheira tinha preparado especialmente para mim”. “Posso afirmar que estou mimada e como é bom... Vou voltar muito aqui ainda, com certeza serei bem acolhida; eu falo por mim, pela minha mãe e pelo meu pequeno grande homem: gratidão eterna e felicidades para todo o sempre”, finalizou a mãe na sua cartinha rodeada de flores desenhadas com as próprias mãos, como se fosse um bordado em torno do papel.

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Evidentemente ela estava emocionada e, ao receber aquela carta, eu confesso que também fiquei, junto com todos os nossos funcionários, pois quem não gosta de ver um pouco do seu trabalho reconhecido e com tanto carinho? E o que nos deixa ainda mais felizes é saber que esse reconhecimento se faz diariamente, como se nos alimentasse em nossas próprias dificuldades, em nosso dia a dia sempre muito corrido, mas iluminados com a presença de tanta gente boa ao nosso redor; gente que recebe, mas nos oferece também sua ótima energia para que no dia seguinte possamos fazer ainda melhor nosso trabalho. Essa é a troca que a ciência chama de sinergia: a energia que nós passamos a outro ser nos retorna e com mais força. Os budistas e todas as religiões do mundo, partem desse princípio quando nos ensinam a orar e a meditar. Orar e meditar: é por meio dessesatos que entramos em sintonia com as coisas que nos rodeiam; se oferecemos bons desejos no quepensamos, se desejarmos o bem do semelhante,nós estamos, na realidade, traba-

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lhando para a harmonia universal e também para nosso próprio bem-estar. Pensar ou desejar coisas ruins para quem não gostamos, pessoas que de alguma forma nos fizeram mal, ou mergulhar em rios de desânimos, quando a situação exige o voar da fé e perseverança, de nada nos ajuda, muito pelo contrário, vamos atrair para nós somente coisas ruins, porque estaremos com nossos pensamentos sintonizados espiritualmente em coisas pequenas e mesquinhas, que grande mal fazem às nossas almas. Não é à toa que Cristo nos ensinou a amar nossos inimigos, quando ele disse: “Ouvistes o que foi dito: Amaras o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Mas eu voz digo: Amai os vossos inimigos e rogai por aqueles que nos perseguem.” (Mateus 5:43-44). E ouso ir mais longe, amem a provação pela qual vocês estão passando. Não a desejem a ninguém. Mas saibam que qualquer provação nos aparece na vida para nosso próprio proveito, para que nos tornemos mais fortes e sábios. Feliz aquele que entende a provação como uma grande oportunidade para crescer e dar valor ao que realmente importa na vida.

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Fundei a Ideal num momento de transformação pessoal e num momento de superação de meus problemas anteriores. Ao fundá-la minha intenção era resolver uma lacuna no atendimento às pessoas que se deslocavam de suas cidades para um exame ou internação em Curitiba. Contei também com a intuição de que esse trabalho só seria bem realizado se o usuário se sentisse confortável. Que passasse a considerá-la como uma extensão ou até mesmo as suas próprias residências. Essa sempre foi a nossa filosofia e todo colaborador que se agrega ao nosso grupo entende esse nosso objetivo. Tanto é verdade que essa noção de estar na própria casa é repetida todos os dias por aqueles que precisaram de nossos serviços. “Quero deixar aqui a minha gratidão e o meu muito obrigada para todos os funcionários da Ideal, que fizeram, a cada dia, eu me sentir como se estivesse em casa. Vocês são minha segunda família, pois fico mais com vocês do que com os meus entes queridos; muito obrigada meus amigos, pois adoro vocês”,

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nos escreveu uma amiga usuária dos serviços da Ideal, que mora no interior do Paraná. Por isso, muitas vezes, de manhã, bem cedinho, paro e fico olhando essa gente toda que vai chegando. Essas vidas que vão se revelar durante um breve ou prolongado convívio e preparo meu sorriso de acolhida, pois sei que ele é natural, sincero e que nada me custa. Que outra forma poderia encontrar para aliviar as dores dessas pessoas que desembarcam dos ônibus e chegam com o semblante preocupado? Afinal, estão na capital para resolver problemas de saúde, seus próprios ou de alguém muito querido e que fizeram questão de acompanhar. Sei que todos estão ali na esperança de uma solução, algumas vezes milagrosa, para suas inquietações. Ora, nesta carta que acabei de citar e em outras semelhantes em conteúdo que tenho guardadas, percebemos duas virtudes que foram acrescentadas ao que muita gente pensa ser somente um serviço de hospedagem: a amizade e o sentimento defamília. Isso é uma coisa que, acredito, acontece naturalmente na Ideal, um

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costume adquirido em anos de trabalho em que aprendemos a olhar o outro e, principalmente, a sentir o outro; colocando-nos na situação de quem precisa de uma acolhida de amigo. Nunca parei para me perguntar se sou feliz com o que faço, porque sei que estou contente com o meu trabalho e, sem falsa modéstia, faço tudo com muito amor. E creio que isso serve para toda profissão ou iniciativa empresarial. Ouço gente que, embora bem sucedida naquilo que faz, se diz descontente com a vida que leva. Ora! Passamos a maior parte da vida dedicada ao trabalho. Não posso conceber um trabalho que não satisfaça pelo menos um pouco essa necessidade que temos de fazer algo útil para nosso semelhante. Para aqueles que se sentem assim, trabalhando sem agradar as pessoas e a si, penso que está na hora de uma mudança radical na maneira de encararem a vida. É lógico que muitas profissões não permitem uma aproximação humana igual a nossa. Mas, existem outras formas de se conseguir este estar

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junto e no coração das pessoas. O voluntariado é um exemplo, em que podemos doar algumas horas por semana àqueles que precisam. Na Ideal temos a colaboração de voluntários e posso testemunhar o quanto faz bem para eles poderem compartilhar um pouco da vida das pessoas que nos procuram. Há pouco conversei com um deles, um senhor ainda jovem que trabalhava com contabilidade e se aposentou, mas que tira pelo menos um dia da semana para se doar ao próximo. Estava lá para iniciar um bazar com roupas bem simples, de segunda mão, para levantar fundos para seu grupo de voluntários da igreja. Um pouquinho de dinheiro, guardado numa lata e que serviria para ajudar essa ou aquela pessoa que necessitasse de um prato de comida, de uma passagem de ônibus. Ao vê-lo sério e até mesmo sem jeito numa atividade que, por certo, nunca fizera, a primeira pergunta que nos vem é como uma pessoa já bem estruturada na vida, que educou seus filhos e que poderia estar descansando ou viajando, se

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presta a viver trabalhando humildemente na caridade, na ajuda aos necessitados? A resposta veio-me em forma de outra pergunta no fim do bazar, em que ele abria um sorriso largo e sincero pelo que tinha feito: Em que lugar do mundo, em que praia e descanso, alguém arrumaria tanta satisfação interior? Mais tarde vi, esse mesmo homem que é culto conversando com pessoas simples e doentes, ouvindo seus problemas e compartilhando suas inquietações. Novamente outro questionamento: o que faz um homem nessas condições que goza de boa saúde e certamente pertencente a outra faixa social. Escutar seu semelhante e, às vezes, sem mesmo uma palavra para dar em troca dada a gravidade da situação do outro? Esperei que ele terminasse de conversar com o paciente idoso, que estava com um enorme curativo no rosto, e fiz essa pergunta ao voluntário. A resposta foi simples: “sabedoria é muito diferente de cultura, pois um homem pode ser culto, porém não ser sábio”.

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Quanto a escutar os outros, ele completou: “Coloco-me na situação dele, do paciente longe de casa, com o coração apertado o dia todo por causa de uma doença, por causa da saudade de casa e dos seus. Ouvir é o mínimo que posso fazer para que o meu semelhante se sinta bem, porque dependemos disso para nos sentirmos vivos, ter alguém para nos ouvir”. Esse mesmo voluntário citou outra história para ilustrar o que dizia: o poder do ouvir as pessoas e às vezes dar a elas uma palavra amiga, um bom conselho. Ele contou-me que tinha o costume de deixar o carro estacionado na mesma rua e que lá havia dois guardadores de carro. Numa manhã, como era de seu hábito, estacionou o carro e encontrou um dos jovens guardadores bêbado e caído na calçada. Quando retornou para apanhar o veículo, viu o jovem de pé e aparentemente curado dos efeitos da bebida. Ao presenciar aquilo, ele não resistiu e disse para o rapaz que sua atitude não o livraria dos problemas, que era preciso reagir, encontrar as coisas belas desta existência que nos é única.

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“Você está brincando com a vida, coisa tão preciosa...”, disse ao jovem. “Você não sabe quantos estão buscando hoje nos hospitais o que você tem de sobra em sua juventude, a saúde e a chance de viver!”, continuou. E assim foi a conversa até que o jovem abraçou o voluntário e exclamou: “O senhor, a quem não conheço direito, não sabe o bem que está me fazendo, porque nem meu pai falou assim comigo!”. Os dias e meses se passaram e nosso voluntário nunca mais encontrou o rapaz no estacionamento. Curioso, ele perguntou ao seu parceiro o que havia acontecido com aquele que um dia ele encontrara bêbado dormindo na calçada. “Ih, fulano está bem de vida, voltou a trabalhar, fez as pazes com a família e casou com uma menina que já tinha um filho dele!”. Agora, eu pergunto, como não ser feliz, se sentir abençoada e grata à vida, por ter a oportunidade de conhecer almas assim, como essa e outros voluntários da Ideal, dos nossos fun-cionários e estagiários que têm se doado tanto para fazer menos triste a vida de outras pessoas?

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Esse é o segredo do sucesso da Ideal, como acredito ser o segredo de qualquer empreendimento: colocar a alma nas coisas. É bom que se diga que, quando falo em segredo, não estou defendendo apenas uma estratégia empresarial, mas uma estratégia de vida. Uma coisa é pregar aos colaboradores e exigir deles o envolvimento total com o trabalho e outra coisa é dar exemplos de que o bom trabalho está relacionado com o bem relacionar-se com o todo, desde o emprego até o ambiente familiar. Não existem pessoas que tenham um botãozinho embutido no peito pronto para ser ligado ou desligado na hora que lhes pareçam conveni-ente. O bom empresário, o bom empregado ou voluntário, encontra primeiro a harmonia em si, fazendo o que ama e gosta, depois é só deixar no botão automático que as coisas acontecem. Podem acreditar que essa fórmula sempre funciona porque é a fórmula do coração, do bem-querer e do verdadeiro desejo de ver aqueles que nos acompanham crescerem; se os colaboradores

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crescem, o que comanda cresce mais ainda. Simples assim.

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CapĂ­tulo 5

Temos que entender a

vida,

ciclos e as

mudanças 103


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Capítulo 5

“Para tudo há uma ocasião, e um tempo para cada propósito debaixo do céu: tempo de nascer e tempo de morrer, tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou...”

Há uma corrente do pensamento humano que afirma que somos resultados de nossas escolhas. A nossa vida somente é o que é agora porque em algum momento optamos por algo lá no passado. O pessoal do interior chama isso de encruzilhada; pontos de nossas trajetórias de vida em que temos vários caminhos para trilhar e que é preciso escolher só um deles para nos levar adiante. Dentre esses pontos, ou encruzilhas, os mais comuns são o casamento, a religião, a profissão que se escolhe e o trabalho que se deve fazer. Como todo mundo, já passei por isso. Estive diante dessas encruzilhadas e fiz opções que me (Eclesiastes 3:1-2) trouxeram até aqui e que, de certa forma, moldaram meu caráter e modo de ser.

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Ao olhar para o passado, posso encontrar vários momentos em que tive de tomar decisão em resposta a situações criadas por mim ou pelas circunstâncias em que eu estava envolvida. No final da década de 90, por exemplo, eu era Secretária de Saúde do município de Saudade do Iguaçu, região Sudoeste do Paraná. Cidade nova, que tinha sua prefeitura em segunda legislatura apenas. Evidente que, somente por essa situação, os desafios se faziam enormes, principalmente ao se lidar com a saúde do povo, sempre carente em recursos, sempre necessitado de atenção. Nomeada para o cargo, embora praticamente sem experiência, muito nova também, não tive medo. Arregacei as mangas e fui atrás das coisas que faltavam para a nossa comunidade e que se resumiam a quase tudo. O principal resultado disso foi que conseguimos ser o primeiro municí-pio do país a contar com um programa em que os moradores da cidade ou da área rural recebiam a visita regular de médicos e enfermeiras em suas próprias casas.

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Para viabilizar essas conquistas, ou viajava muito e realizava vários contatos com autoridades do setor, tanto do Estado quanto do governo Federal. Entretanto, eu tinha que me desdobrar em várias “leandres”, dada a quantidade de trabalho que se apresentava. E assim fazia. Sem horários, sem ver se era dia ou noite, para executar da melhor maneira a minha função, porém, com uma alegria muito grande por saber, intuitivamente, que estava fazendo o certo. E foram nessas idas e vindas que reencontrei a Dona Salete. Ela morava numa fazenda da minha região. Um dia ela apareceu lá no Posto de Saúde com o marido Juvenal e me disse: “Ele deve estar com alguma coisa; uma pessoa com mais de 100 quilos e perder 17, assim de repente...” E a situação foi se agravando, com o Juvenal emagrecendo muito, até que os médicos falaram que a família deveria levá-lo para Curitiba. Juvenal fora diagnosticado previamente com um câncer no duodeno nas clínicas e hospitais de cidades próximas, Cascavel e Pato Branco. O marido de Salete já contava com 75 anos e o cân-

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cer avançava rapidamente. Foi o primeiro caso grave que encontrei quando era secretária do município e, além de tudo, enfrentei, junto com a família, resistência do paciente em se deslocar para outra cidade. Tive que convencê-lo e fiz questão de acompanhá-los até Curitiba, pois, antes de tudo, Salete e a filha dela eram minhas amigas há anos, de quando morava em Chopinzinho, na minha adolescência, por volta dos 15 anos de idade. Ao chegarmos em Curitiba, o médico mandou que ele fosse internado imediatamente e pediume para comprar uma sonda. Quando eu estava saindo, Juvenal, que era do tipo que ainda usava bombacha, perguntou-me quanto custava a sonda e puxou um saquinho do bolso, que lá no interior a gente chama de guaiaca, com maços de dinheiro. Nunca tinha visto tantas notas juntas! Eu falei na hora: por favor, guarde o dinheiro, vão te assaltar aqui dentro do hospital, imagina, onde já se viu. Fui à farmácia e comprei o que o médico havia pedido e na volta perguntei a ele o que eu poderia fazer. “Aqui nada. Você e a esposa dele procurem

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uma casa de apoio e voltem depois, porque vamos fazer a cirurgia nele amanhã, é urgente”, aconselhou o médico. Isso foi na tarde de segunda-feira e já na manhã de quarta-feira o médico me ligou dizendo “venha buscar seu paciente!”. Não acreditei e perguntei: o quê, vocês já o operaram? – “Sim”, o médico respondeu, “fizemos o que deu, na realidade, não tem muito o que fazer”. Fiquei inconformada e argumentei com o médico: mas, o cara tem dinheiro... “Leandre, não adianta, o que tinha que fazer foi feito!”, insistiu o médico. Nessa época, ingenuamente acreditava que dinheiro podia comprar tudo, inclusive saúde e repliquei com o médico: então o mande para os Estados Unidos; você não sabe com quem está lidando, este paciente tem dinheiro que não acaba mais... E o médico, num realismo desconcertante, me respondeu: “Viu filha, tem coisa que o dinheiro não compra, não gaste mais nenhum centavo com ele porque não tem o que fazer...” Não engoli aquilo, peguei o Juvenal e sua mulher e voltei para casa, lá pelo menos havia o

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nosso pessoal da Saúde, que daria um apoio para ele, além do cuidado da esposa, pessoa muito atenciosa. Mas continuei insistindo, pois nessas alturas ele já havia perdido uns 30 quilos: O senhor tem que se tratar em outra cidade, em São Paulo... Eu falava para o paciente, mas ele resig-nado sentia também que já havia chegado ao seu limite. Mas, mesmo assim, não desisti e o nosso pessoal continuava a passar na casa dele, refazendo os curativos, trocando as sondas. Um dia ele mandou me chamar e disse: “Eu não quero que os médicos venham mais aqui...” Mas por quê? – perguntei. E ele me respondeu com outra pergunta: “Nesta situação, para que viver?”. Imediatamente eu disse não a ele. Continuaria mandando o médico ou enfermeiros visitá-lo. Não iria desistir. Ainda mais com uma pessoa que possuía os recursos necessários para se tratar em grandes centros, em bons hospitais. Mas Juvenal era duro na queda e de costumes antigos, daquelas pessoas que quando coloca uma coisa na cabeça é difícil de tirar.

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Na continuação da conversa ele me disse: “Você que conviveu bastante com a gente sabe o que eu mais gostava de fazer?” – Sim, disse a ele, tomar café e comer salame. “Pois é, não posso mais fazer isso, não como e não sinto mais o gosto de café. Tu achas que vale a pena continuar vivendo desta maneira?” Depois disso, fui embora e fiquei uns dois dias trancada em casa. Acho que foi a maior lição que recebi na vida: que o dinheiro não é tudo; nunca mais fiz uma poupança na vida e resolvi fazer as coisas sem pensar em economia para o amanhã. Foi aí que eu resolvi por uma vida diferente, sem pensar muito em posses ou em guardar para depois, porque esse depois poderia nem existir. Exatamente neste momento que comecei a ver com outros olhos a questão da doença e seus efeitos, mesmo para quem tinha recursos para trata-mentos, embora paliativos e sem eficácia. Guardo esses momentos como sendo de grandes revelações para a minha vida pessoal, porque também comecei a me deparar com o sofrimento daquelas pessoas que têm que se deslocar

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para uma cidade grande, em que pouco ou nada se conhece, para realizarem um tratamento ou simples consulta. Salete não tinha onde ficar e, conforme aconselhara o médico, resolvemos alugar para o casal um quarto numa pensão próxima ao hospital, utilizada por outras pessoas também em tratamento médico. A ideia era que, mais tarde, Juvenal se recuperasse da cirurgia estando naquela casa, acompanhado da esposa. A cirurgia teve certo sucesso, pois o Juvenal voltou a se alimentar; mas, pelo que me contou Salete, em Curitiba, ela teve que superar outro trauma, maior ou igual à própria intervenção cirúrgica do marido: a total falta de conforto e higiene na pensão em que ficou. A pensão era bonita por fora, mas por dentro um horror sem fim. “Uma falta de respeito com o ser humano”, disse-me Salete, quando nos encontrávamos novamente em Saudade do Iguaçu. “Tive que atravessar a rodovia para comprar roupa de cama: uma imundice no dormitório, nos banheiros e cozinha, pela casa toda...”, revelou-me Salete, que teve a sorte de encontrar quem lhe

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desse a mão, em Colombo, Região Metropolitana de Curitiba, na casa de um parente de um conhecido que morava em Saudade do Iguaçu. Fiquei horrorizada com o que minha amiga estava me contando. Não era possível imaginar que aquilo fosse possível acontecer, principalmente no momento em que as pessoas mais precisavam de conforto, alimentação, repouso e de muita ajuda para se deslocar dentro de uma cidade praticamente desconhecida. Além da revolta com a insensibilidade dos responsáveis pela pensão, vi ali omissão do Poder Público em não oferecer condições satisfatórias de hospedagem para os pacientes e seus acompanhantes em momento tão grave. Isso iria ficar remoendo em minha cabeça até que eu tivesse oportunidade de atacar o problema e tentar resolvê-lo. Faltava-me apenas uma oportunidade e, sem saber, a vida já estava me preparando para aquilo que eu viria a fazer e teria como projeto de vida. No momento, minhas ocupações ainda estavam voltadas à Secretaria de Saúde de Saudade do Iguaçu. Tudo estava caminhando bem,

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com médico e enfermeiros no Posto de Saúde, a população sendo atendida, ali mesmo ou, dependendo do caso, nos hospitais das cidades próximas ou até mesmo da capital. Mas, no meio disso tudo havia a política. No ano seguinte, em 2000, perdemos a eleição municipal para o grupo opositor por apenas 18 votos e, como pede a democracia, tivemos que ceder lugar aos que chegavam. Entreguei o meu cargo e com grande tristeza deixei para outros um trabalho em que, sinceramente, colocara a minha vida nele. É óbvio que, numa situação dessas, em que cada projeto teve o nosso suor, aparecem os questionamentos. Mas, por nenhum momento me arrependi do que tinha feito. Somente lamentava não poder dar continuidade ao que fora começado e a outros projetos que tinha em mente. Hoje creio que a vida é feita em ciclos e desafios: certamente aqueles, como secretária de Saúde e servidora pública, estavam encerrados. Ao sermos derrotados politicamente, por um momento senti que me faltava o chão, perdera a

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identidade, mas precisava levantar a cabeça e encontrar forças para um novo projeto. Havia, portanto, de dar continuidade na minha vida e se possível na mesma área, iniciando assim um novo ciclo com um desafio que ainda desconhecia, um recomeço. As opções eram muitas, mas a que mais me agradava, inspirada pelo que tinha passado Salete, era montar uma boa instituição em Curitiba para recepcionar com qualidade e respeito às pessoas que se deslocavam de suas cidades à capital para tratamento de saúde. Foi o que fiz. No começo, com certa dificuldade, como todo empreendimento novo. Em Curitiba, arranjamos uma casa não muito grande, onde eu e meu marido Cleomar passamos a morar, ao mesmo tempo em que alugávamos os quartos para alguns poucos pacientes e acompanhantes, mas sempre com a ideia do maior conforto e higiene possíveis. A Ideal foi crescendo, até que chegou o momento em que tivemos que ampliar a casa, porque tínhamos che-gado ao ponto de cedermos o nosso próprio quarto para acolher os pacientes.

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Nessa luta, com muita fé em Deus e em nosso trabalho, as coisas foram acontecendo à medida que avançavam os convênios com os municípios: alugamos imóveis próximos, a cozinha e o refeitório receberam ampliações, o número de funcionários crescia e passamos a oferecer transporte por meio de uma frota própria, com a Ideal se firmando como uma das melhores casas de apoio do Paraná. Em 2008, com a Ideal praticamente consolidada, recebi a triste notícia de que minha amiga Salete estava com um diagnóstico de câncer na mama. Havia se passado exatos 10 anos da constatação do câncer de seu marido que, desen-ganado, infelizmente falecera nove meses depois de sua cirurgia, em 7 de abril de 1999. Acompanhei tudo, Juvenal sofrera muito, pele e osso, pois quase não conseguia se alimentar. Ao saber que Salete também estava doente, não pensei duas vezes e fiz questão de ir visitá-la em Sau-dade do Iguaçu e, em seguida, a trouxe para Curitiba. O câncer progredia e a cirurgia se fazia urgente.

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Durante os exames e após a cirurgia, Salete ficou conosco. Recuperou-se. Mas o tratamento continuava com a quimioterapia, que fez cair todo o cabelo de minha amiga. Ela esteve tanto em Curitiba que nos confessou considerar a Ideal a sua própria casa. E aqui abro um espaço para contar com detalhes um pouco mais da história de minha amiga, porque a admiro na coragem e na fé. Afinal, somente uma pessoa com muita força de vontade para enfrentar aquelas situações de câncer. Primeiro no marido e depois nela própria. Lembro-me como se fosse hoje. Ela caminhando pela Ideal com chapéus e lenços na cabeça, como é comum entre as pessoas que se submetem ao tratamento quimioterápico. Salete sempre se demonstrou confiante. Tinha muita esperança em superar mais aquela dificuldade. Dela guardo alguns bons conselhos que valem para todos que enfrentam problemas na vida, grandes ou pequenos: “O primeiro passo é se pegar com Deus, de coração e com muita fé – sem fé nada se resolve. Depois, as

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demais coisas Deus vai acrescentando, ao colocar as pessoas certas, os médicos certos, hospitais e lugares abençoados no nosso caminho, para o bem da gente. Confie o teu caminho ao Senhor Deus. Confia nele e o mais se fará por si só.” Recentemente, Salete se hospedou de novo em nossa casa. Embora com boa saúde, ela não se descuida, e veio a Curitiba para os exames de rotina. Gostamos quando ela está aqui porque sua história e testemunho servem para os que precisam de incentivos na fé de que tudo pode ser superado. Ela é realmente uma sobrevivente. Conta que das 11 pessoas de sua região, que se deslocavam para Curitiba para tratamento, 10 morreram. A última há dois anos. E esse é outro aspecto a ser considerado na vida de quem se descobre com uma doença grave: a convivência com pessoas que talvez sofram mais ainda do que ela e com poucas chances de recuperação.

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Com carinho, saudade e tristeza, Salete sempre narra histórias de muitas crianças que não tiveram a oportunidade de chegar à vida adulta por causa de suas enfermidades: “Aquele menininho que morreu aos quatro aninhos depois de três anos de tratamento, fiz amizade com ele...”. Ou ainda, já com certa alegria: “Tinha uma menina, com uns dois aninhos... Que vi aqui ontem, ela está quase moça. Tumor na cabeça que atacou os olhos; ela fez cirurgia e teve que extraí-los. Primeiro um, depois o outro. E a mãe ali, firme na fé, acompanhando tudo. Mas o que mais me doeu foi saber que, durante esse sofrimento, o marido abandonou a mãe e a filha cega. Todo dia a gente se encontrava na radioterapia. Era coisa de se arrepiar, cortar o coração. A menina cega, traumatizada, se agarrava com força no pescoço da mãe e não queria entrar no hospital: ‘Não mãe, não entre lá!’, suplicava. A mãe tinha que enganá-la e, mesmo dentro da sala de espera, dizia para a filha que não tinham entrado. Que fé essa mãe teve. e o resultado está aí, a menina, agora, quase moça,

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com saúde e viva...”. Toda vez que escuto essas histórias de vida dentro de outras histórias de vida, fico muito emocionada. Sei que, de uma maneira ou de outra, fiz parte delas e isso me dá a certeza de que realizei tudo como deveria ser feito. Pude entender o final de um ciclo de minha vida e o início de outro mais desafiador: plantei e tive que arrancar e plantei novamente, quando fiz uma opção nada fácil ao deixar a Prefeitura de Saudade do Iguaçu. A tristeza de ter largado parte de meu coração lá meu trabalho e a convivência com as pessoas que eu verdadeiramente gosto, foi compensada por outras alegrias, por essa oportunidade de realmente poder servir ao meu semelhante dando a ele o respeito tão necessário para qualquer cidadão, pobre, bem de vida, são ou doente.

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No ano de 2010, começamos a tecer uma colcha com o nome bordado daqueles que passam pela Casa de Apoio Ideal. São milhares de assinaturas, milhares de histórias de vida que ficarão registradas para sempre em nossos corações.

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pequenas histรณrias, como retalhos, pedaรงos que se encaixam e formam uma vida A dona da pensรฃo


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Capítulo 6

Tem que se

sentir

útil para doença não vencer a

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Tenho observado que, muitas vezes, a doença vem para certas famílias ou pessoas como predestinação. Não digo aqui que os indivíduos têm por castigo do destino, ou coisa que o valha, uma sina que lhes determina o sofrimento. Longe disso, tentar desvendar tais temas, destino ou sina, seria caminhar por discussão filosófica ou até mesmo teológica, o que foge totalmente dos objetivos desse livro. Todavia, creio ser necessária a observação de alguns fatos e conceitos tirados de nosso senso comum e que nos instigam e provocam rumo a uma resposta que conforte nossos corações, como por exemplo, a que elucide a antiga indagação de que se o homem realmente está sendo dirigido neste mundo por algo já escrito e, portanto, imutável. Nesses seguidos anos de vivência com o sofrimento alheio, e às vezes com o próprio, notei que para os mais resignados com o que acontece, a vida já está escrita num grande livro nos céus, restando aos viventes aceitá-la apenas como é, quase sempre severa e com poucos momentos de alegria verdadeira. Para os que pensam assim,

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“Essa pessoa é como uma árvore que cresce na beira de um riacho; ela dá frutos no tempo certo, e suas folhas não murcham. E tudo que essa pessoa faz dá certo.” (Salmos, 1:3) Leandre Dal Ponte

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felizmente uma minoria, não há muito por fazer. Pelo meu próprio jeito de ser, é evidente que não posso concordar totalmente com essa linha de pensamento e com quem nos diz que devemos simplesmente aceitar o que nos foi reservado e, no máximo, para os que acreditam em alguma coisa de origem divina, nos ajoelharmos em súplicas para que o destino nos seja um pouco mais leve, ou que o fardo não seja tão pesado. Para outros no outro extremo desse pensamento e mais esclarecidos, embora ainda levando-se em consideração certas limitações, o que vale mesmo é o livre arbítrio, essa grande oportunidade que cada um tem de fazer o próprio destino, mandar nas próprias pernas e nariz. E é nesse tipo de pessoa, nessa maneira de encarar a vida, que consigo ver os vencedores. Naqueles que enfrentam a adversidade mais como um desafio a ser transposto do que um castigo determinado por coisas que não são deste mundo. Respeito essas duas formas de encarar o cotidiano. Mas indago: qual é a verdade disso tudo – dessas teorias que embasam praticamente todo o

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conhecimento humano e nos colocam somente diante de duas possiblidades, a coisa que nos é determinada ou o livre arbítrio? Particularmente, creio que temos que mesclar essas duas formas de perceber a vida, principalmente quando levamos em conta as novas descobertas da Ciência, em especial na Genética. Há sim um determinismo nas doenças hereditárias. Sabemos que certas pessoas têm mais chances de desenvolver algumas doenças do que outras em função da herança genética. Pode ser que, um ser seja predisposto desde o nascimento a ter um câncer, por exemplo, porque seres das gerações anteriores a ele também portavam a anomalia e muito sofreram com o mal latente em suas células. É nesse ponto que encontramos a contradição básica entre o que estaria determinado em nossas vidas e o que realmente pode acontecer. A predisposição genética a certos tipos de doenças não quer dizer que o indivíduo vá desenvolvê-las e que, por uma soma de vários fatores, inclusive cuidados especiais, hábitos saudáveis, qualidade

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de vida e alimentação, elas jamais venham a se manifestar. Assim, um mal de origem genética pode aparecer ou não aparecer durante a vida da pessoa. Há aqueles que, como quase todos seus antepassados, devem apresentar a disfunção que determinará a doença. Aqui, na Casa de Apoio, pela minha convivência com os mais diferentes males que podem atingir uma pessoa e com conversas inclusive com médicos, sei que a doença causada por herança genética é muito mais comum do que se imagina, embora nos perguntemos: por que uns desenvolvem e outros não desenvolvem aquilo que a própria Ciência diz que estão fadados a desenvolver? – Seria sorte? Ou talvez, destino? Como exercício para nosso espírito curioso, caro leitor, ou leitora, analisem esse caso que passo a expor e que se desenrolava enquanto eu escrevia este livro. Mas antes é necessário que a gente dê um nome para a personagem principal desse drama: por sua origem, vou chamá-lo de “Alemão” e assim o preservo enquanto narro sua história.

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Ele, hoje com mais de 50 anos, é neto de imigrantes alemães, nascido no interior de Santa Catarina. Terceiro filho de uma família de nove irmãos, muito batalhadora, e que se dedicava à agricultura em 20 alqueires de terra arrendados. Pois bem, devidamente apresentado, vamos ver como tudo começou conforme ele mesmo me narrou. No início dos anos 80, o pai do Alemão foi diagnosticado com um sério mal que atinge os rins, conhecido como doença policística renal. Essa doença é de origem genética e muito comum, pois atinge, de acordo com as estatísticas médicas, uma pessoa em cada grupo de mil. Feito o diagnóstico, e como a doença já estava em estágio avançado, o tratamento imediato indicado pelos médicos era a hemodiálise. Tudo seria simples se, na época, o pai do Alemão tivesse na sua cidade, ou numa próxima, as máquinas de hemodiálise disponíveis para o tratamento. Com os rins em falência, por um pouco mais de um ano, o paciente teve que enfrentar a dura rotina de se deslocar do interior de

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Santa Catarina até Curitiba para efetuar duas sessões semanais de diálise. “Tempos difíceis.” Disse-me o Alemão: “O empenho era muito grande, sem lugar onde ficar, sem casa de apoio... Meu pai se submetia à hemodiálise e ficava muito mal, porque não havia os medicamentos de recuperação que temos hoje – a diálise tira quase tudo do sangue, deixa o sujeito fraco – Ele já não aguentava mais. Chegávamos a Curitiba e retornávamos no mesmo dia. O sofrimento foi tão grande, que até meu pai pediu para não vir mais. E não veio. Neste meio tempo, os médicos indicaram um transplante como única solução para salvá-lo, o que não foi possível. Morreu em 1985, no hospital lá em Santa Catarina, sessenta dias após parar com a hemo- diálise.” É dessa época também o primeiro diagnóstico que revelou a mesma doença no Alemão, porque quem é descendente tem 50% de chance de desenvolvê-la também. “Quando soube que meu pai precisava fazer o transplante, me ofereci para doar e nos exames fiquei sabendo que tinha a

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mesma doença dele, mas que estava ainda na sua fase inicial. Depois de saber da doença fiz tratamentos experimentais que não deram muito certo e só entrei na ‘máquina’ de hemodiálise há três anos”, explicou-me, ao sair de mais uma sessão, com os braços cheios de curativos, fisionomia amarela e esboçando ar de cansaço. Talvez, como é o caso de vários portadores dessa doença, ele nunca tivesse chegado ao ponto de necessitar da diálise (ou como muita gente chama, “limpeza no sangue”). A doença pode ficar “escondida” e jamais se desenvolver durante a vida do indivíduo. É como se fosse um aparelho elétrico que precisasse de alguém ou alguma coisa para acioná-lo. E foi o que aconteceu com o Alemão. Em 1987, ele me disse que estava morando com parte de sua família no interior de Mato Grosso. Tudo transcorria bem, com trabalho e uma boa qualidade de vida, até que apareceu uma epidemia de dengue e ele não escapou da doença. Foi picado pelo mosquito transmissor e a partir desse momento sua vida mudou completamente, porque

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seus rins começaram a sentir os primeiros efeitos da doença hereditária, muito provavelmente pela ação dos medicamentos para a dengue. E para agravar, nesse ano também, ele passaria por uma cirurgia para curar uma úlcera no estômago. Era, de fato, um drama familiar. Dentre seus parentes, o Alemão disse-me que havia o caso de seu irmão dois anos mais moço, que recebeu um rim de doador cadáver e um tio, que foi transplantado aproveitando o órgão da esposa em 2004, e que este tio está bem e trabalhando. De sua família, ele disse saber de pelo menos cinco casos semelhantes ao seu, três sobrinhas e duas primas, fora os outros parentes com quem não tem contato e que, dos nove irmãos, três apresentaram os sintomas da doença, inclusive ele. Durante o tratamento, Alemão confessou-me que seu maior desejo era sair da “máquina”. Um sofrimento medonho. “Colocaram-me nela quase que obrigado. Eu não queria. Era sofrido. Praticamente dois dias da semana perdidos, quatro horas seguidas e mais a recuperação, porque a máquina não tira só coisa ruim, tira também

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vitaminas e proteínas, que são reintroduzidas no organismo por meio de medicamentos; não podia trabalhar ou programar nada, um sofrimento”, queixava-se. “Por isso entrei na fila do transplante, precisava voltar a ter uma vida, porque não estava vivendo do jeito que queria”. Mas, a fila do transplante revelou-se outra novela. O rim não podia ser de parente, tinha que ser de outro doador e compatível. Morando no interior do Mato Grosso, submetido semanalmente à diálise, Alemão aguardava ansioso a oportunidade de ter um rim novo. Com ele, outros 1.600 também aguardavam um doador compatível. Por duas vezes essa oportunidade apareceu e por duas vezes a distância foi sua inimiga. Em Mato Grosso haviam fechado os transplantes de rim por problemas no ordenamento da fila, sendo que o Paraná e Santa Catarina lhe sobravam como opção. Sempre atento ao telefone, Alemão aguardava o que para ele seria a solução de seu drama pessoal. Nessa altura, procurava distrair a cabeça em pequenos afazeres e cuidando da mãe, aca-

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mada em virtude de ter sofrido quatro derrames (AVC). “Um sofrimento muito grande, que é difícil até de contar, ainda bem que eu contava com a ajuda de minha irmã, que é professora, caso contrário não sei como aguentaria tudo aquilo”, lamentava-se o Alemão. Em maio de 2012, apareceu a primeira oportunidade desse nosso amigo efetuar o tão sonhado transplante em Curitiba, porém o deslocamento tinha que ser rápido. Sem meios de transportes disponíveis, porque a viagem era muito longa, ele teve que contar com a boa vontade de seus primos que pagaram um avião fretado para Curitiba. Mas todo esforço foi em vão. Aqui ele descobriu que não reunia as condições para o transplante daquele rim especificamente. De volta ao interior de Mato Grosso, Alemão não desistiu. Quarenta e um dias depois, um novo chamado lhe dava notícias de outro rim disponível em Curitiba. Dessa vez, ele conseguiu embarcar num voo de carreira no período da tarde. Caso tudo desse certo, ele tomaria o avião à tarde e depois de 3 horas e 15 minutos de via-

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gem, daria entrada no hospital para uma cirurgia marcada para o mesmo dia, por volta das 8 horas da noite. Porém, nada deu certo. O aeroporto de Curitiba estava fechado, assim como o de Guarulhos, em São Paulo, e o avião teve que fazer uma escala em Belo Horizonte. Alemão só chegaria a Curitiba em torno de uma hora da manhã, já na madrugada do dia seguinte à possível cirurgia. Um balde de água fria para quem tanto ansiava por se livrar das máquinas de hemodiálise e voltar a ter uma vida bem próxima da normal. Porém, nada disso tirou a força de vontade do Alemão. Muito pelo contrário, só fez aumentá-la. Determinado, ele precisaria arrumar outra estratégia para não perder novamente a sua chance. Pois conforme ele mesmo diz, o cavalo não costuma passar pronto para montaria duas vezes na sua frente, as oportunidades aparecem e você tem que estar pronto para aproveitá-las. Assim, ele se decidiu por ficar em Curitiba e acabou se hospedando na nossa Casa de Apoio.

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“A gente tem que ter o pensamento positivo, porque senão fica mais doente ainda. Na Ideal, fiquei sabendo que meu caso não era tão grave como o de outras pessoas, ou pelo menos quanto imaginava. Tinha muita gente sofrendo com coisas piores, crianças principalmente, gente que mal tinha chegado à vida e já enfrentando o câncer, outras doenças terríveis, sem poder andar, sem poder enxergar. Por isso resolvi também ajudar da maneira que eu sabia, conversando, contribuindo nas tarefas da casa, na cozinha e outros serviços. Não que eu fosse obrigado, não é isso. É que esse foi o jeito e maneira que encontrei de retribuir o carinho recebido, a acolhida dos outros pacientes e fun-cionários; o jeito que dei para não ficar com a cabeça parada, só pensando em mim ou nos problemas que eu tenho. Aqui eu aprendo todo dia a valorizar a vida, o que somos e principalmente a valorizar nosso semelhante, os que sofrem tanto ou mais do que você. Por isso considero a Ideal a minha família”, revelou-me, certo dia, emocionado, nosso querido hóspede e da

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mesma forma simples complementou: “Penso que a maioria dos que fazem hemodiálise se entrega esperando o transplante. Por isso temos que ajudar os outros, nos ocuparmos para o tempo passar e também não enlouquecer. A hora em que você não se sentir mais útil, a doença vence você. É isso que penso”. Ao relatar esses fatos, dou-me conta que faz exatamente um ano que o Alemão está conosco. Sempre presente, sempre disposto, ele já é da casa. Sinto que todos aqui o consideram assim e sabem que ele está muito longe da família, compreendem seu drama, solidão até. Por isso, na manhã de um domingo fiquei muito feliz de saber que tudo aquilo poderia ter um final feliz. Logo cedo, fui acordada com a melhor notícia possível, aparecera, finalmente, um doador e o Alemão precisava ir ao hospital para efetuar os exames e quem sabe a cirurgia. Na realidade, a história do transplante havia começado na noite anterior quando o Alemão recebeu a informação do hospital que ele deveria se apresentar para a possível cirurgia já na

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manhã seguinte, bem cedo. Eram seis os rins disponíveis e os exames diriam se algum deles era compatível com os pacientes que se apresentariam. Mas, tudo foi tão inesperado, que a parente do Alemão, que mora na cidade e responsável por ele, não estava em Curitiba. Por isso, resolvi acompanhá-lo naquela manhã de domingo. No caminho para o hospital, enquanto dirigia, vi uma pessoa apreensiva ao meu lado, mas ao mesmo tempo muito feliz. Certamente, todo aquele tempo de expectativa e espera valera a pena. Pense numa pessoa contente, pois esse era o Alemão, que não dormira de tão eufórico que estava! Chegamos ao hospital por volta das 7h30 da manhã e prontamente fomos para a coleta do material para os exames. Como os níveis de certas substâncias no sangue estavam fora do desejado. O Alemão teve que se submeter à diálise por três horas. Enquanto esperava, fiquei sabendo que os médicos lamentavam a perda de um dos rins, que se tornara impróprio para transplante. Agora, dos seis órgãos disponíveis,

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apenas cinco poderiam ser utilizados. Por volta das cinco da tarde, informaram-me que tudo dera certo nos exames e que o Alemão fora julgado apto a receber o transplante. Ele contou-me que estava calmo e feliz quando dera entrada na sala de cirurgia. “Deu tempo de ver meu novo rim, bem rosadinho e pensei: esse vai ser meu e deve trabalhar direitinho. Só por Deus, dois anos e um mês numa fila com quase duas mil pessoas. Isso é mais do que ganhar na Megasena!”, brincava o Alemão após a intervenção cirúrgica, considerando-se o maior dos sortudos, um verdadeiro milionário, ao recuperar todas as possibilidades de vida. É lógico que muitos dos detalhes só ficamos sabendo três dias depois, quando o Alemão já estava novamente na Ideal andando e bem humorado. Ele nos contava que o médico havia brincado com ele ao confirmar que o rim começou a funcionar assim que foi implantado: “Está novinho. Zeramos ele antes de colocá-lo em você!”. Ou ainda, quando de seu retorno à Casa de Apoio, ao ficarem presos no trânsito, ele e a funcionária que fora bus-

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cá-lo, no meio de uma manifestação popular, dessas que pedem mudanças na política brasileira, inclusive na área de saúde: “Fiquei um pouco com medo. Tinha hora para tomar remédio. Mas depois relaxei. Estava feliz com o meu rim novo e aquela multidão estava lutando por coisas boas, por um Brasil melhor, com bons serviços de saúde e edu-cação para todos. Paramos o carro na frente da portaria de um prédio, pedimos água e tomei minha medicação ali mesmo. Estava feliz. Nada podia tirar essa felicidade de mim”. Não obstante seu humor visivelmente alterado para melhor, o Alemão mostrava-se mais contente ainda por não precisar mais da “máquina para viver”. Felizmente, dos cinco transplantes realizados naquele domingo, o dele parecia ser o de maior sucesso. Na primeira semana, dos cinco pacientes transplantados, dois ficaram internados e dois outros precisavam fazer sessões de hemodiálise até que os novos órgãos começassem a funcionar de acordo com o esperado. É impossível descrever em palavras o contentamento desse homem ao ver seu objetivo alcançado,

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assim como não tenho palavras para descrever a minha alegria ao testemunhar essa vitória da fé e perseverança diante de meus olhos. Mesmo sem tirar os pontos, o Alemão repousava em seu quarto, mas não perdia a oportunidade de andar pela casa toda e fazer suas caminhadas diárias de um quilômetro pelas ruas. É como se ele quisesse deixar ali uma mensagem: “não esmoreçam, não desistam nunca, sejam firmes na fé, sempre há uma possibilidade de ficar bom, persigam essa oportunidade, rezem a Deus e ela aparecerá”. O Alemão continuou conosco por mais tempo, até a confirmação de todos os exames e a garantia de que tudo estava bem. Seu maior sonho era retomar a sua rotina normal, voltar para o interior de Mato Grosso e matar a saudade de sua família. “Minha mãe ficou sabendo do transplante e até dizem que ela está sorrindo; imaginem: com 80 anos e se recuperando de quatro derrames! Todo mundo lá está muito contente”, contou o Alemão, sem se conter de tanta felicidade. “Vou viver e bastante. Nos meus planos estão muitas viagens, inclusive para a Alemanha, para conhecer

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a terra dos meus avós, da minha gente que tanto sofreu na máquina como eu sofri”. Realmente, o Alemão é uma dessas pessoas que passam por nossas vidas de maneira marcante. Daquelas que nos fazem pensar nessa grande dádiva que é estar aqui neste mundo, não importando o tipo de infortúnio ao qual todos estão sujeitos. Resignação? – Não, jamais. Esta palavra não existe no dicionário de pessoas assim, sempre positivas e esperançosas. Em verdade, penso que a grande graça da vida está em ser desafiado e também desafiá-la, dentro de certos limites. É uma questão de atitude. Esmorecer é quase sempre morrer. E como preconiza conhecida música popular, a cada tombo temos que nos pôr de pé, procurar prumo, sacudir a poeira e dar a volta por cima, não importando os sacrifícios que isso nos exija. A luta contra um inimigo maior, como parecia ser a doença do Alemão, só nos enaltece ainda mais a vitória. Quanto maior for o desafio, maior será a recompensa. E o nosso amigo tem a sua recompensa, algo impagável, que é ter novamente a

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sua capacidade de viver em plenitude, não só com um novo rim, mas com uma nova alma, mais repleta de amor e compreensão. Não consigo ima-ginar essa pessoa agindo de outro jeito que não seja, depois da cirurgia, na dedicação ao bem do seu semelhante. Vi isso nos seus olhos e gestos. Por isso digo que o transplante de qualquer órgão é, antes de tudo, um transplante de coração, porque quem passa por essa experiência, a princípio traumática, torna-se um novo homem, uma nova mulher, iluminados que são por uma novís-sima luz em suas vidas, a qual teve inacreditável origem no mais profundo padecer. Sim, é possível se tirar do que parece ruim o bem que será oferecido como magnífico presente aos que também sofrem. É necessário, portanto, pinçar desse episódio uma das mais ricas lições no que diz respeito a como se defrontar com os problemas, por mais duros e insuperáveis que possam parecer: sempre de frente, com o coração disposto a desejar dias melhores, que certamente virão. Deixar um caminho sempre aberto para a intuição e ir atrás

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dela e não simplesmente deixar-se arrastar pelas águas turbulentas do destino. Sim, o destino é um rio. Mas quem define para onde nadar somos nós. Esse é o ponto chave de tudo o que somos. E aqui se define o livre arbítrio que nos foi concedido por Deus, que nos diz o tempo todo: “Escolham a direção”. E nós, com medos tolos, às vezes não seguimos o Seu conselho. Preferimos ficar nadando em círculos e pouco avançamos não chegamos à margem nem a lugar algum e, cansados, nos afogamos em nossas próprias inseguranças e dúvidas. É preciso se dar uma chance, confiar nos instintos, principalmente no instinto de sobrevivência, como fez nosso amigo ao intuir que era melhor ficar em Curitiba, talvez por um tempo muito longo afastado dos seus, do que voltar e ficar espe-rando um momento de sorte qualquer para ter outra oportunidade de transplante. Nas próprias palavras do Alemão: “tomei a decisão correta, pois se não tivesse ficado aqui, não conseguiria chegar novamente a tempo, pois onde moro, nos finais de semana, não temos voos para Curitiba; eu estava no lugar certo e na hora certa”.

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Contar ou nĂŁo contar? 153


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Capítulo 7

A luta

contra a doença

batalha constante é uma

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Capítulo 7 Como se fosse um assaltante que nos encontrou no escuro e com poucas chances de fuga, o primeiro efeito da doença é nos forçar a tomar decisões extremas sobre situações nunca antes imaginadas. De repente, somos forçados a escolher entre poucas alternativas. A primeira seria como trabalhar a notícia consigo mesmo e com os que pertencem aos nossos círculos familiares e de amizade – Contar, ou não contar? – E se contar, com que palavras? Até que ponto, temos o direito de esconder uma notícia tão grave daqueles a quem amamos e dividimos até mesmo o teto? Quais os efeitos que isso pode causar, em casa, no trabalho, nos círculos de convivência etc? Esses, acredito, são os primeiros dramas pessoais de quem está submetido a uma nova realidade, em que se antevê uma grande luta. Pelo que 157

"Para a árvore pelo menos há esperança: se é cortada, torna a brotar, e os seus renovos vingam.” (Jó 14:7)


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observo, contar o que se passa me parece a melhor solução, porque dificilmente alguém consegue enfrentar a doença por si só. Há de se buscar ajuda e consolo, quer seja nos familiares, nos amigos, quer seja com ajuda de profissionais ou das próprias convicções religiosas. Conheci uma moça chamada Clarisse ainda quando estava morando em Chopinzinho, na região Sudoeste do Paraná. Isso faz muitos anos. Eu trabalhava numa loja de materiais de construção e Clarisse se empregava na casa dos proprietários da loja. Anos mais tarde tornei a encontrar Clarisse em Curitiba. Infelizmente em situação bem diversa da que a tinha encontrado pela última vez. Ao reencontrá-la, fiquei sabendo que ela estava em Curitiba para tratar de um sério problema de saúde que foi descoberto ao acaso, depois de ela haver batido com o peito na quina de uma cômoda. Passara a noite na casa de uma amiga com quem estava aprendendo a costurar e ao acordar de madrugada não quis acender a luz, na intenção de

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não incomodar ninguém. A batida doeu muito e como a dor persistia, Clarissa resolveu procurar um médico que, depois dos exames, constatou que ela tinha um nódulo no seio. Preocupada, Clarisse resolveu se consultar com especialistas em Curitiba. Foi diagnosticada com displasia mamária que, segundo os médicos, não é considerada uma patologia, ou câncer, mas, um desenvolvimento exagerado das mamas que ocorre em mulheres com pré-disposição genética, causando alterações nos seios, inchaço e muitas dores. Com esse entendimento do que estava acontecendo com ela, Clarisse volta e meia regressava a Curitiba para exames complementares. Estava com receio de que fosse coisa pior, depois de ficar sabendo que tivera duas tias mortas devido ao câncer de mama. Ainda morando em Chopinzinho e trabalhando na mesma casa de família, a minha amiga se deslocava seguidamente para Curitiba, em viagens de ônibus que duravam normalmente seis horas para vir e mais seis horas para voltar. Em 2003, numa

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dessas vindas para a capital, Clarisse fez uma biópsia do nódulo descoberto anteriormente em outra consulta. O médico que já a conhecia, com o resultado nas mãos, fazia rodeios para dizer a verdade. Até que ele tomou coragem e disse a ela: “Infelizmente não temos uma boa notícia para te dar. Vou pedir outra biópsia urgente. Mas pelo que vi nesta aqui, vamos ter que tirar a sua mama e fazer quimioterapia...” Clarisse chega a chorar ao lembrar-se desse momento disse-me que sua cabeça girava e o chão lhe faltava. Que chorou por mais de meia-hora, mas, aos poucos, foi se restabelecendo porque no seu pensamento já se formava a ideia de que chorar de nada valia. Tinha que enfrentar aquilo tudo e de supetão disse ao médico: “Ninguém vai tirar a minha mama, não vou aceitar...” Nesse instante, o médico lhe apresentou as opções, que eram poucas: ou tirava somente os tecidos prejudicados por meio de cirurgia ou a mama inteira. Em ambos os casos, não havia muitas garantias. As chances de recuperação estavam em

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40% se retirasse somente uma parte da mama e não chegavam a 100% se a extraisse totalmente. Portanto, a situação era urgente e o médico deu apenas uma semana para ela pensar e decidir o que iria fazer. Apavorada, Clarisse voltou para a sua cidade e não teve coragem de contar para seus pais o que estava se passando. Segundo ela, eles já tinham certa idade – na época, o pai com 70 anos e a mãe com 64 – e contar só iria deixá-los preocupados. Assim, sozinha, sem dividir nada com ninguém, Clarisse passou noites em claro pensando em que resposta daria para si mesma e aos especialistas que cuidavam de sua saúde. Na semana seguinte, ao retornar para a consulta em Curitiba, o médico foi direto ao assunto: “Conversou com seus pais? O que decidiu?”. De pronto e com coragem, minha amiga respondeu: “Não conversei, mas decidi tirar a mama inteira...” A situação era urgente e não dava para discutir muito. Agora era se preparar para a cirurgia da melhor maneira possível. Foram mais 15 dias de preparativos, inclusive para providenciar uma pró-

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tese, porque Clarisse era muito magra e não tinha gordura suficiente para a reconstituição da mama. Nessa altura, a família da minha amiga já estava inteirada dos acontecimentos e como os recursos financeiros eram escassos, Clarisse juntou o pouco dinheiro que tinha ao que fez doado por sua irmã, mãe e outros parentes para comprar a prótese. Num domingo, 29 de julho de 2003, Clarisse deu entrada no centro cirúrgico às 7h30 da manhã e de lá só foi sair às quatro horas da tarde para um internamento que duraria mais oito dias. Desse episódio crucial em sua vida, ela se lembra de alguns detalhes, dentre eles, a companhia de um de seus três irmãos e que fora assistida por uma equipe muito grande de médicos. Depois veio a maratona das quimioterapias. Tão ou mais sofrida do que a cirurgia. A cada período de 21 dias. Clarisse se sentia muito mal. Nada que comia parava no estômago. Chegou a pesar 40 quilos. Mas, guerreira e persistente, ela fazia questão de seguir o tratamento todo. Afinal, precisava vencer aquela doença e retomar sua vida normal. E isso era o que

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mais desejava naquele momento em que já tinha vencido a primeira etapa: a cirurgia. Terminadas as quimioterapias, veio uma fase mais “sossegada” na aplicação das radioterapias. De fé católica, Clarisse fez uma promessa para Nossa Senhora Aparecida: depois de sua cura ela faria uma visita ao santuário no estado de São Paulo. Naquele instante, dois problemas se apresentavam: o primeiro, o medo de ter que se submeter a mais uma cirurgia para a retirada da prótese, porque durante a radioterapia ela poderia ser danificada e o outro, o temor de queimar a pele, como havia ocorrido muitos anos antes, quando ela teve que tratar de um início de câncer de pele na região do rosto, próxima à boca. Já depois da primeira sessão de radioterapia, Clarisse sentiu o primeiro efeito do tratamento, que é a queda dos cabelos. Ela tinha um cabelo bonito, comprido e cacheado, e de repente sentiu que eles estavam caindo. Isso foi numa quartafeira, e na sexta ela procurou uma amiga que tinha um salão e pediu para raspar todo o cabelo, ou o que restava dele. E ao contrário do que

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todo mundo possa imaginar, a minha amiga se disse contente com o novo visual. “Coloquei o meu chapeuzinho e saí feliz da vida pelas ruas da minha cidade. Não ligava para o que as pessoas comentavam. Imagine, uma cidade pequena. Já aguentava outras histórias que ouvia. Umas davam conta que eu estava na UTI em Curitiba, mesmo quando eu já tinha retornado. Outras falavam que eu estava tão magrinha que não iria aguentar o tratamento, ou tinha outro câncer. Natural isso. De certa forma, eu era notícia e as histórias vão aparecendo. Infelizmente, sempre aumentadas na tragédia”, lembra-se Clarisse, em tom de brincadeira. Após isso tudo, as coisas foram se ajeitando e Clarisse retomou sua vida quase que na antiga normalidade, em virtude das viagens constantes para acompanhamento médico e de fisioterapia em Curitiba. Ela retornou a trabalhar normalmente na antiga casa de família e a estudar. Seu sonho era ser professora, por isso optou pelo curso de Magistério. Formou-se e prestou concurso para uma vaga na Prefeitura. É um

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dia depois de ter cumprido sua promessa em Aparecida do Norte, ela foi chamada para assumir suas primeiras turminhas de alunos, no Jardim. Enquanto eu escrevia este livro, Clarisse estava hospedada na Casa de Apoio novamente. Em seu rosto vi uma preocupação muito grande. Ela contou-me que no último exame de rotina os médicos haviam notado uma pequena alteração na região que recebeu a prótese. Por isso, ela tinha vindo correndo para Curitiba, sem nem mesmo ter marcado a consulta previamente. Mas chegando aqui, conseguiu marcá-la. “Estou com os resultados dos exames desde que apanhei o ônibus em minha cidade. Viajei com ele, mas não tive coragem de abrir; vou ver o que está escrito junto com o médico”, disse-me Clarisse, obviamente muito assustada. Para ela, a esperança era que as dores fossem provocadas apenas pelo deslocamento da prótese num movimento qualquer que fizera, ou, ainda, uma rejeição mesmo. Mas a hipótese de um novo câncer ela mesma não afastava. Tinha fé que não era,

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pois na cirurgia haviam retirado todos os tecidos. “Rezo muito para que não seja outro câncer, mas, se for, vou enfrentá-lo da mesma maneira que enfrentei o primeiro. Tenho lá meus aluninhos que eu adoro. Avisei para eles que talvez faltasse no começo do próximo semestre e eles ficaram tristes e alguns me disseram que não queriam outra professora. Não posso deixar que isso aconteça, não é verdade?”, disse-me Clarisse, reunindo em si todas as forças possíveis para superar mais um dos muitos problemas de saúde que teve. Sentia ela que iria conseguir. Torço de coração por ela e sei de sua garra e vontade. Deus há de protegê-la como sempre fez, porque ela tem uma grande lição de vida para passar para seus alunos e para todos que a conhecem. Essa história da Clarisse nos mostra uma das abordagens que se pode dar a uma doença, em que sua aceitação é tão dolorosa quanto ela própria. É lógico que esse “aceitar” está condicionado a vários aspectos e que geralmente fogem totalmente ao controle do paciente como, por exemplo, a gravidade da doença em si, o preparo

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da pessoa, o nível econômico e social dos envolvidos e o significado da doença dentro do imaginário popular. Dentro dessas perspectivas, não é de se admirar que uma notícia de câncer, hoje, já não tenha o mesmo peso do que tinha há 20 ou 30 anos. As pessoas sabem que essa doença é grave, mas também têm consciência de que os métodos de tratamento evoluíram muito. Examinemos uma história de um paciente diagnosticado com câncer e que se hospede na Ideal para tratamento em Curitiba. Técnico mecânico aposentado de uma grande empresa de papel e celulose, Augustin foi surpreendido recentemente com a notícia de que estava com câncer no céu da boca. É evidente que essa notícia o abalou, mas não ao ponto de ele se desesperar. Augustin nos conta que até mesmo antes de informar a família, ele foi procurar mais informações na internet. Queria saber exatamente o que tinha e a gravidade da doença. Depois chamou a mulher e os filhos e lhes falou abertamente sobre o assunto.

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Em Curitiba para o tratamento, Augustin disse que não perdia as oportunidades de conversar com os médicos para obter sempre a informação mais precisa possível sobre a evolução de seu quadro. Para ele, estar informado é um direito do paciente, pois a dúvida para quem se trata de algum mal não é boa companhia. De acordo com Augustin, temos que nos inteirar de tudo que está acontecendo para nos posicionarmos inclusive diante da família e de nós mesmos. “Há de se quebrar o tabu”, recomenda Augustin, “a con-versa com os médicos tem que ser a mais franca possível.” Na semana do encerramento do feitio deste livro, Augustin nos disse que se sentia muito bem e que as sessões de radioterapia estavam obtendo resultado notáveis. Até mesmo seu cabelo não havia caído. Ele esperaria apenas mais algumas sessões para considerar mais essa etapa da vida superada. Embora otimista, ele sabia que não iria mais poder se descuidar, mesmo que a doença desaparesse por completo. Augustin falou que a vigilância teria

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que ser em dobro, porque pelo que se informou, há sempre o risco de a enfermidade voltar. Coisa que, de todo coração, torcemos que nunca aconteça.

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Capítulo 8

Enquanto

vida, haja houver

que

esperança

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“Ensinai-nos a contar nossos dias para que nosso coração alcance a sabedoria”. (Salmos 90:12)

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Uma provação na vida de uma pessoa geralmente determina uma grande transformação. Não falo isso apenas para ter uma frase de efeito, para dar vida a este livro, ou discurso qualquer. Digo e repito: as provações estão no mundo para modificarem as pessoas. Aprendi isso intuitivamente e repasso para vocês, meus amigos, leitores e leitoras. De alguma forma temos que aprender a transformar a amargura no doce da vida; tirar do solo árido e seco magnífica colheita que foi alimentada com nossas lágrimas, choros e desesperos. Por experiência da minha vida pessoal e ao observar milhares de pessoas em momentos graves de suas vidas, sei que isso é perfeitamente possível, embora muito trabalhoso, porquanto nos exige uma fé imensurável a determinar uma esperança gigantesca em dias melhores, na felicidade que todos merecem ter neste mundo. Poderia citar uma infinidade de exemplos reais para comprovar minhas afirmações. Todavia, julgo que apenas mais um deles, fora aqueles que neste

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livro estão relatados, seja o suficiente. Esta história é tão rica que pedi à minha amiga Vanilda o relato por carta para que não perdêsse-mos um só detalhe da provação que sua família passou há alguns anos. Desta maneira, passo a contar praticamente na íntegra o que ela escreveu não só para mim, mas para todos que estão lendo este livro. Na época do início da sua história, Vanilda estava casada há pouco mais de dois anos. Tinha uma vidinha simples, de gente do interior, junto com seu marido e o filhinho Felipe, com um ano e cinco meses. Felipe era o centro de suas preocupações, porque o menino, seu primeiro filho, nunca apresentara um bom quadro de saúde, pois quando contava com 15 meses, seu peso não ultrapassava os 10 quilogramas. Seguidamente, ela comparava o seu bebê com outras crianças da mesma idade e sabia que algo não estava muito certo com ele. Por isso, sempre levava o Felipe no posto de saúde. No entanto, ela estranhava o procedimento do médico que só receitava um remedinho ou outro para anemia e nunca pedia um

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exame para saber a fundo a razão daquele estado anêmico da criança. Certo dia, conta Vanilda, o Felipe estava correndo dentro de casa e bateu com a cabeça na quina de uma mesa. Aparentemente, pareceu-lhe que não havia sido nada. Todavia, no dia seguinte, ela notou que o menino tinha amanhecido todo roxo e cheio de manchas no formato de bolinhas espalhadas pelo corpo. Coração de mãe é algo que vem equipado com alarmes e que toca ao menor susto. Era um domingo. Preocupada, ela planejou levar o filho para o posto de saúde já no dia seguinte e bem cedinho. Dito e feito. Na segunda-feira, bem cedo, Vanilda já estava no consultório. Foi o médico bater o olho no menino e pedir exames urgentes – e aqui o urgente é modo de falar apenas, porque os exames, por normas do posto de saúde, só seriam feitos na quarta e apanhados pela mãe na sexta-feira da outra semana para a análise do médico, quase uma semana depois em que o menino tivera seu pequeno acidente topando com a mesa.

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Há momentos em que os céus nos protegem. E por força da boa sorte e motivos que contaremos adiante, Vanilda conseguiu o resultado dos exames quatro dias depois daquela primeira consulta. Na sexta-feira, ao retornar ao posto de saúde, Vanilda notou que o médico modificou sua fisionomia na mesma hora em que viu os exames. Ele ficou com cara de susto mesmo. Sem pensar duas vezes, o médico pediu para a secretária passar um fax para o laboratório para confirmar os exames e ver se era aquilo mesmo, pois os números estavam bem estranhos. O fax foi passado pela secretária. Vanilda roia as unhas de nervosa. E logo, num tempo que parecia uma eternidade para a mãe, veio uma cópia confirmando os resultados. Nesse momento, o médico foi resoluto ao dizer para ela que os exames estavam um pouco alterados e que o melhor seria ir até Curitiba para ter a certeza daquilo que fora apurado pelo laboratório local. Em seguida, o clínico chamou novamente a secretária e pediu a ela que ligasse de imediato para o ambulatório. Ele queria marcar uma con-

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sulta o mais rápido possível para o Felipe. Mas como era sexta-feira, a secretária argumentou que seria melhor marcar para segunda-feira. E, para desespero de Vanilda, a resposta do médico foi negativa: “Essa criança não aguenta mais dois dias se tiver uma febre, ou algum sangramento provocado por um tombo ou qualquer outra coisa. Ela pode morrer”... Vanilda escreveu que quase entrou em choque. A jovem mãe pensou mil coisas ao mesmo tempo. A cabeça girava. “Como assim? Morrer?” – perguntou em voz alta aos que presenciavam a cena, mas sem obter resposta. Ela não sabia, mas as plaquetas estavam num nível quase que insustentável para manter a vida de seu filho. Daí em diante, a situação só se agravaria. O médico deu a eles apenas trinta minutos para que fossem em casa para arrumar suas coisas e iniciar a viagem. Para a família, tudo aquilo parecia uma alucinação coletiva, quase que um filme de terror. Foram apanhados de surpresa e não tinham dinheiro algum para levar e pagar algumas despesas, como a própria alimentação. Por sorte, o ir-

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mão dela que a acompanhara até o posto, correu até a sua casa e arrumou quarenta reais com a mãe deles. Era só o que tinham. E com aquelas poucas notas teriam que se virar na capital para salvar o Felipe da morte que parecia certa. “Partimos para a pior e mais longa viagem de nossas vidas. Parecia não terminar... O Felipe saiu de nossa cidade aparentemente bem e chegou a Curitiba acabado, cansado... Passou mal a viagem toda... Eu não conseguia nem raciocinar mais”, escreveu-me com tristeza Vanilda, em sua carta. Ela não parava de pensar que as coisas poderiam ter saído piores ainda, porque era costume na cidade se fazer exames numa semana e eles serem encaminhados para o posto de saúde somente na quarta-feira seguinte. Portanto, uma semana inteirinha entre o exame e o resultado. Por sorte, um vereador conhecido da família, junto com o irmão de Vanilda, conseguiu abreviar esse prazo inexplicável dos burocratas que administravam o serviço de saúde. Os exames foram realizados na quarta-feira como já descrevemos e no final do dia seguinte já estavam nas mãos de Vanilda: “Se não

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fosse isso, eu poderia ter perdido meu filho antes mesmo de saber o que tinha nos exames, então, de algum modo, eu devo a vida do Felipe a eles”. E esses problemas burocráticos pareciam não ter mais fim. Ao chegar a Curitiba naquele final de semana, a jovem mãe descobriu que o ambulatório estava fechado. Porém, havia ali uma médica que olhou os papéis do Felipe e encaminhou o bebê diretamente para o hospital, onde o menino seria internado na mesma hora. Vanilda jamais esqueceu essa data, início de uma nova etapa de luta em sua vida, era 26 de junho de 2004. No próprio hospital a mãe fazia as contas: o filho com quase um ano e meio, o marido com 25 anos e ela com apenas 20 e já tendo que enfrentar algo tão grande, absurdamente grande. “Mas nos unimos muito e Deus nos deu forças que não imaginávamos que um dia poderíamos ter, e de que muito iríamos precisar”, confessou-me Vanilda. No hospital tudo era novidade. O número de pacientes e profissionais que circulavam pelos corredores era, para Vanilda, enorme, bem diferente do acanhado posto de saúde de sua cidade.

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Refizeram todos os exames e, para a surpresa da mãe do Felipe, uma equipe de médicos se apresentou para dar os novos resultados obtidos. Uma equipe inteira de médicos seria um bom sinal em qualquer outra situação, mas não para Vanilda, que ao ver tantos homens de branco cuidando de seu filho se sentiu aterrorizada e já pensando no pior. A equipe médica não perdeu tempo e foi direto ao assunto, perguntando à mãe se ela sabia o que o Felipe tinha. Qual era sua doença. Na sua simplicidade, Vanilda respondeu que só sabia que era alguma coisa no sangue, porque os exames do menino tinham dado alguma alteração. Fez-se um pequeno silêncio, e uma médica explicou que a doença de Felipe chamava-se leucemia... “Vocês sabem o que é leucemia?” – perguntou a médica. E diante do constrangedor silêncio que se fez novamente, Vanilda tomou coragem e respondeu como entendia o que era aquela doença, porque naquele tempo, os diagnósticos de leucemia não eram tão comuns, pelo menos na sua pequena cidade: “O sangue dele está virando água”, come-

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çou a responder sem, no entanto, achar as palavras certas para continuar. Ao ouvir aquilo, a médica foi didática, talvez até demais: “Não, mãe. Não é isso. É um tipo de câncer no sangue...” Daí em diante o mundo caiu de vez sobre a cabeça de Vanilda. A médica deve ter falado mais coisas, entretanto ela não escutava. Somente aquela palavra câncer, câncer, câncer, ressoava como uma badalada de sino dentro de sua cabeça, trazendo para si toda a carga negativa embutida no termo e que significava perda. Vanilda só voltou a si quando a médica terminou a explicação e perguntou se havia mais alguma pergunta. Para ela já bastava. Mas seu marido insistiu com a médica e a indagou se o menino corria o risco de morrer. A mãe não dese-java ouvir a resposta, porém não havia outro jeito e escutou a médica falar que sim, que Felipe corria risco de morte, que não poderia enganá-los e que a família deveria ficar preparada para tudo, porque assim como estavam vendo o menino bem, poderiam vê-lo, a qualquer momento, na UTI.

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Sobre esse dia, Vanilda faz a seguinte análise: “Nossa, aquele parecia ser o pior momento de nossas vidas! Mas ainda não sabíamos de outra coisa pior do que descobrir um câncer: lutar contra ele. E essa luta foi constante. Não tivemos descanso. Todos os dias. Seguindo o ditado que na vida se deve matar um leão por dia.” O casal se sentia de mãos atadas, somente esperando os efeitos dos remédios no pequeno paciente. Ela e seu marido pediam forças para si e principalmente a Felipe, para que ele aguentasse todo o tratamento que viria e que, certamente, seria semelhante a uma tortura, porém necessário quando estamos determinados a vencer. Na primeira noite, a mãe soube que não poderia ficar com o seu filhinho doente. Teria que deixá-lo ali e seguir com o marido para uma casa de apoio. “Pense como eu fiquei naquela hora, sabendo que corria o risco de perder meu filho e ainda tendo que deixá-lo com pessoas que eu nunca tinha visto na vida, além de só poder voltar no outro dia pela manhã”, relatou-me Vanilda. Mesmo com choro, ela não conseguiu convencer o pessoal do hospital

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para que fosse aberta uma exceção. Caso insistisse, os seguranças seriam chamados e a retirariam de perto de seu filho. Uma triste escolha para a simplicidade de minha amiga. Ou deixava ele sozinho para uma tentativa de cura, ou levava a criança para morrer perto dela. Resignada e seguindo seu instinto materno, Vanilda fez a criança dormir para que ela não os visse sair. Já na casa de apoio, Vanilda não conseguia pegar no sono. Ouviu em alucinação, durante a noite toda, o choro do filho. Contou os minutos e rezou para que o dia amanhecesse logo. Queria voltar o mais rápido possível para o hospital. Finalmente, no primeiro clarão do dia, o casal retornou ao hospital. Antes mesmo de reverem Felipe, Vanilda foi orientada para dar de mamar ao filho e que, depois disso, o mantivesse em jejum, porque havia um exame de medula óssea marcado. Entre outras coisas, os médicos pretendiam descobrir que tipo de leucemia a criança tinha. Felipe não aceitou mamar e ficaria sem se ali-mentar até o meio da tarde. Emociona-nos ver como a mãe descreve esse momento de verdadeira

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tortura que passava seu filho: “Ele gritava de fome e sede. Era a primeira vez que ele passava fome na vida. E não seria a única, porque, daquele dia em diante, o exame seria repetido a cada quinzena”. Para Vanilda, o tempo era seu inimigo naquele instante crucial. Parecia que as horas não passavam e que o relógio parara. Mas, enfim, a tarde chegou e seu filho foi submetido ao exame que ela descreve como horrível. Deram uma anestesia e o menino não dormiu, porque era apenas um “remedinho” via oral e Felipe sofreu muito: “Eu se-gurei na mãozinha dele para dar forças, mas não pude tirar a dor que ele parecia estar sentindo; pedi muito a Deus até que o médico conseguiu furar o osso e colher o líquido...” Depois, cansados e quase sem forças como o Felipe, o casal aguardou o resultado do exame. No finalzinho da tarde, o médico anunciou tratar-se de uma LLA, Leucemia Linfoide Aguda, que, graças a Deus, não precisava de um transplante. No entanto estava bem avançada. Fato que determinava a quimioterapia, o mais rapidamente possível, porque as plaquetas estavam praticamente

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acabando. Era preciso que Felipe as recuperasse pelo menos um pouco para sobreviver. Além disso, o menino ficaria uns quatro dias recebendo medicamento pelo soro e em seguida viriam os quimioterápicos. Nesta fase, o problema foi conseguir pegar uma veia boa. Ele era picado várias vezes com a agulha todos os dias. Tinha as veias “secas”, que não mais serviam para a circulação sanguínea. Quando os enfermeiros achavam alguma boa era necessário ficar de olho para que Felipe não arrancasse a agulha. Não se podia descuidar dele. A solução encontrada pelos médicos foi por meio de cateter, que permitiu uma maior rapidez no tratamento quimioterápico. O Felipe passou doze dias no hospital nesse primeiro internamento. A mãe conta que ficou todo tempo que foi possível com o filho, enquanto seu marido, Sílvio, aguardava na casa de apoio e só se deslocava para o hospital nos horários de visita. Doze dias de vigília, sono perdido, fome, sede e frio para aquela jovem mãe que não tinha pensamento para outra coisa que não fosse a recuperação da saúde de seu filho.

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Ela recorda em sua carta que, quando saiu de sua cidade no interior, pensava talvez que ela e sua família precisassem ficar uns três ou quatro dias fora para depois voltarem para casa novamente. Para a viagem haviam levado apenas uma mochila de roupas. Logo acabaram as roupas limpas e o dinheiro praticamente não deu para nada. A rotina era desgastante. Ela saía para o hospital na primeira condução às 6h30 da manhã e só retornava às 11 horas da noite. Sem tempo para cuidar das coisas rotineiras, sendo que o marido teve que lavar as roupas para ela usar. É lógico que, com doença tão grave, o tempo de espera deveria ser grande também. Logo, o casal seria informado pelo médico de que eles teriam que ficar em Curitiba por pelo menos mais dois ou três meses. Informada, a Família de Vanilda se mobilizou em sua cidade e demonstrou grande capacidade de união, arrecadando roupas e fraudas e promovendo uma rifa para conseguir dinheiro para o casal e seu filho em Curitiba. Em julho, já nos últimos dias da primeira internação de Felipe, o irmão de Vanilda chegou a

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Curitiba com o que haviam arrecadado. Uma salvação, porque é bem nessa época que o inverno curitibano se mostra mais duro, com temperaturas às vezes abaixo de zero e com grandes geadas. Ao receber alta, Felipe e a mãe foram encaminhados para uma Associação que cuida de crianças em situação semelhante ao do filho da Vanilda, enquanto o seu marido ficava hospedado na casa de apoio. A mãe do menino doente não se adaptaria bem a essa nova situação. Abalada emocionalmente, ela se sentia em desconforto e sofrimento ao observar muitas crianças agonizando com suas enfermidades: “A gente sofrendo com os problemas nossos e também sofrendo com os problemas dos outros; vi muitas crianças passando mal e sendo levadas para o internamento e que não voltavam mais. Depois as pessoas comentavam o que tinha acontecido, geralmente coisa ruim; o pior é que estávamos conscientes de que aquela história era quase igual a que passávamos – aí bate aquele desespero, aquela incerteza sobre o que poderia acontecer, porque é difícil ser positiva naquela situação em que éramos testemunhas do que acon-

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tecia com as outras crianças”. Não dava mais, a carga emocional era demasiadamente grande. Embora considerando que foram bem recebidos, Vanilda e Felipe ficaram apenas uma semana na Associação. Sem forças até mesmo para chorar, a mãe procurou meios para se reunir com o marido na Casa de Apoio porque, além tudo, ela tinha medo de que acontecesse alguma coisa e Sílvio não estivesse por perto. Muito emocionada, Vanilda descreve em sua carta as primeiras impressões que teve em nossa casa: “Eram anjos da guarda colocados por Deus em nosso caminho para mudar a nossa história. Havia quase um mês que estávamos em Curitiba e quando chegamos na Ideal vislumbramos pela primeira vez uma luz no fim do túnel, porque os dias anteriores nos pareceram uma eternidade de puro sofrimento. Nossa família, mesmo de muito longe, nos passava muita força e na Ideal sentíamos como se tivéssemos uma segunda família.” Ela relata que o Felipe chegou à Casa de Apoio e de cara já se deu bem com todo mundo, começou a brincar. Ela avalia que o menino mudou seu

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comportamento porque se sentiu livre pela primeira vez desde que tudo havia começado: “Conhecemos a Leandre, o Cleomar e os funcionários. Eu não tenho palavras para expressar o que eles significam para a gente; eles passaram a fazer parte de nossas vidas, da vida de nossa família... Sei que nunca conseguiremos retribuir o que eles fizeram pela gente, mas eles sempre terão o nosso carinho e a nossa gratidão eterna”. Outra alegria de estar num ambiente mais solto, narra Vanilda, foi poder receber na Casa seus familiares. A primeira visita foi de sua mãe, que estava arrasada com os recentes acontecimentos envolvendo Felipe. Um alívio para ambas por poderem matar as saudades e principalmente para a mãe de Vanilda, que pode ver a melhora no neto e que tudo, dentro do possível, estava se encaminhando bem. A ansiedade é uma grande inimiga do tempo porque costuma espichá-lo, deixá-lo tão longo que parece não passar nunca. Para os ansiosos, uma hora dura um dia e um dia parece durar semanas.

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Vanilda se sentia assim. O tempo avançava e a recuperação de Felipe parecia-lhe muito lenta. Não dava para ver muita diferença no decorrer dos dias. Como as horas pareciam não passar, a solução encontrada por Vanilda foi simples: “Resolvemos viver um dia de cada vez, sem pensar muito no que viria no dia de amanhã”, escreveu a mãe de Felipe, demonstrando um amadurecimento em relação ao que estava se passando. “Queríamos muito voltar para casa, porém tínhamos que ter a certeza de que Felipe estava bem, porque havíamos observado muitas crianças voltando para seus lares e seus pais não davam mais notícias. A pergunta que ficava lá no fundo de todos nós era se tudo tinha se resolvido mesmo; ou, o que era pior ainda: por que não voltaram mais?”. Devagarinho as coisas foram se ajeitando. Quando fez 60 dias que o casal e o filho estavam em Curitiba, o médico autorizou um breve retorno da família a sua cidade no interior. Para Vanilda, foi o mesmo que sonhar de olhos abertos.

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Felizes, eles sentiram um pouco de medo de ficar longe do hospital, mas confiavam em Deus e acreditavam que tudo daria certo. Depois retornaram outras vezes a Curitiba, na velha rotina de hospitais e exames. Vanilda estava contente por sempre ter companhia na Casa de Apoio. Mas veio a eleição e depois dela começaram os cortes de despesas na prefeitura de sua cidade. Sílvio teve “cortada” a sua ajuda de custo para as passagens de ônibus, porque a prefeitura entendia que somente a mãe já era o bastante para acompanhar Felipe e que não havia necessidade de mais um acompanhante. Nem mesmo o pai. Na primeira viagem que fez a Curitiba sem a companhia de outra pessoa que não fosse o filho, Vanilda se sentiu muito insegura, como aqui relata: “Fiz aquela viagem com muito medo. Eu me sentia um grão de areia em meio ao oceano. Viajei desesperada. Sílvio e a minha família também ficaram apreensivos. Acredito que eles tinham o mesmo medo do que o meu. Medo de que alguma coisa acontecesse. Eles sabiam que eu não aguentaria sozinha”.

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Ao chegar à capital, a jovem mãe agradecia a Deus somente pelo fato de poder estar junto com seu filho. Porém, os dias foram se passando e o dinheiro acabando. Até que chegou o momento de ela não conseguir nem mesmo comprar fraudas para o filho. Mas Vanilda não estava desamparada. Algumas pessoas próximas sabiam de suas dificul-dades e fizeram uma espécie de “vaquinha” para arrumar um pouco de dinheiro para, pelo menos, comprar as fraudas do menino. Vanilda conta que, ainda naqueles duros dias, passava pelo hospital uma mulher de outra cidade com sua menina, que se suspeitava estar com leucemia. Essa mulher, sabendo de sua história, voluntariamente lhe deu 50 reais. No dia seguinte, no ambulatório, a mesma mulher deu a Vanilda um envelope com 70 reais. “Fez isso porque as sus-peitas sobre sua filha eram falsas. Graças a Deus a menina não tinha leucemia. Nunca esquecerei do gesto que ela teve, não somente com o dinheiro, mas pelo grande coração que possuía”, comentou a mãe de Felipe.

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Aquele dinheiro lhe serviria por muitos dias. Vanilda comprou fraudas e as coisas que a criança pedia na lanchonete. Mas o dinheiro acabaria mais uma vez, apesar do esforço que a mãe fez para esticá-lo ao máximo: “Felipe começou a sentir muita falta do pai e pedia coisas que eu não conseguia comprar. Foi então que o Sílvio me ligou e pediu que eu conversasse com a Leandre para ver se ela arrumava um serviço para ele, nem que fosse a cinco reais por dia mais a diária, só para ele ficar com a gente. Com os cinco reais ele poderia comprar as coisas que o Felipe pedia.” Um dia estou no escritório da Ideal e chega-me a Vanilda que deixa um bilhete sobre a mesa e some. Depois ela me explicaria que não sabia como chegar até mim e pedir aquele favor. Ela era muito tímida e é até hoje. Na sua carta, ela lembra essa história: “Resolvi escrever um bilhete para Leandre dizendo o que o Sílvio havia falado. Saí do escritório. Não esperei pela resposta. Deixei que ela pensasse e depois me dissesse, mas ela não pensou muito não, me chamou e, para a nossa surpresa, disse que sim. No outro dia ela mandou a

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passagem para o Sílvio vir para Curitiba”. Desse episódio recordo-me que Vanilda ficou muito feliz. Havia reunido a família novamente. O Sílvio chegou e foi trabalhar no jardim. Cortava a grama e fazia alguns serviços de reparos. Ele veio em boa hora, porque estávamos para iniciar as obras de ampliação da Casa, que naquela época ainda era muito pequena, para não dizer acanhada, e já estávamos preocupados com o movimento que aumentava todos os dias. O Felipe estava muito feliz por estar com o pai, já se notava a melhora. Ele estava se recuperando muito bem. O casal fizera uma excelente amizade com os outros funcionários da Casa e com os pacientes. Infelizmente, no período entre o Natal e o Ano Novo daquele ano, a médica não os liberou para passar as festas em casa. E neste ponto tenho que destacar uma coisa que percebi em muitas pessoas que passam por momentos de muita luta com a família: Há uma mudança radical nos valores, inclusive nos mais arraigados na tradição familiar. Ao contrário do que possa parecer, Vanilda e sua pequena família já não da-

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vam importância para datas festivas. Ela nos escreve: “Depois da doença do Felipe, as comemorações deixaram de ter sentido. Passamos por nossos aniversários e outras datas especiais em branco. O Dia dos Pais, por exemplo, era lembrado por acaso e assim foi por alguns anos”. O tempo passou. O Felipe se recuperou. Quando deu um ano de tratamento as quimioterapias passaram a ocorrer a intervalos de vinte e um dias. Vendo a luta do casal e suas dificuldades, ofereci também à Vanilda um trabalho. Penso que o trabalho tenha ajudado bastante ela e sua família, principalmente porque permitiu que ela cuidasse de seu filho e o levasse ao hospital. Em 2006, ligaram para a mãe do Felipe da sua cidade dizendo que eles haviam sido contemplados com uma casinha do governo. O casal havia feito a inscrição para ter uma casa quando Felipe contava apenas três meses de vida e, agora em Curitiba, depois de tudo aquilo que aconteceu devido a sua doença, ele já estava com três anos de idade. “Então, como nosso filho estava bem, não pensamos muito e pedimos as contas”, me

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escreveu Vanilda. “Leandre compreendeu que se tratava do nosso sonho. Se perdêssemos a oportunidade, talvez, não teriamos outra, tínhamos que partir.” Ao chegarem de volta a sua cidade, com o forte propósito de recomeçar a vida com uma casa nova, o casal começou a duvidar se tinham feito a coisa certa. Felipe começou a passar mal. Tinha muita febre e algumas vezes sua temperatura chegava aos 40 graus. Novamente tiveram que contar com a ajuda da prefeitura. Enquanto eles esperavam a liberação de um carro para levá-los a Curitiba, a situação parecia bem grave, porque Felipe teve que tomar uma injeção antes de embarcar para poder aguentar a viagem. Depois de três meses fora de Curitiba, a família de Felipe vendeu tudo que possuía e retornou à capital. O sonho seria adiado novamente até que a criança se recuperasse de maneira permanente. Depois, ligaram-me pedindo para retornar à Casa de Apoio. Não tive dúvidas e pedi que arrumassem suas malas e voltassem. Estava de braços abertos e nada havia mudado em nosso relacionamento.

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Novamente aqui, Vanilda teria de volta seus afazeres e Sílvio deixaria o duro serviço nas obras de reforma e iria trabalhar como atendente da lanchonete da Casa de Apoio. Vanilda chega até a brincar com esse episódio, ao dizer que seu marido havia trocado o facão por um computador, porque ele era cortador de erva-mate, sempre trabalhou no mato, nunca tinha trabalhado naquela área. Outra coisa que conseguimos fazer por eles, foi ceder uma casa em um terreno que não estávamos ocupando ainda em nosso trabalho. Mandamos reformá-la e a família de Vanilda passou a residir nessa casa, que dava a eles, acredito, uma maior privacidade e o sentimento de liberdade, podendo criar Felipe um pouco mais afastado daquele mundo tão sofrido para ele, cheio de jalecos, corre-dores de hospitais e tratamentos. Assim, eles foram tocando a vida até quase o finalzinho do tratamento do filho. Neste momento veio uma notícia que ninguém mais esperava: a necessidade de um transplante. Ninguém acreditou. O menino parecia estar indo bem. Por que o transplante justamente no final do trata-

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mento? Ninguém entendia aquilo. Vanilda me explicou que ela fora chamada ao hospital e informada de que Felipe tinha sido incluído na busca por um doador de medula óssea. “Não gostei nada da notícia, o médico disse-me que, como a leucemia dele era de alto risco, havia uma probabilidade alta de a doença voltar. Em seguida, fizeram o teste de compatibilidade em quinze pessoas da família, mas ninguém se mostrou compatível, muito menos eu e o Sílvio”, disse-nos a mãe em desespero. Como não havia doador possível na família, Felipe foi para a lista do “não aparentado”. Fila em que ele constou por pouco tempo, porque apareceu um cordão umbilical com 80% de compatibilidade e esse cordão era dos Estados Unidos. O médico queria que Vanilda se decidisse pelo transplante ou não. Ela ficou praticamente sem saber o que fazer quando recebeu os papéis que descreviam todos os riscos que Felipe correria. Caso a mãe concordasse, ela teria que assinar os papéis e se responsabilizar por tudo. Se algo desse errado eles não se comprometiam com nada.

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Ao mesmo tempo, uma outra informação aparentemente absurda perturbava muito Vanilda: caso ela se negasse a autorizar o transplante de medula óssea, eles iriam descartar o cordão. Assim, caso um dia a doença voltasse, não daria tempo de encontrar outro. “Quase fiquei louca”, nos contou Vanilda. “Pedi alguns dias para pensar e eles me deram apenas 48 horas para dar uma resposta.” Desorientada, ela foi ao ambulatório conversar com o médico que cuidava do caso do Felipe desde o início. O médico disse à mãe que seu filho não precisava de um transplante e achou absurdo eles deixarem em suas mãos essa decisão. O médico reafirmou que Felipe sempre reagiu bem ao tratamento e que, se um dia a doença voltasse, o cordão estaria sim à espera dele. No final o médico ainda reforçou que se fosse o filho dele, não autorizaria o transplante. “Depois dessa conversa, não pensei mais e desisti da operação. Com isso me fizeram assinar um papel dizendo que eu não quis realizar o transplante, alegando que o Felipe estava bem e que, caso algum dia eu pre-

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cisasse, eles não iriam mais ajudar. Não sei o interesse daqueles médicos, mas desconfio de que algo estava muito errado ali”. Logo depois de desistir do transplante, Vanilda relata que resolveu ter mais um filho e guardaro cordão umbilical dele (o hospital bancaria as despesas). Então, ela parou de tomar o anticoncepcional e um ano depois engravidou. O Felipe já havia terminado o tratamento e estava muito bem. O casal continuou trabalhando, feliz com a chegada de outro filho, como ela mesma me contou: “Trabalhei até setembro de 2008 e em outubro ganhei o Thyago, um lindo menino, muito parecido com Felipe. Thyago veio ao mundo para completar a nossa felicidade. Nessa época nós já tínhamos voltado a sorrir novamente. Realizamos o teste de compatibilidade do cordão umbilical do Thyago e infelizmente deu negativo.” Como tudo parecia estar bem, eles novamente decidiram voltar para suas origens. Foi quando surgiu uma oportunidade de eles comprarem a casa do cunhado com as economias juntadas com o trabalho na Casa de Apoio. Confesso ter ficado apre-

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ensiva com o retorno delesa sua cidade. Éramos antes de tudo, amigos. Felipe estava estudando numa escola particular muito boa em que havíamos conseguido uma bolsa de estudo integral. Creio ter ponderado com Vanilda os prós e os contra daquela decisão de voltar para o interior. Mas a mãe de Felipe havia desenvolvido um espírito de conservação admirável, pois lhe preocupava a violência da cidade grande e ela tinha medo que todo seu esforço fosse por água abaixo caso acontece alguma coisa com o seu filho. Naquela época, uma tragédia que rendeu manchetes nacionais a aterrorizou muito, e também a nós todos. Uma criança havia aparecido morta, cortada em vários pedaços e deixada em uma mala na rodoviária. A criança vinha da escola. Aquilo ficou na mente de Vanilda segundo ela mesmo contou no final de sua carta que transcrevo na íntegra, pela sinceridade e exemplo de vida dessa mulher guerreira: Eu não tinha mais sossego pensando que alguma coisa pudesse acontecer com Felipe, nunca me perdoaria se depois de toda a nossa luta pela vida de Felipe nós o

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perdêssemos de uma forma igualmente brutal. Não tínhamos mais justificativa para ficar em Curitiba, ganhávamos dinheiro com o nosso trabalho, mas o tratamento já havia se encerrado. Eu e o Sílvio decidimos ir mesmo embora e Felipe estudaria na nossa cidade. A Leandre fez inúmeras propostas para ficarmos, mas eu penso que em nossas vidas o dinheiro não é o mais importante, talvez seja o mais importante para quem tem e por acaso perde tudo. Mas, não para nós que nunca tivemos. Nós estamos muito felizes, graças a Deus. Hoje o Felipe está com 10 anos e já está no quinto ano de estudo e o Thyago está com quatro anos. Nós só levamos para a vida as pessoas boas e os bons momentos que passamos. O que foi ruim nós procuramos não lembrar, aliás, foi muito difícil para eu ter que voltar ao passado, porque ele dói muito ao ser lembrado, ainda é um passado muito recente. Em 2012 fez cinco anos que o Felipe está fora do tratamento e esse é o tempo que os médicos disseram que a doença poderia demorar a vol-tar. O que significa que, daqui em diante, é só alegria, a doença não volta mais.

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Ano passado eu voltei a trabalhar, Thyago começou a ir para a creche e o Sílvio está fazendo o que ele gosta. E, assim, estamos levando nossa vida, não temos dinheiro, mas, também não passamos necessidades. O que ganhamos é o suficiente para comer e pagar as contas. Somos muito gratos por tudo que a Leandre e o Cleomar fizeram por nós, nunca vamos poder retribuir por tudo isso, mas, eles sabem que tem nosso carinho eterno. A Leandre é um exemplo de mulher, existem poucas como ela. Lembro-me de muitas vezes que ela descia do escritório para a cozinha, colocava a toquinha e ia para as panelas cozinhar quando faltava cozinheira, com a maior simplicidade do mundo. E o Cleomar também, apesar de ser mais fechado, mais na dele. Houve uma vez, que jamais vou me esquecer, que eu e a minha mãe estávamos no hospital com o Felipe e só fomos sair de lá 11 horas da noite. Naquele dia, nós não tínhamos dinheiro para o táxi. Liguei para a Casa de Apoio, mas, não havia motorista disponível para nos buscar. Cleomar pegou o próprio carro e foi até o hospital, pode ser que ele nem se lembre disso, mas, desse gesto eu nunca vou esquecer. Com os funcionários também o mesmo carinho, com alguns a gente fez amizade que vamos levar para o resto da vida.

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E assim termina a nossa história e o conselho que eu deixo para você que está passando pelo que eu passei é que nunca perca a fé, lute, mas, lute com todas as suas forças, não deixe que a sua fé seja abalada e acredite que a vitória virá. E se por acaso alguma coisa der errado não murmure contra Deus, pois, com certeza ele fez o que era melhor para o doente, mesmo que não seja o melhor para você, aceite porque não basta viver uma vida de dor e sofrimento, isso não é vida, siga em frente com a certeza de que você fez a sua parte e tudo que estava ao seu alcance. Lute sempre... Enquanto houver vida, que haja esperança...

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Capítulo 9 A doença nos transforma da noite para o dia em verdadeiros guerreiros. É com se entrássemos para um campo de batalha sem chances de recuar. Ou vamos em frente ou vamos em frente. Não temos uma segunda opção, porque a segunda opção significa perder em definitivo aquilo que amamos. Isso sem contar o fato de que a doença não vem sozinha, geralmente ela traz consigo outros inimigos a serem vencidos, tão cruéis quanto ela. Em nosso país, em que boa parte da população se debate para sobreviver na luta para colocar pelo menos um prato de comida sobre a mesa, a doença surge com requintes de perversidade, exigindo o quase impossível daqueles que pouco ou nada possuem.

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“Bemaventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus.” (Mateus 5:3)


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Por mais que se diga e por mais que tentemos dourar a realidade, a pobreza ainda é a maior inimiga de grande parte da população brasileira. Não obstante os programas sociais do governo, temos um exército de pessoas que vive aquém do que podemos classificar como aceitável sob o ponto de vista econômico. E por viverem em situação tão paupérrima – e por serem tantos – a situação social gerada por essa pobreza é calamitosa, principalmente na educação, trabalho e saúde. O círculo vicioso no qual nossa sociedade está envolvida, e por séculos, começa pela renda insuficiente, que não permite à família o acesso à escola ou outros meios para a mudança de vida. Sei que muita gente vai argumentar que isso não é verdade, porque temos escolas públicas abertas para todos. Sim. Temos. Mas para a nossa reflexão deixo aqui umas perguntas de provocação no ar. Por que não conseguimos manter todas as crianças nessas escolas? – Como uma criança pode estudar, mesmo tendo merenda, na angústia de saber que sua família passa o maior sufoco para se manter?

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Como esse aluno, lá no interior, ou até mesmo em grandes centros, matriculado em escola sem recursos e que, por isso, ensina mal, vai se colocar num mercado de trabalho em que se exige cada vez mais conhecimento? Da educação deficitária ou de difícil acesso, o ponto seguinte desse círculo vicioso vem justamente com a falta de preparo das pessoas das camadas mais pobres da população que não conseguem boas oportunidades dentro do mercado de trabalho e, consequentemente, não obtêm meios para melhorar suas rendas e mudar a realidade em que estão inseridas: se a realidade não muda, as gerações seguintes vão passar pelas mesmas necessidades, quando não maiores ainda. Ou seja, chegamos à conclusão de que tudo está relacionado à educação. E não é somente eu que afirmo isso, essa também é a conclusão de todos os pensadores de bem que se debruçaram no estudo sobre os problemas brasileiros, como Paulo Freire, professor Darcy Ribeiro e tantos outros – a realidade das pessoas somente se muda com a educação e só a partir daí teremos uma nova nação, justa para com seus

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filhos, que por si só poderão traçar seus próprios destinos, porque terão o saber como mecanismo para isso. Agora analisemos o assunto doença, apenas considerando o atual estágio de grande parte da população, em que a luta diária pela sobrevivência se resume a um prato de comida. Junte doença e falta de meios para enfrentá-la antemão digo: uma verdadeira tragédia! Porque se para quem tem algum recurso já é difícil encarar uma doença grave imagine para aqueles que nada possuem e que só podem contar consigo e com a solidariedade do próximo na grande batalha do dia a dia. Para ilustrar minhas afirmações e sem o desejo de explicar o que é claro e procurar culpados, passo a contar a história da Antônia e de seus filhos. Creio que o drama dessa mulher batalhadora será o suficiente para mostrar que a doença vem sempre acompanhada de outros inimigos e que, se não tivermos um pouquinho de esperança e talvez sorte, esses inimigos inevitavelmente nos vencem.

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Quando seu filho mais novo completou um ano e seis meses, Antônia notou que o menino queixava-se de dores no corpo, ao mesmo tempo em que emagrecia muito. Diarista, pobre e com mais três filhos para criar, Antônia dependia uni-camente do posto de saúde perto de sua casa numa cidade pequena do interior do Paraná. O menino sofria com Leucemia Linfoide Aguda (LLA) e que foi explicado para ela em linguagem simples, como uma espécie de “câncer no sangue”. O menino teve que ser internado às pressas na sua região mesmo. Até que, depois de 54 dias e sem sair do hospital, Antônia conseguiu vir para Cu-ritiba, onde descobriu, para seu alívio, que os mé-dicos descartavam uma cirurgia. Na capital ficaram por dez dias e iniciaram o tratamento, que exigia de Antônia e seu filho doente deslocamentos constantes para as terapias. Antônia era separada do primeiro marido e, se-gundo ela, seu segundo companheiro também a abandonara assim que ficou sabendo da doença do seu filho caçula. Ao mesmo tempo em que ela conseguia aparentemente resolver o problema do fi-

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lho enfermo, enfrentava outros ao ter que deixar seus outros três filhos menores na sua cidade, ora com a avó, ora com uma tia. Essas crianças perdiam peso e ficaram doentes porque não recebiam a atenção necessária e viviam, como se diz no inte-rior, praticamente “largadas”, uma menina pré-adolescente e um casal de gêmeos de pouco mais de dois anos de idade. Vejam que situação terrível para uma mãe: ter que optar entre tratar um filho por longos períodos fora da sua cidade ou ficar em casa e garantir o bem-estar dos outros três. Mas, felizmente, a solução veio quando Antônia procurou a assistente social do município. Ciente do que estava acon-tecendo, a assistente social arrumou vagas num abrigo para as outras crianças. Um arranjo que deixou Antônia muito preocupada. O medo dela era perder a guarda dos filhos caso fosse acusada de negligência por alguém que não entendesse o drama pelo qual passava: “Tinha até algumas pessoas já falando que meu filho estava doente porque eu não cuidava direito dele, o que era uma mentira e desrespeito. Ninguém podia saber o sofrimento

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que eu estava passando. Cheguei a chorar no primeiro dia que tive que deixar as crianças no abrigo”, confessou-me a mãe. “Só fiquei tranquila quando a assistente social falou para mim que ela sabia tudo que estava acontecendo e que ninguém queria tomar meus filhos, porque entendia o esforço que eu fazia para cuidar de todos”, complementou Antônia. Mas, se por um lado Antônia sofria com a incompreensão e língua comprida de quem não tem o que fazer, por outro ela recebia a solidariedade de quem tem amor no coração. Ela diz que não podia mais trabalhar. Sua vida tinha virado de cabeça para baixo e só seus filhos lhe importavam, principalmente o que estava mais necessitado de atenção, com aquela doença que não admitia descuido algum. Por quase uma década, ela sempre contou com a ajuda de pessoas de sua comunidade, que se mobilizaram em “vaquinhas” para recolher algum dinheiro para ajudá-la nas despesas que sempre apareciam. Outra mudança que ela constata na sua vida foi ter a cabeça “aberta” para compreender seus direi-

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tos e buscar ajuda nos hospitais para o tratamento do filho. “Quando cheguei a Curitiba não conhecia ninguém, nem mesmo o rumo do hospital; mas, as pessoas foram me orientando e agora ando por tudo. Sei para quem solicitar procedimentos e recorrer”, revela Antônia. Há algumas semanas, antes de encerrar esta narrativa, encontrei Antônia na Ideal. Ela contava os dias para terminar de vez o tratamento de seu filho, agora um adolescente de 11 anos de idade, corado e feliz. A mãe me disse que a maratona deveria terminar em junho do próximo ano e que seu filho estava vivendo uma vida quase que normal, brincava e estudava como qualquer outra criança. “Ele está no sétimo ano da escola, quase sarado e diz que quer ser veterinário”, contou-me Antônia, ainda preocupada por ter deixado, mais uma vez seus outros filhos no abrigo. “Ainda bem que a minha mais velha em breve completa dezoito anos e já ajuda a cuidar dos irmãos quando não estou, mesmo quando eles têm que ir para o abrigo; tenho fé que tudo logo se ajeita, o ano que vem termina tudo isso e eu vou poder voltar a trabalhar,

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É o que mais desejo, além da boa saúde de todos eles. O pesadelo está acabando!”, resumiu-me essa esperançosa e batalhadora mãe. Notem que nesse duro processo de conviver com um filho extremamente doente, a mãe cresceu em consciência, modificou-se com o passar dos anos. A prova cabal disso é que ela insistiu na educação do menino mesmo tendo que lutar desesperadamente contra a doença e com o agravante da sua situação financeira delicada. Ela sabe que tudo precisa ser mudado em suas vidas, pois outras batalhas devem vir. Talvez tão duras como essa que ela trava, mas será uma batalha contra gente instruída, consciente de sua responsabilidades, direitos e deveres e quem sabe mais preparada para absorver seus custos. Também não podemos deixar de notar a coragem da Antônia ao lidar praticamente sozinha com a doença do filho, ao mesmo tempo em que procurava, desesperadamente, cuidar dos outros três. Certa está a assistente social que arrumou o abrigo para as crianças, porque mãe não escolhe esse ou aquele filho para dar mais afeto. A mãe sempre vai procurar tratar todos de forma igual, mas jamais

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vai deixar que algum deles sofra sem amparo. Antônia teve que tomar uma decisão difícil. Primeiro socorrer o mais frágil e depois buscar a melhor forma de tratar os outros que estavam menos necessitados. Uma decisão tão aterradora e extrema que não posso nem imaginar passar por uma prova dessas. Quanto ao seu companheiro, só tenho a lamentar a triste atitude que ele tomou ao abandonar a mulher bem na hora que ela mais precisava. Um horror que também não posso avaliar além de seu lado mais negativo. Eu, que milito na área da defesa da mulher, luto contra a violência. Fico chocada com a capacidade que certas pessoas têm de fugirem de suas responsabilidades. Para mim, a violência contra a mulher não está apenas na agressão física, mas também na agressão moral, tão ruim quanto a primeira. Esse abandono, e ainda mais num momento tão importante para a vida da mãe e seus filhos, certamente deixará suas marcas nos envolvidos e demonstra uma frieza que sou incapaz de conceber no coração de qualquer pessoa. Por isso, essa mulher merece

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o nosso reconhecimento como uma guerreira de verdade, que soube passar por cima de tudo isso e hoje estĂĄ aĂ­ firme, de pĂŠ, pronta para enfrentar novos desafios.

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Capítulo 10

Viver para o outro é ajudar

nós mesmos

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Capítulo 10 As rosas de um jardim parecem iguais. Mas, o jardineiro sabe que elas não são iguais. Mesmo aquelas que nascem da mesma planta. Umas são mais fortes. Outras apresentam leve discordância com as cores de suas irmãs nascidas na mesma estação. Umas vigoram e transbordam em beleza. Outras, ainda, mal passam da fase do botão em um inverno mais duro ou com um sol mais forte. Assim também tenho em conta as pessoas. Ninguém é igual. Cada um reage de forma diferente mesmo em doenças aparentemente iguais. De comum, nessas pessoas que enfrentam males terríveis, temos a coragem – essa inexplicável capacidade humana de encontrar forças inimagináveis que estavam escondidas dentro de si. Lúcia havia concebido Patrick há apenas cinco anos. Um dia passou 229

“E o Senhor te guiará continuamente, e fartará a tua alma em lugares áridos, e fortificará os teus ossos; e serás como um jardim regado, e como um manancial, cujas águas nunca faltam.” (Isaías 58:11)


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mal e foi diagnosticada com câncer no útero. Ainda em tratamento e se preparando para uma cirurgia, essa mãe foi abalada por outra notícia: seu filho sofria também de uma doença grave. De repente, ela notou que a criança começou a emagrecer. Não tendo outros meios disponíveis, Lúcia procurou a Secretaria de Saúde de sua cidade. O Primeiro diagnóstico para o menino foi vermes. Mas, mesmo com os remédios receitados, não se via resultados bons. Muito pelo contrário. Perdia peso, queixava-se de dores no corpo e sofria com uma febre persistente. Novamente no médico, a suspeita era diabete. Novos medicamentos e nada. A criança só piorava. A febre não baixava nunca e, desesperada, Lúcia chegava a levar o menino para o posto de saúde até três vezes por dia. A situação de Patrick estava insustentável. Já não mais se alimentava nem andava. A febre persistia e o nariz sangrava. E foi com o coração apertado que Lúcia se viu obrigada a viajar para tratar de seu câncer numa cidade próxima. “Fui bem mal, sem saber o que fazer”, conta-nos a mãe de Patrick: “no corredor do hospital o médico me viu

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chorando e perguntou a razão; disse a ele que não tinha nem vontade de fazer a quimioterapia e contei o que estava acontecendo com o meu filho e descrevi o quadro de saúde dele. Sem pensar duas vezes, o médico pediu para que o menino também viesse na próxima semana para uma consulta e que, provavelmente, Patrick estava com leucemia”. Na semana seguinte, Lúcia levou o filho no colo para a consulta. O médico chegou a ficar bravo com ela, por causa do perigo do rompimento dos pontos da cirurgia a que Lúcia tinha se submetido alguns dias antes. “Mediram a febre do Patrick e ele estava com quarenta e um graus. Num outro exame, localizaram um caroço no pescoço, que foi confirmado como um tumor interno... Meu filho teve que ser internado imediatamente. O diagnóstico era de leucemia, mas precisava ser confirmado ainda”, lembra-se aquela agoniada mãe. Patrick ficou internado 25 dias para a retirada do tumor, ao mesmo tempo em que eram realizados outros exames. Por fim, o médico decidiu fazer uma punção lombar para recolher material da me-

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dula. Assim Lúcia conta esse momento terrível: “Fiquei muito apreensiva. É muito ruim fazer esse exame, Patrick estava muito fraco, pesava 35 quilos e depois de sessenta dias estava apenas com 11,8 quilos, só osso. Permaneci com ele. Minhas lágrimas corriam quando vi que ele nem gemia.” O resultado demoraria ainda dez dias. Naquela altura Lúcia nem mesmo se importava com a própria enfermidade. Dentre os males o menor e o desejo era que fosse uma leucemia que não deman-dasse cirurgia ou transplante. Por sorte – se assim podemos chamar esse drama dentro de outros dramas maiores – era uma leucemia que, a princípio, poderia ser tratada com as terapias convencionais. “Começamos imediatamente o tratamento com as quimioterapias”, relatou-me Lúcia. “Depois, ele só gemia, chorava e me pedia com fiozinho de voz para que esfregasse as mãos nas perninhas dele. Nunca vou me esquecer disso. Na cabecinha dele, as mãos de sua mãe poderia lhe aliviar as dores... Aquela rotina de tratamentos e hospitais também mexia com Patrick, que entrou e saiu do coma vá-

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rias vezes. As coisas não estavam indo bem, meu filho não melhorava... Nos internamentos, ele via que seus coleguinhas estavam morrendo e me per-guntava: ‘Mamãe, o próximo sou eu?’ Não dava mais para aguentar, eu precisava de uma segunda opinião. Soube que havia outra especialista recém-chegada ao hospital. Eu a procurei e expliquei para ela o que estava acontecendo. Ao ver o menino, ela foi enfática ao afirmar que somente a quimioterapia não iria ajudar. De imediato ela mudou a dieta do meu filho acrescentando ferro e cálcio e, mesmo continuando com a quimioterapia, meu menino começou a ganhar peso. Mais tarde, a médica chegou à conclusão de que seria mesmo necessário um transplante de medula. A família toda colaborou, mas não encontramos doador. Dias mais tarde, ela me liga e disse que haviam encontrado um doador. A cirurgia foi feita.” O Patrick ficou internado até a prova de fogo, segundo os médicos, que consistia em escolher o alimento que ele mais gostava e verificar se ele sentia o sabor. Patrick gostava de gelatina. O médico mandou trazer a primeira amostra e o me-

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nino confirmou que aquela não tinha gosto nenhum. Na segunda, identificou corretamente o gosto de limão. Todos se abraçaram, mas os médicos fizeram uma advertência que aquele era apenas um sinal de que a medula “pegou”, mas ainda seria necessário esperar mais algum tempo, uns 10 anos talvez, para ver se não haveria proble-mas de rejeição. De volta para casa, Lúcia não conseguiu retomar a rotina. Além de tratar da própria doença, em sucessivas cirurgias, que neste momento, em que escrevo este livro, somam o espantoso número de vinte e duas, ela teve que adaptar os seus afazeres diários com as novas exigências relacionadas à enfermidade de Patrick. Ele não podia sequer comer uma única fruta crua. Todos os alimentos tinham que ser cozidos e a roupa esterilizada. Um gasto medonho para dois doentes graves numa família só. Mas a solidariedade das pessoas sempre se fez presente e até mesmo álcool que gastava em grande quantidade, ela conseguiu por meio de doações.

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Foram anos difíceis, com a rotina diária de exames e tratamentos e todos os cuidados. Quando as coisas pareciam estar se ajeitando de novo, Lúcia notou que seu filho, que acabara de completar sete anos de idade, voltara a perder peso. Foi um banho de água fria. E dá-lhe procurar explicações com os médicos. “Será que o transplante, depois de tantos anos, estava sendo ameaçado pela rejeição?”, perguntava-se Lúcia. Essa pergunta só seria respondida quinze dias depois, com uma nova punção lombar. Nada se constatou de anormal e, portanto, a piora do quadro de saúde de Patrick não tinha relação com a medula e um possível rejeição. A suspeita recaía sobre outra doença ainda não identificada. Mais quinze dias se passaram até que a médica ligou para a mãe e a informou de que se tratava de fibrose cística, localizada no intestino e pulmão. Com esse novo problema de Patrick, Lúcia teve que trazê-lo para Curitiba. Na capital, ela descobriu uma associação que ajudava portadores dessa doença. Depois de vários exames, os médicos veri-

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ficaram que Patrick era portador de uma enfermidade grave, sem cura, que pode levar a óbito, e que só começou a aparecer no teste do pezinho a partir do ano 2000: a Síndrome de ShwachmanDiamond, definida pela literatura médica como uma desordem genética muito rara e que se caracteriza pela insuficiência do pâncreas, causando disfunção da medula óssea, predisposição a leucemia e anormalidades nos ossos. Essa Síndrome é tão rara, que Patrick é o único portador dela identificado no Brasil. Algumas semanas antes de encerrar este livro, Lúcia estava na Ideal com seu filho. Ela contou-me que nunca mais conseguiu ter a vida que levava antes, mas estava satisfeita em ter lutado todos esses anos. “Medos tive muitos”, confessou-me. “Lembro como se fosse hoje, nos primeiros dias da doença do Patrick ainda pequenininho, que a médica tinha me perguntado se eu tinha fé e que respondi sem pensar duas vezes que sim. Ela sabia o que nós iríamos passar e essa foi a maneira que a médica encontrou para me dizer que tudo não estava só nas mãos da ciência e que a

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sobrevivência de meu filho dependia de algo mais e esse algo mais foi a minha fé. A fé de todos que nos ajudaram em suas orações”, revelou-me Lúcia. Hoje Patrick está com 17 anos, alto e forte, mas ainda depende dos tratamentos para sua doença que, infelizmente, é degenerativa. Porém, Lúcia não se dá por vencida e reafirma seu espírito de lutadora corajosa ao dizer que está enfrentando junto com seu filho uma nova etapa. “Nada para nós foi fácil,” lembra-se Lúcia, “e depois de tudo que passamos, estamos na luta da mesma maneira, com garra, força e fé. Embora tenha que viver tomando medicamentos, meu filho já está concluindo o Ensino Médio, é bom aluno e vai prestar vestibular. Graças a Deus, sempre podemos contar com a ajuda de meu marido e de meu outro filho um pouco mais velho. Eles foram a nossa sustentação e nos deram o apoio que precisávamos nos momentos mais difíceis.” Sobre o futuro, Lúcia não tem dúvidas de que vai ser marcado pelo sucesso contra a doença e diz:

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“Há dois anos descobriram um tumor na minha cabeça. Já fiz duas cirurgias e agora é o Patrick quem me dá força, é quem me anima. Já vencemos tanto e vamos vencer mais esta!”.

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A vida é um caminhar para o desconhecido. O que consideramos como o mal de hoje pode ser apenas o começo de muitas outras coisas que envolvem não só a nós, mas todos aqueles que nos rodeiam. Há algo de mágico nisso e que me causa espanto toda vez que penso que a vida pode ser modificada de uma hora para a outra.

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O encanto

da

vida

estĂĄ encontro no

doutras

vidas 243


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Aqui na Ideal, é comum hospedarmos os chamados acompanhantes. São os anjos que cuidam daqueles que tanto amam. Não raro, observo que esses acompanhantes trazem no semblante tanto sofrimento, ou até mesmo mais ainda, do que o paciente que cuidam com uma entrega pessoal comovente. 245


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Capítulo 11 Vejo a vida como um caminhar para o desconhecido. Ninguém, além de Deus, sabe o dia de amanhã, nem mesmo o que a próxima hora nos reserva. Mas, mesmo conscientes dessas incertezas a que estamos submetidos, nosso modo de vida nega constantemente essas verdades. Temos em nós o desejo de progredir sem levarmos muito em conta que o passar da vida nos cobra paciência para situações ruins e possíveis, porém colocadas lá num cantinho do esquecimento. Assim, imaginamos uma vida desprovida de incômodos como, por exemplo, a doença, a nossa própria ou a de pessoas próximas e que amamos muito. Como expectadora privilegiada de dramas inimagináveis, observei transformações profundas em famílias inteiras por causa de uma 247

Durante o dia o Senhor ia adiante deles, numa coluna de nuvem, para guiálos no caminho, e de noite, numa coluna de fogo, para iluminá-los, e assim podiam caminhar de dia e de noite. (Êxodo 13:21)


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doença que atingiu um de seus membros. Gente que, de repente, teve que sair de casa, mudar de cidade, ou estado, para um tratamento de saúde e levou junto consigo a solidariedade dos amigos e parentes mais próximos. Aqui na Ideal, é comum hospedarmos os chamados acompanhantes. São os anjos que cuidam daqueles que tanto amam. Não raro, observo que esses acompanhantes trazem no semblante tanto sofrimento, ou até mesmo mais ainda do que o paciente que cuidam com uma entrega pessoal comovente. Acredito, com sinceridade, que grande parte da recuperação dos que estão doentes dependa de fatores externos, dentre eles, o amor incondicional daqueles que se propõem a acompanhá-los em difí-ceis jornadas de exames, internamentos e cirur-gias. São as verdadeiras pontes entre as inseguranças do doente e calma necessária para enfren-tar essas situações limites. A experiência me diz que aqueles que descobrem de uma hora para outra um mal em si a ser curado, com raras exceções, perdem a noção de espaço e

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tempo. O susto é tamanho que alguns chegam a viver num estado de pânico quase que permanente e que só se acalmará com a presença de alguém conhecido, capaz de dar a ajuda tão necessária em momento tão grave. Logo, envolvidos pela doença de outrem, os acompanhantes também passam a viver uma realidade diversa daquela em que estavam inseridos. Mudam seus hábitos, adaptam-se a ambientes novos e deslocam-se para lugares nunca antes imaginados. E, dessa maneira, também sofrem uma transformação interior igual ou maior do que a pessoa a quem acompanham. A história de Dona Terezinha, moradora do Sudoeste do Paraná, cabe bem neste roteiro de mu-dança pessoal e de seus parentes que a acompanharam nos tratamentos realizados em Curitiba, contabilizados em mais de duzentas viagens de oito horas de ônibus, que ela realizou de sua cidade até a capital paranaense. E, junto com Dona Terezinha, sempre um parente acompanhante que, no redemoinho dos novos ventos, também tomaria outro rumo na vida.

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Há 14 anos, em sua cidade, ainda jovem, Dona Terezinha não vinha se sentindo muito bem. Apesar das consultas médicas, demorou a ser diagnosticada como portadora de Hepatite B. Já muito debilitada, Terezinha teve que ser conduzida rapidamente para Curitiba para tratar de três nódulos no fígado. Na capital, ficou internada e fez tratamen-tos a laser para evitar a cirurgia. Os tratamentos foram satisfatórios, entretanto, a paciente desenvolveu uma gastrite e teve sangramento no intestino, sequelas que ainda a obrigam a vir para a capital com bastante frequência. Na fase inicial da doença no fígado, a família de Dona Terezinha se mobilizou no acompanhamento passo a passo de seu tratamento. Já nas primeiras viagens para Curitiba, um dos seus três filhos homens, o Jorge, acompanhou-a e ficou hospedado na Casa de Apoio. Jorge era um jovem rapaz que estava longe de casa há algum tempo, pois havia frequentado um seminário católico no Rio Grande do Sul e depois se alistado no Exército em Santa Catarina, onde pretendia seguir a carreira militar. Mas, foi só o

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Jorge saber da doença da mãe para que ele abandonasse tudo o que estava fazendo. Acompanhar a mãe foi o que lhe pareceu o certo naquele instante. Ele era jovem e seus sonhos poderiam ser adiados. Da primeira vez que esteve na Casa de Apoio, o rapaz, que sempre foi muito ativo, conta que ficava “zanzando” pela casa pois não tinha nada para fazer, enquanto esperava que sua mãe recebesse alta do hospital. “Ficar parado não era o meu jeito, então comecei a ajudar na limpeza, nas coisas da Casa”, explica Jorge, “até que notaram meu serviço e me fizeram o convite para que eu trabalhasse aqui. Isso foi bem no começo da Casa de Apoio, que crescia numa velocidade grande”. Estávamos entrando em 2001 e realmente a Casa de Apoio demandava cada vez mais serviços. Os pacientes e seus acompanhantes chegavam de todas as regiões do Paraná e alguns de fora do estado também. Tínhamos que dar conta daquilo tudo . Começar a contratar mais funcionários. Ampliar as instalações. E sem perder a nossa característica básica, que sempre foi centrada no bem-estar de nossos hóspedes, com muita proximidade

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e atenção ao que eles precisavam. Ora, já que tínhamos o Jorge disposto a trabalhar, as coisas se encaixaram bem, pois havia uma vaga para os serviços gerais e fiz o convite para ele. Para nossa alegria, a resposta foi afirmativa. Jorge começou a trabalhar conosco naquele início de ano, enquanto sua mãe continuava o tratamento. A paciente era trazida para Curitiba mais de uma vez por mês e às vezes, dependendo dos procedimentos médicos, ela ficava por aqui longos períodos. “Vinha para me tratar no Hospital das Clínicas”, nos conta Dona Terezinha. “No começo ficava mais aqui do que na minha cidade e o Jorge sempre estava presente e me dava bastante apoio no meu acompanhamento”. No começo, Jorge desempenhou as funções mais simples. Arrumava os quartos, limpava os banheiros, cuidava do pátio, na manutenção, na cozinha e até mesmo como motorista. Um verdadeiro coringa nos afazeres da Casa de Apoio. Definitivamente, Jorge cumpria o roteiro que eu havia descrito na abertura deste capítulo. Um rapaz do interior que chegou à capital com o propó-

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sito de acompanhar a mãe doente e que teve sua vida totalmente modificada por um evento que, a princípio, poderia parecer desconexo de tudo que veio a acontecer. Um dia ele havia se imaginado padre, estudando por quatro anos no Seminário Saletino, no Rio Grande do Sul. Depois desejou ser soldado numa bem sucedida carreira no Exército. Carreira que também não veio a se concretizar por causa da doença da mãe e sua firme decisão de acompanhá-la. E, por último, o novo emprego na capital, que lhe permitiu deslumbrar outros horizontes, bem diversos dos anteriores e focados na área de saúde. Tanto é ver-dade, que Jorge formou-se técnico em radiologia, mas preferiu continuar trabalhando na Ideal, onde hoje ocupa uma função importante no Setor de Compras, que é a chave para o bom funcionamento da nossa Casa de Apoio. Nos dias atuais, o filho de Dona Terezinha está completamente adaptado a Curitiba. Sua vida parece que sempre esteve ligada à Casa de Apoio e esses laços se ampliaram com o seu casamento, ao conhecer aqui mesmo aquela que viria a se tornar sua mulher, a Solange, que na Ideal também teve

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seu momento de mudança de vida. Ela veio para a capital somente para um procedimento médico e acabou conhecendo o Jorge, a sua outra metade. Hoje, depois de nove anos de casado, o casal divide-se entre o seu lar e o trabalho na Ideal, já que Solange acabou se tornando também funcionária e recepciona nossos hóspedes todos os dias. Outro membro da família de Dona Terezinha que há cinco anos veio se somar à Ideal é o Gilberto, que desempenha suas funções na cantina da Casa. Então, quando vem a Curitiba, Dona Terezinha tem companhia e apoio garantidos e a satisfação de encontrar seus filhos contribuindo para a recuperação de tantos outros que, como ela, procuraram um abrigo e alívio para suas aflições e dúvidas pro-vocadas por uma enfermidade. Jorge e Solange fazem parte desta grande Família da Casa de Apoio Ideal, composta por gente que aparentemente se junta ao acaso. Mas, sinceramente, depois desses relatos, é muito difícil acreditarmos em acaso, porque as peças desse imenso jogo de xadrez foram se movendo, e ainda continuam, nu-

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ma precisão incrível. Nem mesmo o maior roteirista de cinema poderia prever todos os desdobramentos dessa história que começa lá no interior, com um diagnóstico médico e depois evoluiu para o ponto atual, em que vidas foram totalmente transformadas, para não dizer modificadas. Tirem o diagnóstico e a vinda de Dona Terezinha desse enredo que acabo de descrever e o destino de todas essas pessoas seria totalmente diverso do apresentado. Quem seria para nós Jorge, Solange, Dona Terezinha? – Nós os teríamos conhecido? Eles teriam nos conhecido também? Por isso, volto a frisar, que a vida é um caminhar para o desconhecido. O que consideramos como o mal de hoje pode ser apenas o começo de muitas outras coisas que envolvem não só a nós, mas todos aqueles que nos rodeiam. Há algo de mágico nisso e me causa espanto toda vez que penso que a vida pode ser modificada de uma hora para a outra. Assusta-me, e creio que também assusta a todos, esse mistério que nos atinge de vez em quando e que nos força a mudanças drásticas em nosso modo de vida, que tolamente achamos tão imutável.

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Sempre presto muita atenção nos ônibus que deixam em nossa Casa centenas de passageiros todos os dias, faça chuva ou faça sol, em quaisquer dias da semana, em qualquer feriado. E secretamente pergunto a mim mesma, quem vem lá com suas dores? Quem vem lá com suas surpresas para encher meus dias de luz com sua presença a ser verdadeiramente compartilhada com todos dessa casa? Que forças misteriosas impulsionaram tantas pessoas para este ponto de convergência de esperanças que nunca se acabam e sempre se renovam? Para mim é totalmente impossível não ter fé no olhar de Deus que nos guarda e abre caminhos. Fé em seu grande propósito de nos fazer melhores, quando aprendemos em lições às vezes tão doloridas, mas que nos fazem crescer diariamente. Pensar diferente disso seria negar a minha experiência de vida que presenciou tantos encontros de destinos aparentemente tão diversos e sem ligação inicial alguma. Portanto, temos que concordar com a poesia de Vinicius de Moraes, que já disse com todas as letras o que desejei demonstrar: “A vidanão é brincadeira, amigo.

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A vida Ê arte do encontro. Embora haja tanto desencontro pela vida...�

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A

sombra

ĂĄrvore que acolhe viajantes da

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“ Trouxe então

coalhada, leite e o novilho que havia sido preparado, e os serviu. Enquanto comiam, ele ficou perto deles em pé, debaixo da árvore. (Gêneses 18: 8)

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Joguei uma semente no solo com muita esperança de que ela fosse vingar. Vingou, deu frutos e possui um tronco forte para sustentar galhos que se elevam às alturas com grandes folhas que já fizeram benigna sombra para mais de 100 mil pessoas que por ela passaram. Gente que veio de longe em busca de um bom retiro para descansar um pouco seus corações cansados de tantos sofri-mentos com a doença. A Casa de Apoio Ideal é esta árvore plantada bem ao lado da estrada, sempre oferecendo segura pousada, sempre acolhendo. Uma benção para mim, porque me fortaleceu o espírito. Fez-me mais consciente da fragilidade da vida humana e de que há mais valor no abraço que acolhe do que nas mãos que buscam fugazes fortunas materiais. Serei eternamente agradecida ao meu bom Deus por ter me dado essa chance de conhecer essas pessoas com quem compartilho a vida, em suas alegrias e tristezas, porque ao compartilhar reafirmo minhas convicções de que plantei a árvore em terreno fértil para aqueles que precisavam

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de sua fresca sombra. Às vezes paro diante do vai e vem dos ônibus em Frente à Ideal e penso que um sonho pode ganhar dimensões tão grandes que só cabem num sonho mesmo. Observo isso nos passageiros que chegam, a maior parte com suas fisionomias carregadas de tanto padecer. Entretanto, esses mesmos rostos vin-cados deixam transparecer uma luz de esperança em seus olhos, traduzida em fé. Ao pisarem aqui sei que não são mais passageiros, serão meus amigos, amigos de nossos funcionários que tantas vezes vi serem chamados de anjos em cartas de agradecimento, nos apertos de mãos prolongados daqueles que se sentiram agradecidos até mesmo com um bom-dia dito com o coração. Sim, essas pessoas que ajudam e ajudaram a construir todo esse sonho são especiais – do funcionário do Setor de Transporte, Cozinha, Portaria, Lanchonete, Escritório, Rouparia, até o mais simples de nossos faxineiros – porque compreenderam a natureza de seus trabalhos, às vezes penosos, mas necessários como uma pomada nas feridas tão do-loridas que são abertas no peito de quem nos procura.

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No refeitório paro e olho ao redor, e me deslumbro os com pessoas que vi chegar ontem tão desanimadas e hoje já ensaiando sorrisos, conversando com os outros hóspedes num processo terapêutico de divisão de seus pesados fardos. Sabem agora que dali em diante cada um vai ajudar um pouquinho o outro durante a árdua caminhada que os levará à difícil recuperação. Na sala de artes observo senhoras, senhores e cri-anças em atividades lúdicas. A maioria tem proble-mas que não cabem naquela sala de tão grandes que são, mas se distraem passando suas emoções para o papel, nas cores de seus desenhos e depois nos recortes que se transformam em magníficas peças de artesanato e flores para frondosa árvore imaginária no centro do jardim de felicidade ainda possível e que desejam com toda a força de seus corações. As estudantes de psicologia passam apressadas pelos corredores da casa. São os nossos anjos de jaleco branco, que escutam atentamente a todos que lhes procuram, não importando a natureza do pro-

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blema, de solução fácil e rápida; ou mais complicados, ue precisam de outros desdobramentos mais detalhados em estudo e encaminhamentos. Na sala de espera um mundo de gente. Aguardam consultas, ônibus para a viagem de volta, outra chance para a vida. Uns olham a televisão apenas por olhar. Sabe-se lá em que estão pensando além do que vai diante de seus olhos que se perdem no longe – estão absortos e concentrados em si, tentando achar explicações para aquele momento em que tiveram que deixar seus lares para dar combate aos mais violentos inimigos que já enfrentaram na vida. Sei que pensam e ao pensar buscam suas forças interiores para a gigantesca luta que travam. No mural, na mesma sala de espera, olho os desenhos das crianças, os cartões de lembranças para que não sejam esquecidas jamais. Quantas vezes ainda hei de me comover com seus dizeres singelos, na sinceridade típica de crianças? Quantas vezes hei de presenciar suas mães e pais em choro por não compreenderem a razão de seus filhos estarem passando por situações tão adversas, alguns ainda bebês? Num canto, um desenho infantil diz

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obrigado. Nele se vê uma família desenhada de mãos dadas – pai, mãe, a criança que desenhou e o seu irmãozinho. Ao longe no desenho de linhas tortas, deslumbra-se uma grande casa de cor laranja e dela sai uma longa estrada de cor marrom com um ônibus a percorrê-la. E lá no fim da página, uma casa pequenina no meio de um campo e um cãozinho que espera seu antigo dono que se afastou por vários meses para um tratamento de saúde na capital. Passo para o corredor e noto aquele vai e vem de pessoas que buscam seus quartos, ou se ocupam com algum tratamento de quem estão acompanhando. Alguns dormem e com certeza sonham em recuperar suas antigas vidas. Quantas dessas vidas sofreram mudanças de rumo após uma simples consulta em que se descobriram males ocultos? Quantas dessas pessoas imaginaram uma única vez na vida de estarem aqui, deixando seus afazeres no interior, onde imaginamos ser tudo simples e que parece se-guir um fluxo natural, como calmo rio, que vai e segue adiante em leito suave e sem obstáculos?

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Ocupam agora os quartos da “pensão”, o lugar em que repousam seus corpos aguardando a consulta do dia seguinte, a cirurgia salvadora, o internamento reparador e necessário. São nesses quartos que se ocultam as lamentações que só escutam os travesseiros em longas noites de medo e apreensão. Ao longe vejo um senhor que ainda não conheço, simples, simples de tudo, na camisa de tecido rús-tico e no chapéu de palha. Desses que já viram muito sol e chuva enquanto lidavam com o cabo da enxada. Passa por mim e diz que recebeu alta, sofreu uma cirurgia no dia anterior e já estava andando, louco de saudade dos seus parentes. Está só, sem acompanhantes. Depois, despede-se de mim segurando a aba do chapéu. Pergunto se ele está bem, se vai aguentar a viagem. E ele me responde que sim, que só é uma noite até chegar a sua casa. Adiante encontro uma velha amiga, a Araci, uma das primeiras que ficou hospedada conosco. Veio pela primeira vez triste, como todo mundo, rezando. Depois de uma cirurgia teve que fazer tratamento de radioterapia e quimioterapia. Lembro-me até hoje dela nesses mesmos corredores, com seu gorro

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para proteger do nosso rigoroso frio de inverno. Araci também se lembrava desses dias distantes em que sofreu muito: “A gente acha que é o fim, fica apavorada, todo dia eu chorava, não aguentava mais. Até que me dei conta de que chorar não adianta. O negócio era ter fé e perseverança, ir à luta. Meu marido sempre me acompanhou. Minha filha também veio. Quando a gente está no meio de uma situação como aquela, a gente não é a gente mesmo, não pensa direito, parece que nem sente onde pisa, por isso é muito importante uma companhia e seu apoio”. Araci está bem agora, firme e forte, mas ainda precisa fazer exames de forma continuada para ver se não aparece mais alguma coisa ruim. Está feliz, vem e me abraça. É aquele abraço sincero, não de quem agradece apenas, mas de quem compartilha uma vida toda com você. Conversamos. Pergunto de seus parentes que tive a oportunidade de conhecer à medida que seu tratamento seguia adiante... Logo, uma funcionária da portaria me chama para atender alguém que está na cantina.

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É uma senhora que acompanha a irmã e que diz que está com dificuldades para o internamento. Vejo os papéis que ela me mostra e verifico que está tudo certo: “O médico vai encaminhar a paciente após a consulta, tem que fazer os exames primeiro”, digo para a senhora e ela finalmente se acalma. Por serem do interior e estarem acostumadas a viver sem grandes complicações, geralmente as pessoas que se hospedam na Ideal se batem um pouco no começo com a burocracia dos grandes hos-pitais. Daí temos que orientá-las constantemente. Pense como deve se sentir as pessoas que chegam aqui e de repente têm que se deslocar numa cidade grande, com hospitais enormes e nome de espe-cialidades médicas que nunca ouviram falar? Realmente, é muito difícil no começo, mas a pessoa vai se acostumando, ou como dizem alguns, aprende o caminho das pedras. Na mesa do fundo do refeitório vejo seu Ilário, que deveria se chamar Hilário, assim mesmo com H, porque ele está sempre bem disposto, humorado e faz piadas até consigo mesmo, com sua situação,

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com o câncer de pele, do qual se trata há dezessete longos anos, em número de cirurgias inimagináveis, vinte e uma ao todo, praticamente uma por ano de tratamento ou mais. Ele me contou que não sabe bem o motivo de ser o único da família com essa doença. Sua mãe está com 83 anos e nunca teve nada parecido e, dos 13 filhos que ela cuidou, apenas ele teve câncer. Descendente de alemães, Ilário desconfia que deve ser porque é o mais velho da turma, pois aos cinco anos de idade tinha que fazer tudo quanto é serviço para ajudar o pai e a mãe na roça. O pai de Ilário faleceu com 65 anos capinando milho. “O meu pai se afastou do eito principal e minha mãe sentiu que algo tinha acontecido, porque não dava mais para ver ele no meio da plantação. Ela chamou, chamou e nada. A gente sabia mais ou menos onde ele deveria estar e fomos atrás. Nós encontramos deitado no chão, ainda com as mãos na enxada e o chapéu caído na sua frente. Ataque cardíaco fulminante, bem na hora em que podia começar a viver um pouco mais sossegado, porque uns dias antes ele havia conseguido a aposentadoria”, disse-me Ilário.

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Sobre sua doença, ele nos contou que ficou sabendo que a tinha quando já era vice-prefeito de sua cidade. O próprio prefeito o encaminhou para Curitiba para verificar o que eram aquelas feridinhas que ele tinha nos braços. E, com bom humor, ele me narrou como foi essa sua introdução inesperada ao mundo do tratamento de câncer: “Cheguei ao hospital e não sabia o que fazer. Estava cheio de gente para todo lado. Fiquei lá perto de uma fila até que alguém me chamasse e dissesse que tinha que fazer um cadastro. Fiz a ficha e fui chamado, fiquei todo furado para recolher as amostras para a biópsia. Parecia que tinha levado um monte de tiros de espingarda de chumbinho. Do exame, fiquei sabendo que contava com três confirmações do câncer”. Brincalhão, Ilário disse que os médicos se assustaram com o seu bom humor na primeira cirurgia quando ele disse “meta a faca!”. Daí em diante até os médicos se acostumaram com suas brincadeiras e quando notam que ele está perto já vão avisando: “Lá vem o retalhado!!”. E ele responde: “Já me disseram que meu couro só serve para

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fazer chinelo ou estilingue, mais nada!”. E é com esse espírito de alegria que Ilário descobriu uma fórmula para vencer a doença e encontra tempo hoje para ser Ministro da Eucaristia em sua cidade no Oeste do Paraná e radialista atuante, após criar e formar três filhos na faculdade. Saio do refeitório pela cantina rindo das piadas do seu Ilário e acesso novamente o corredor central. Logo volto à realidade dos outros pacientes da Casa. Ali mesmo, no meio do corredor, encontro pessoas rezando junto a um pequeno altar dedicado à Nossa Senhora Aparecida, que mandei fazer a pedido de minha mãe e que em breve vai para uma capela que também estou construindo. Naquele lugar sempre há alguém em prece fervorosa, buscando junto a sua devoção forças para enfrentar mais desafios. Sou católica, mas nossa casa está aberta para todas as fés, pois recebemos a visita de padres e pastores, que realizam semanalmente missas e cultos. Não que tenhamos compromissos com igrejas,ou coisa parecida, mas é uma maneira que encontramos para dar alívio e mais conforto espiritual a quem frequenta nossa

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casa.

Nesses anos, verifiquei que a doença pode enfraquecer o corpo, mas não enfraquece a alma. Pelo contrário, a fortalece. É notável como as pessoas se renovam em suas crenças quando estão passando pela beirada de um grande abismo e quanto faz bem para elas acreditarem na intervenção das forças divinas em suas vidas. Por isso, incentivamos a presença de religiosos em nossa casa, para que todos tenham a oportunidade de se aproximar do que seus corações estão pedindo naquele momento, que não é nada mais do que um auxílio ao carregarem suas pesadas cruzes. As mesmas cruzes que carregaram as personagens que desfilaram por este livro e que tive a oportunidade de apresentar a vocês, leitores e leitoras. Escolhi essas histórias praticamente ao acaso, porque se tivesse que colocar todas aqui, com todos os detalhes do que vi e senti, certamente iríamos ter vários livros e não somente um. Talvez, em futuro próximo, eu sinta novamente a vontade de contar outras histórias, tão ricas em força de vontade e perseverança quanto essas, mas

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Leandre Dal Ponte

por enquanto creio que este escrito já é suficiente para a mensagem pretendida: não há barreira que o amor, a fé e a esperança não possam transpor e tudo fica mais fácil quando a gente tem em nosso caminho pessoas realmente interessadas em ajudar, e que o “Deus lhe pague” é o maior pagamento para aquilo que se faz de coração. Essa é a minha fortuna que divido de toda a minha alma com vocês. É uma riqueza imensa que quanto mais a gente divide, mais rica fica. E tenham a certeza de que nossa árvore sempre estará neste caminho, crescendo em sua sombra generosa e disposta a dar abrigo e mais do que isso, esperança para os que necessitam de esperança, fé para quem precisa de fé, carinho e acolhida para todos que passam por esta estrada infinita que chamamos vida.

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A dona da pensĂŁo

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Num canto, um desenho infantil diz obrigado. Nele se vê uma família desenhada de mãos dadas – pai, mãe, a criança que desenhou e o seu irmãozinho; ao longe no desenho de linhas tortas, vislumbra-se uma grande casa de cor laranja e dela sai uma longa estrada de cor marrom com 278


um ônibus a percorrê-la. E lá no fim da página, uma casa pequenina no meio de um campo e um cãozinho que espera seu antigo dono que se afastou por vários meses para um tratamento de saúde na capital.

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A dona da pensĂŁo

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A dona da pensĂŁo

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Leandre Dal Ponte

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A dona da pensão

Quando não houver saída Quando não houver mais solução Ainda há de haver saída Nenhuma ideia vale uma vida... Quando não houver esperança Quando não restar nem ilusão Ainda há de haver esperança Em cada um de nós Algo de uma criança... 294


Leandre Dal Ponte

Enquanto houver sol Enquanto houver sol Ainda haverá Enquanto houver sol Enquanto houver sol... Quando não houver caminho Mesmo sem amor, sem direção A sós ninguém está sozinho É caminhando Que se faz o caminho... Quando não houver desejo 295


A dona da pensão

Quando não restar nem mesmo dor Ainda há de haver desejo Em cada um de nós Aonde Deus colocou... Enquanto houver sol Enquanto houver sol Ainda haverá Enquanto houver sol Enquanto houver sol Enquanto houver Sol Titãs

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Leandre Dal Ponte

SĂŁo muitas as histĂłrias, de milhares de brasileiros que poderiam estar aqui. 297


@ C

om estas histórias aqui reunidas pela escritora Leandre Dal Ponte, entramos no mundo paralelo dos que têm problemas de saúde graves. Não é um livro de denúncias nem um estudo cheio de estatísticas e números para tentar explicar as falhas ou as virtudes do sistema de saúde brasileiro. Este é um livro de histórias de vida, em que o paciente é a personagem principal, com seus dramas e, principalmente, com suas lutas diárias fora e dentro dos hospitais. Leandre demonstra que o impossível não é tão impossível assim, mesmo que tudo diga que não, mesmo que as condições sejam as mais adversas possíveis. As ricas personagens aqui descritas nos mostram que há outros caminhos para a retomada de uma rotina de alegrias e realizações, numa grande mensagem de amor, esperança e vida.

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