Domínios da Imagem Vol.11

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ISSN 1982-2766 (impresso) ISSN 2237-9126 (online)

ano VI • n. 11 • novembro 2012


ISSN 1982-2766 (impresso) ISSN 2237-9126 (online)

Domínios da Imagem Revista do Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem na História (LEDI) do Departamento de História e vinculada ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina

Domínios da Imagem, Londrina, ano VI, n. 11,

novembro

2012


Universidade Estadual de Londrina Reitora: Nádina Aparecida Moreno Vice-ReitorA: Berenice Quinzani Jordão DIRETORA DO CENTRO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS: Mirian Donat CHEFE DO DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA: Edméia Ribeiro COORDENADORA DO MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL: Silvia Cristina Martins de Souza EDITORA RESPONSÁVEL: Edméia Ribeiro – UEL COORDENADORA DO LEDI: Edméia Ribeiro – UEL

CONSELHO CONSULTIVO Carlos Alberto Sampaio Barbosa – UNESP/Assis • Daniel Russo – Université de Borgnone • Darío Acevedo Carmona – Universidad Nacional de Colombia • Eddy Stols – Katholieke Universiteit Leuven – Bélgica • Francisco Alambert – USP • Mauro Guilherme Pinheiro Koury – UFPB • Patrice Olsen – Illinois State University • Renato Lemos – UFRJ • Rodrigo Patto Sá Motta – UFMG • Stella Maris Scatena Franco – UNIFESP • Terezinha Oliveira – UEM • Marcos González Pérez – Universidad Pedagógica Nacional, Bogotá CONSELHO EDITORIAL E CIENTÍFICO Adalberto Paranhos – UFU• Ailton José Morelli – UEM • Ana Maria Mauad – UFF • Annateresa Fabris – USP • Annie Duprat – Université de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines • Áureo Busetto – Unesp • Cláudia Musa Fay – PUC / RS • Kátia Paranhos – UFU• Luciene Lemkhul – UFU • Luis Felipe Viel Moreira – UEM • Luiz Guilherme Sodré Teixeira – Fundação Casa de Rui Barbosa / RJ • Manoel Dourado Bastos – UDESC • Maria Cristina Pereira – USP • Maria Paula Costa – UNICENTRO • Miriam Nogueira Seraphim – Unicamp • Jorge Luiz Bezerra Nóvoa – UFBA • Rejane Barreto Jardim – UFPEL • Renata Senna Garraffone – UFPR • Solange Lima Ferraz – Museu Paulista • Tânia Costa Garcia – UNESP/Franca • Vânia Carneiro Carvalho – Museu Paulista • Ana Cristina Teodoro da Silva – UEM• Miriam Paula Manini – UnB • Soleni Biscouto Fressato – UFBA

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Domínios da imagem / Universidade Estadual de Londrina. Centro de Letras e Ciências Humanas. Departamento de História. Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem na História. Programa de Pós-Graduação em História Social. Londrina, PR.

Ano I – n. 1 – nov. 2007 Semestral ISSN 1982-2766 (impresso) ISSN 2237-9126 (online)

1. Imagem – Estudos – Periódicos. 2. Imagem – História Periódicos. I. Universidade Estadual de Londrina. II. Centro de Letras e Ciências Humanas. III. Programa de Pós-Graduação em História Social. CDU 2 Todos os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores, não cabendo qualquer responsabilidade legal sobre seu conteúdo à revista. Pede-se permuta • Pédese canje • On demande échange • We wask for exchange • Si richiedle lo scambio


Sumário

Aristóteles, Escultura e Fotografia: a questão da vingança......................................................... 7 Antônio Jackson de Souza Brandão A História como Montagem: contribuições do cinema para a crítica da historiografia........25 César Henrique Guazzelli Sousa De Rogier Van der Weyden à Artemísia Lomi Gentileschi: representações iconográficas de Maria Madalena entre o medievo e o barroco caravaggesco..................................................39 Cristine Tedesco Luis Bianchi e as Práticas do Italiano no Brasil: fotografia, profissão do imigrante................57 Francieli Lunelli Santos Uma Atriz “Na Terra do Sangue e do Mel”: Angelina Jolie, a Guerra da Bósnia e um estudo sobre a memória, a identidade e o ativismo humanitário...........................................71 Maritsa Sá Freire Costa Analisando Imagens do Corpo Masculino na Revista Junior...................................................87 Muriel Emídio Pessoa do Amaral Visualidade e Encenação da Históra no Filme “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1969) de Glauber Rocha..........................................................................................99 Rodrigo Poreli Moura Bueno Antes Ver para Crer, Hoje Digitalizar para Acreditar: a fotografia e o gozo estético da cultura visual.................................................................................................................................111 Sérgio Luiz Pereira da Silva

EXPERIÊNCIA DIDÁTICA

O Ensino da Cultura Brasileira através do Cinema................................................................. 123 Víctor Amar


Imagem da capa

A arte que ilustra a capa desta edição é de autoria de Eduardo Tadeu Arrebola de Souza. Confeccionada com técnicas diversas, manuais e digitais, foi especialmente tratada para esta edição da Domínios da Imagem. Misto de ilustração e história em quadrinhos, a imagem sintetiza mistério e mensagem, pois “Abra uma porta” é tanto um título, como um slogan quanto uma tautologia narrativa que reforça a presença do homem obscurecido pela contraluz. Os pássaros, saídos da tela de Hitchcock ou dos versos de Poe, voam em direções distintas, aflitos, sugerindo a vastidão e o infinito do escuro que a luz da porta não alcança. Nem toda porta que se abre... Artista autodidata, Edu Tadeu produz há mais de 30 anos em Londrina e região. Já participou de diversos salões de artes plásticas e outras atividades expositivas; realiza pinturas, ilustrações, artesanatos gráficos, marionetes e iluminuras; ministra cursos e workshops. Recentemente concluiu o curso de História pela Universidade Estadual de Londrina, quando revelou-se também um justo narrador, na melhor das tradições que se extinguem. Rogério Ivano


Apresentação

Prezados(as) colegas, O LEDI (Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem) torna público mais um número da sua Revista. Nesta edição de número 11, como é de praxe, trazemos instigantes artigos de estudiosos(as) de várias áreas do conhecimento, especificamente do Jornalismo e Comunicação, Educação, História, Literatura, Relações Internacionais, Ciências Sociais, inclusive sendo um deles internacional. Desde a nossa primeira publicação, no ano de 2007, a Revista Domínios da Imagem vem se configurando como um importante meio de divulgação de pesquisas que tematizam a imagem, apresentando múltiplas formas de abordagem e expressão do pensamento. Recentemente, também em versão online, dinamizou e democratizou o acesso, levando com mais facilidade o resultado deste trabalho – e de trabalhos – a um público ainda maior, principalmente àqueles(as) pesquisadores(as) de outros países. Podemos ainda ressaltar que outro importante espaço de reflexão, trocas e divulgação tem sido o ENEIMAGEM. Este evento, também em formato multidisciplinar, tem congregado pesquisadores do Brasil e do exterior, contribuindo para a expansão e crescimento do trabalho com imagens. Desta forma, convidamos a todos(as) para apreciar mais esta edição da Revista Domínios da Imagem, desejando que continue contribuindo para as pesquisas realizadas nesta área. Edméia Ribeiro

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DOI: 10.5433/2237-9126.2012ano6n11p7

Aristóteles, Escultura e Fotografia: a questão da vingança Antônio Jackson de Souza Brandão Mestre e Doutor em Literatura pela Universidade de São Paulo (USP/SP). Atualmente é professor do mestrado na Universidade de Santo Amaro (UNISA/SP). Tem experiência na área da formação imagética iconológica dos séculos XVI, XVII e XVIII e sua relação com a Literatura e com a arte, atuando principalmente nos seguintes temas: a formação/leitura imagética na Literatura (a partir do manancial proporcionado pela Antiguidade e medievo); a recepção imagética de tempos extemporâneos; a importância da imagem na literatura e sua relação com a interpretação textual; a correlação/imiscuição entre textos verbais e textos não verbais (em especial, o papel desempenhado pela fotografia, a partir do século XIX).

Resumo

Muito se fala, atualmente, a respeito da vingança e de seu alcance: até que ponto pode-se ir quando se trata de vingar-se de alguém; ou, ainda, ela é ética e moralmente aceitável? Não seria uma mera reprodução inconsciente da irracionalidade humana formada ao longo da construção da sociedade, uma “espécie de justiça selvagem”, segundo Bacon? Se for justificável, em que medida poderia ser exequível? Como Aristóteles a via em sua Ética? E se a vingança for fruto de um erro, de um engano? Poderíamos aqui levantar vários questionamentos que não seriam passíveis de serem incluídos em um artigo, no entanto o que nos cabe perguntar é: de que modo a vingança foi tratada ao longo dos séculos na literatura e na representação imagética. Além disso, procuraremos nos questionar: seria possível “vingar-se”, empregando o texto e a fotografia? Palavras-chave: vingança; imagem; fotografia; palavra; Aristóteles.

Abstract

Much is said, currently, about revenge and their reach: how far somebody can go when it comes to take revenge on someone; or, still, it is ethically and morally acceptable? It would not be a mere reproduction of human irrationality formed along the construction of society, “a kind of wild justice,” according to Bacon? If it is justifiable, to what extent could be feasible? And if revenge is the result of an error, a mistake? We could here raise several questions that would not be capable of being included in an article, however what we ask is: how revenge was treated over the centuries in literature and imagery representation. In addition, we ask ourselves: would it be possible to “take revenge”, employing the text and photography? Keywords: revenge; image; photography; word; Aristotle.

Recebido em: 10/08/2012

Aprovado em: 05/10/2012

Domínios da Imagem, Londrina, ano VI, n. 11, p. 7-24, novembro 2012

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Antônio Jackson de Souza Brandão

Aristóteles, Escultura e Fotografia: a questão da vingança

A legitimação da vingança Segundo o Houaiss (2001), vingança significa “ato lesivo, praticado em nome próprio ou alheio, por alguém que foi real ou presumidamente ofendido ou lesado, em represália contra aquele que é ou seria o causador desse dano”; em outras palavras, fazer com que alguém sofra aquilo que, anteriormente, fizera com um outro, a fim de que sua atitude não se repita mais. Falar em vingança implica em que se empreguem não só conceitos filosóficos e religiosos – quando adentraríamos em questões morais, éticas e de salvação –, como também sociais, cujas regras de conduta foram buriladas ao longo de gerações. Seu intuito era o de cercear possíveis desvios de conduta em seu meio, legitimando-a inclusive. Dessa forma, muitas sociedades, para manterem sua autopreservação, estipularam normas de comportamento que deveriam ser seguidas por todos, a fim de se evitarem excessos que levassem a uma destruição mútua e desnecessária de sua engrenagem; além de ser, evidentemente, uma forma eficaz de coerção social para manutenção do status quo, de suas classes superiores. Isso fica claro ao lermos o Código de Hamurabi que estabelecera programas de conduta da sociedade babilônica, quando faz clara distinção entre awelum (classe mais alta, a dos homens livres), mushkenum (cidadãos livres, de menor status) e wardum (escravos), como se vê nos artigos a seguir: 8

203º Se um homem que nasceu livre bater no corpo de outro homem seu igual, ele deverá pagar uma mina em ouro. 204º Se um homem livre bater no corpo de outro homem livre, ele deverá pagar 10 shekels em dinheiro. 205º Se o escravo de um homem livre bater no corpo de outro homem livre, o escravo deverá ter sua orelha arrancada. 206º Se durante uma briga um homem ferir outro, então o primeiro deve jurar que “Eu não o feri de propósito” e pagar o médico para aquele a quem machucou.

A questão da legitimação da vingança fica mais clara, no entanto, quando se verifica, no mesmo código, a conhecida lei de talião (do latim talis, idêntico) e há total reciprocidade quanto aos delitos cometidos: 196º Se um homem arrancar o olho de outro homem, o olho do primeiro deverá ser arrancado. 197º Se um homem quebrar o osso de outro homem, o primeiro terá também seu osso quebrado. 198º Se ele arrancar o olho de um homem livre, ou quebrar o osso de um homem livre, ele deverá pagar uma mina em ouro. 199º Se ele arrancar o olho do escravo de outrem, ou quebrar o osso do escravo de outrem, ele deve pagar metade do valor do escravo. 200º Se um homem quebrar o dente de um seu igual, o dente deste homem também deverá ser quebrado.

Apesar dessa presumível legitimação da vingança, deve ficar claro que o código estabelecia limites a determinadas penas, a fim de que um castigo imputado não fosse, a priori, maior do que o crime cometido.

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Aristóteles, Escultura e Fotografia: a questão da vingança

Foi, a partir desse padrão babilônico, e provavelmente seguindo seu modelo, que se criaram os preceitos da Torah hebraica, presentes no Êxodo: Se homens brigarem, e acontecer que venham a ferir uma mulher grávida, e esta der à luz sem nenhum dano, eles serão passíveis de uma indenização imposta pelo marido da mulher, e que pagarão diante dos juízes. Mas, se houver outros danos, urge dar vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe. (Ex 21, 22-27)

Para Aristóteles (1996), na Grécia Antiga, o homem é um animal social1 e, por este ter necessidade de estar inserido em sociedade, o emprego de regras de convivência tornase imprescindível. Assim, mesmo que certas leis sejam de ordem geral e não possam se estender a todas as situações, ainda assim não deixariam de ser adequadas, visto que não é nem a lei nem o legislador que são falhos, mas a particularidade do caso (p. 212). Diante disso, podem ocorrer situações de conflito, como a sensação de injustiça que leva seus membros a tomar, muitas vezes, atitudes extremadas. O Estagirita mostra-nos, por exemplo, dois tipos de atitude (e de pessoas) diante da injustiça: aquela que é levada à cólera, e a que não reage. O encolerizar-se seria atitude natural, mesmo que impulsiva: As pessoas que se encolerizam por motivos justos e com as pessoas certas [...] como devem, quando devem e enquanto devem, são dignas de louvor. Estas, então, serão as pessoas amáveis, pois a amabilidade é louvável. De fato, as pessoas amáveis tendem a permanecer imperturbáveis e a não se deixarem dominar pela emoção, e a encolerizar-se somente da maneira, com as coisas e durante o tempo ditados pela razão; [...] as pessoas amáveis não são vingativas. (p. 186, grifo nosso) 1

Por outro lado, Aristóteles reprova a atitude de não-irascibilidade dos passivos, considerados insensatos: A falta [...] é reprovável, porquanto as pessoas que não se encolerizam com as coisas que devem encolerizá-las são consideradas insensatas, tanto quanto as que não se encolerizam da maneira certa, no momento certo, ou com as pessoas certas; pensa-se que tais pessoas não têm sensibilidade nem sofrem diante de uma ofensa e, já que não se encolerizam, pensa-se que elas são incapazes de defender-se; considera-se servil suportar um insulto a si mesmo e admitir que um amigo seja insultado. (p. 186)

As pessoas que se exaltam diante de uma injustiça, mostram-se virtuosas, pois não se calam, covardemente, diante do erro, são as amáveis; por outro lado, o Estagirita demonstra seu desprezo para a passividade diante do que se considera injusto. H á tamb ém o s i ras cí vei s q u e s e encolerizam com as pessoas erradas, apesar disso tendem a refrear prontamente seu estado; mas há ainda as rancorosas que são difíceis e implacáveis, e sustentam a sua cólera durante muito tempo, já que reprimem a sua emoção; mas a cólera cessa quando elas revidam, pois a vingança as alivia, produzindo nela prazer em vez de sofrimento; se não revidam, elas continuam a carregar o peso do ressentimento, pois como sua cólera é oculta ninguém tenta sequer persuadi-las a acalmar-se, e é preciso tempo para uma pessoa digerir a cólera sozinha. Estas pessoas são mais problemáticas para si mesmas e para seus amigos mais próximos. Chamamos mal-humoradas as pessoas que se irritam com as coisas erradas, mais do que o razoável e durante mais tempo e não podem reconciliarse enquanto não conseguem uma reparação ou não se vingam. (p. 186)

Para Aristóteles, portanto, o problema não é a cólera, nem é a ira, desde que empregadas

Ou ζῷον πολιτικόν­(zoon politikon – animal político).

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Antônio Jackson de Souza Brandão

para denunciar a injustiça e dirigidas às “pessoas certas, pelas coisas certas, da maneira certa” (p. 187); o censurável é seu excesso e sua falta; não seu meio termo. A cultura ocidental cresceu à luz tanto da cultura grega, quanto da judaico-cristã; dessa forma, poderíamos tentar estabelecer uma relação entre essas duas concepções em relação ao malefício efetuado a outrem. Observamos que, para Aristóteles, uma possível punição para um injusto decorre do desrespeito às normas estabelecidas pela sociedade em que o transgressor se insere, pois tal transgressão não é só prejudicial a um indivíduo, mas a toda coletividade. Isso fica claro quando o Estagirita (p. 213) refere-se ao suicida e ao fato de que este age, injustamente, contra si e contra a própria πόλις (pólis – cidade). Por outro lado, a lei de talião hebraica, ao falar em punição, não está preocupada nem com o indivíduo que sofreu a agressão, nem com a sociedade em si, mas tão-só à quebra dos preceitos divinos. Foi exatamente contra essa tradição que Jesus se levanta:

Tendes ouvido o que foi dito: olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo: não resistais ao mau. Se alguém te ferir a face direita, oferece-lhe também a outra. Se alguém te citar em justiça para tirar-te a túnica, cedelhe também a capa. Se alguém vem obrigar-te a andar mil passos com ele, anda dois mil. Dá a quem te pede e não te desvies daquele que te quer pedir emprestado. Tendes ouvido o que foi dito: Amarás o teu próximo e poderás odiar teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos perseguem. (Mt 5, 38-44)

Há aqui uma guinada e, para o cristianismo, não há mais espaço para a vingança, pois somente Deus é quem pode fazê-lo, mas mesmo assim Este se abstém desse papel, afinal é Pai e, como tal, sua cólera dirige-se às “pessoas certas, pelas coisas certas, da maneira certa”, conforme Aristóteles (p. 187) havia dito. Contudo, não se quer, com isso, afirmar que as ideias de Cristo coadunam com as de Aristóteles no que diz respeito à questão da punição; pelo contrário, as do Mestre de Nazaré estão muito mais próximas as dos estoicos, como Sêneca.

Figura1. Jasão entrega ao rei Pélias o velocino de ouro, c. 240 a 320 a.C.

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Aristóteles, Escultura e Fotografia: a questão da vingança

A retratação escultórica da vingança Se, como afirma Aristóteles (1996, p. 187), “é humano ser vingativo”, isso pressupõe que tal sentimento é-nos intrínseco, logo será expresso de forma efusiva nos mitos e largamente empregado na arte, assim como o amor, a paixão, a ternura, o ódio. Afinal, que é a arte senão a busca por imitar a realidade que o homem tem a sua volta, além de escancarar seu próprio interior? Segundo Chauí (2000, p. 318) [...] as artes não pretendiam imitar a realidade, nem pretendem ser ilusões sobre a realidade, mas exprimir por meios artísticos a própria realidade. O pintor deseja revelar o que é o mundo visível; o músico, o que é o mundo sonoro; o dançarino, o que é o mundo do movimento; o escritor, o que é o mundo da matéria e da forma.

O mito, por seu lado, ao tentar explicar ao homem sua realidade, sua origem e a do cosmos – confundindo-se, inclusive, com a própria origem do λόγος (lógos – palavra) – e será largamente empregado na arte literária: Com o mito, o homem cria a poesia, para explicar aquilo que sua ratio não conseguia explicitar; e, por tentar demonstrar o que não se demonstra, a poesia vai se diferenciar da

linguagem corrente, da objetividade do fluxo normal do mundo por meio de metáforas, alegorias e musicalidade próprias. A poesia, portanto, mantém-se indiferente à linguagem em que se manifesta, demonstrando sua relação com o sacro: o próprio λόγος, para muitas civilizações, era somente utilizado pela casta sacerdotal, não visava à reprodução da realidade tão somente, mas à verdade. (BRANDÃO, 2009a, p. 4)

Assim, o tema da vingança parte da oralidade e chega à arte literária; e desta, à pictográfica e escultórica e torna-se um objeto recorrente na arte. Do manancial mitológico que discorre sobre o tema, vários modelos foram tomados pelo fazer artístico. Que nos mostra, por exemplo, A Ilíada, de Homero ao retratar o final da Guerra de Troia, se não os danos decorrentes de uma vingança? Há, no entanto, um mito em particular cujo interesse para este artigo é peculiar: a história de Jasão e Medeia. Isso se deve por dois motivos: a) pela forma como uma vingança foi calculada e levada às últimas consequências; b) devido a explanação do mito em um sarcófago do 2º século de nossa Era (Figura 2), que se encontra no Museu Pergamon em Berlim.

Figura 2. Sarcófago de Medea, c. 140-150 AD

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No mito, Jasão é convencido por seu tio, Pélias, a sair numa aventura em busca do velocino de ouro. Ao chegar ao reino da Cólquida, onde o velo encontrava-se, reivindica a seu rei, Eetes, o objeto que estava guardado em uma gruta sob a proteção de um dragão. O rei promete entregar-lhe o velo, desde que arasse a terra, empregando dois touros de patas de bronze que soltavam fogo pelas narinas e pela boca; e, nos sulcos abertos, que semeasse os dentes de um dragão. Medeia, a filha do rei, apaixona-se por Jasão e o ajuda na empreitada. De posse do velocino, Jasão, Medeia e seus companheiros partem. De volta à Tessália, Medeia engendra uma vingança contra o tio usurpador de Jasão, Pélias, ao convencer suas próprias filhas a retalharem-no com a promessa de que ele ficaria jovem novamente, assim como ela o fizera com o pai de Jasão, Éson. Tal fato

não ocorre e partem para Coríntio. Ali o rei Creonte convence Jasão a rejeitar sua mulher em favor de sua filha, Creúsa. A partir desse momento, Medeia engendra sua perversa vingança retratada no sarcófago... Obcecada por ter sido preterida e abandonada, após tudo o que fez a Jasão, Medeia vinga-se de sua rival, enviandolhe, por meio de seus filhos e de Jasão, um vestido e joias enfeitiçadas com uma poção misteriosa. Na Figura 3, podemos vê-la sentada e as crianças defronte ao pai que as olha com afeto. Creúsa, ao usar o vestido sente seu corpo arder em chamas, corroído por um fogo misterioso. Seus gritos lancinantes são ouvidos, no palácio, por todos, que correm para acudi-la. Diante do desespero da filha, o rei tenta ajudá-la, mas também ele é acometido pelo mesmo mal.

Figura 3. Detalhe do Sarcófago de Medea, os filhos de Jasão entregam um presente a Creúsa

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Aristóteles, Escultura e Fotografia: a questão da vingança

Figura 4. Detalhe do Sarcófago de Medea, Creúsa e o rei Creonte acometidos por um fogo misterioso

Figura 5. Detalhe do Sarcófago de Medeia: Os filhos de Medeia dirigem-se à mãe

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A expressão de desespero de Creúsa procura ser clara, assim como a de seu pai: o artista busca captar o momento mais expressivo da ação literária, aquele instante, para perpetuá-lo no mármore. Pode parecer, para o leitor do século XXI, que a pose seja um tanto artificial, que não represente, efetivamente, o bramir de dor. Deve-se ter em conta, no entanto, que a obra, seguindo o padrão de beleza grego visava à suprema beleza sob as condições aceitas da dor corporal. Esta, em toda a sua violência desfiguradora, era incompatível com aquela. Ele [o artista] foi obrigado a reduzi-la; [...] a suavizar o grito em suspiro; não porque o grito denuncia uma alma indigna, mas antes porque ele dispõe a face de um modo asqueroso. (LESSING, 1998, p. 92)

Lessing também afirmou que o objeto da pintura (assim como o da escultura), seria o de empregar um único momento da ação – renunciando, portanto, ao tempo –, escolhendo para isso o mais expressivo, a partir do qual “torna-se mais compreensível o que já se passou e o que se seguirá.” (p. 194) Isso porque o artista está limitado pelo espaço; a poesia, por sua vez, por dispor da narrativa expõe os corpos por meio de suas ações no tempo. O drapejamento esvoaçante das roupas para um lado, os cabelos revoltos para cima, a posição das mãos... procuram demonstrar o desespero da mulher para se livrar do fogo que a consumia. Vê-se, na outra cena (Figura 5), as duas crianças correndo em direção à mãe que, apesar do olhar complacente, segura em uma das mães um punhal. Cesare Ripa (1987) fala a esse respeito, ao explicar a alegoria da vingança: Se representa la venganza com un puñal en la mano, para mostrar el acto espontáneo que se produce en la voluntad cuando corre a tomar

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venganza de las injurias recibidas; tomando dicha venganza con gran efusión de sangre, razón por la que le pone [la mujer] revestida de rojo. (p. 390)

Medeia ainda cega de ódio e com sua sede de vingança ainda não rebelada, dirigese a um carro puxado por serpentes [no caso do sarcófago, aladas], mas antes ainda faltava o gran finale: num ato de frieza e de última retaliação, empregando as palavras de Aristóteles vistas anteriormente, assassina suas crianças e foge para Atenas (Figura 6). É possível ver uma das crianças atrás de seu ombro, enquanto da outra, só se pode ver os pés, como se estivesse caindo do carro em que a mãe se encontra. Como vimos anteriormente, Aristóteles fala-nos do papel da cólera diante da injustiça e, à continuação, na mesma obra – Ética a Nicômaco –, aborda a questão do desejo, comparando os dois conceitos.

Figura 6. Detalhe do Sarcófago de Medeia: Medeia foge para Atenas

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Aristóteles, Escultura e Fotografia: a questão da vingança

Segundo o Houaiss, desejo é o “ato ou efeito de desejar; aspiração diante de algo que corresponda ao esperado; expectativa de possuir algo ou alcançar algo”, mas há outra acepção que merece ser destacada: “instinto físico que impulsiona o ser humano ao prazer sexual; atração física.” É evidente que desejar não é algo ruim, pelo contrário: vivemos de desejos, eles nos movem a vida e nos levam a ela; em outras palavras, o desejo nada mais é que a libido, energia vital, que vai muito além do lugar-comum do mero impulso sexual. Quando o Estagirita fala em desejo (ὄρεξις), este tanto pode ser ἐπιθυμία (epithymia – faculdade irracional da alma, concupiscência), quanto θυμός (thymós – ardor, coragem, força vital); e, ao demonstrar que a cólera, “até certo ponto” (p. 242), ouve, mesmo que incompletamente, a razão, afirma que o desejo (ἐπιθυμία), por sua vez,não, pois “se a imaginação ou a percepção apenas lhe diz que um objeto é agradável, precipita-se para fruí-lo” (p. 242). Isso quer dizer que a ἐπιθυμία faz com que o sujeito abandone a razão, visto ser irracional, em vista simplesmente da “expectativa de possuir” o objeto de anseio. Artistóteles mostra que a cólera não é dissimulada, é emotiva e ostensiva em sua explosão; a ἐπιθυμία, por sua vez, é astuciosa, por isso mais criminosa; portanto corresponde a uma “deficiência moral”, desde que tais desejos sejam excessivos e desnecessários (p. 243). Isso porque, ainda segundo o Estagirita, a cólera, a priori, possui algum motivo que leva a ela, como um ultraje, ou uma injustiça, enquanto o mesmo não há no desejo. Assim, chegamos à Medeia que, não medindo esforços em busca de seu desejo, completamente “enlouquecida pelo cinismo, ingratidão e infidelidade de Jasão” (BRANDÃO, 1987, p. 62), por quem

ainda era apaixonada, devido a Afrodite (Idem, 1986, p. 222), comete os atos mais hediondos e criminosos proporcionados pela cega paixão dos desejos, tornando-a um poço de rancor. Mas, conforme Aristóteles (1996, p.186) havia dito: “quando revidam [...] a vingança as alivia, produzindo prazer em vez de sofrimento.” Resulta daí a serenidade que ela expressa no carro em fuga: não se vê remorso em seu olhar, mas altivez. A retratação literária da vingança O λόγος também tem muito a oferecernos em relação à vingança, basta verificarmos Hamlet de Shakespeare. Há, na cena III do ato III, uma ocasião que o príncipe, num primeiro momento, acredita ser propício para vingar-se da morte do pai, visto que o rei encontrava-se sozinho em um aposento do castelo: HAMLET – É propícia a ocasião; acha-se orando. Vou fazê-lo. Desta arte, alcança o céu... E assim me vingaria? Em outros termos: mata um biltre a meu pai; e eu, seu filho único, despacho esse mesmíssimo velhaco para o céu. É soldo e recompensa, não vingança. Assassinou meu pai, quando este estava pesado de alimentos, com seus crimes floridos como maio. O céu somente saberá qual o estado de suas contas; mas, de acordo com nossas presunções, não será bom. Direi que estou vingado, se o matar quando tem a alma expungida e apta para fazer a grande viagem? Não. Aguarda, espada, um golpe mais terrível, no sono da embriaguez, ou em plena cólera, nos prazeres do tálamo incestuoso, no jogo, ao blasfemar, ou em qualquer ato que o arraste à perdição. Nessa hora, ataca-o; que para o céu vire ele os calcanhares, quando a alma estiver negra como o inferno, que é o seu destino. Espera-me a rainha; prolonga-te a doença esta mezinha. (SHAKESPEARE, s/d, p. 577)

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O príncipe, porém, pondera se esse, apesar de ter o rei ali facilmente diante de si para cometer seu ato de reparação, seria o momento oportuno. Aqui temos de recordar as palavras de Aristóteles, quando afirma que a cólera ouve “até certo ponto” a razão (p. 242), pois ao refletir verifica que se cometesse seu desagravo naquele momento, faria um favor ao rei que, apesar de seu pecado mortal, seria enviado ao Paraíso, afinal o mesmo estava em oração. Seu ato, portanto, não seria de vingança, mas de recompensa! Muito pior passara seu pai, pois o mesmo fora assassinado “pesado de alimentos, com seus crimes floridos como maio”, ou seja, em meio a suas muitas iniquidades, como as flores da primavera (maio no hemisfério norte). Não, tal ato não poderia ocorrer naquele instante, teria de esperar por um momento mais conveniente, quando o rei se encontrasse também em pecado em meio ao “sono da embriaguez, ou em plena cólera, nos prazeres do tálamo incestuoso, no jogo, ao blasfemar”, a fim de que o mesmo seja arrastado à perdição do inferno... Verifica-se que a simples morte do tio não teria sentido como vingança, afinal se, segundo Hamlet, o pai foi morto em pecado e ganhou a perdição, o tio terá de ter a mesma sina. Vale salientar que a questão da vingança era amplamente aceita na Idade Média (e que se mantém de certa forma na Idade Moderna), inclusive como tema fundamental da política, a ponto de nenhum motivo político ser tão bem compreendido pelo povo do que os do ódio e da própria vingança, conforme assinalou Huizinga (1996, p. 21). A retratação fotográfica da vingança Evidentemente que, com o passar do tempo, a vingança não deixou de fazer 16

parte da sociedade humana, apenas buscou formas de aprimorar-se. Isso implica que, nem sempre, a morte se tornou a única solução, afinal a sociedade mudou e sofisticou seu comportamento. Buscaramse outras soluções, como a difamação, a calúnia, a detração, a injúria... que, mesmo sendo palavras sinônimas, mantêm suas particularidades e cujo objetivo único continuou permanecendo como uma represália contra um dano recebido. Preteriu-se, em muitos casos, a lei de talião e a morte do corpo em prol da morte da honra, da moral e da dignidade. Que quis fazer Gregório de Matos, quando escreveu os seguintes versos a seguir? Se Pica-flor me chamais, Pica-flor aceito ser, mas resta agora saber, se no nome, qyue me dais, Meteis a flor, que guardais No passarinho melhor! Se me dais este favor, sendo só de mim o Pica, e o mais vosso, claro fica, que fico então Pica-flor. (MATOS, 1990, p. 651)

Muito mais que uma sátira, pretendia vingar-se de uma freira “que satyrizando a delgada fizionomia do poeta lhe chamou picaflor”. Se isso para nossas grandes cidades pouco representa, imagine-se então em uma cidade baiana, em pleno século XVII, onde todos se conheciam? O mesmo aconteceu com outros artistas que detinham não só o poder da palavra, como também o poder da imagem. Àqueles que não possuíam esses dotes, restava-lhes outro poder nefasto de vingança: os boatos. Várias foram as pessoas que sofreram, foram humilhadas e sucumbiram devido a sua eficácia, tanto ontem como hoje. Recentemente, um ator que fez muito sucesso em uma grande emissora de

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Aristóteles, Escultura e Fotografia: a questão da vingança

Fotografia 1. Fotografia do corpo exumado de Antônio Conselheiro, 06/10/1897, Canudos/BA (fotografado por Flávio de Barros)

televisão, nos anos 70 e 80, esclareceu o porquê de ter desaparecido da mídia no auge de sua carreira e de ter sua masculinidade questionada, devido a uma cenoura: isso, por ele ter agido de forma contrária ao que se propagou, ou seja, por ter tido um affair com a esposa de seu antigo diretor. Estamos no século que se iniciou sob o domínio das mídias digitais. Hoje a vingança faz-se via mensagens no celular ou na internet, quando ex-namorados, noivas preteridas, mulheres e homens traídos publicam e divulgam, na rede, fotos ou filmes vexatórios (que se espalham a uma velocidade inimaginável!) dos antigos parceiros; ou, então, criam-se falsas verdades, a fim de destruírem seus desafetos. Mais do que nunca, o poder logo-imagético está a serviço da vingança... Diante do exposto, pode-se supor que, somente agora, a imagem esteja a serviço da vingança, o que não deixa de ter sua lógica, afinal o poder imagético foi, durante muito

tempo, prerrogativa de poucos – de artistas a mecenas, por exemplo –, além de serem pouquíssimos também aqueles que poderiam empregar esse meio para vingar-se. Não era à toa ser fácil fazer justiça com as próprias mãos. Verifica-se, porém, que desde o advento da fotografia e de seu aprimoramento surgiu a versão documental da vingança. Esta passa a funcionar como um totem às avessas, ou seja, não serve apenas para representar a rememoração dos antepassados que não deveriam ser esquecidos, mas a dos inimigos que foram execrados. Sua ignomínia seria lembrada para sempre, a fim de que outros não tentassem fazer o que os marcados na chapa fotográfica fizeram. Euclides da Cunha mostra isso, quando retrata a exumação de Antônio Conselheiro (foto 1), cujo cadáver fora desenterrado, cuidadosamente, afinal era um “prêmio único, únicos despojos opimos de tal guerra!” (CUNHA, 1998, p. 498)

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Antônio Jackson de Souza Brandão Com essas palavras, Euclides da Cunha encerra sua obra acerca de uma guerra impiedosa e vergonhosa, mas que teve participação ativa da fotografia, seja para retratar os infames monstros impiedosos de Canudos feitos prisioneiros, seja para comprovar a derrocada de seu líder – ainda que o mesmo tenha morrido antes do final do conflito e tivesse de ter sido exumado para que, a partir de uma fotografia, todo o Brasil pudesse testemunhálo: afinal, a fotografia não pode mentir! (BRANDÃO, 2010, p.104-105)

A fotografia, portanto, mais do que um atestado de veracidade do acontecimento, bem como do dever cumprido, tornara-se um paradigma da vingança e lembrete para todos aqueles que ousassem enfrentar o status quo, como fizeram os miseráveis de Canudos. Algo parecido com o que ocorria na China, até o início do século XX, só que não com cadáveres. Havia no país asiático, uma vingança oficial imputada por imperadores àqueles considerados traidores, o lingchi. A punição consistia em amarrar as mãos e os pés do condenado nu em estacas de madeira e, à vista de uma multidão (a execução era pública), esse era simplesmente retalhado vivo, lenta e metodicamente, daí a pena capital também ser conhecida como cortar em mil pedaços.

O aviltamento era total e, a fim de manter os condenados o maior tempo possível vivos (caso contrário, o mesmo poderia ser infringido ao executor), era lhes dado ópio, mas isso só em tempos mais recentes (essa pena capital foi executada até 1905). Esse parece ser o motivo de muitos executados parecerem estar em transe em meio a sua mutilação mortal, como se pode verificar tanto nas fotografias, quanto nos cartões postais da época. Assim, como se não bastassem a condenação, a humilhação e o retalhamento públicos; havia também sua perpetuação por meio da fotografia. Evidentemente, não se pode dizer que tais atos sejam isolados e restrinjam-se aos confins do mundo, em meio a aborígenes selvagens. Exemplo disso, veremos nas fotos 1 a 3, em que se vislumbra o resultado da ação de uma multidão que acorreu, tresloucadamente, a um fórum, a fim de retirar um homem que havia sido preso, acusado de ter agredido uma garota. Há dois detalhes importantes: primeiro, não se sabia ao certo se ele era ou não culpado; segundo, ele era negro (Will Brown, de 41 anos – fotografia 3) e a garota em questão, branca (Agnes Loebec).

Fotografia 2. Manifestantes destroem o fórum, Omaha/ Nebraska, em 28 de setembro de 1919

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Os manifestantes (estimados entre cinco a quinze mil pessoas) querendo ter nas mãos o acusado e inflamados de um ódio racial recorrente dirigiram-se ao prédio e alvejaram-no com vários tiros, devido à negativa das autoridades policiais em ceder-lhes o suspeito; e, após incendiarem parte do edifício, arrebataram o acusado, provavelmente da cela onde se encontrava, espancaram-no até que ficasse inconsciente, arrastaram-no para a rua, enforcaram-no e deram-lhe vários tiros em seu corpo já inerte. Ainda não satisfeitos, arrastaram-no amarrado em um carro, algo como Aquiles fizera com Heitor na Ilíada, diante da muralha de Troia, só que agora o vilipêndio fôra nas ruas de uma pequena cidade do Nebraska, nos EUA. Por fim, atearam-lhe fogo em praça pública e diante do deslumbramento da turba. (Foto 4) Tudo isso sem o menor arrependimento, afinal estavam pagando o mal com o mal, acreditavam-se virtuosos; porém, para isso, haveria a necessidade efetiva de ter-se provado uma injustiça, fato que, segundo Aristóteles, não se ocorreu. O que se constatou, portanto, não foi a mera cólera, que reage diante de um erro e de uma injustiça, mas a extrapolação do rancor, cuja fúria somente se alivia diante da pura e simples vingança. (ARISTÓTELES, 1996, p.186)

Isso fica claro, quando se constata que o mal, de que Brown era acusado, não correspondesse, em número e grau, àquele que, supostamente, tenha sofrido Loebeck, isso para ater-nos à lei de talião. No entanto, para aquela turba, a lei de deveria reger tais conflitos era a do código de Hamurabi (art. 205º), só que arrancaram mais que uma orelha. Detalhe: não havia mais escravidão nos Estados Unidos, quando da ocorrência do fato registrado pela fotografia, mas a ideia da supremacia branca sobre a negra ainda era latente e muito viva ainda. E as chamas consomem o homem que não apresentava, provavelmente, relação alguma com o crime de que fora acusado (além de ter negado com veemência antes de ser arrancado do fórum, o mesmo possuía reumatismo agudo!), mas que satisfez a busca por vingança da turba de forma catártica e bestial, por isso sem controle e de forma assustadora. (Idem, p. 244)

Fotografia 3. Will Brown que for a acusado de ter agredido uma mulher branca

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A fotografia 4 é extremamente transitiva2 e chocante: primeiro por vermos uma multidão ao redor de um cadáver humano em chamas e, apesar disso, fazem pose para o fotógrafo. Fazem questão de mostraremse para a posteridade pelo ato humano que fizeram; segundo, pior do que a cena em si, é o olhar de satisfação de todos aqueles que dela fazem parte, olhar e pose de dever

cumprido, como se estivessem diante de uma bela obra construída e estivessem contemplando o resultado de seus esforços; nenhum dos presentes demonstra estranhar aquilo que, provavelmente, estranharíamos: o odor de carne humana sendo incinerada, à semelhança do olhar altivo de Medeia após ter concluído seu intento vingativo, que incluía seus próprios filhos.

Fotografia 4. Após o linchamento e sua mutilação, o corpo de Will Brown é carbonizado para deleite da turba que o arrancara da fórum em Omaha, EUA, em 28/09/1919

Chamo de fotografia transitiva, quando uma imagem nos impele para fora dela, a fim de descobrirmos o que está além da moldura. Por exemplo, é quando vejo alguém em uma fotografia olhando e conversando com uma pessoa do lado, porém esta não está presente na cena, mas sei que ela existe. (BRANDÃO, 2010, p. 38).

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Aristóteles, Escultura e Fotografia: a questão da vingança

Há um rapaz mais à direita da cena que nos serve de punctum3 (recorte1) com sua atitude de vencedor, mão ao lado e cujo sorriso chega a ponto de gargalhar. Não há como não se impressionar com sua atitude. Esta é altamente constrangedora e não foi fotografada numa aldeia longínqua da África, nem em meio à guerra (a Grande Guerra já acabara há quase um ano 11/11/1918). Apesar disso, a cena deve ser lida dentro do contexto e da sociedade em que está inserida: eles realmente acreditavam numa superioridade racial branca diante de outras etnias, consideradas inferiores, como a negra, daí a satisfação mórbida de ter a seus pés – literalmente – a carbonização daquele que quis (como se fosse possível dizer algo contrário diante da turba) enfrentar seu status quo. A vingança não se reflete, portanto, à vítima da agressão ou mesmo do estupro, se acaso ele houve, afinal qualquer um dos que estão ali presentes – diante daquele corpo carbonizado –, poderia ter sido o estuprador, mas ao puro desejo de destruir nele toda a raça que representa. É claro o emprego do πιθυμία, enquanto faculdade mais irracional do ser humano, reprovada não só pela religião, mas pela ética pagã de Aristóteles que via em sua 3

dissimulação uma deficiência moral, criminosa por excelência, afinal não se deixa guiar pela ratio. Por isso que, diante de tal cena grotesca há o sorriso nos rostos daquelas pessoas, pois “a vingança as alivia, produzindo nela prazer em vez de sofrimento” (ARISTÓTELES, 1996, p. 186); só que, à diferença do mito de Jasão e Medeia, Creúsa aqui tem carne e osso, não faz parte do mito, mas da vida real. Ante essa imagem, surge-nos outra, retirada da emblemática, que nos demonstra a relação do fogo com aqueles que o utilizaram de modo tão vil. Vemos, na figura 7 lobos vestidos de monges, e corvos que não só ateiam fogo a uma pira cavada no chão como também a alimentam; da árvore ao lado jorra líquido (sangue) sobre as chamas, extinguindo-as. A imagem do lobo é muito presente na cultura ocidental como representação do mal ou associado a ele desde a Antiguidade, na própria Renascença há muitas alusões a esse animal. Horapolo (1991) nos mostra que o lobo expressa o homem incomodado por seus inimigos (p. 271) ou mesmo aversão (p. 489). Nesta acepção, também foi visto como imagem do inimigo, já que não se intimida em enfrentar e destruir membros de sua própria espécie (p. 490); há, também em Horapolo, a utilização do corvo, porém aquilo que ele chama de corvo noturno é, na realidade, uma coruja. Para Ripa, a figura do lobo pode estar associada a várias representações alegóricas de, em sua maioria, atitudes negativas: no volume 1 encontramos Carro de Marte (p. 168), Conselho – em representação com outras três cabeças: do cachorro (virada para a direita); do leão (no meio); do lobo (virada

Para Barthes (1984, p. 47-48), nem todas fotografias têm a mesma recepção pelo eu individual, ou seja, damos mais atenção a algumas, enquanto, simplesmente, passamos rapidamente por outras. Para isso o teórico francês cria os conceitos de punctum e de studium: o campo do studium é diversificado, do gosto inconseqüente, do gosto/ não gosto, do I like/ I don’t like, enquanto o do punctum seria específico, não geral, não voltado ao to like, mas ao to love.

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Figura 7. Emblema 7 Ex parvo satis, de Georgette de Montenay, 1615.

para a esquerda, representa o passado) – (p. 218), Dúvida (p. 297), Interesse próprio (p. 535); no volume 2, Peste ou Pestilência (p. 205), Rapina (p. 245), Silêncio (p. 314) e Voracidade (p. 432). Ripa, em relação ao corvo nos traz no volume 1: Indecisão (p. 515), Infortúnio (p. 523); no volume 2, Vingança (p. 391). Vê-se que vários elementos do emblema poderiam ser lidos na fotografia 4, sem que fosse necessário criar metáforas para isso. Os lobos no emblema poderiam representar os homens que se inebriam diante do cadáver incinerado na pira criada por eles, demonstrando insaciável avidez em acompanhar a desgraça dos outros para fazer emprego dela – à semelhança dos lobos seguindo os exércitos (Ripa, 1989, v. 1, pág. 22

168) – como na demonstração soberba na foto que serve de propaganda para seus atos; estes demonstram interesses egoístas para evidenciar seu poder – daí a fotografia do jovem em pose sarcástica diante do corpo em chamas –, cuja fome voraz (ibidem, p. 535) o faz buscar culpados para seus atos, a fim de poder saciar suas próprias vontades, sua sede de desejo mórbido. Vêm-nos, dessa forma, as palavras de Plauto – homo homini lupus [o homem é o lobo do homem] –, aforismo muito utilizado no século XVII retomado por Hobbes em Leviatã (1651): Por lo general el lobo, debido a su forma de vida basada en la rapiña, ha sido considerado como imagen de la maldad. Debido a su ferocidad se le asocia con lo moralmente bestial, es decir, con la guerra; de ahí que se

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Aristóteles, Escultura e Fotografia: a questão da vingança encuentre entre los símbolos propios de marte, como lo señala Ripa en su “Carro de Marte”. (HORAPOLO, 1991, p. 271, grifo nosso)

Ávidos por vingança – cuja representação para Ripa emprega o fogo, a chama para significar a turbulência da alma que agita e ferve o coração dos homens, levando-os ao ódio e à ira sem limites –, simbolizado, no emblema, pelo corvo que, para Ripa, pica um escorpião. (Ibidem, v. 2, p. 391) Dessa forma, pouco restaria ao infeliz do negro que fora imolado em Omaha, se não fosse pelo detalhe – no emblema – do sangue que jorra da árvore sobre a pira, que representa o próprio sangue de Cristo, único capaz de aplacar as chamas que, de outra forma, não sucumbiriam à constante alimentação fornecida pelos lobos e corvos. Ao analisarmos a fotografia, porém, veremos que não há árvore alguma próxima às labaredas que saem do corpo do homem morto e incinerado, mas um detalhe chamanos a atenção: a posição do mesmo no chão e em sua pira. O rapaz está numa posição que lembra o próprio Cristo crucificado com um patibulum que passa sob seus braços... a própria cabeça, voltada para cima, lembra também o Cristo que grita: “Pai perdoa-lhes! Eles não sabem o que estão fazendo!”(Lc 23, 34) para depois gritar mais forte: “Pai, em tuas mãos entrego meu espírito!” (Lc 23, 46) Segundo a alma do emblema4, a árvore também representaria a cruz de Cristo e o sangue que dela jorra é o mesmo que jorrou de seu lado após a crucificação, o único capaz de aplacar aquelas chamas:

Feralem struxere focum coruique lupique: Nec tamen, accenso fomite, ligna calent. Nēpe sacra manās Christi cruor arbore, flāmas Obruit, & sterili lumina falsa rogo. [Tradução livre: Os corvos e os lobos fazem um fogo extravagante. Nada, porém, pode apagar o fogo depois de este ter sido ateado na madeira. Pelo sangue de Cristo que jorra da árvore sagrada as chamas do falso fogo da pira estéril são extintos.]

Bibliografia ARISTÓTELES. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996. BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BRANDÃO, Antônio Jackson de S. “Uma viagem pela imagem: do lógos à formação iconofotológica”, In Revista Digital do LAV. Santa Maria: UFSM, 2009a. ______. “O gênero emblemático”. In Travessias 7. Cascavel: Unioeste, 2009b. ______. “Tränen des Vaterlandes: a guerra numa leitura iconofotológica”. In Lumen et Virtus. EmbuGuaçu: JackBran, 2010. BRANDÃO, Junito de S. Mitologia grega, vol. I. Petrópolis: Vozes, 1986. ______. Mitologia grega, vol. II. Petrópolis: Vozes, 1987. BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: história de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 7ª ed. São Paulo, Ática, 2000. HORAPOLO. Hiroglyphica. Madrid: Ediciones Akal, 1991. HUIZINGA, Johan. O declínio da Idade Média. Braga: Ulisseia, 1996.

Os emblemas possuíam uma estrutura tripartite constituída por: a) uma imagem – esta deveria ser fixada na memória dos leitores e passar-lhes-ia preceitos morais: era seu corpo; b) um mote, a inscriptio − normalmente uma sentença aguda escrita em latim: direcionava o leitor a uma determinada leitura da imagem; c) um epigrama (ou texto explicativo) − buscava relacionar o corpo com o mote do emblema, clarificando a relação existente: era sua alma. (BRANDÃO, 2009b, p. 131)

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Antônio Jackson de Souza Brandão LESSING, Gotthold E. Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia. São Paulo: Iluminuras, 1998. MATOS, Gregório de. Gregório de Matos: obra poética, edição de James Amado, 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1990.

Sites consultados: http://www.faimi.edu.br/v8/RevistaJuridica/ Edicao6/c%C3%B3digo%20de%20hamurabi. pdf www.nebraskastudies.org/.../0701_0134.html

M O N T E N AY, G e o r g e t e. E m b l e m a t v m christianorvm centvria.Heildelberg: Typis Johannis Lancelloti, 1615 (Facsímile). RIPA, Cesare. Iconología. Tomo I. Madrid: Akal, [1987?]. _______. Iconología. Tomo II. Madrid: Akal, 1987. SHAKESPEARE, William. Teatro completo: tragedias, 2ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

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DOI: 10.5433/2237-9126.2012ano6n11p25

A História como Montagem: contribuições do cinema para a crítica da historiografia César Henrique Guazzelli Sousa Mestrando em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Atualmente, atua como pesquisador pelo CREA-GO, bem como professor em diversos níveis de ensino em Goiânia. Suas áreas de atuação são teoria da história, cinema popular italiano e a narrativa fí-lmica.

Resumo

O presente trabalho faz uma análise comparativa entre história e cinema, utilizando as discussões endossadas no campo dos estudos sobre a narrativa e a estrutura cinematográfica, sobretudo a montagem, para compreender alguns aspectos estruturais do fazer histórico. A função do historiador é percebida como um exercício análogo ao do montador que, ao justapor fragmentos, cria um novo sentido no interstício entre eles e, paralelamente, modifica o sentido de cada fragmento. Palavras-chave: Cinema; História; Montagem.

Abstract

The present work makes a comparative analysis between history and cinema, using the studies about narrative and structural composition in cinema, specially the theories about edition, to comprehend some aspects of the historians’ job. The function of the historian is comprehended as an editing process that, interlocking scraps, creates a new meaning between them and, at the same time, modifies the meaning of each scrap. Keywords: Cinema; History; Edition.

Recebido em: 11/09/2012

Aprovado em: 20/10/2012

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César Henrique Guazzelli Sousa

A História como Montagem: contribuições do cinema para a crítica da historiografia

A percepção da história como reflexo do passado já é coisa obsoleta. Atualmente, através do diálogo com a antropologia, a lingüística, a psicanálise, as artes e áreas correlatas, percebe-se o caráter literário presente no discurso e na narrativa do historiador, o que muito contribui para o desenvolvimento da historiografia por meio da autoconsciência de sua produção, do uso adequado da erudição na relação com as fontes e documentos, da enunciação e diálogo com o leitor e do questionamento da validade e veracidade da História como lugar de produção de conhecimento válido sobre o pretérito. Por outro lado, percebese que, se a História aprofunda-se em suas relações interdisciplinares com estes parceiros já consolidados desde a virada cultural e lingüística da década de 70, acaba por imergir na mesmice, na dissecação vertical e incessante de um grupo seleto de autores e temáticas, o que traz novamente o risco de crise, de incapacidade de transformação dentro de um mesmo paradigma e, portanto, de esgotamento. Foi pensando nesta lacuna que propus uma determinada possibilidade de diálogo entre cinema e história. Esta relação, da forma como aqui é construída, não se coloca na percepção do cinema como objeto de estudo para a história (história do cinema ou história no cinema), o que nada traria de novo. Tampouco se sustenta na percepção do audiovisual como fonte válida de pesquisa para os historiadores, trabalho já consolidado

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na França, encabeçado pela figura pioneira de Marc Ferro e que tem rendido frutos no Brasil. O que proponho é uma abordagem dialógica entre cinema e história enquanto estruturas, elementos específicos de construção de sentido balizados por componentes sígnicos que lhes conferem organicidade. Nesse aspecto, história e cinema serão entendidos a partir das discussões sobre o fazer-se, sobre sua composição narrativa e as relações entre autor e objeto. Com isso, pretendo extrair algumas possíveis contribuições do cinema para a história. Antes de usar a história para compreender o cinema, portanto, pretendo o oposto, que é utilizar a bibliografia existente sobre a linguagem cinematográfica para compreender o fazer histórico. O filme (nostalgia) (1971), de Hollis Frampton, pertencente ao pouco conhecido movimento dos structural films americanos, utiliza uma premissa interessante para o entendimento da dimensão imagética de todo discurso narrativo. Sobre uma boca de fogão acesa, são colocadas, uma a uma, treze fotografias filmadas na vertical (embora o diretor anuncie doze no início do filme), que queimam lentamente enquanto Frampton tece comentários sobre elas e as lembranças que lhe provocam, quando as tirou, se são ou não de seu agrado. O plano reservado a cada foto é de dois minutos e quarenta e quatro segundos. O dado que nos interessa aqui é o elemento que ‘perturba’ a rígida organização da estrutura que nos é mostrada no filme: os comentários nunca se referem à fotografia

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A História como Montagem: contribuições do cinema para a crítica da historiografia

que está sendo filmada, mas à seguinte. Isto cria uma anomalia, um mal estar resultante da incompatibilidade entre imagem e texto. Interessante notar também que só depois de três ou quatro fotos é que se percebe essa distorção da estrutura de apresentação verbal do que é filmado (o fato de os comentários se referirem à foto seguinte). A questão a se levantar é: porque essa estrutura provoca mal estar? Em primeiro lugar, poderíamos afirmar que demanda um exercício de memória, situado na necessidade de assimilar os comentários para associálos à imagem seguinte em paralelo com a apreensão da imagem que é mostrada em associação com o comentário anterior. Em segundo lugar, porque a sobreposição entre imagem e texto destoantes dificulta a assimilação. Não há a boa-forma no discurso. O dado a ser notado é que boa parte dessa distorção acontece pois a fala do diretor cria imagens. Ao perceber a incompatibilidade entre a imagem esperada e a imagem apresentada, o espectador começa a procurar na estrutura elementos que justifiquem aquela fala, e assim, descobre o truque (das falas corresponderem à foto seguinte). É na tentativa de legitimar as imagens provocadas pelo texto que se revela, na consciência do espectador, a heterocronia do discurso de (nostalgia). A fala, o texto, portanto, provoca imagens. A separação radical entre o textual e o imagético não é possível. O pensamento é composto por esses dois elementos que, embora entrem em constantes conflitos, se complementam. Nesse sentido, o texto de história também cria imagens. Não só na forma imediata da pictorialidade e da estética (ao se estudar um dado período e espaço, por exemplo, o historiador remete a determinados signos e elementos visuais representativos daquela realidade), mas

também na forma de conceitos e estruturas (uma simples palavra, como ‘cultura’, remete a um universo enorme de significados). Estas imagens, entretanto, não têm a concretude da imagem cinematográfica. Enquanto a palavra cria padrões imagéticos que oscilam dentro de determinadas balizas – se falo ‘árvore’, a consciência daquele que lê construirá imagens difusas e mutáveis dentro de um padrão geral que é o conceito de árvore – a realidade construída a partir do recurso da filmagem tem uma imanência imperiosa que amarra a consciência ao olhar. Ao construir um trabalho, como uma História da etiqueta no Renascimento, o historiador lida o tempo todo com a manipulação de ‘padrões imagéticos’, faz construções pictóricas que auxiliam a compreensão do leitor, relaciona sentidos para justificar argumentos. Ele se encontra em um espaço movediço, em que a construção das imagens que deseja passar depende de sua habilidade na escrita, sua capacidade de estreitamento do espaço em que a consciência do leitor percorre. O historiador tem uma verdade em mente e precisa, através da escrita, fazer com que sua intenção e a percepção do leitor sobre o que é dito entrem em congruência. Quando o pesquisador se debruça sobre um problema, sua pretensão é a de conhecer. No conhecimento, a consciência – ou o sujeito – se defronta com o objeto. Nesta relação, o sujeito e o objeto aparecem eternamente separados. O dualismo do sujeito e do objeto pertence à essência do conhecimento. Ao mesmo tempo, a relação entre estes dois elementos é uma relação recíproca. A função do sujeito é apreender o objeto, enquanto a função do objeto é ser apreendido – ou apreensível – por esse sujeito. Conforme Hessen,

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César Henrique Guazzelli Sousa O conhecimento pode ser definido como uma determinação do sujeito pelo objeto. Não é porém o sujeito que é pura e simplesmente determinado, mas apenas a imagem, nele, do objeto. A imagem é objetiva na medida em que carrega consigo as características do objeto. Diferente do objeto, ela está, de um certo modo, entre o sujeito e o objeto. Ela é o meio com o qual a consciência cognoscente apreende seu objeto.

O sujeito, desse modo, apreende o objeto pela imagem que dele se faz em sua consciência. Ele se comporta receptivamente em relação ao objeto, receptividade que não é sinônimo de passividade. Se, por um lado, o sujeito é determinado pelo objeto, por outro este tem uma relação de espontaneidade e atividade em relação à imagem do objeto, na qual a consciência tem participação criadora. Desta característica, infere-se que “na medida em que determina o sujeito, o objeto mostra-se independente [...], além dele, transcendente”. Isto ocorre porque todo conhecimento visa um objeto, independentemente da equivalência entre este e a completude da imagem que dele se faz na consciência que o apreende. Nessa construção, que lugar seria reservado para o problema da verdade? A verdade corresponderia a uma equivalência entre o objeto, sempre transcendente à intencionalidade que sobre ele se debruça, e a imagem deste na consciência do indivíduo que o apreende. O conceito de verdade, portanto, se configura na relação entre o conteúdo do pensamento e o objeto. A verdade jamais pode ser acessada em sua essência, apenas constatada como existente. A fenomenologia do conhecimento de Hessen estabelece a exigência do critério de verdade, mas não dispõe de ferramentas que permitam a garantia desse critério. Apenas constata, portanto, a verdade como necessária e desejada. 28

Um texto de história, até chegar às mãos do sujeito que o lê como uma ‘verdade sobre o passado’, passa por diversos filtros. Em primeiro lugar, o documento. Não há garantias de que os documentos utilizados pelo historiador correspondam aos objetos pretendidos. Em diários e livros-censo, muitos dados relevantes podem ser omitidos, distorcendo a conclusão final a que o pesquisador chega em relação ao que de fato ocorreu. Soma-se a isso a distância entre a pretensão de acesso direto ao passado e o uso dos documentos como mediadores entre pesquisador e objeto pretensamente pesquisado (o tempo passado). Em segundo lugar, a percepção e volição do historiador, mascarada sob o método. Os documentos, sozinhos, não dizem nada. O historiador é que diz algo sobre eles e os faz ‘dizer algo’. Em terceiro lugar, a escrita dos resultados obtidos pelo método. Nesta escrita, as imagens e conceitos concluídos pelo historiador devem ser registrados sem perda ou distorção de seu sentido originalmente imaginado. Em quarto lugar, a leitura do texto. No processo de leitura operam mediações, elementos ligados à cotidianidade do leitor que são acessados na apreensão dos conteúdos. A recepção é dotada de intencionalidade, assim como a produção (MARTÍN-BARBERO, 2003). Um bom exemplo é colocado por Clapham: Li e sublinhei Travels in France, de Arthur Young, e dei aulas à partir das passagens sublinhadas. Há cinco anos li o livro de novo e descobri que eu havia marcado todas as vezes que Young falava de um francês infeliz, mas que muitas de suas referências a franceses felizes ou prósperos ficaram sem sublinhar.

Admitir a verdade da história dentro da perspectiva colocada por Johaness Hessen se torna algo problemático. Grosso

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modo, desde a tentativa de acesso às ‘imagens do passado’ pelo historiador até o processo final de projeção destas imagens (para manter a analogia), operam quatro filtros que minimizam a possibilidade de equivalência entre objeto e sua apreensão pela consciência. Ao final, o que se tem é uma síntese altamente subjetiva. Dentro das ‘imagens’ que citei no exemplo da árvore, por exemplo, um leitor pode assumi-la como uma figueira, o outro, como uma mangueira. O espaço aberto para que a consciência do leitor se movimente é preenchido pela intencionalidade da recepção e pela ação do imaginário. Uma hipótese, portanto, seria a de se fazer história não como texto, mas como audiovisual. A organicidade das imagens diminuiria estes elementos de distorção e abertura para a volição, tornando-se, assim, mais verdadeira. Essa pretensa solução é problemática. As mesmas mediações que operam no processo de construção e leitura de textos, também são colocadas em ação na leitura de imagens. Clapham, por exemplo, poderia ter visto um filme que mostra franceses felizes e tristes e, ainda assim, sua atenção se voltaria para os segundos. Os registros ‘documentais’ existentes na forma de vídeo, além disso, cobrem uma parcela muito restrita de possibilidades temáticas e datam eventos ocorridos somente a partir de 1895. Fazer recriações sobre o passado, como é comum em ficções que têm como pano de fundo um fato histórico ou, mais ainda, em documentários nos moldes dos canais National Geographic Channel ou Discovery Channel aprofundam o problema da relação que se tem entre imagem e objeto, ao que Rolland Barthes (1984) chamou a atenção observando a indistinção entre significado e referente comum em textos de história.

Para o semiólogo francês, o discurso histórico supõe uma dupla relação bastante problemática. Num primeiro momento, o referente é destacado do discurso. Num segundo momento, é o próprio significado que é rechaçado, aglutinado ao referente. O referente entra em relação direta com o significante, sem a mediação do significado. Como em todo discurso de pretensão realista, portanto, o da história acredita conhecer apenas um esquema semântico de dois termos, o referente e o significante, relacionando o significado como o próprio referente. O real nunca é mais do que um significado não formulado, abrigado atrás da onipotência aparente do referente. Essa situação define o que podemos chamar de efeito do real (BARTHES, 1984). O cinema, enquanto aparato, se tornou um instrumento potente na construção de ‘efeitos de real’. O simulacro da realidade apresentado na visualidade do cinema endossa esta indiferenciação entre referente e significado, legitimando a ilusão de o que é mostrado não ‘representar’ algo, mas sê-lo de fato. O engessamento da imagem inaugurado pelo cinema, portanto (e ironicamente) antes de proporcionar maior grau de aproximação com a realidade, parece nos distanciar ainda mais desta, A eliminação do significado para fora do discurso objetivo, deixando confrontar-se aparentemente o real com sua expressão, não deixa de produzir um novo sentido, tanto é verdade, uma vez mais, que, num sistema, toda carência de elemento é ela própria significante. Esse novo sentido é o próprio real, transformado subrepticiamente em significado vergonhoso: o discurso histórico não acompanha o real, não faz mais do que significa-lo, repetindo continuamente ‘aconteceu’, sem que essa asserção possa ser jamais outra coisa que não o reverso significado de toda a narração histórica. (BARTHES, 1984, p. 178).

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Barthes atenta aqui para a clássica acepção freudiana do silêncio e da ausência de elementos como significantes. Na desconstrução e análise do que nos é dado a ver (a imagem do cinema), Ismail Xavier chama a atenção não para a tela em si, mas para os limites do que nos é apresentado: a moldura. A construção de sentido se tece não somente dentro daquilo que vemos, mas nas relações entre o visível e o invisível de cada situação. Quando se esquece a função do recorte, prevalecendo a fé na evidêcia da imagem isolada, temos um sujeito totalmente cativo do processo de simulação por mais simples que ele pareça (XAVIER, 2003, p. 32).

Chamemos, portanto, atenção para a montagem. A sucessão de imagens organizada pela montagem cria relações novas a todo instante e somos sempre levados a construir por nós mesmos ligações propriamente não existentes na tela. A montagem sugere, nós deduzimos. Estas significações se dão não tanto por força de isolamentos, mas por força de contextualizações. A combinação de imagens cria significados não presentes em cada uma isoladamente (XAVIER, 2003), fato normalmente ilustrado pelo clássico experimento do Laboratório Experimental. Kuleshov fundou seu Laboratório Experimental em 1922. Criado com a intenção de ensinar direção e arte dramática, o laboratório revelou cineastas importantes, como Vsevolod Pudovkin e Boris Barnet, além de realizar pesquisas nevrálgicas sobre as potencialidades da montagem. A experiência inicial do Laboratório Experimental se tornou referência nas antologias de teoria e prática do cinema com o nome de ‘efeito Kuleshov’. O cineasta russo filmou o rosto do ator Msojukine olhando fixamente para um ponto. Depois, cortou essa imagem em vários 30

pedaços e, na montagem, intercalou-a com outras: uma criança brincando, uma mulher tomando banho, um morto em um caixão, um prato de sopa. A montagem foi projetada para um público desavisado, que elogiou bastante a interpretação do ator. Segundo eles, sutis alterações faciais demonstravam enternecimento diante da criança, desejo pela mulher, pesar e medo diante da morte e fome diante da sopa. O ator, porém, sequer sabia para que a sua imagem seria utilizada (ASSIS BRASIL, 2003, p. 86). Percebia-se, dessa forma, a potencialidade da montagem para inocular sentido às imagens relacionadas. O encadeamento de imagens produz algo novo, que ontologicamente não está nem na primeira, nem na segunda cena, mas na relação entre ambas. É no espaço entre elas que se produz o sentido. Posteriormente, as inferências decorrentes do ‘efeito Kuleshov’ foram consideradas exageradas pelo próprio cineasta russo, mas a premissa do efeito da montagem ainda permanece. Vejamos outra experiência de Kuleshov. Em 1920, o cineasta montou cinco cenas para um experimento: 1 – um jovem caminhando da esquerda para a direita; 2 – uma mulher caminhando da direita para a esquerda; 3- os dois se encontram e cumprimentam com um aperto de mãos e o jovem aponta; 4- mostra-se um amplo edifício branco com grande escadaria; 5- os dois sobem as escadas. Montados nessa ordem, os pedaços, filmados separadamente, criam o efeito óbvio de uma ação clara e ininterrupta. Cada trecho separado, entretanto, foi filmado em um lugar diferente. O jovem, perto do edifício G.U.M. A mulher, perto do monumento a Gogol. O aperto de mãos, perto do teatro Bolshoi. A casa branca era um trecho de um filme americano e a subida na escadaria foi filmada na catedral de São Salvador. Apesar disso, o espectador percebe a cena como um

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todo, dentro de um mesmo espaço-tempo e encadeado em uma seqüência ininterrupta (PUDOVKIN, 1926, p. 69-70). Em construções de realidade sempre operam montagens. Por elas, seleciona-se o que mostrar, como mostrar, as relações que se deseja fazer e a ordem do que é dito. Uma acepção pouco aguçada poderia definir este processo em história como a montagem de um quebra-cabeças. Sobre a mesa em branco e incógnita do passado, o historiador disporia as peças (que são as fontes) de maneira caótica, buscando o ordenamento entre elas, as arestas que definem a moldura do recorte pelo qual o pesquisador optou, os encaixes entre as peças e os elementos que preenchem determinadas lacunas. Esta visão, porém, recai no sério problema imposto pelas limitações apresentadas pelos documentos. Como se sabe, eles não são representações acabadas e totais do passado. Poderíamos pensar assim em um quebracabeças incompleto, em que monta-se não o ideal, mas o possível. Esta visão é igualmente problemática. Ao dispor duas fontes uma ao lado da outra e ‘encaixá-las’, através da tecitura de relações que as liga e ordena em uma nova percepção da realidade não existente em cada um isoladamente, o historiador não faz uma soma ou encaixe, mas uma síntese. Ao montar duas peças, o historiador cria sentido. Como dito anteriormente, devemos remeter às experiências de Kuleshov. O rosto do ator Msojukine, colocado em relação com três peças diferentes, produziu três impressões completamente distintas sobre ele. A montagem produz um sentido que não está em um ou outro elemento do maquinismo (na história, as fontes; no cinema, as cenas), mas no espaço entre eles. A disposição relacional de peças cria novos sentidos que se estendem por toda a estrutura. Novamente voltando

ao rosto de Msojukine, se o observarmos isoladamente, sem as relações com ele estabelecidas, não perceberemos qualquer mudança de reação. Entretanto, quando o observamos sequencialmente em relação com outros elementos, a montagem, além de criar um sentido novo no espaço entre seus elementos, ressignifica cada elemento que a compõe isoladamente. O historiador se converte, portanto, em um montador, um diretor que se debruça sobre recortes do passado e, por meio de um exercício levado a cabo através do método (lembremos do serialismo de Labrousse), ordena documentos em uma linearidade específica, criando sentido nas relações. Isso deslegitima qualquer pretensão à objetividade do conhecimento histórico. A imanência da fonte documental se perde nas construções simbólicas e na força da estrutura de relações que as submete. A crítica ao historicismo, assimiladora de que não é possível extrair nada dos documentos, mas apenas criar algo sobre e a partir deles, torna-se muito pertinente aqui. Eduardo Coutinho lembra que ‘’o personagem não existe em si. Em uma relação é que se cria um personagem’’ (COUTINHO, 2003, p. 110). O mito da objetividade, derivado desta crença historicista na verdade e na ontologia caracterizadora dos documentos, é fruto de um projeto que visa minimizar ou anular a figura do autor. A ele, se contrapõe um princípio de incerteza que vem abalar os dois pólos da relação, tanto o saber sobre si daquele que produz sentido (cineasta ou historiador) quanto o suposto saber sobre o outro (TEIXEIRA, 2003). A questão da objetividade é bem observada por Barthes ao se referir ao discurso histórico. Para ele, o discurso ‘objetivo’ é esquizofrênico, pois promove uma censura radical da enunciação e induz um refluxo maciço do discurso para

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o enunciado e mesmo para o referente: ninguém está presente para assumir o que é dito (BARTHES, 1984). O historiador, deste modo, acredita que pela simples negação do ‘eu’ na enunciação consegue alcançar a verdade do objeto. Esse escamoteamento ao nível da enunciação, contudo, advém de um processo distinto ao da relação com o objeto, presente no método. Na estrutura do discurso histórico (e no cinema ocorre um processo análogo), assim como não existe um ‘eu’ para assumir o discurso, também não existe um ‘tu’ a quem o discurso se dirige. Ele paira indefinido, como um aerólito desprendido de qualquer interferência humana. Neste ponto opera novamente a reificação do discurso. Pela supressão dos sujeitos envolvidos no processo de comunicação, acredita-se na potência transcendente da realidade apresentada. Em cinema, isto é bem delineado na narrativa clássica. Os atores não olham para a câmera e assumem a perspectiva de uma ‘quarta parede’ – fazem de conta que não há espectador – induzindo um processo voyerístico àquele que vê, que tem a sensação de poder, de ver sem ser visto. O espectador se torna um olhar sem corpo. David Bordwell (2005) acha a acepção do olhar sem corpo insuficiente para a determinação das propriedades narrativas da estrutura a que se dirige – o cinema clássico – preferindo usar as categorias de autoconsciência, comunicabilidade e onisciência. A autoconsciência da narrativa se refere ao que foi dito sobre a esquizofrenia do discurso, que não assume o eu que o produz e tampouco um receptor ao qual se dirige. A narração se desenrola, certamente construída por alguém e dirigida a um público específico. Entretanto, os elementos da estrutura negam esta acepção óbvia da narrativa 32

como mediação. A narração não tem consciência de si mesma. No cinema, o grau de autoconsciência da narrativa aumenta, normalmente, no inicio e final do filme. Ela se dirige ao espectador, por exemplo, por meio do ‘narrador off’, que conta algo de fora do que é narrado. Na história, isto ocorre nos momentos de introdução e conclusão, quando o historiador assume a existência de um leitor para o produto de seu trabalho. Esta esquizofrenia, é bom sempre repetir, deriva de uma cultura da objetividade oriunda do discurso científico que faz com que o consumidor do trabalho aceite aquilo como uma espécie de ponte que dá acesso a determinada realidade, não como construção. A comunicabilidade se refere à exposição do que é sabido pela narração. Assim, determinados elementos podem ser ocultados para favorecer a manutenção da dúvida sobre algumas questões levantadas. No cinema clássico, isto é controlado para levar a história ao clímax, por meio da acepção do deadline: todos os conflitos em aberto convergem para um ponto crítico, em que há sua resolução mais ou menos simultânea. É o suspense. Na estrutura da história, isto fica claro pela resposta às questões-problema levantadas no início do trabalho sempre em seu final, mantendo-se assim, a atenção do leitor durante a explanação por meio de exemplos, relações conceituais e análises. O final corresponde ao coroamento da estrutura. O espectador/leitor começa a decodificação da estrutura em uma linha que vai do ‘não sei nada’ ao ‘agora sei tudo’ através da comunicabilidade. Na manipulação do que se comunica ao leitor, através do que Barthes (1984) denomina no discurso histórico de ‘embreantes de organização’ – elementos declarados pelos quais o historiador organiza o discurso – a autoconsciência da narração também aumenta, pois este acaba por

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assumir uma autoria (em casos como ‘como dissemos acima’, ‘este elemento será explicado posteriormente’, etc). Através dos embreantes de organização, diretamente ligados à noção de comunicabilidade, nasce o atrito entre dois tempos – o tempo da enunciação e o tempo da matéria enunciada. Isto gera três importantes fatos do discurso. Primeiro, a questão da aceleração da história. Um mesmo número de páginas comporta recortes temporais variados, conforme o enfoque do historiador. Há uma tendência de que, quanto mais nos aproximamos do tempo do historiador, mais lentamente caminha a história (NORA, 1993). Poderíamos chamar este fenômeno narrativo de heterocronia do discurso histórico. Em segundo lugar, temos a questão da história em ziguezague ou denteada. O discurso da história se aprofunda no tempo, acoplado em uma narrativa linear que serve como base a diversas histórias menores (BARTHES, 1984), conforme aponta a denominação aristotélica do encaixe para definir as formas de organização da ação na narração. Dois bons exemplos estruturais disto são o filme Cidade de Deus (2002) e o livro Histórias, de Heródoto. O terceiro fato se refere às inaugurações do discurso histórico. Ao anunciar seu discurso, o historiador complica o tempo crônico a que se refere, confrontando-o com o tempo da enunciação ou tempo-papel. Esta descronologização tem não tanto a função de exprimir a subjetividade do autor (que, como afirmamos, é reiteradamente negada), mas principalmente de anunciar a função preditiva do pesquisador: é justamente por saber que algo ainda não foi que ele duplica o escoamento crônico da fala ao chamar a atenção para o tempo da matéria anunciada (BARTHES, 1984). A onisciência corresponde ao grau de

conhecimento da narração sobre o que é apresentado. Um historiador, por exemplo, ao propor discorrer sobre determinado assunto, deve arrebanhar a maior quantidade possível de informações adjacentes ao problema levantado, tornando o discurso o mais onisciente possível. A narração sabe mais do que qualquer personagem nela presente. A voz do narrador é uma voz única, enquanto os objetos dos quais ele fala são muitos. Mesmo os sujeitos de quem ele fala, são transformados em objetos. Sua prosódia é regular e homogênea e ele jamais se coloca como objeto do próprio discurso (BERNARDET, 2003). Deifica-se, assumindo a autoridade de dizer sobre o outro sem jamais ser mencionado. No filme documentário Viramundo (1965) de Geraldo Sarno, Jean Claude Bernardet (2003) faz uma análise incisiva e precisa dos níveis de autoridade que incidem sobre o discurso e sobre a forma como o narrador, através da montagem, se sobrepõe aos demais sujeitos presentes na película. Ele divide três níveis de autoridade entre as vozes que se apresentam no documentário. Em primeiro lugar, há os migrantes. Eles são a voz da experiência, ou seja, indivíduos que falam para a câmera de suas vivências sem buscar generalizações ou conclusões. Falam sobre si mesmos. Eles estariam discursando, conforme a acepção de Luckmann e Berger (2003), sobre a realidade por excelência: seu cotidiano. Se imposta, então, uma segunda voz que não fala como eles. Nada lhe é perguntado, ela fala espontaneamente e, principalmente, não fala de si, mas dos imigrantes. Qualifica as regiões de onde eles vêm, coloca estatísticas que contextualizam as ‘vozes da experiência’ anteriormente mostradas e produz generalizações. Este elemento da narrativa é colocado como uma ‘voz do saber’ que não encontra sua origem

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na experiência, mas em um estudo de tipo sociológico (BERNARDET, 2003). O que informa o espectador sobre o ‘real’ (assumido como uma construção abstrata e abrangente) é o locutor. Dos entrevistados, somente obtemos uma história individual e fragmentada. O locutor elabora a estrutura de fora da experiência e nos fornece o significado profundo. A autoridade desta elaboração não advém da narrativa, mas do método. Os entrevistados funcionam como amostragem que exemplifica a fala do locutor e atesta que seu discurso é baseado no real. Eles são objetos da fala do locutor, que se institui como sujeito detentor do saber (BERNARDET, 2003). Sua participação na experiência não é possível, pois seria a própria negação do saber. Este necessita do alheamento em relação ao mundo experienciável. A exterioridade do sujeito em relação ao objeto o obriga a reduzir aqueles de quem fala. Os dizeres dos entrevistados devem se encaixar no universo que a fala do locutor organiza. Deste modo, só determinadas perguntas são feitas aos entrevistados. Se as respostas extravasarem o universo previamente delimitado pelo organizador do discurso, são limpadas no processo de montagem. O tipo com o qual se trabalha condiciona a matéria-prima que se seleciona da pessoa. Mas os caracteres singulares dessa pessoa (expressividade, gestualidade, etc) revestem o tipo de uma capa de realidade que tende a fazer aceitar o personagem dramático que encarna o tipo sociológico. [...] O tratamento dado à pessoa foi determinado pelo tipo a construir, e nele se dissolve a pessoa. Ficamos com a impressão de perfeita harmonia entre o tipo e a pessoa, quando o tipo – abstrato e geral – é todo poderoso diante da pessoa singular que aniquila (BERNARDET, 2003, p. 19).

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Cria-se assim uma realidade fechada, construída, que tudo adéqua a seu aparelho conceitual, legitimando as relações de cunho particular/geral. A limpeza do real permite que o geral expresse o particular, que o particular sustente o geral, que o geral saia de sua abstração e seja ilustrado por uma vivência. Como não somos informados desta operação de limpeza do real, que nos é dada como a realidade em si, encontramos um sistema que funciona perfeitamente, em que o geral e o particular se sustentam e apóiam reciprocamente (BERNARDET, 2003). As personagens, vozes da experiência, funcionam no documentário de modelo sociológico (como é o caso de Viramundo) de forma análoga aos documentos da história, sobre os quais o historiador se debruça limpando aquilo que não se adequa à sua realidade tomada previamente – sob a alcunha de posicionamento teóricometodológico. O historiador se atém aos elementos presentes no documento que lhe são relevantes, ignora aquilo que transcende sua organização da realidade, relaciona sentidos dentro destes limites e produz generalizações a partir desta adequação prévia do documento à intencionalidade da narrativa. A estes documentos ditos ‘primários’ ele complementa a construção de realidade com outros, normalmente autores de grande gabarito que já ponderaram sobre o tema, elementos fundamentais na produção de generalizações e afirmação de autoridade sobre o que se fala. Em Viramundo, o elemento equivalente a estas vozes de autoridade atestadoras da legitimidade das generalizações produzidas pela narrativa, terceiro tipo de voz presente no filme e ainda não citado, é representado por um empresário. Este empresário, embora não seja o organizador da narrativa e o mantenedor dos recursos de organização da

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estrutura do real que se organiza, não fala sobre si, mas sobre os outros (os operários). Sua fala é registrada em som direto, assim como os operários. Entretanto, ele não corresponde à voz da experiência. Fala dos operários de forma genérica, não é objeto de estudo do filme e é fundamental no bom funcionamento do sistema particular/geral. Funciona como um locutor auxiliar, cuja função é auxiliar o narrador na exposição de idéias e conceitos a serem transmitidos. Estes indivíduos, vozes de autoridade que se colocam como reforçadores da voz que produz a montagem no discurso, oferecem não somente um escoamento do isomorfismo do discurso – sempre arrastado somente por uma voz – mas também a autoridade necessária para a afirmação do caráter de verdade do que se diz tanto dentro do cinema documentário como no interior da história. Em história, os ‘empresários’ são comumente aqueles relacionados nas referências bibliográficas, os clássicos, os formuladores dos conceitos e métodos utilizados, elementos usados em citações para o reforçamento de afirmações. Sustentados nestas três vozes e nos aportes que as interligam em uma relação do particular-geral, tanto o cinema quanto a história promovem um discurso coeso e que não se contradiz ou se nega em momento algum. Ele fecha-se sobre si mesmo, desenvolve as linhas anunciadas, não deixa nada em suspenso. A não contradição do discurso faz com que não haja contradição entre o discurso e o real, já que o real foi construído para servir o discurso, é parte do discurso. Como discursos cuidadosamente elaborados, porém, tanto Viramundo como a história negam seu caráter discursivo e evitam qualquer problematização neste sentido. Cria-se, assim, uma linguagem confiante em sua adesão ao real (BERNARDET, 2003).

Na construção de uma realidade coesa, retroalimentada e auto-suficiente, completamente amarrada em seus elementos, a montagem cria relações de sentido visando provocar determinados efeitos no leitor e/ou espectador. A isto, Pudovkin (1983) denominou montagem relacional. Determinados elementos são contrapostos sequencialmente, criando maquinismos em que sentidos são assimilados dentro de uma relação dúbia de generalidade e diferenciação. Ao montar as falas de dois operários, um ilustrando a mão-de-obra qualificada e o outro representando a mãode-obra não qualificada, Geraldo Sarno utiliza este processo, ao que Bernardet acrescenta, A ordenação dos fragmentos de cada série reforça e orienta a comparação. Os fragmentos são acoplados de modo a que cada operário trate do mesmo tema sucessivamente: estabilidade/instabilidade no emprego, o empresário qualificado tem duas casinhas, o não qualificado é ameaçado de despejo, o qualificado acha que o sindicato é excessivamente politizado [...]/ o outro acha que as atividades do sindicato são meramente assistenciais e não defendem os direitos dos operários. [...] O trabalho que nos encaminha o filme é dispensar o que não é comparável [...], o que é irrelevante para a construção dos tipos (BERNARDET, 2003, p. 21).

A isto Pudovkin (1983) denominou, dentro da montagem relacional, de contraste. Dois elementos díspares são apresentados sequencialmente, de modo que a discrepância entre um e outro, através da apresentação sucessiva e alternada, seja salientada. Além desta relação, a montagem cria outras, como o paralelismo – desenvolvimento de duas ações em espaços diferentes mas que convergem para o mesmo objetivo – o simbolismo – em que um conceito abstrato é induzido pela relação – simultaneidade – em que dois eventos que ocorrem ao

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mesmo tempo são alternados – e o leitomtiv, também conhecido como reiteração do tema, em que um mesmo evento é repetido várias vezes. Todos estes artifícios têm como função a comparação de elementos para que estes se encaixem na estrutura do real previamente estabelecida. A não comparabilidade, como mostrado, destitui um plano ou documento de pertinência. A este modelo bem acabado de construção da realidade, em que tudo se amarra e faz sentido, em que os elementos se complementam e criam diversas indistinções, como sujeito/objeto, referente/significado e real/discurso, se contrapõe outro, crítico de sua estrutura e que busca alternativas mais plausíveis de relação com a realidade e a verdade, demonstrando os limites da própria estrutura na lida com o tema. Este modelo, antes de buscar uma forma que garanta maior objetividade não somente ao nível do discurso (que é, na verdade, uma anomalia e um escamoteamento), mas também em relação ao método, se preocupa especialmente em evidenciar os limites e as mediações de sua relação com a realidade, problematizando-os. No cinema, este tipo de discurso vem atrelado aos já citados cinemas de ruptura. No documentário, particularmente, há dois tipos destacados: o cinema direto e o cinema verdade. Estas formas de se fazer documentário, ao invés de buscarem uma construção acabada em si mesma e criarem uma forma de construção do real que se assume como detentora da verdade e se impõe, se preocupam com o problema das vozes que se interpõe no discurso e a forma como são inseridas, as relações de poder aí inerentes e a forma como a enunciação se constrói, bem como a relação da estrutura e do aparato com os sujeitos utilizados como personagens. Tenta minimizar o problema 36

da construção de tipos e transformação dos sujeitos em objetos pela estrutura da narrativa; revela o caráter da realidade como construção. O diretor do cinema verdade, por exemplo, se coloca à frente da câmera e se insere em uma relação com os entrevistados. Não somente fala deles, mas também fala com eles. As câmeras e o aparato que se sobrepõem ao entrevistado são filmados, demonstrando as condições específicas que determinam a fala (dentro de uma situação específica de filmagem, que altera a realidade em que se insere) tanto pela sua simples presença estranha ao ambiente em que está inserida como pelos recortes do real que faz através do enquadramento e pela montagem. Assume, então, a distinção tenaz entre dar a voz ao outro e falar pelos que não têm voz (TEIXEIRA, 2003). O primeiro caso, denota uma inversão na hierarquia estabelecida entre as vozes do discurso demonstrada em Viramundo, de modo que o entrevistado deixe de ser objeto e apareça como sujeito. O segundo caso nos remete à estrutura do documentário clássico e do texto histórico. Mesmo em casos de iniciativa nobre, como O Silêncio dos Vencidos (1981) de Edgar De Decca e A Formação da Classe Operária Inglesa (1963) de Eward P. Thompson, esta estrutura se mantém. Os autores, crentes na possibilidade de dar a voz aos vencidos, se esquecem de que essa sutil diferença entre dar a voz ao outro e falar pelo outro se instala entre afirmações de poder e de autoridade enormes, que são afirmadas – como se viu – não pela escala, o ponto de vista ‘classista’ em que o tema é tratado, mas pela própria estrutura. Uma inversão temática adequada só pode ser feita com uma inversão estrutural que lhe dê organicidade. É disto que a história carece. Durante todo o século XX, a partir das mudanças provocadas pela Nouvelle Histoire e a

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A História como Montagem: contribuições do cinema para a crítica da historiografia

Revista dos Annales, até a grande virada da década de 70 colocada pela Nova História Cultural, o que se vê é uma ampliação do campo temático, dos métodos e das fontes documentais, embora esta expansão não venha atrelada a uma discussão concordante das estruturas. O que se faz é colocar em dúvida a objetividade histórica por meio de uma crítica ao seu discurso, sem que qualquer alternativa seja apresentada. Se a objetividade tal qual imaginada pelo pensamento historicista da segunda metade do século XIX não é possível, ao menos que seus limites sejam evidenciados pela estrutura da narrativa. Em outros termos, criada a crise da objetividade histórica, ela, antes de ser escamoteada pela manutenção de um discurso que se posta como simulacro do real e portador da verdade pela sua própria conformação, deve ser socializada para que os limites da construção de verdades sobre o passado se evidencie. Entretanto, se isto não pode ser feito pela simples afirmação do historiador sobre os limites de seu método e das afirmações que tece, pois deslegitimaria o lugar de poder que ele mantém na sociedade, deve ser procurada uma forma de fazê-lo pela estrutura. A transformação estrutural, nessa perspectiva, se sobreporia às críticas, tecendo uma autocrítica dos conteúdos por meio de operações sintagmáticas, como a assunção do sujeito que produz o discurso (o uso da primeira pessoa, por exemplo), a busca de elementos que possibilitem a minimização da hierarquia nas falas componentes da narrativa que constrói o real, a evidenciação clara do método e da relação que o pesquisador estabelece com este, delineando as características dos documentos não dentro de percepções isoladas, mas de relações que constroem sentido. O método, por si só, não diz nada. São os sujeitos que

o fazem tomando-o como mediador em sua percepção da realidade. Como visto, antes de garantir um acesso mais ‘objetivo’ aos documentos, o que o método faz é adequar os objetos a determinados tipos pré-concebidos, ‘limpando’ todos os elementos que não se encaixem em uma totalidade fechada e inter-relacionada, sem contradições internas e pontas soltas. Nessa perspectiva, a assunção da contradição como elemento imanente ao discurso é fundamental. Ela significa a evidenciação de um problema que ainda não apresenta solução satisfatória. A construção de um discurso que edifica a realidade e que se assume enquanto tal, a busca de uma forma de enunciação polifônica e a assunção da contradição como parte inerente do discurso histórico colocam-se como desafios emergentes para a historiografia. Referências BARTHES, Roland. O rumor da língua. Trad. de Mário Laranjeira. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. BERGER, Peter. LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade. Petrópolis: Vozes, 2003. BERNARDET, Jean-Claude. Caminhos de Kiarostami. São Paulo: Cia. Das Letras, 2004. BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e Imagens do Povo. São Paulo: Ed. Schwarcz, 2003. B O R D W E L L , D av i d . O c i n e m a c l á s s i c o Hollywoodiano: normas e princípios narrativos. In: RAMOS, Fernão Pessoa, Teoria Contemporânea do Cinema. Volume II. São Paulo: Ed. Senac, 2005. BRASIL, Giba Assis. Graus de realidade no audiovisual. In: Intersecções – R. De Estudos interdisciplinares. UERJ, RJ. Ano 5, n.1, p.81-89, 2003. BURKE, Peter. A escrita da História. São Paulo: Editora da UNESP, 1992. BURKE, Peter. O que é História Cultural. Tradução de Sergio Góes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2005.

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DOI: 10.5433/2237-9126.2012ano6n11p39

De Rogier Van der Weyden à Artemísia Lomi Gentileschi: representações iconográficas de Maria Madalena entre o medievo e o barroco caravaggesco Cristine Tedesco Graduada em História pela Universidade de Caxias do Sul. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pelotas.

Resumo

O presente estudo tem como objetivo principal refletir sobre as representações de Maria Madalena produzidas durante o medievo e o barroco caravaggesco. Acreditando no potencial expressivo das imagens, nossas fontes são, principalmente, obras de arte pictóricas. Queremos entender o fenômeno construído em torno da personagem emblemática Maria Madalena. Ao longo do texto trabalhamos com a obra Madalena lendo (1445) de Rogier Van der Weyden (1399/1400-1464) e Madalena (1618-1619) de Artemísia Lomi Gentileschi (1593-1654). O estudo pretende discutir também, as concepções sobre a arte e os artistas engendradas no período entre os séculos XV e XVII. Palavras chave: História; Imagens; Gênero.

Abstract

This study has as mainly objective to reflect on Mary Magdalene representations through the Middle Ages and the caravaggesco baroque. Believing in the expressive potential of images, our sources are, mainly, pictorial works of art. We want to understand the phenomenon built around Mary Magdalene as an emblematic character. Along the text we analyze the work The Magdalene Reading (1455), from Rogier Van der Weyden (1399/1400-1464), and Magdalene (1618-1619), from Artemisia Lomi Gentileschi (1593-1654). The study intends to discuss the conceptions about art and artists which had been originated between the 15th and 17th centuries as well. Keywords: History; Images; Gender.

Recebido em: 31/08/2012 Aprovado em: 15/10/2012

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Cristine Tedesco

De Rogier Van der Weyden à Artemísia Lomi Gentileschi: representações iconográficas de Maria Madalena entre o medievo e o barroco caravaggesco

Introdução Considerando os estudos desenvolvidos sobre o medievo nas últimas décadas, acreditamos numa perspectiva cronológica que não obedece aos recortes tradicionais. Nossa Idade Média, conforme Duby (1997), prolonga-se por mais de dez séculos e não se deixa enquadrar nos limites muitas vezes impostos por uma cronologia dita necessária à pesquisa. Destacamos que nosso referencial teórico é marcado pelo conceito de gênero, pensado por Joan Scott (1990). Para a pesquisadora, as relações de poder são ensaiadas primariamente desde as relações entre homens e mulheres. Nosso olhar genderificado ou gendrado1 analisa as representações imagéticas de Maria Madalena produzidas no período entre os séculos XV e XVII buscando compreender os significados atribuídos a essas imagens, como foram pensadas por seus criadores? Perguntamo-nos, por exemplo: Quem foi Maria Madalena aos olhos dos artistas que a representaram? Sobre a análise das imagens, nos filiamos à metodologia de Luigi Pareyson. Segundo o autor, a obra de arte para ser compreendida [...] por um lado ela exige ser colocada no seu tempo e interpretada à luz do espírito

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da época; por outro lado, contribui para dar a conhecer a sua época, em todas as suas diversas manifestações espirituais, culturais, morais, religiosas, etc. (PAREYSON, 1997, p.126).

Olhando a arte: do medievo ao barroco caravaggesco Com base no conceito convencional do medievo como a Idade das Trevas as pessoas pensam o período como uma época obscura, até mesmo do ponto de vista colorístico, conforme Umberto Eco. Para o pesquisador, durante a Idade Média, [...] a noite é vivida em ambientes pouco luminosos: em cabanas iluminadas – no máximo – pelo fogo da lareira, nos quartos amplíssimos de castelos iluminados por tochas ou na cela de um monge o lume de um débil candeeiro, e escuras eram as estradas das aldeias e cidades. Todavia, esta é uma característica também do Renascimento e do Barroco e – ainda adiante – do período que vai pelo menos até a descoberta da eletricidade (ECO, 2010, p. 99).

Porém, ao contrário, o homem medieval se vê e se representa tanto na poesia como na pintura, em um ambiente luminosíssimo, afirma Eco (2010). Sobre as miniaturas medievais, Umberto Eco salienta que mesmo tendo sido realizadas, provavelmente, em ambientes mal iluminados

“O vocábulo gendrado, oriundo de gender (palavra inglesa para gênero), tem sido utilizado por feministas, na falta de um adjetivo correspondente ao substantivo gênero. Trata-se de um neologismo, incorporado do inglês (gendered) e ainda não dicionarizado”. SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004, p. 77.

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De Rogier Van der Weyden à Artemísia Lomi Gentileschi: representações iconográficas de Maria Madalena... [...] são plenas de luz, de uma luminosidade, aliás, particular, gerada pela combinação de cores puras; vermelho, azul, ouro, prata, branco e verde, sem esfumaturas (ECO, 2010, p. 99).

Outro elemento comum ao medievo e ao barroco é a função catequética atribuída às imagens. Para Georges Duby, os homens de saber, conferiam um papel pedagógico aos monumentos, objetos e imagens, os quais favoreciam a comunicação com o outro mundo. Conforme Duby, Em 1205, o sínodo de Arrás autorizou a pintura de imagens para ensinar os ignorantes. Cem anos mais tarde, Bernardo de Claraval exortava os bispos a excitar por meio de imagens sensíveis a devoção carnal do povo [...] (DUBY, 1997, p.16).

Mais tarde, nos anos de 1600, o Papa Clemente VIII desejava que Roma fosse um modelo político e religioso para o mundo Ocidental. Segundo Janson, o papado patrocinava a arte barroca em longa escala, com objetivos de “[...] fazer de Roma a mais bela cidade do mundo cristão: para maior Glória de Deus e da Igreja”. (JANSON, 2001, p. 716). Também por esse motivo, a Contrarreforma irá investir significativamente nas ações catequéticas. Para disseminar os ensinamentos da Igreja Católica era preciso fazer conhecer as histórias bíblicas, o que para a maioria do povo não letrado se daria através das imagens. Nesse sentido, as imagens terão uma função importante tanto no medievo quanto nos inícios do mundo moderno. Para Paulo Knauss, elas são capazes [...] de atingir todas as camadas sociais ao ultrapassar as diversas fronteiras sociais pelo alcance do sentido humano da visão. [...] a imagem se identifica com uma variedade de grupos sociais que nem sempre se identificam com a palavra escrita (KNAUSS, 2006, p. 99).

As imagens, além de comunicarem sentidos, carregam valores simbólicos, políticos, ideológicos, religiosos, etc. Conforme Schmitt, “Isso quer dizer que participam plenamente do funcionamento e da reprodução das sociedades presentes e passadas”. (SCHMITT, 2007, p. 11). Sobre o cotidiano dos artistas da Idade Média, Ernst H. Gombrich salienta que foi a partir do século XIII que abandonaram os livros de modelos e esboços. Para entender o que isto pode ter significado para o período, é importante pensar no tipo de formação que os jovens artistas do medievo recebiam. Segundo Gombrich, o aprendiz ingressava no ateliê de um mestre e o ajudava, preparando tintas e preenchendo partes secundárias de uma pintura. Aprendia a copiar e reagrupar cenas de velhos livros, e a ajustá-las a diferentes contextos; finalmente, adquiria desenvoltura para poder até ilustrar uma cena para o qual não conhecia nenhum modelo (GOMBRICH, 2009, p. 196).

Sobre a arte desse período, Miranda salienta duas barreiras encontradas pelos artistas do medievo, uma delas [...] era proveniente do cristianismo, fixava a ideia de que o indivíduo não era o agente da história e a outra, dizia respeito à condição pouco elevada dos artistas devido à natureza mecânica ou servil do seu trabalho (MIRANDA, 2006, p. 2).

Nesse sentido, a pintura, escultura, música, poesia, arquitetura e eloquência, eram consideradas mecânicas, isso perdurou até o início do Renascimento, o que pesará sobre a condição social dos artistas, conforme Miranda. Para Marc Jimenez,

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Cristine Tedesco [...] a palavra arte, herdeira desde o século XI, de sua origem latina ars = atividade, habilidade, designa até o século XV, no Ocidente, apenas um conjunto de atividades ligadas à técnica, [...] essencialmente manuais (JIMENEZ, 2000, p. 32).

Segundo Duby, até o século XV, a sociedade confundiu artistas e artesãos, via neles o simples executante de uma encomenda, um sujeito que recebia o projeto de uma obra.

Conforme Germain Bazin (1989), isto começa a se modificar quando os artistas florentinos passaram a reivindicar o reconhecimento de suas obras. Além disso, os pintores

A autoridade eclesiástica repetia que não cabia aos artistas inventar imagens: a Igreja as construía e as transmitia; aos pintores competia apenas executar a ars [...] (DUBY, 1997, p. 17).

[...] estavam fascinados pela ideia de que a arte pudesse ser usada não só para contar a história sagrada de uma forma comovente, mas para refletir também um fragmento do mundo real (GOMBRICH, 2009, p. 247).

A formação e organização dos artistas urbanos e artesãos deve muito aos mosteiros, sua estrutura e ao aprendizado em suas oficinas. Durante o medievo os mestres podiam ser recomendados de um mosteiro para outro, com a consolidação dos espaços urbanos no século XV, os artistas, artesão e artífices, organizaram-se em corporações, como lembra Gombrich (2009). Para ser aceito numa corporação, o artista precisava alcançar os padrões determinados e quando aceito era autorizado a [...] instalar uma oficina, a empregar aprendizes e aceitar encomendas para retábulos, retratos, arcas, estandartes e brasões, ou qualquer outro trabalho (GOMBRICH, 2009, p. 248).

Em Florença, assim como em outras cidades da Europa, as corporações destinavam uma parte de suas verbas à construção de igrejas, de palácios para as guildas ou corporações e, segundo Gombrich (2009) estimularam muito a produção artística. Ao mesmo tempo zelavam pelos interesses de seus membros, dificultando a entrada de novos artistas. 42

Contudo, ao longo desse milênio, as coisas não pararam de se transformar na Europa emergente, como salienta o mesmo pesquisador. Ao afetarem as relações sociais e os diversos componentes da formação cultural, as transformações modificaram as condições da criação artística (DUBY, 1997, p. 17).

Para Johan Huizinga, Todas as tentativas de estabelecer uma divisão clara entre os períodos da Idade Média e da Renascença resultam num aparente recuo das fronteiras (HUIZINGA, 2009, p. 479).

O medievo trazia consigo a marca do Renascimento. Além disso, ao examinarmos a mentalidade renascentista notamos muito mais coisas “medievais” nela do que aparentemente a teoria permitiria, nas palavras de Huizinga. O mesmo autor afirma ainda que artistas como Sluter e Jan Van Eyck, e nós incluímos aí Roger Van der Weyden, podem ser incluídos na égide da Renascença, entretanto, “Eles possuem um sabor medieval” (HUIZINGA, 2009, p. 479), são medievais tanto na forma como no conteúdo. No conteúdo, pois sua arte não recusou nada do antigo, e não incorporou nada de novo no que diz respeito ao assunto, ideias e propósito. Na forma, justamente porque o seu realismo

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De Rogier Van der Weyden à Artemísia Lomi Gentileschi: representações iconográficas de Maria Madalena... minucioso e o seu desejo de representar as coisas o mais fisicamente possível na imagem constituem o pleno desenvolvimento do verdadeiro espírito medieval. E assim vemos esse espírito atuando no pensamento e na representação religiosa, nos pensamentos da vida cotidiana e em todos os outros lugares (HUIZINGA, 2009, p. 479).

Salientamos a importância de entender as variações estilísticas sem, no entanto, criar um simples rótulo. A concepção clássica da arte, fundada na imitação das harmonias da natureza é um dos elementos mais evidentes do período renascentista (ECO, 2007), porém, é também uma concepção presente no medievo. A elaboração das obras artísticas foi, durante o século XV, marcada de forma importante pelo conceito de Beleza – entendida como imitação da natureza a partir de regras estabelecidas pela ciência. O artista é, ao mesmo tempo, criador da novidade e imitador da natureza. Para Leonardo da Vinci “Il pittore è padrone di tutte le cose che possono cadere in pensiero all’uomo, perciocchè s’egli ha desiderio di vedere bellezze che lo innamorino, egli è signore di generarle, e se vuol vedere cose mostruose che spaventino, [...] ei n’è signore e creatore2”. (DA VINCI, 1989, p. 7).

O desenvolvimento das técnicas de perspectiva na Itália e seu aprimoramento em pintura implicaram: [...] invenção e imitação: a realidade é reproduzida com precisão, mas, ao mesmo tempo, obedecendo a um ponto de vista subjetivo do observador, que acrescenta a Beleza contemplada pelo sujeito à exatidão do objeto (ECO, 2010, p. 180).

Para o mesmo autor, ao longo do século XVI, durante a reabilitação da concepção da Beleza como imitação da natureza, já condenada por Platão, o conceito adquire um valor simbólico, contrapondo-se à Beleza como harmonia. A Beleza clássica se dissolve nas formas do Maneirismo e do Barroco e observamos “[...] outras formas de expressão da Beleza: o sonho, o estupor, a inquietude”. (ECO, 2010, p. 212). A perfeição do Renascimento é afetada pelo movimento dinâmico da cultura o qual atinge as artes, a religião, a sociedade. O desenvolvimento da ciência e os progressos do saber deslocam o homem do centro do universo para a periferia. Umberto Eco define o Maneirismo como [...] a época em que o artista, dominado pela inquietação e pela melancolia, não se volta mais para o belo como imitação, mas para o expressivo (ECO, 2007, p. 169).

Para Eco, a partir do século XVI, há uma reviravolta na forma de pensar a arte. O maneirista tende à subjetivação da visão: enquanto a perspectiva monocular dos renascentistas visava à reconstrução de uma cena como se fosse vista por um olho matematicamente objetivo, o artista maneirista dissolve a estrutura do espaço clássico nas visões saturadas e desprovidas de um centro. [...] Com maior propriedade, o gosto pelo extraordinário, pelo que pode despertar assombro e maravilha aprofundase no Barroco e neste ambiente cultural são explorados os mundos da violência, da morte, do horror, como acontece na obra de Shakespeare [...] Dessa maneira, Maneirismo e Barroco não temem recorrer àquilo que, para a estética clássica, era considerado irregular (ECO, 2007, p. 169).

“O pintor é senhor de todas as coisas que possam vir ao pensamento do homem, porque, se tem desejo de ver belezas que o apaixonem, ele é o senhor de gerá-las, e se quer ver coisas monstruosas que assustem, delas ele é senhor e criador”. Tradução de minha autoria

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O Barroco é a dramatização da vida e, segundo Eco (2010), uma busca por novas expressões da Beleza. Além disso, a estética do Barroco possui conforme Umberto Eco uma “forma aberta”. (ECO, 1971, p. 44). Para ele, a forma barroca em seu jogo de cheios e vazios, os ângulos nas inclinações mais diversas, a procura do movimento e da ilusão induzem o observador a deslocar-se continuamente para ver a obra sob aspectos sempre novos. A iconografia de Maria Madalena: De Rogier Van der Weyden à Artemísia Lomi Gentileschi Maria Madalena é citada no Evangelho de Lucas (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2002). No pequeno texto intitulado As mulheres servem Jesus, os doze apóstolos seguiam Jesus Cristo e com eles seguiam algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos maus e doenças. Entre elas há “Maria, chamada Madalena, da qual haviam sido expulsos sete demônios”. (Lc 8, 2). De acordo com Tommaso Madalena não é sobrenome, provinha de el-Mejdel, que era uma cidade a noroeste do lago da Galiléia, seis quilômetros ao norte de Tiberíades, lugar onde Madalena pode ter nascido (TOMMASO, 2006, p. 80).

Para a mesma autora, o que mais inquieta no texto bíblico alusivo à Madalena […] é que ela não aparece como filha, esposa ou irmã de nenhum homem. Essa independência feminina em uma sociedade dominada por homens tem intrigado muitos pesquisadores (TOMMASO, 2006, p. 81).

A pesquisadora Wilma S. de Tommaso afirma ainda que os sete demônios expulsos de Maria Madalena podem ser uma alusão 44

aos, também sete, pecados capitais: gula, luxúria, ira, orgulho, vaidade, preguiça e inveja. Além disso, “sete é o número da salvação e do que é divino”. (LURKER, 1993 apud TOMMASO, 2006, p. 82). Sendo assim, Madalena teria sido convertida religiosa e moralmente, significava uma salvação integral, não apenas uma conversão. A comum associação de Maria Madalena como uma mulher pecadora se deve ao relato bíblico que antecede o texto sobre a expulsão dos demônios realizada por Cristo. No Evangelho de Lucas (7, 36-50) é mencionado que uma pecadora anônima teria ungido os pés de Jesus com as próprias lágrimas e os secado com seus longos cabelos, na casa de Simão, o fariseu, e sido perdoada por Ele. Para Tommaso (2006), a proximidade entre as duas histórias bíblicas por ter favorecido a associação entre as duas mulheres, a pecadora anônima e Maria Madalena. Conforme o texto bíblico de São João (12, 1-11), seis dias antes da Páscoa Jesus foi para Betânia. Durante o jantar na casa de Lázaro, Maria – irmã de Marta e Lázaro – usou meio litro de perfume de nardo puro e muito caro na unção dos pés de Cristo, depois os secou com os próprios cabelos. Wilma Steagall de Tommasso salienta que foi a interpretação dos evangelhos de Lucas e João que transformou as três mulheres numa só: Maria Madalena. De acordo com Tommaso, a confusão de identidade das três mulheres [...] remonta ao século III, e foi no final do século VI que o Papa Gregório Magno (540604) pôs fim à questão ao declarar que Maria Madalena, Maria de Betânia e a pecadora anônima eram a mesma pessoa (TOMMASO, 2006, p. 83).

Ao analisarmos os relatos bíblicos, não encontramos evidências de uma suposta

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imoralidade de Maria Madalena. O fato de estar possuída por sete demônios não era considerado pecado, conforme Tommaso (2006). A autora salienta que, Ao se fazer uma leitura atentados fatos, não se chega à conclusão de que Maria Madalena tenha sido uma mulher adúltera. O que acontece é que, ao ser identificada com a pecadora anônima de Lucas e com Maria de Betânia, Madalena incorpora a mulher de cabelos longos e soltos que serviram para secar os pés de Jesus. Essa imagem evoca a feminilidade e também a sexualidade, que induz a uma associação com o pecado. (TOMMASO, 2006, p. 83).

Perguntamo-nos, agora, como teria se dado o processo que consolidou Maria Madalena na Igreja Católica. A este respeito, Georges Duby afirma que a santificação de Madalena delineou-se em meados do século XII, com a elaboração de um livro para os peregrinos de Santiago de Compostela, onde eram indicados os santuários existentes no percurso. Entre os santos milagreiros e protetores destacados no livro “[...] há duas mulheres, santa Fé e santa Maria Madalena. A primeira em Conques, a outra em Vézelay”. (DUBY, 1995, p. 32). Era também no santuário de Vézelay que repousava o corpo da santa Maria Madalena, segundo a publicação. Para Jacques Dalarun, foi preciso elaborar uma narrativa um tanto forçada para “[...] explicar a vinda do santo corpo do Oriente para a Borgonha, conciliando essa trasladação com o lendário desembarque de Marta, Maria e Lázaro na Provença”. (DALARUN, 1990, p. 48). Sobre os milagres de Maria Madalena Duby indica que, Entre outras graças, a santa devolve a visão aos cegos, a fala aos mudos, o movimento aos paralíticos, a calma aos energúmenos – milagres que o próprio Cristo havia realizado.

[...] Tudo está aí: as curas, o pecado, o amor, as lágrimas, a remissão. Elementos que explicam o estrondoso sucesso de uma peregrinação, então um das maiores do Ocidente. Que explicam também a presença insistente no imaginário coletivo de uma figura de mulher, a da amante de Deus, da perdoada, cuja fama é mantida em toda parte por uma ativa publicidade combinada aos relatos dos peregrinos (DUBY, 1995, p. 32).

Para Duby, Madalena representa o apóstolo dos apóstolos, pois foi a primeira testemunha da ressureição de Cristo. Nas palavras de Duby, Madalena significou ainda a construção de uma mulher intermediária. A morte e o pecado introduzidos no mundo por Eva; a entrada no céu reaberta por Maria, mãe de Deus; e no meio do caminho há Madalena, pecadora como todos os seres humanos, que se tornou uma figura emblemática. A figura de Madalena é engendrada pela atitude da pecadora na casa do fariseu, que não abre a boca, ajoelha-se. Conforme Duby, a postura de humilhação, de entrega de si, [...] tinha na época um lugar central nos ritos de passagem que manifestavam a conversão, a mutação de uma existência; a noiva ajoelhavase diante de seu esposo, diante do homem a quem doravante chamaria seu senhor (DUBY, 1995, p. 38).

Com esse gesto, Maria Madalena convidava os homens a se colocarem “[...] à disposição do Senhor para servi-lo, e de forma magnífica, como ela o fez”. (DUBY, 1995, p. 39). Num dos sermões de Geoffroi, abade do grande mosteiro de Vendôme, elaborados no século XII, Madalena foi antes “pecadora famosa, depois gloriosa pregadora”, como revelou a investigação de George Duby. (DUBY, 1995, p. 46). Porém, Madalena só foi plenamente redimida depois das penitências às quais se submeteu. “Geoffroi afirma que,

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após a Ascensão, ela se lançou com fúria sobre seu próprio corpo, castigando-o com jejuns, vigílias, preces ininterruptas”. (DUBY, 1995, p. 46).A imagem de Madalena foi utilizada para “[...] provar que a alma, mesmo infectada de luxúria, pode ser inteiramente purificada por uma penitência corporal”. (DUBY, 1995, p. 50). Conforme Dalarun, na segunda metade do século XII, com a consolidação do espaço do Purgatório como lugar do arrependimento, “Todo o pecador se deve resgatar da falta que o marca desde a concepção. Tem-se o sentimento de que as mulheres, sob os auspícios de Madalena, se devem resgatar duas vezes em vez de uma: de serem pecadoras e de serem mulheres”. (DALARUN, 1990, p. 53). Para Duby, é a partir do século XIII que a pintura e escultura estiveram mais empenhadas em criar imagens perturbadoras e ambíguas da figura de Maria Madalena. Dentre essa produção, selecionamos Madalena Lendo (1445), de Rogier de la Pasture , pintor nascido em Tournai (Bélgica) em 1399/1400. Segundo Sthepen Farthing (2011, p. 147), seu pai fabricava facas e acredita-se que o artista possa ter começado a vida como ourives. A partir de 1427 foi aprendiz do Mestre de Flémalle, superando-o. Em 1432 foi aceito como mestre na Guilda dos Pintores de São Lucas, em Tournai. Alguns anos depois, Em 1435 ele se mudou para Bruxelas, onde adotou a tradução holandesa para seu nome, Van der Weyden. Um ano mais tarde, assumiu o cargo vitalício de pintor oficial da cidade. Acredita-se que tenha feito uma peregrinação a Roma em 1450. Lá, conheceu artistas e mecenas italianos. Durante esse período na Itália, Rogier Van der Weyden pintou para famílias importantes, como os Medici de Florença. (FARTHING, 2011, p. 147).

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Segundo Maria C. Louro Berbara da mesma forma que Van Eyck, Van der Weyden conheceu, em vida, fama internacional, e ambos são seguramente os primeiros artistas nórdicos a tornarem-se celebridades comparáveis a seus counterparts italianos (BERBARA, 2008, p. 22).

Weyden foi um dos pintores mais profundos e influentes do século XV. Era internacionalmente famoso principalmente pelo naturalismo expressivo de suas obras. Ele criou uma variedade de tipos – para retratos e para assuntos religiosos – que foram repetidas em diferentes regiões da Europa até meados do século XVI, conforme Berbara. Entre as maiores obras de Roger Van der Weyden está a intitulada A Descida da Cruz, hoje em Madri. O artista pintou um dos momentos mais dramáticos da história cristã, o instante em que Cristo é retirado da Cruz. Enquanto a virgem Maria cai desfalecida e é segurada por Maria Madalena e João Evangelista o corpo de Jesus Cristo é mantido no ar por José de Arimatéia, Nicodemos e um assistente. O movimento do corpo de Maria acompanha o do corpo de Cristo no centro da imagem, de frente para o espectador. Para Gombrich (2009), o grande retábulo de Weyden “[...] não representa uma cena real. Ele colocou suas figuras numa espécie de palco com pouca profundidade, contra um fundo neutro”. (GOMBRICH, 2009, p. 276). É preciso lembrar que o quadro foi pintado para ser visto de longe, exibindo o tema sacro aos fiéis. Gombrich evidencia a serena compostura dos anciãos que forma um contraste com a expressão dramática dos protagonistas.

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Figura 1. A Descida da Cruz (1435) de Roger Van der Weyden (1397/1400-1464). 220 x 262 cm. Óleo sobre madeira. Museo del Prado, Madrid. Disponível em <http:// www.museodelprado.es/imagen/alta_resolucion/P02825.jpg> Acesso em 6 de agosto de 2012.

Na verdade, parecem todos atores num drama sacro medieval ou num tableau vivant agrupado ou organizado por um excelente encenador que tivesse estudado as grandes obras do passado medieval e quisesse imitá-las usando os seus próprios recursos de montagem cênica (GOMBRICH, 2009, p. 276).

Conforme Farthing, o retábulo foi encomendado pela Guilda dos Arqueiros de São Jorge, em Louvain, atual Bélgica. “Originalmente, ele foi exibido na capela da guilda, em Notre Dame Hors-les-murs. Em 1548, a obra estava nas mãos de Maria da Áustria, regente dos Países-Baixos, e, alguns anos mais tarde, foi dada para seu sobrinho, o rei Felipe II da Espanha”. (FARTHING, 2011, p. 147). Roger Van der Weyden traduziu as

principais ideias da arte gótica para o novo estilo realista, e Daí em diante, os artistas do norte procuraram, cada um à sua maneira, reconciliar as novas exigências impostas à arte e a sua antiga finalidade religiosa (GOMBRICH, 2009, p. 276).

Da produção de Weyden, destacamos também a obra Madalena Lendo (1445). A imagem é um fragmento cortado de um retábulo maior, representa Maria Madalena com São João Evangelista, à esquerda, possivelmente ajoelhado, de pés descalços e veste vermelha; São José atrás, segurando um rosário.

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Figura 2. Madalena lendo (1445) de Roger Van der Weyden (1397/1400-1464). 62 x 55 cm. Óleo sobre carvalho (retábulo). The National Gallery, London. Disponível em: < http://www.nationalgallery.org.uk/cid-classification/ classification/picture/rogier-van-der-weyden,-the-magdalen-reading/264249/*/moduleId/ZoomTool/x/169/ y/0/z/1> Acesso em 5 de julho de 2012.

O drapeado das vestes dos três personagens chama à atenção do olhar. Madalena, sentada sobre uma almofada com um livro devocional nas mãos. Ela está em posição de leitura. Ao seu lado, em primeiro plano, está o frasco que continha o unguento (substância aromática) com o qual ungiu os pés de Jesus Cristo. O vestido verde suntuoso de Madalena faz uma alusão à mesma personagem presente na Descida da Cruz de Roger Van der Weyden. A imagem revela um rico ambiente doméstico onde Maria Madalena é representada como uma mulher da nobreza. Depois de arrepender-se de seus pecados, ser absolvida por Cristo, Madalena

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é concebida pelo pintor como um modelo de vida contemplativa. De acordo com Lorne Campbell (2004), a obra foi adquirida pela Galeria Nacional de Londres (The National Gallery, London) entre 1845 e 1860, contudo, a profundidade de Madalena lendo, só foi revelada em 1956, quando se descobriu que o seu fundo uniforme escuro, aplicado provavelmente no século XIX, escondia o corpo de São José, parte de uma janela com uma paisagem, e a roupagem de São João Evangelista. A referência a um desenho do final do século XV de uma composição semelhante mostrando a Virgem e o Menino, cercados por santos é

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possivelmente o tema da obra de Van der Weyden da qual Madalena lendo foi cortada. Acreditando que o mundo é um livro escrito pela mão de Deus, o medievo crê que tudo tem um significado sobrenatural. As obras de Van der Weyden também são marcadas por essas concepções simbólicas. “É costume atribuir valores positivos e negativos também às cores [...] para o simbolismo medieval cada coisa pode ter dois significados opostos segundo o contexto em que é vista”. (ECO, 2010, p. 121). No século XIII, Hugo de Sain-Victor (De tribos Diebus) afirmou: [...] A cor verde que supera qualquer outra em Beleza, assim como rapta as almas daqueles que a olham; quando na nova primavera, os brotos se abrem a uma nova vida, e erigindo-se para o alto com suas folhas pontudas, quase empurrando a morte para baixo à imagem da futura ressureição, erguem-se todos juntos em direção à luz (Hugo de Sain-Victor, século XIII apud ECO, 2010, p. 125).

De acordo com Eco (2010, p. 125), Guilherme de Alvernia manifesta a mesma preferência pela cor verde, [...] sustentando-a com argumentos de conveniência psicológica, pois o verde estaria a meio caminho entre o verde que dilata o olho e o negro que o contrai.

Nas duas obras de Roger Van der Weyden, Maria Madalena é representada usando vestido verde. Acreditando que a escolha do pintor não tenha sido aleatória, a figura de Madalena é concebida de forma emblemática pelo seu criador. Quem era Madalena para Weyden? Maria de Betânia, Maria de Madalena e a prostituta desconhecida, as três presentes nos textos bíblicos, seriam 3

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a mesma mulher? Weyden idealiza uma Madalena santificada, figura jovem e pálida, seu olhar evita o espectador. Os detalhes da pintura envolvem a personagem, absorvida pela leitura silenciosa, símbolo da devoção. Madalena é apresentada num momento de reflexão e arrependimento. Se o medievo constrói a figura de Maria Madalena como o símbolo da mulher redimida, no barroco encontraremos outras perspectivas nas representações pictóricas da mesma personagem. Acreditamos que para entender a arte barroca é importante pontuar algumas questões sobre o contexto da Contrarreforma. Os artistas do Barroco, não diferente da maioria das pessoas comuns, vivenciaram os dramas daquele tempo. O extermínio de uma das famílias mais ilustres de Roma, os Cenci, foi um dos episódios mais dramáticos assistidos pelos homens e mulheres que cruzaram a Praça do Castelo Sant’Angelo naquele 11 de setembro do ano de 1599. Beatrice Cenci 3, os irmãos e a madrasta haviam assassinado a golpes de martelo o pai, Francesco Cenci, acusado de violência sexual e sodomia contra a filha Beatrice. Os irmãos, juntamente com Beatrice e a madrasta foram condenados pelo Papa Clemente VIII à decapitação em praça pública, sob acusação de parricídio. Alguns meses depois, em 16 de fevereiro de 1600 era condenado à fogueira o filósofo, astrônomo e matemático, Giordano Bruno 4. Roma era novamente palco de espetáculo para alguns e drama para outros. O frade dominicano que havia viajado por boa parte da Europa e defendia a tese do astrônomo alemão Johannes Kepler de que a Terra girava em torno do Sol, foi queimado vivo pela Inquisição Católica.

Para aprofundamentos sobre Beatrice Cenci, consultar: SANTUCCI, Francesca. Virgo virago: Donne fra mito e storia, letteratura ed arte, dall’Antichità a Beatrice Cenci. Catania: Akkuaria, 2008. Para maiores detalhes consultar: YATES, Frances. Giordano Bruno e a tradição hermética. São Paulo: CULTRIX, 1964.

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Estes episódios não passaram despercebidos pela produção de Michelangelo Merisi (1571-1610), o Caravaggio. O artista desenvolveu novas e diferentes formas de representação pictórica. Para Caravaggio não interessava a Roma do Renascimento e da perfeição, preferia os temas do cotidiano, a humanidade grotesca das tavernas, dos vendedores de frutas, dos ambulantes e prostitutas. Não lhe agradavam os modelos clássicos nem tinha o menor respeito pela “beleza ideal”. Queria desvencilhar-se de todas as convenções e repensar a arte. [...] Foi um dos grandes artistas, como Giotto e Dürer antes dele, que quis ver os eventos sagrados com os próprios olhos, como se estivessem acontecendo na casa do vizinho. E fez todo o possível para que as figuras dos textos antigos parecessem reais e tangíveis (GOMBRICH, 2009, p. 392-393).

Ao introduzir o tratamento da luz e da sombra nas imagens, desafiou as representações tradicionais católicas. Os modelos de Caravaggio serão prostitutas, mendigos e ciganos. Sua produção desafia os cânones da pintura, pois retira os santos do céu e das nuvens e os coloca num plano de fundo escuro com jogo de luzes nas figuras. Testemunhando as lutas de seu tempo, e se atrevendo a colocar o personagem central do afresco no chão (Conversão de São Paulo), ou representando a Virgem como uma mulher da plebe (Deposição de Cristo), Caravaggio foi acusado de heresia e imoralidade, pela poética sensível e humana de suas obras. As obras de Artemísia Lomi Gentileschi – nascida em julho de 1593 em Roma e falecida,

provavelmente, no ano de 1654 em Nápoles – serão marcadas por estas concepções sobre a pintura. Orazio Gentileschi – pintor da Toscana chegou a Roma no final da década de 1570 – possuía um estilo impregnado dos princípios maneiristas da sua região. Judith W. Mann 5 salienta que as figuras representadas em espaços pouco profundos, as poses artificiais e um desenho nem sempre preciso, são marcas da produção de Orazio. As pinturas de Caravaggio nas capelas Contarelli6 e Cerasi7 de Roma impressionaram profundamente Orazio e o induziram a repensar profundamente seu estilo. (MANN, 2011, p. 55). A produção de Caravaggio, com exploração profunda de luzes e sombras das quais emergem as formas, seus modelos não idealizados e sua atenção às tramas e aos detalhes de superfície, ofereceu a Orazio novas pistas para sua evolução artística. Foi por meio do pai que Artemísia Lomi Gentileschi (1593-1654) conheceu, compreendeu e adotou o severo naturalismo caravaggesco8. Segundo Tiziana Agnati (2001) é muito provável que Artemísia Lomi Gentileschi tenha conhecido Caravaggio pessoalmente, pois o pintor frequentava o atelier de Orazio Gentileschi. De acordo com Alfred Moir (2001), Orazio Gentileschi faz parte do grupo de caravaggistas de primeira geração e Artemísia do grupo da segunda geração de caravaggistas. Moir afirma ainda que, a partir de 1630, Artemísia Lomi Gentileschi contribuiu de forma importante e decisiva para a evolução do caravaggismo napolitano,

MANN, Judith W. Artemisia Gentileschi nella Roma di Orazio e dei caravaggeschi: 1608-1612, p. 51-61. In. CONTINI, Roberto; SOLINAS, Francesco. Artemisia Gentileschi. Storia di una passione. Catalogo della mostra (Milano, 22 settembre 2011-30 gennaio 2012). Milano: 24 ORE Cultura, 2011. 6 Na igreja de São Luis dos Franceses (Roma). 7 Na igreja de Santa Maria del Popolo (Roma). 8 Utilizamos ao longo do texto os termos: “caravaggesco”, “caravaggismo” e “caravaggistas”, pois não existe uma tradução literal para o português que possa definir o significado desses termos. 5

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além de ter sido responsável pela introdução do caravaggismo em Florença. Assim como as obras de Caravaggio desafiaram seu tempo pela originalidade, as obras de Artemísia recriaram as narrativas bíblicas e conferiram espaços diferentes para o feminino, atribuindo um sentido novo e igualmente original aos personagens. A originalidade é atribuída à produção pictórica de ambos, essencialmente porque nasceu de seus dramas particulares, de suas tragédias pessoais, de suas inquietações e do inconformismo com a realidade. O microuniverso da obra de Artemísia Lomi Gentileschi carrega uma linguagem estética e figurativa anticonformista. A própria adesão ao estilo de Caravaggio, já evidenciava o abandono das teorias clássicas da Beleza e o direcionamento colorido dos pincéis para criação de imagens inovadoras e dramáticas, com apelo significativo às emoções. Além disso, acreditamos como já afirmou Ulpiano B. T. de Meneses que: “[...] a imagem, também age, executa o papel de ator social, produz efeito”. (MENESES, 2005, p. 11). A Madalena (1618-1619) de Artemísia é, antes de tudo, um trabalho valioso do ponto de vista do colorido: um terço da tela é ocupado pela textura luxuosa do vestido, adornado com tons dourados e estilo sofisticado, o cabelo dourado, o peito iluminado. A cadeira é coberta de veludo vermelho de seda, trançado e adornado com o símbolo dourado esférico da família Medici. De acordo com Francesco Solinas o amarelo do vestido de Madalena a representa como cortesã e sua expressão facial é de sincera apreensão e expectativa diante do que

virá. Solinas destaca a dinâmica da imagem: a torção do tronco e da cabeça de Madalena, a desconfortável posição das pernas muito longas, os pés descalços da personagem e seus gestos eloquentes onde sua mão direita está posicionada sobre o peito, enquanto a esquerda rejeita o espelho e seu próprio reflexo nele. (SOLINAS, 2011, p. 156). Os detalhes, o cenário requintado e fisicalidade do corpo feminino, por um lado sugerem um desejo de agradar ao gosto da corte dos Medici, por outro lado a Madalena encanta o olhar do espectador para um instante dramático: decidir entre resistência ou submissão aos ensinamentos de Cristo. Para Agnati9 Artemísia livremente reinterpreta modelos iconográficos anteriores, com foco não na retidão moral de conversão, mas a incerteza meio agonizante que a precede. (AGNATI, 2001, p. 26). Quem foi Maria Madalena aos olhos da jovem pintora Artemísia Lomi Gentileschi? A artista não produz uma mulher imoral e pecadora em sua obra Madalena. A primeira testemunha da Ressureição de Jesus Cristo é representada num momento de meditação, paralisada pela dúvida. Na imagem, Madalena não nos parece um símbolo da vida contemplativa, como é descrita pela parábola bíblica nem nos remete ao símbolo de devoção que Madalena significou no medievo. Quando avaliamos as obras Allegoria dell’inclinazione 10 e Maddalena11 as duas produzidas por Artemísia entre 1615 e 1619, notaremos que os rostos de ambas são coloridos, com uma capacidade introspectiva e penetrante, que se traduz em mudanças surpreendentes de expressão:

Ver também: DAVOLI, Zeno. Il volto e la vita di Santa Maria Maddalena: nell’incisione europea. La Maddalena: Italo Innocenti Editore, 2010, p. 30-31. 10 Casa Buonarroti (Florença). 11 Galleria Palatina (Florença). 9

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Figura 3. Madalena (1618-1619) de Artemísia Lomi Gentileschi. 146 x 109 cm. Óleo sobre tela. Galleria Palatina (Palazzo Pitti), Florença. Disponível em: <http://www.wga.hu/index1.html> Acesso em 12 de agosto de 2012. Ver também SOLINAS, 2011, p. 157.

do êxtase da inclinação à tragédia de Maria Madalena. (AGNATI, 2001, p. 25). Segundo Francesco Solinas, a Madalena de Artemísia foi provavelmente elaborada para o grãoduque Cosme II, uma vez que pode tê-lo encomendado em honra de sua esposa Maria Madalena da Áustria – devota da santa que carregava seu nome. (SOLINAS, 2011, p. 156). Solinas indica que a cadeira forrada se seda vermelha, galonada e ornamentada com franjas, ornada com esferas mediceias é assinada pela artista com cinzelado

arabesco lomiano. A obra Madalena carrega a assinatura Artimisia Lomi, revelando que a jovem aderia a uma modalidade da “pintura reformada”, desenvolvida por seu tio, Aurelio Lomi. Os irmãos Aurélio, Baccio e Orazio Lomi Gentileschi, filhos de Giovan Battista Lomi12, atuaram desde cedo no mundo das artes pictóricas. Mas porque Artemísia teria aderido ao sobrenome Lomi se o pai, Orazio, optou por carregar apenas o sobrenome Gentileschi?

Encontramos nos estudos mais recentes variações do mesmo sobrenome “Gentileschi alias Lomi” e “Lomi de Gentileschis”. (CIARDI In. CONTINI; SOLINAS, 2011, p. 23).

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Acreditamos que a produção da jovem artista foi ofuscada, temporariamente, pelo fato que marcou sua vida pública e privada, o desvirginamento forçado por parte de Agostino Tassi em 1611 e os fatos que decorrem do processo crime Stupri et lenocinij Pro Cúria et Fisco13 onde Orazio Gentileschi denuncia Tassi pelo defloramento de sua filha e Cosmo Quorli pelo desaparecimento de uma tela, uma Judite. A jovem artista casou em outubro de 1612 na igreja Santo Spirito em Sassia (NICOLACI, 2011), localizada próximo a Basílica de São Pedro, a um ou dois quarteirões de distância do domicilio familiar dos Gentileschi. Um mês depois do final do processo, que ocorreu entre maio e outubro de 1612, Artemísia deixa Roma e se transfere para Florença, junto com o marido Pietro Antonio Stiattesi, cujo casamento foi arranjado por Orazio. A partida de Artemísia Gentileschi de Roma para Florença no final de 1612 também pode ter significado a saída do anonimato e a busca por tornar-se alguém diferente do pai. Quem sabe o ato de rejeitar o sobrenome do pai tenha sido uma tentativa de assumir uma identidade própria, onde não seria apenas “filha do Gentileschi”. Certamente, deixar sua cidade natal foi mais uma experiência dolorosa para a jovem artista, já que Roma também era uma das cidades mais importantes da Europa, principalmente para os artistas. Contudo, Agnati (2001, p. 8) declara que a ida de

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Artemísia para Florença foi significativa para sua vida profissional. A jovem artista se libertava da presença do pai, renegava seu sobrenome e adotava o do tio Aurelio Lomi, passando a assinar Artemísia Lomi. Em Florença o tio, Aurelio Lomi, apresentou-a a corte de Cosme II, onde foi recebida. A vida na corte se revelou uma experiência fundamental para o seu futuro: conheceu representantes da nobreza e estabeleceu relações com pessoas artisticamente mais preparadas. (AGNATI, 2001, p. 8) As inquietações de Artemísia – uma mulher artista dos anos de 1600 que viveu além da violência física de um desvirginamento forçado, perpetuado pelas falsas promessas de casamento, a exposição pública do processo crime, os exames ginecológicos, a tortura das sibilas, o matrimônio arranjado entre o pai e um homem endividado – são elementos presentes em toda sua obra. O que não poderia ser diferente em Madalena. Entendemos que a obra é um autorretrato dramático de uma mulher imponente e inquieta. Francesco Solinas destaca que: [...] lo specchio d’ebano istoriato col motto latino Optimam partem elegit (quae non auferetur ab ae in Aeternum) esortazione del cristo nel Vangelo di Luca 10,42”. “[...] o espelho de ébano historiado com a frase latina Elegeu a melhor parte (que nunca lhe será tirada), exortação de Cristo no Evangelho de Lucas 10, 42”. (SOLINAS, 2011, p. 156). Tradução Dr. Celso Bordignon.

“Estupro e libidinagem. Em favor da Cúria [Romana] e do Fisco [Tesouro Romano]”. MENZIO, Eva. (Org.). Lettere precedute da «Atti di un processo per stupro». Roma: Abscondita, 2004, p. 9. Tradução Dr. Celso Bordignon e Vicente Pasinatto. Os autos do processo crime foram publicados por Eva Menzio (2004) em Roma. Os questionamentos feitos pelos inquisidores estão publicados em língua latina e as respostas na língua italiana do século XVII. A tradução dos textos em língua italiana é desempenhada pelo Doutor (2000) em Arqueologia Paleo Cristã pelo Pontifício Instituto de Arqueologia Cristã (PIAC) de Roma, Celso Bordignon. Os textos em língua latina estão sendo traduzidos por Vicente Pasinatto. A tradução, ainda inédita em língua portuguesa, conta com o apoio do Museu dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul, localizado na cidade de Caxias do Sul. Foram traduzidos do latim para o italiano os nomes próprios, por exemplo: Tutia [Túzia]; Artemitia [Artemísia]; Horatio [Orazio]. Os nomes próprios, na sua maioria, permanecem em italiano. Os trabalhos de tradução da fonte estão em fase de finalização.

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A referência ao texto de Lucas (10, 38-42) onde Maria, irmã de Marta e Lázaro, ouvia as palavras de Jesus Cristo sentada aos seus pés, indica que a artista criou sua própria interpretação do texto bíblico. A Madalena de Artemísia é antes de tudo a representação de um corpo humanizado, se distancia da Madalena santificada, contemplativa e devota da obra de Roger Van der Weyden. As pesquisas mais recentes sobre a arte tem mostrado a relevância do tema de Madalena na renúncia aos bens terrenos da arte do período da Reforma. A obra de Artemísia coloca em destaque legendária vida de Madalena evidenciada pela centralidade ocupada pela figura na imagem. Além disso, para Francesco Solinas, Madalena é uma pintura clássica e naturalista, ao mesmo tempo. Uma síntese da Arte Internacional14 presente em Roma, onde a artista nasceu e permaneceu até o início da vida adulta, e sua identificação com o jogo de luzes e sombras da pintura caravaggesca. A misteriosa figura pintada por Artemísia é atingida por uma luz que vem do alto como na dramática Lucrezia15, pintada pela artista na mesma década. A menina romana renovaria profundamente a pintura da corte Medici. Considerações finais Os séculos XV e XVI testemunharam acontecimentos de longo alcance, como por exemplo, a queda de Constantinopla, as viagens ao Novo Mundo, à África e à Ásia, a conjuntura da Reforma e da Contrarreforma. No contexto da produção artística – durante boa parte do medievo a arte era desenvolvida dentro dos mosteiros – a estruturação

das corporações de ofício foi elemento catalisador do processo que consolidaria as Academias de Desenho. Assim, para pensar a arte e os artistas do século XVII é fundamental considerar as academias, estruturadas graças aos movimentos de valorização do trabalho artístico iniciados no medievo. Nas oficinas medievais de pintura, escultura, ourivesaria, entre outros, é possível encontrar a presenças de mulheres, trabalhando ao lado dos homens. Conforme Miranda (2006, p. 12), as mulheres poderiam trabalhar como mão-de-obra familiar ou em atividades não regulamentadas. Conforme Claudia Opitz, Uma das primeiras corporações que concedeu direitos iguais a homens e mulheres foi a dos peleiros de Basileia, no ano de 1226. Contanto que se tornassem membros da corporação, as mulheres podiam trabalhar, comprar e vender nas mesmas condições que os homens (OPITZ, 1990, p. 401).

A mesma autora salienta que como membros das corporações, as mulheres também estavam sujeitas ao controle e às obrigações tributárias. Porém, mesmo alcançando espaço como artífices e ampliação de suas atividades como artistas durante o século XIV, no final do medievo verificou-se um crescimento da hostilidade frente ao trabalho das mulheres. De acordo com Opitz, a economia urbana e familiar medieval tinha favorecido o alcance da independência profissional e social, mas isso se chocava “[...] com as barreiras impostas pela economia, pela política e pelas mentalidades”. (OPITZ, 1990, p.410). Segundo a mesma autora, em 1688 Adrian Beier publicou uma legislação artesanal

Internacional porque as tendências estilísticas e técnicas desenvolvidas na Europa também surgiram em centros geograficamente distantes do continente europeu. (FARTHING, 2011, p. 128). 15 Coleção privada. 14

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que frisava: “[...] nenhuma pessoa do sexo feminino pode exercer um ofício, mesmo que o compreenda tão bem como uma pessoa do sexo masculino [...]”. (OPITZ, 1990, p.406). Contrastando com este cenário, em 1616 Artemísia Lomi Gentileschi era aceita como a primeira mulher membro da Academia de Desenho de Florença, criada por Giorgio Vasari em 1563. A presença de algumas mulheres em lugares que lhes são oficialmente negados revela um intenso campo de tensão entre o feminino e o masculino nas sociedades humanas. Embora o gênero seja um conceito estruturado no tempo presente, é o resultado de uma reflexão antiga. Uma inquietação diante da naturalização das diferenças entre feminino e o masculino. Ao refletirmos sobre a iconografia de Maria Madalena na arte do medievo e inícios da modernidade através do olhar genderificado, acreditamos ter contribuído com a problematização proposta por Joan Scott (1990). As obras de arte analisadas carregam elementos subjetivos e inquietações de seus criadores, são releituras particulares dos textos bíblicos. Contudo, os artistas que produziram imagens pictóricas de Madalena não estão desconectados da cultura de seu tempo. Nesse sentido, engendradas pela sociedade e pela cultura, as concepções sobre o feminino e o masculino são questões que fazem parte do modo de pensar o mundo e também as obras de arte – seja por parte de quem as produz ou de quem as estuda. Referências Bibliográficas AGNATI, Tiziana. La fortuna di Artemisia. Art Dossier, Firenze, Giunti, n. 172, p. 5-50, novembre, 2001. BAZIN, Germain. A História da História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

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Domínios da Imagem, Londrina, ano VI, n. 11, p. 39-56, novembro 2012


DOI: 10.5433/2237-9126.2012ano6n11p57

Luis Bianchi e as Práticas do Italiano no Brasil: fotografia, profissão do imigrante

Francieli Lunelli Santos Graduada em Licenciatura em História, Especialização em História, Arte e Cultura e Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas, todos pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Atua na rede privada de Educação, ministrando disciplinas de História e Filosofia, no Ensino Fundamental II e Ensino Médio. Também leciona as disciplinas de Métodos e Técnicas de Pesquisa Histórica I, II e OTCC no Curso de Licenciatura em História, modalidade a distância, também pela UEPG, no Programa UAB. Leciona a disciplina “Cultura e Identidades” no Curso de Pós-Graduação História, Arte e Cultura, pela mesma instituição. Estudos em análise de imagens fotográficas, acervos de imagens, fotografias feitas em estúdio no século XX, representações sociais e papéis sociais no grupo familiar.

Resumo

Este artigo apresenta algumas características da prática fotográfica enquanto profissão adotada por uma família de imigrantes italianos. Liderada pelo patriarca Luis Bianchi, no início do século XX instalou um estúdio fotográfico, em Ponta Grossa-Pr. O ofício foi opção de outros imigrantes italianos em diversos locais do Brasil. As fontes utilizadas foram jornais, documentos da Prefeitura Municipal, além das próprias imagens fotográficas do Foto Bianchi, que atualmente compõem um acervo de Negativos deixados por três gerações dentro da mesma família. A análise desse aparato documental procurou demonstrar aspectos da história da família, bem como sua relação com a cidade que escolheram para morar e nela, a profissão transmitida por outras duas gerações que deram continuidade ao ofício do pai, Luis, entre 1913 a 2001. Palavras-chave: Luis Bianchi, fotografia, imigração italiana.

Abstract

This article presents some characteristics of photographic practice as a work adopted by a family of Italian immigrants. Led by patriarch Luis Bianchi at the beginning of the 20th century established a photographic studio in Ponta Grossa-Pr. The trade was option to others Italian immigrants in many parts of Brazil. The sources used were newspapers, documents from City Hall, and own images of Bianchi’s Photo, who currently make up a collection of negatives left by three generations in the same family. The analysis of this documentary apparatus sought to demonstrate aspects of family history as well their relationship with the city that they chose to live in, the profession transmitted by two other generations continued the trade of his father, Luis, between 1913 and 2001. Keywords: Luis Bianchi, photography, Italian immigration.

Recebido em: 20/09/2012

Aprovado em: 28/10/2012

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Francieli Lunelli Santos

Luis Bianchi e as Práticas do Italiano no Brasil: fotografia, profissão do imigrante1

O Fotógrafo Imigrante Um dos estabelecimentos fotográficos tido como referência durante o século XX em Ponta Grossa – Pr. foi o Foto Bianchi. Estúdio bastante requisitado por ampla clientela, durante mais de meio século ficou instalado na área central da cidade e permaneceu boa parte desse tempo no mesmo endereço. O estabelecimento se tornou conhecido da população citadina e ao longo do tempo adquiriu prestígio e a confiança de clientes provenientes até de outras localidades. A família Bianchi, que dirigia Foto, tornou-se sinônimo de propagadora da arte e técnica de fotografar, em ambientes externos, mas principalmente no espaço do estúdio, fazendo dessa prática sua principal fonte de renda. Entretanto, sua história com a fotografia começa bem antes disso. Apesar de ter nascido na Itália, em 1º de novembro de 1876, Luis Bianchi foi registrado em Buenos Aires, Argentina, alguns meses depois. Seus pais, Carlos e Carolina Bianchi viajaram para a América, em virtude

de conflitos familiares na terra natal. Há escassez de informações sobre a imigração dos Bianchi e sua fixação no continente americano. Entretanto, sabe-se que Luis teve os primeiros contatos com a fotografia ainda quando morava na Argentina, por intermédio de seu pai. Pouco tempo depois da acomodação da família, Carlos abriu uma gazeta em Buenos Aires e utilizou-se dos registros fotográficos, quando estes se tornaram possibilidade viável no meio jornalístico e ensinou o ofício ao filho, Luis (DROPPA, 2002). Já no Brasil, as fotografias juntamente às ilustrações reforçavam notícias ou propagandas2. Ao chegar ao Brasil, graças à sua intimidade com a fotografia, Luis foi contratado pela Brazil Railway Company para registrar os diversos estágios da implantação da ferrovia São Paulo-Rio Grande3, na região da cidade da Lapa. Fato considerado comum nas empresas envolvidas na construção das linhas férreas, por todo o país. Na Lapa, ele conheceu Maria Thommen, imigrante suíça, com quem constituiu família. Na primeira

Pesquisa realizada com apoio financeiro da Capes, concessão de bolsas para realização de parte do período de execução do Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas/UEPG. 2 Sobre o cenário jornalístico nesse período Bucholdz aponta que “a passagem do século XIX para o século XX assinalava a transição da pequena à grande imprensa nos principais centros urbanos brasileiros. A consolidação da imprensa era sinônimo da confirmação do desenvolvimento, da instrumentalização da democracia, do culto à liberdade de expressão. A imprensa passou a traduzir as novas idéias e hábitos gerados pelas transformações vivenciadas pela população, tornando-se o espaço privilegiado para a discussão dos problemas e rumos da sociedade. Reforçando essa condição, a imprensa do início do século XX era um dos principais canais de informação e de transmissão de valores. [...] Até a publicidade começava a ser repensada, com a contratação de poetas e escritores para a criação de slogans, testemunhais ou versos para promover produtos, numa postura mais profissional.” BUCHOLDZ, A. P. Diário dos Campos memórias de um jornal centenário. Ponta Grossa: UEPG, 2007. p. 23. 3 A ferrovia ligava São Paulo ao sul do país e sua construção estava sob responsabilidade da companhia inglesa Brazil Railway. Sobre isso ver: GONÇALVES, M. A. C.; PINTO, E. A. Ponta Grossa: Um século de vida (1823-1923). Ponta Grossa: Kugler, 1983. p. 110-121. 1

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década do século XX o casal Bianchi mudouse para Ponta Grossa-Pr. Tiveram quatro filhos: Rauly, Fleury, Leonardo e Raul, este último tendo morrido com pouco tempo de vida (DROPPA, 2002). Ainda durante as primeiras décadas do século XX, a fotografia se tornou opção profissional para muitos imigrantes no Brasil. Isso se afirma com base nos estudos de Moura (1983, p. 23), sobre a prática da fotografia em outros locais do país. O autor assegura que essa presença de fotógrafos estrangeiros, sobretudo na província de São Paulo, pode ser um indicador de forte concorrência profissional em seus países de origem e de um atraente campo de trabalho em novas terras (MOURA, 1983, p. 28).

Entretanto, o mesmo autor destaca ainda que poucos eram os que conseguiam se estabelecer em lugar fixo e sobreviver apenas com o ofício da fotografia. Tais profissionais precisavam de outra ocupação para complementar a renda, principalmente se estivessem instalados nas “grandes capitais”. As pessoas que se dedicavam a tirar retratos tinham, no final do século XIX, um grupo limitado de clientes assíduos; por isso, se explica a grande circulação desses profissionais em diversas regiões do país. Para Moura, inicialmente a prática de tirar retratos era vinculada apenas a alguns grupos sociais, principalmente às elites agrárias, aos políticos e aos religiosos. No entanto, não demorou muito para essa prática se difundir entre outras classes. Sobre o contexto paulista, na mesma obra de Moura, intitulada Retratos quase inocentes, outro autor, Carlos A. C. Lemos também ressalta essa disseminação

da fotografia em termos econômicos. Argumenta que houve uma paulatina massificação do hábito de se retratar, cuja disseminação obedeceu ao movimento de cima para baixo, do rico para o pobre. Essa popularização do retrato fotográfico dá margem a várias reflexões e constatações de amplo interesse a respeito da sociedade brasileira da segunda metade do século XIX, especialmente a paulista, enriquecida pelo café, e já compartilhando o progresso com os imigrantes, os responsáveis pela nova situação financeira. O que nos interessa aqui é precisamente a fotografia popularizada, a grande novidade que permitia a todos serem retratados. (LEMOS, 1983, p. 56)

A ampliação da procura pelos serviços dos fotógrafos ainda pode ser avaliada pelo fato de que nos anos iniciais do século XX o ato de retratar-se era um dos símbolos de reafirmação, de prestígio e distinção social. Assim pensada, a prática da fotografia, pode ser abordada a partir da perspectiva de que foi disseminada, inicialmente, entre grupos sociais pertencentes a elites econômicas e que processualmente foi apropriada por outras camadas sociais. Pode-se citar, como exemplo, as famílias de imigrantes citadinos, que ascendiam econômica e socialmente e que demonstravam sua melhora nas condições de vida por meio da retratação nas imagens 4. Para tanto, a opção feita por diversos fotógrafos foi utilizar um espaço interno como cenário, que demandava determinados recursos, próprios do ambiente de estúdio. Contudo, até que a prática se democratizasse, os fotógrafos precisavam contar com uma atividade de renda complementar. Foi o que ocorreu com Luis Bianchi, que mesmo já atuado como

Sobre isso ver: LEITE, op. cit.; MOURA, op. cit.; RIBEIRO, op. cit.

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fotógrafo, em 1909, já em Ponta Grossa abriu uma loja de artigos diversos, conhecida como Casa de Armarinhos e Modas Thómmen & Bianchi 5, junto a esposa. Sobre esse processo e outros similares ocorridos em outras partes do país, discorre também, Sandra S. M. Koutsoukos (2008), sobre alguns “fotógrafos itinerantes” no Brasil, que antes de abrir seu próprio estúdio, atuavam como ambulantes, visitando diversas cidades, antes de se fixar em alguma. Outros trabalhavam como aprendizes ou sócios de fotógrafos profissionais, até que tivessem condições de estabelecerem-se numa localidade, adquirir equipamento e montar seu próprio ateliê. O que representava, por vezes um alto custo e vinculação a uma mesma clientela, que nem sempre utilizaria os préstimos oferecidos pelo fotógrafo, visto que fotografar-se era uma atividade esporádica e relativamente cara. Para a autora, tais fotógrafos ambulantes c a u s ava m b a s t a n t e c u r i o s i d a d e n a s pessoas dos locais por onde passavam, além de representarem, para várias delas, a oportunidade única de terem seus retratos tirados – já que a maioria delas tinha menos posses e não costumava viajar para as cidades grandes, ou para a Europa, quando poderia se utilizar dos serviços de estúdios fotográficos. Muitos dos profissionais itinerantes ofereciam cursos rápidos aos interessados, alguns contratavam também auxiliares/aprendizes naturais dos locais por onde passavam. A rapidez do aprendizado inicial e o preço não muito alto do material básico necessário atraíam a muitos. Assim, ao partirem os fotógrafos itinerantes, muitas vezes novos amadores, futuros profissionais, surgiam nas vilas e cidades. (KOUTSOUKOS, 2008)

Pode-se perceber similaridades entre as afirmações feitas por Koutsoukos e a vida de Luis Bianchi, no processo que antecede a instalação do Foto Bianchi. Tempos passados, o fotógrafo chegou a Ponta Grossa com intuito de estabelecer-se. Como afirma Ana Maria Droppa, no jornal Diário dos Campos. “Hospedou-se em um hotel na Av. Fernandes Pinheiro, em frente à Estação da Estrada de Ferro SP-RG. Neste hotel alugou uma sala para colocar seus equipamentos fotográficos tornando-se um dos primeiros fotógrafos da cidade.” (DROPPA, 2002) Não muito tempo após sua chegada à cidade, Luis Bianchi foi um dos imigrantes que instalou na própria residência o estabelecimento comercial. Quatro anos após a inauguração do armarinho, em 1913, o casal solicitou à Prefeitura Municipal uma licença para a instalação de um Athelier Photographico 6 . O endereço escolhido certamente não foi aleatório, pois o ateliê abriu suas portas para a Rua XV de Novembro que, na época, já era um movimentado espaço da urbe. Assim, habitantes, pessoas de localidades próximas ou aqueles que estavam de passagem pela cidade tiveram sua imagem fixada pelas lentes destes profissionais, dentre as três gerações de Bianchi que se responsabilizaram pela administração do estúdio. Eram eles Luis, Rauly e Raul, respectivamente pai, filho e neto. Outra obra demonstra como se deu a disseminação da prática de tirar retratos no Brasil entre os imigrantes. Com relação à atividade fotográfica em São Paulo, Susana B. Ribeiro discorre em 1920-1930: Italianos no Brás, sobre o cotidiano desses

Dado extraído do Livro Nº 3 – Registro de Alvarás de Licença e Outros. Setembro 1908 a outubro de 1911. p. 16. Acervo: Casa da Memória Paraná, Ponta Grossa, Paraná. Dado extraído do Livro Nº 27 – Registro de despachos da Prefeitura Municipal 1902-1904 e 1911. p. 25. Acervo: Casa da Memória Paraná, Ponta Grossa, Paraná.

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imigrantes instalados no referido bairro. Destaca a autora que, naquele período, só no Brás existiam nove estúdios fotográficos em funcionamento. Além desses ateliês, fotógrafos ambulantes ainda circulavam pelas ruas mais populosas dessa comunidade italiana na cidade de São Paulo, oferecendo seus préstimos, se disponibilizando para registrar momentos da vida dos estrangeiros na América. As imagens registravam situações cotidianas, que de alguma maneira viriam traduzir aspectos desse universo: os laços familiares, os momentos de lazer, os hábitos religiosos, as tradições culinárias, determinadas situações de trabalho, aspectos da moradia e do comércio que caracterizavam a vida dos imigrantes vindos da Itália. (RIBEIRO, 1994, p. 14)

De acordo com Ribeiro, entre as características que marcaram a colônia italiana no Brasil, o que diferencia esse contexto de outros, com relação à imigração europeia, é o local de instalação dos grupos, bem como as atividades econômicas desenvolvidas a partir dessa fixação. Os italianos desenvolveram um modo bem peculiar de estabelecimento nestas terras. Em muitos casos, vieram para o Brasil trazidos pela oportunidade de obter um espaço para plantar. Foram a mãode-obra utilizada em substituição à força escrava. Para a autora, esses estrangeiros permaneceram pouco tempo no campo, sob a chefia dos fazendeiros de café. A maioria deles estabeleceu-se nas cidades de médio e grande porte, como no caso de São Paulo que representava aos imigrantes possibilidades de enriquecimento e independência7, propiciado por uma nova relação com a urbanidade.

Nas décadas iniciais do século XX, a urbanidade apresenta-se como uma nova forma de relação das pessoas com o espaço, a partir de novas práticas sociais propagadas pela Europa e difundidas para outros países. Tal ambiente era revelado através da arte, do controle de doenças, da eletricidade, do cinema, do transporte urbano, da arquitetura. Assim, os hábitos foram modificados mediante uma nova significação dada ao consumo dessas mercadorias modernas. No entanto, num mesmo período, convivem e contrastam as tensões entre o moderno e o conservador, entre o velho e o novo. Como bem aponta Nicolau Sevcenko (1992, p. 57), nas primeiras décadas do Novo Século, em São Paulo, nem tudo era só beleza e nem todos os problemas urbanos se resolveram apenas com a existência da ideia de “modernidade”. O clima de modernidade era atravessado pelos fatores de atraso: a devastadora gripe espanhola, as pragas nas lavouras de café, movimento nas fábricas. O que não deixou de criar na população um sentimento de excitação com o novo. Como frisa Sevcenko essa maré tormentosa de euforia de 1919 traria consigo muitas novidades imprevistas, ambiguidades, dilemas, impossibilidades vividas pelos mesmos sujeitos. Mas sobretudo viria a reduzir a visibilidade de um mundo transparente, de contornos definidos até então e que, daqui por diante, só parcialmente poderia ser entrevisto, borrado, diluído e impreciso, sob o rebuliço permanente das águas turvas. (SEVCENKO, 1992, p. 26)

Nada mais seria como antes. Não se sabia ao certo o que estaria por vir, mas era presente a sensação de mudanças. Para

A autora destaca que não foi interesse da pesquisa buscar apenas histórias em que o imigrante enriqueceu, mas também de outros que não tiveram tanto êxito, como os operários, por exemplo.

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Costa & Schwarcz (2000) havia uma busca incessante pela implantação do progresso, ao qual nada poderia atrapalhar ou atrasar. A modernidade era implantada através do domínio sobre a natureza, na chamada era da sciencia, na qual tudo era regido pela ordem da velocidade. Contudo, a configuração não extinguia muitos dos problemas existentes; pelo contrário, criava outros ainda na maior cidade do país. Face a esses acontecimentos, há que se considerar a chegada dos novos habitantes. Sobre esse contexto de imigração, Sevcenko contrapõe a visão idealizada da vinda desses novos moradores da América. Só o que o mito não podia fazer, era mudar a realidade. Porque, afinal, a Babel era de verdade. Ela agregava centenas de milhares de seres desenraizados, arrancados pela força ou pela aflição dos seus lares e regiões de origem, transportados como gado através dos mares, negociados por “agentes de imigração” com preço fixo por cabeça, conforme idade e sexo, origem e condições físicas, despejados em pontos infectos de endemias tropicais, sem instruções, sem conhecimento da língua, sem recursos, sem condições de retorno, reduzidos à mais drástica privação para que a penúria mesma lhes servisse de acicate ao trabalho e motivo de submissão. (SEVCENKO, 1992, p. 38-40)

Ainda através da pesquisa de Ribeiro, pode-se compreender as proporções alcançadas pelo projeto lançado para atração do imigrante europeu. Entre 1871 e 1930 mais de um milhão e trezentos mil italianos chegaram ao Brasil e logo eram encaminhados à “Central de Imigração para

organizar as viagens e a colocação desses trabalhadores nas fazendas do interior do estado” (RIBEIRO, 1994, p. 39). Milhares de imigrantes foram organizados em grupos para facilitar a viagem e o estabelecimento no Brasil. No entanto, muitos italianos também vieram por conta própria aventurar-se na América. Existe similaridade entre os escritos de Ribeiro e a família imigrante de Bianchi. Leandro discorre sobre o caso da família Bianchi. Assim o pai de Luis, Carlos Bianchi, natural de Bologna, resolvera emigrar por desentendimentos familiares. Não era um artesão em vias de tornar-se um proletário urbano. Nem tampouco um camponês que almejava tornar-se um pequeno proprietário de terra no Novo Mundo, como a maioria dos imigrantes europeus que se dirigiram para a América do Sul naquele tempo. (LEANDRO, 1996, p. 4-6)

Pai e filho, Carlos e Luis, desde o início de sua chegada no continente americano desenvolveram atividades em âmbito urbano e sempre ligadas à fotografia. Muitos desses italianos8 arriscaram-se em novas profissões nas cidades9. Dentre elas, algumas eram pouco conhecidas, como a atividade fotográfica. Sobre a origem desses fotógrafos, Ribeiro ainda destaca: É de chamar a atenção o fato desses fotógrafos serem, na sua grande maioria, de origem italiana. No entanto, poucas são as informações a respeito da história de vida desses ‘registradores’, e menos ainda se sabe acerca de sua produção como um todo; as fotografias que restaram desses precursores

Ribeiro apresenta na citada obra uma lista de imigrantes italianos que se dedicaram a trabalhar como fotógrafos. Ibid., p. 52. Anterior a essa prática, os imigrantes italianos trazidos para o Brasil ficaram no campo, para desenvolver atividades essencialmente agrícolas. Entretanto, em diversos casos a instalação desses imigrantes no espaço rural não ocorreu de maneira pacífica. As vantagens e atrativos, que foram divulgados na Itália, nem sempre correspondiam ao modo de vida levado em solo brasileiro. Muitos conflitos ocorreram entre fazendeiros e colonos, motivando os imigrantes a buscarem outras soluções, já que a volta era difícil. Ribeiro ressalta que “em função desses conflitos e da precária condição de vida nas fazendas de café, um considerável número de italianos, sobretudo meridionais, não tinha como anseio a permanência no campo. Suas metas eram as cidades, o trabalho nas indústrias ou o trabalho como artesãos. Ser proprietário de uma pequena oficina ou indústria familiar fazia parte do sonho dos imigrantes, e muitos lutaram por isso”. Ibid., p. 40

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Luis Bianchi e as Práticas do Italiano no Brasil: fotografia, profissão do imigrante foram aquelas que permaneceram guardadas nos acervos familiares. (RIBEIRO, 1994, p. 52-53)

Dentre os imigrantes, aqueles que não estavam nas fábricas procuravam desenvolver alguma atividade profissional autônoma. Em determinados casos, a opção feita era por atividades que pudessem ser realizadas na própria residência, como é o caso dos ateliês fotográficos. Estes eram geralmente instalados em cômodos da casa, preferencialmente de frente para a rua. Isso para obter certo distanciamento do restante da habitação; mas, ao mesmo tempo, trabalhar na própria residência aliava os fatores comodidade e economia. Essa opção foi feita também por Bianchi, em Ponta Grossa. Com a significativa quantidade de fotógrafos nessas comunidades estrangeiras, abrindo as portas de suas próprias residências para realizar tais serviços, percebe-se a relevância da prática de tirar retratos para os profissionais. Através de sua imagem gravada no papel, o imigrante estabelecia uma relação com o novo espaço, um vínculo era estabelecido. Todavia, também era uma forma de preservar seus laços com a terra natal, já que muitos retratos eram enviados aos parentes que ficaram na Itália. Conta ainda Ribeiro, que por meio desse elo estabelecido entre os que estavam no Brasil e os que ficaram no país de origem, os imigrantes utilizavam a fotografia para demonstrar o sucesso atingido na nova pátria, como maneira de reafirmar sua condição

social e financeira, transmitindo a mensagem de que “mudar deu certo”. Num tempo em que a comunicação era difícil, a fotografia possibilitou também uma nova forma de transmissão de mensagens entre esses imigrantes que pouco contato podiam manter com parentes e pessoas queridas, tanto com aqueles que permaneceram na Itália, quanto com os que partiram para tentar a vida no interior do Brasil. Com a difusão dos retratos e cartões-postais, os imigrantes transmitem, através desses meios, uma imagem que nem sempre corresponde à realidade por eles vivida. A fotografia, realizada em circunstâncias especiais, satisfaz o desejo de demonstrar a ascensão social, a concretização materializada do objetivo de ‘fazer a América’. (RIBEIRO, 1994, p. 53)

E não bastava comunicar que apenas um dos membros da família havia tido êxito na nova empreitada; o sucesso era do conjunto, do grupo familiar. Desse modo, percebe-se um aumento da quantidade de pessoas que passaram a utilizar a fotografia como principal fonte de renda, fossem itinerantes pelas cidades do país ou em seus estúdios, como no caso de Luis Bianchi. Entretanto a família Bianchi tinha uma característica que a diferenciava das outras. Mesmo exercendo o ofício, continuavam sendo a família Bianchi, também na presença da clientela do estúdio. Ou seja, ao assumirem outros papéis, como o de fotógrafos – ao estarem de fora do contexto familiar dos grupos retratados – não deixavam de ser uma família. E esse arranjo de papéis transparecia no ofício ao auxiliarem outros grupos ao compor a imagem de família.

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Fotografia 1. Família Luis Bianchi (s/d) (esq./dir.) Maria, os filhos Rauly, Fleury, Leonardo e o esposo Luis. Fonte: Jornal Diário dos Campos – Ponta Grossa-Pr.

A Cidade e o Ateliê Foto Bianchi Em certas regiões do Brasil, o início do século XX parecia acompanhar as mudanças econômicas e sociais ocorridas em países da Europa e nos Estados Unidos, gerando um clima de euforia e otimismo, de acordo com Costa & Schwarcz (2000, p. 27). Os centros urbanos da época viraram palco para as transformações que chegaram junto com a modernidade. Novos hábitos e gostos foram sendo incorporados. Mudanças que se refletiam em todos os âmbitos da sociedade e, principalmente, na família. Vale lembrar também, que Ponta Grossa, nesse momento, tinha como uma de suas atividades econômicas de maior destaque, se não a principal, a produção agropecuária. Era uma cidade rural, mas com traços marcadamente urbanos. Niltonci B. Chaves afirma que na década de 1920 o desenvolvimento urbano tomou força, designando-se como período “divisor de águas” (CHAVES, 2001, p. 14). Entretanto, alguns dos traços de modernidade que já 64

existiam na cidade desde a década de 1910. “A eletricidade, a telefonia, as ruas calçadas, os automóveis, os cinemas, as praças, as casas comerciais, as indústrias e, principalmente, a ferrovia compunham o conjunto dos elementos da ‘modernidade’ existente na cidade” (CHAVES, 2001, p. 65). A cidade que o jovem casal Bianchi escolheu já se abria às modificações urbanísticas, contando com os benefícios da modernidade. Em meados do século XX, “todo o centro urbano encontravase calçado com paralelepípedos, sendo o calçamento das ruas uma das preocupações da administração municipal” (SILVA, 1994, p. 6) – alguns carros, casas de comércio, algumas fábricas e ferrovia. A importância econômica de Ponta Grossa foi capaz de torná-la uma das cidades com maiores representação política no Estado entre 1920 e 1945. A maioria desses representantes era oriunda das elites locais. Originavam-se das tradicionais famílias da região, proprietários da maior parte das terras produtivas dos Campos Gerais, ou ligavam-se de algum modo aos grupos que controlavam o grande comércio e as grandes indústrias locais, sendo comum

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Luis Bianchi e as Práticas do Italiano no Brasil: fotografia, profissão do imigrante ainda o domínio de determinado ramo do comércio ou da indústria local pelos grandes proprietários (SILVA, 1994, p. 41).

Todo o processo que envolveu o desenvolvimento econômico em Ponta Grossa contribuiu para mudanças no comportamento social e cultural de seus habitantes. A cidade encontrava-se no caminho de centros culturais e artísticos, como Rio de Janeiro e Argentina e por ela passavam muitos artistas de teatro e cantores (HOLZMANN, 2004, p. 346349) que se apresentavam nos cines-teatro locais. Símbolos de modernização urbana, os cines-teatro abriam suas portas para apresentações cinematográficas, assim como, disponibilizavam seus palcos para encenações de peças teatrais e musicais10. No entanto, a cidade não se acomodava na pretendida harmonia urbana amparada nos ideais de modernização. A propalada “modernização” trazia, em seu bojo, a contrapartida. Esta pode ser localizada

em várias matérias do principal meio de comunicação local do período, o jornal Diário dos Campos. Vadios e mendigos eram constantemente apontados como empecilho para a cidade que se pretendia bela e pedia-se atenção do poder público para estes “males”. As prostitutas igualmente eram denunciadas pelo jornal. As famílias locais reclamavam de bordéis que eram palcos de algazarra e brigas altas horas da noite (MONASTIRSKY, 2001). Portanto, não eram apenas o progresso e o desenvolvimento os principais elementos constituidores da cidade, naquele período. Havia ainda, no início do século XX, uma grande quantidade de ruas de terra, em contraponto à existência de vias calçadas e estabelecimentos comerciais de tanta circulação nas áreas centrais de Ponta Grossa. A Fotografia 2 – Fachada da Empresa de Eletricidade Martins & Carvalho, produzida por Luis Bianchi em 1911 11, retrata alguns dos antagonismos do início do século: as cercas de madeira em contraste com o prédio novo de alvenaria.

Fotografia 2. Fachada da Empresa de Eletricidade Martins & Carvalho (1911). Fonte: Álbum Imagens do Cotidiano – Ponta Grossa-Pr. Em Ponta Grossa, o cine-teatro Renascença foi inaugurado em 1911, por Jacob Holzmann. Antes dele já existiam o Teatro Sant’Anna, Cine-teatro Recreio e o Éden. 11 Mesmo antes de abrir seu próprio estúdio, Bianchi já realizava trabalhos fotográficos na cidade. Alguns de seus trabalhos datam de 1911 e como dito anteriormente a fundação do estabelecimento ocorreu em 1913. Muitos fotógrafos, como era o caso de Bianchi, registraram a cidade e as modificações na paisagem urbana. Lugares destinados a novas construções eram cada vez mais fotografados sob encomenda da administração pública. Fotografias de espaços urbanos, feitas externamente ao estúdio também eram especialidade de Luis. Elas são facilmente identificáveis entre os negativos do Acervo e mesmo, imagens que traziam em seu conteúdo festividades e eventos da cidade, que poderiam ou não ser feitas sob encomenda. 10

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Além da rua sem calçamento, o que causava transtornos aos moradores em dias de chuva, em razão da lama que se formava no local. Sobre esse assunto, diversos artigos foram publicados nos periódicos locais da época manifestando o descontentamento com a situação e reivindicando mudanças. Reclamação Justa Reclamações justíssimas que se levantam contra os atoleiros existentes em frente das Estações da Paraná, e da São Paulo e Rio Grande. Carroças e veículos se enterram toda vez que teem necessidade de se aproximarem das Estações, é realmente uma vergonha. Os viajantes e nossos visitantes, notam o contraste entre o aspecto geral da cidade, encontramos num estado horrível a nossa entrada que se transformam em um mar de lama e atoleiros próprios de estradas longincuas, e tudo isso porque a Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, ainda não resolveu a gastar um pouco com o calçamento das frentes das referidas Estações. (Jornal O Progresso, n. 498, p. 01, 07 dez. 1911)

Mesmo com todos esses problemas na ocupação urbana e por se constituir como um ponto de passagem de viajantes, na primeira metade do século XX, a cidade permitia ao estúdio Foto Bianchi atrair clientela local, regional ou itinerante. Entre as práticas de lazer mais procuradas pela população local, segundo aquelas notícias (do Diário), estava a frequência aos cinemas. Nesse momento histórico Ponta Grossa contava com dois Cine-Teatros, ambos localizados na Rua XV de Novembro, a mais movimentada do centro da cidade. (CHAVES, 2001, p. 59)

Assim, o crescimento da cidade aumentou a demanda de trabalho no estúdio. Luis fora sempre auxiliado pela esposa Maria (LEANDRO, 1996). O ateliê, montado na

referida rua, nº 5, ficava em frente a uma tradicional casa comercial da cidade, a Casa Romano. Já na década de 1920, Ponta Grossa apresentava alguns elementos que conferiam a ela status de “cidade moderna”: a estação ferroviária, hospitais, cines-teatro, escolas e clubes sociais. Em seu livro, A terra do futuro, Nestor Victor, faz uma breve descrição sobre a cidade, no início do século XX, no capítulo intitulado, A nova Ponta Grossa. A gente em transito, que afflue para os numerosos hotéis existentes, concorre muito para o movimento da cidade. Apezar de ser proninciada a febre de construção, faltam casas para alugar, em conseqüência da affluencia de novos moradores, attrahidos pelas possibilidades que está oferecendo a cidade (VICTOR, 1913, p. 312).12

Dessa perspectiva decorre a interpretação de que a cidade já passava, na época, por um acelerado processo de urbanização, marcado também pelos valores socioeconômicos então vigentes. Mais capital circulando era sinônimo de mais clientes e compradores, gerando a necessidade de aumentar a oferta de serviços e produtos. Desse modo, ao retomar uma prática profissional que antecedia ao casamento, Luis Bianchi estabeleceu-se com seu estúdio no centro comercial e cultural de Ponta Grossa. No mês de fevereiro de 1940, Bianchi transferiu o ateliê-residência para a Rua Sete de Setembro, nº 92. A procura por retratos, nessa ocasião, aumentou em função da exigência de fotos nos documentos de identificação e das leis trabalhistas implantadas por Getúlio Vargas (DROPPA, 2002). Tal afirmativa é verificada pelo aumento de registros feitos nos cadernos do Acervo, a partir de meados da década de 1930.

Manteve-se na transcrição a ortografia original da época.

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Luis Bianchi e as Práticas do Italiano no Brasil: fotografia, profissão do imigrante

A prática da fotografia realizada na época pode ser entendida hoje não apenas como um meio de sobrevivência; mas também como um processo de criação que envolvia a expressão de sensações e sentimentos que culminavam na revelação. Ana Maria Droppa, o define como “exímio artesão de uma técnica considerada ainda rudimentar, Bianchi se destacava pela qualidade de seus trabalhos, uma arte dificílima, requerendo acima de tudo paciência e habilidade” (DROPPA, 2002). Este processo tão delicado e preciso abrangia a escolha de equipamentos modernos, a busca pela perfeição no momento da retratação, bem como em todos os procedimentos empregados para a revelação (NETTO, 2001). Droppa afirma que Luis “possuía somente duas máquinas fotográficas e um grande ampliador (raro) que copiou de uma revista do séc. XIX. Produzia seus próprios negativos, feito de vidro umedecido com solução de nitrato de prata”. (DROPPA, 2002) Nesses termos, sobressaiu-se notadamente a expressividade que o estabelecimento foi adquirindo nos anos posteriores. O ofício da fotografia consolidado pelo casal Bianchi foi assim herdado pelo filho mais velho, Rauly, que auxiliava os pais nas atividades do estúdio. Anos mais tarde, após o falecimento de Luis, ocorrido em 13 de abril de 1943, já casado, o filho assumiu o lugar do pai no ofício. Auxiliado por Celina, sua esposa, Rauly optou por dar continuidade profissão da fotografia. Fotografar foi tornando-se um elemento identificador da família Bianchi. Isto se concretizou quando, o filho de Rauly e neto de Luis, Raul Bianchi escolheu dar continuidade ao mesmo ofício. Porém, a opção pela atividade profissional da fotografia na família foi apenas até essa terceira geração, já que em 2002, o último

integrante das três gerações da família a gerenciar as atividades do estabelecimento faleceu e não deixou descendentes que optassem pela mesma profissão que seu avô e seu pai. Pouco antes de Raul falecer, devido ao declínio do movimento de clientes no estúdio e com dificuldades para manter os negativos acumulados em noventa anos, ele vendeu parte das produções para a Prefeitura Municipal de Ponta Grossa. (NETTO, 2001) Um dos motivos que levou Raul a concretizar a venda do acervo ocorreu durante um período em que ele esteve internado no hospital, quando o estúdio foi arrombado. No dia 26 de janeiro de 2001, policiais militares foram até ele e notificaram o arrombamento e a perda de inúmeros equipamentos do estúdio. Sobre esse acontecimento ele relatou ao jornal Diário dos Campos, em setembro de 2001 (NETTO, 2001), que ficou “sem os dedos para trabalhar”. Com problemas de saúde e sem os equipamentos que levou 30 anos para adquirir, ele tomou a decisão de fechar o estabelecimento. Em 30 de março de 2001 consolidou a venda da propriedade e parte do Acervo de Negativos. As imagens se encontravam alojadas em um dos cômodos do estúdio, sem nenhuma estrutura de preservação e acomodação necessárias e, por isso, sofrendo degradação com as condições de armazenamento até então. A venda dos negativos para o Município foi uma tentativa de conceder às imagens adequado acondicionamento e organização. Além da possível concretização do desejo de Raul, em disponibilizar as imagens registradas no decorrer das trajetórias profissionais de seus antecessores para o maior número possível de pessoas. E, desse modo, preservar parte da história da cidade, congelada nos negativos. Atualmente arquivado na Casa da Memória Paraná – Ponta Grossa, o Acervo

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encontra-se parcialmente catalogado e organizado por temáticas 13. Retratos de famílias compõem uma das classificações temáticas e representam grande parte do conjunto de imagens. Além dos negativos, os cadernos de registro também fazem parte do Acervo e estão separados por data, já digitalizados. Estes cadernos foram a maneira encontrada por Luis para armazenar as informações como data, preço, tamanho, enquadramento, descrição da imagem e tipo de foto, que acompanharam as três gerações de fotógrafos, além de uma numeração para cada negativo, o que possibilita, localizar um retrato (Fotografia 3). A sequência numérica foi obedecida durante vários anos, alterou-se na década de 1950, quando se iniciou uma nova contagem. Pensa-se que, Maria Bianchi, como esposa e também proprietária do estabelecimento ela interferia diretamente na maneira como se davam as atividades que envolviam a fotografia. Algumas das tarefas poderiam ser exercidas por ela, como o registro das informações nos cadernos. A descrição, da qual outros fotógrafos faziam uso no mesmo período é intitulada por pesquisadores como legenda comentário14. Esse registro revela haver intencionalidade desde o contato inicial com o fotografado. “A ‘legenda comentário’ implicava certa retórica de valores, nos quais ele [o fotógrafo] expressava seus julgamentos sobre o que fotografava [...]” (CORREA, 2005, p. 61), escrevendo de maneira a salientar informações acerca daqueles que eram

retratados. É possível ponderar, então, que a imagem é produzida a partir da experiência de vida do fotógrafo, contando com uma carga de valores e hábitos dos quais ficava impossível se distanciar. O que ficou impresso pelo registro nas cadernetas em que constam informações que definem dados, funções e identidades, sendo expressas pela categorização feita pelo fotógrafo, como por exemplo, “moço polonês”, “três crianças”, “moça da fábrica”, “dois caboclos”, “moça alemã”, “marinheiro”, “sorveteiro”, “militar índio”, “militar ruivo”, “criança morta”15.

Fotografia 3. Caderno de Registro. Fonte: Casa Da Memória Paraná – Ponta Grossa-Pr.

A classificação temática deu-se durante o processo de catalogação, depois que o Acervo foi adquirido e não durante o período de exercício do Foto Bianchi pelos proprietários/fotógrafos. 14 Em um dos capítulos na obra O fotográfico, o pesquisador Antônio R. de Oliveira Jr. discorre sobre a vida e o trabalho do fotógrafo alagoano Augusto Malta (1864-1957) no Rio de Janeiro e, destaca que este utilizava a legenda comentário. OLIVEIRA JR., A. R. de. O visível e o invisível: um fotógrafo e o Rio de Janeiro no início do século XX. In: SAMAIN, op. cit., 79. 15 Dados extraídos dos catálogos que contém as informações dos cadernos de registros. Acervo: Casa da Memória Paraná-Ponta Grossa, Paraná. 13

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Luis Bianchi e as Práticas do Italiano no Brasil: fotografia, profissão do imigrante

Para ampliar a divulgação dos serviços e consolidar a nova atividade Bianchi utilizou-se de um recurso muito conhecido na época, o jornal local. Durante vários anos é possível acompanhar a publicação de anúncios do Foto. Em outros locais, esse era um recurso recorrente dos fotógrafos, como destaca Lemos, “os fotógrafos profissionais passaram a fazer profusos anúncios nos jornais, alardeando os seus méritos e o grande valor de suas obras de arte” (LEMOS, 1983, p. 54). A descrição de serviços prestados – como demonstra a Fotografia 4, Anúncio de jornal do estúdio Foto Bianchi, publicado num periódico local – justifica porque a fotografia tornou-se, no século XX, a única possibilidade de renda para os fotógrafos e suas famílias.

Fotografia 4. Anúncio De Jornal Foto Bianchi. Fonte: Diário Dos Campos – Ponta Grossa-Pr.

O que implicava em usar “[...] todos os recursos possíveis na produção da imagem fotográfica visando atender às expectativas daqueles que solicitaram a fotografia” (CORREA, 2005, p. 55). Portanto, o apreço pela opinião e satisfação do cliente prevalecia, uma vez que, como anteriormente citada, a concorrência no mercado fotográfico local já existia (STANCIK, 2009). Se houve aumento na procura pelos serviços por conta dos anúncios em jornais16 ou mesmo pelos comentários feitos entre os habitantes da cidade, não se afirma aqui

com certeza, contudo, entende-se que, pela quantidade de negativos que compõem o Acervo, o Foto Bianchi atraía clientela local e externa. O que se destaca é que Luis utilizava o jornal Diário dos Campos como divulgador de seus préstimos. Constatou-se que durante o primeiro semestre de 1923, de 3 de janeiro até 27 de junho17, o anúncio dos serviços prestados pelo estúdio de Bianchi foi publicado diariamente, em espaços diversos do jornal, na maioria das vezes na primeira página. No estúdio havia um cenário pronto para servir à composição que logo estaria perpetuada no papel fotográfico. Situação essa que influenciou na difusão das imagens, o que ocorreu com relativa facilidade, pois ao se popularizar o custo do retrato de estúdio diminuiu, aumentando a demanda de serviços fotográficos do Foto Bianchi. Essa situação se verifica a partir da grande quantidade de imagens que com o passar do tempo incorporaram o Acervo de Negativos do Foto Bianchi, dado que se constata através da pesquisa nos cadernos de registro. Considerações Finais Nessa Ponta Grossa contraditória, composta por grupos sociais abastados pelos lucros comerciais, por profissões liberais, pelas fábricas e fazendas e outros grupos formados por imigrantes, operários, forasteiros, prostitutas, que a família Bianchi ampliava as atividades do estabelecimento fotográfico. Este gesto legou ao presente, fontes de representações da sociedade citadina, consolidadas através das representações realizadas em seus cenários arranjados. A

Destaca-se que mesmo com os anúncios nos jornais locais, não há como saber as proporções atingidas por esse recurso, com relação à popularidade do estúdio. 17 Nem todas as edições do jornal Diário dos Campos estão disponíveis para pesquisa na Casa da Memória Paraná no período abordado por este trabalho. Nos exemplares analisados não há anúncios de outros estabelecimentos fotográficos da cidade. 16

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cidade na qual o casal Bianchi instalou-se, teve seus filhos e adquiriu reconhecimento profissional, encontrava-se, no princípio do século XX, em período caracterizado por uma urbanização e modernização crescentes. Diante da instalação de ferrovias e de acentuado movimento imigratório e migratório, bem como a instalação de pequenas fábricas e casas comerciais. Em pouco tempo, apesar de não ser o único no ramo na localidade, o Foto Bianchi atraiu grande clientela em razão da adoção de técnicas fotográficas que se somavam à experiência da família com o processo fotográfico. Bianchi esforçou-se para tornar a fotografia uma manifestação artística, muito além de um simples serviço prestado. Percebese, portanto que a fotografia enquanto profissão foi uma opção ao imigrante italiano, que não se vinculava ao trabalho no espaço rural, como motivo atrativo da propaganda da época. O imigrante italiano não se restringiu à atividades agrícolas. O casal de imigrantes que fez de Ponta Grossa sua morada e constituiu família estabeleceu relações com a população que aqui residia, interferiu e sofreu interferências desse meio ao prestar seus serviços fotográficos à população. Com o passar do tempo, o Foto Bianchi fez parte do processo que alterou o cenário urbano da cidade. Referências CHAVES, N. B. A cidade civilizada: discursos e representações sociais no Jornal Diário dos Campos na década de 1930. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2001.

CORREA, C. M. de A. O olhar do fotógrafo e o estudo das subjetividades na produção da imagem. In: PELEGRINI, S. de C. A.; ZANIRATO, S. H. (Orgs.) Dimensões da imagem: interfaces teóricas e metodológicas. Maringá: Eduem, 2005. p. 61. COSTA, A. M. da; SCHWARCZ, L. M. 1890-1914: no tempo das certezas. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Virando séculos. DROPPA, A. M. O Fotógrafo Luis Bianchi. Diário dos Campos, Ponta Grossa, 17 fev. 2002. HOLZMANN, E. Cinco histórias convergentes. Ponta Grossa: UEPG, 2004. p. 346-349. KOUTSOUKOS, 2008) S. S. M. O aprendizado da técnica fotográfica por meio dos periódicos e manuais – segunda metade do século XIX*. Fênix, Uberlândia, v. 5, n. 3, jul./set. 2008. Disponível em: <http://www.revistafenix.pro.br/PDF16/ ARTIGO_03_SANDRA_SOFIA_MACHADO_ KOUTSOUKOS_FENIX_JUL_AGO_SET_2008. pdf> Acesso em 12 jan. 2009. LEANDRO, J. A. Luis Bianchi, Fotógrafo dos Campos Gerais. Jornal de História, Ponta Grossa, UEPG, v. 3, p. 4-6, 01 ago. 1996. MONASTIRSKY, L. B. A mitificação da ferrovia em Ponta Grossa. In: DITZEL, C. de H. M.; LOWEN, C. L. S. Espaço e cultura: Ponta Grossa e os Campos Gerais. Ponta Grossa: UEPG, 2001. p. 37-51. MOURA, C. E. M. de (Org.). Retratos quase inocentes. São Paulo: Nobel, 1983. NETTO, I. Bianchi e suas batalhas (Entrevista com Raul Bianchi). Diário dos Campos, Ponta Grossa, 09/10 set. 2001. n. 28.342. SEVCENKO, N. O Orfeu extático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. SILVA, E. A. (Coord.) O povo faz a História – Ponta Grossa 1920-1945. Relatório de Pesquisa UEPG, 1994. v. I. STANCIK, M. A. Fotógrafos pioneiros e a escrita da história. Diário dos Campos. Ponta Grossa, 18 fev. 2009. n. 30.657. VICTOR, N. A terra do futuro. Rio de Janeiro: Impressões do Paraná, 1913.

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DOI: 10.5433/2237-9126.2012ano6n11p71

Uma Atriz “Na Terra do Sangue e do Mel”: Angelina Jolie, a Guerra da Bósnia e um estudo sobre a memória, a identidade e o ativismo humanitário Maritsa Sá Freire Costa Mestranda no Programa de Pós Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural (UFPel). Graduada em Relações Internacionais (USP).

Resumo

A partir da análise do filme In the land of blood and honey, escrito e dirigido pela atriz norteamericana Angelina Jolie, este artigo procura traçar uma reflexão em torno de conceitos como perdão, memória e identidade. O trabalho se propõe também a questionar as motivações de Jolie em realizar esta obra, tendo em vista que há uma identificação entre a atriz e a comunidade que de fato vivenciou a Guerra da Bósnia (1992-1995), contexto para a história de amor retratada no filme. Verifica-se que tal relação se sustenta tanto por seu envolvimento com trabalho humanitário quanto por meio da responsabilidade, que em parte se assume, pelas ações ineficazes da comunidade internacional na época. Conclui-se que o filme seja tanto um dispositivo memorial quanto um tipo de instrumento de ativismo humanitário. Palavras-chave: Guerra da Bósnia; Angelina Jolie; Memória

Abstract

From the analysis of the motion picture In the land of blood and honey, written and directed by the north-american actress Angelina Jolie, this article seeks to reflect on concepts such as forgiveness, memory and identity. This paper also put a question about the Jolie’s motivations for making the movie, considering that there is a identification between the actress and the community which in actual fact lived the Bosnian War (1992-1995), context of the love story told by the film. We verify that relation sustains itself by her involvement with humanitarian activities and through the responsibility, that she partially took, for the ineffective actions of the international community at that time. It comes to the conclusion that the movie is a memorial device and a type of instrument of humanitarian activism. Keywords: Bosnian War; Angelina Jolie; Memory.

Recebido em: 05/08/2012

Aprovado em: 07/10/2012

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Contexto Histórico: Guerra da Bósnia A situação nos Bálcãs, que já estava tensa com o fim da Guerra Fria (19451991) e a consequente reorganização da ordem mundial, deteriorou-se quando em junho de 1991 a Croácia declarou sua independência da então República Federal Socialista da Iugoslávia. Como a minoria sérvia na Croácia, contrária à independência, recorreu a Milošević, considerado desde então um líder carismático do nacionalismo sérvio, teve início a Guerra da Croácia, que se estendeu até 1995.1 Dentro deste contexto, o governo da Bósnia-Herzegovina, por orientação de observadores internacionais, resolveu realizar um plebiscito em março de 1992 para definir sua situação política regional. Foi registrado que 99,4% dos votantes optaram pela independência desta república que, juntamente com a Sérvia e a Croácia, formavam a então Iugoslávia (as outras eram Eslovênia, Montenegro e Macedônia). No entanto, a maioria dos bósnio-sérvios boicotou a eleição por influência de membros sérvios da Presidência da Bósnia, a qual era composta por sete membros no total, representando os principais grupos religiosos da população bósnia, quais sejam, muçulmanos, sérvios ortodoxos e croatas católico-romanos.

Mesmo assim, a independência foi declarada em abril de 1992, dando início à Guerra da Bósnia. (POWER, 2004, p. 290 e 291). Inicialmente, os principais atores do cenário internacional se posicionaram em relação ao conflito por meio da aprovação, em 25 de setembro de 1991, da Resolução 713 do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), a qual decidiu que: [...] under Chapter VII of the Charter of the United States shall, for the purposes of establishing peace and stability in Yugoslavia, immediately implement a general and complete embargo on all deliveries of weapons and military equipment to Yugoslavia until the Council decides otherwise following consultation between the Secretary-General and the Government of Yugoslavia.2

Tal embargo prejudicou consideravelmente a defesa dos grupos contra o avanço sérvio, principalmente os muçulmanos que não contavam com suporte em outra parte da região, como era o caso dos croatas. Esta medida foi tão significativa para a história da guerra que na 63ª Reunião da Assembléia Geral da ONU em 23 de setembro de 2008, Haris Silajdžic, representante da Presidência da Bósnia e Herzegovina, pressionou as Nações Unidas a assumir a responsabilidade pelo genocídio ocorrido em Srebrenica em

Fonte: Disponível em <http://www.bbc.co.uk/portuguese/static/especial/milosevic_yugoslavia/dayton.htm> Acesso em 25 jul 2012. 2 Fonte: Disponível em <http://www.un.org/Docs/scres/1991/scres91.htm> Acesso em 25 jul 2012. Devido à ausência de versão oficial do documento em português, manteve-se o formato original. 1

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julho de 1995 que, segundo ele, foi resultado das omissões e dos atos (ineficazes) que a comunidade internacional adotou na época, notadamente o embargo de armas para a região. Ao se referir especificamente à proibição, Silajdžić afirmou que a atitude mais grave foi ter mantido o embargo de armas para a região mesmo após pedido de suspensão para que os bósnios muçulmanos pudessem se defender. O resultado foi a morte de 200.000 pessoas em todo o conflito, sendo 12.000 delas crianças3. Milošević, desconsiderando as resoluções do Conselho de Segurança da ONU e afirmando defender os sérvios da Bósnia, empreendeu ações de eliminação física e memorial de qualquer outra etnia que não a sérvia em território bósnio. Unidades sérvo-bósnias destruíram a maioria dos centros culturais e religiosos para apagar toda e qualquer lembrança da presença muçulmana ou croata no que eles chamariam ‘Republika Srpska’. [...] A prática sérvia de atacar civis e livrar seu território de quem não fosse sérvio foi eufemisticamente chamada de etničko čićenje, ou ‘limpeza étnica’, uma expressão que fazia lembrar o Säuberung, ou ‘limpeza’ de judeus pelos nazistas. [...] [No entanto] os matadores sérvios sabiam que sua violenta campanha de deportações e mortes não seria suficiente para assegurar a obtenção duradoura da pureza étnica. [...] Assim, forçaram pais a castrar seus filhos ou molestar suas filhas; humilharam e estupraram (e frequentemente engravidaram) mulheres jovens. Sua política era de deliberada destruição e degradação: destruição para que aquela raça declarada inimiga não tivesse lares para onde retornar; degradação para que os ex-habitantes não se reerguessem, e assim não mais ousassem pisar em território dominado pelos sérvios. (POWER, 2004, p. 291 e 293).

Com o fluxo considerável de refugiados e denúncias da situação de expurgo dos muçulmanos pela imprensa ocidental, o conflito da Bósnia captou a atenção do mundo. O Conselho de Segurança, por meio de um novo documento, a Resolução 743 de 21 de fevereiro de 1992, aprovou o estabelecimento de uma UNPROFOR (United Nations Protection Force) que primeiramente se instalou na Croácia e não obteve sucesso em controlar a situação na Bósnia. Com a impossibilidade de colocar em vigor as chamadas UNPAs (United Nations Protected Areas) na Bósnia, necessárias à manutenção de um cessar-fogo e à tentativa de desmilitarização de partes do território −e que foram implantadas com certo êxito na Croácia­−, as ações se resumiram à ajuda humanitária que, organizada pela própria UNPROFOR e pelo ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), limitou-se basicamente a lançamentos de comida e remédios via aérea por todo o território bósnio4. Medidas mais efetivas de intervenção no conflito só foram tomadas após o bombardeio de dois vilarejos a leste de Srebrenica, na fronteira com a Sérvia, em 13 de março de 1993. Tal fato ocorreu após a proibição de vôos militares no espaço aéreo da BósniaHerzegovina pela Resolução 781, aprovada pelo Conselho de Segurança em 9 de outubro de 1992. Como reação àquela agressão, o Conselho de Segurança da ONU aprovou em 31 de março de 1993 a Resolução 816, a qual autorizava qualquer país membro, agindo sozinho ou por meio de organização regional da qual fizesse parte, a tomar todas as medidas necessárias para garantir

Fonte: Disponível em <http://www.un.org/News/Press/docs/2008/ga10749.doc.htm> Acesso em 25 jul 2012. Fonte: Disponível em <http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/unprof_b.htm> Acesso em 25 jul 2012.

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o banimento de aviões militares no espaço aéreo da República da Bósnia-Herzegovina. Foi neste contexto que a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) iniciou suas operações na região, fato este decisivo para a definição dos rumos do conflito. Os efeitos da campanha mais ofensiva da OTAN, que culminou com bombardeios diretos sobre posições sérvias, obrigaram as partes envolvidas no conflito a negociar. As discussões acerca da situação ocorreram em Dayton, nos EUA, sendo que a formalização das condições do acordo que determinou o fim da Guerra da Bósnia ocorreram em dezembro de 1995, em Paris. Sob este acordo (General Framework Agreement for Peace in Bosnia and Herzegovina) a Bósnia ficou dividida em duas regiões autônomas, a Federação Bósnio-Herzegovina e a Republika Srpska, ou Sérvia 5. Atualmente a Sérvia e a Bósnia e Herzegovina são estados independentes.6 Angelina Jolie: Uma Atriz Engajada7 Filha do ator Jon Voight e da modelo Marcheline Bertrand, Angelina Jolie já nasceu em 1975 sob os holofotes, passando a frequentar o meio cinematográfico com tenra idade. Iniciou os estudos no Estúdio de Atores Lee Strasberg Theatre Institute aos 11 anos, e aos 16 passou também a se dedicar à carreira de modelo. Em meados dos anos 90, Jolie participou de algumas

produções cinematográficas menores. O reconhecimento só veio anos depois com a interpretação da personagem “Lisa” em “Garota, Interrompida” longa metragem de 1999, pelo qual levou o Oscar de melhor atriz coadjuvante e os igualmente conceituados prêmios SAG e o Globo de Ouro, todos no ano 2000. O sucesso, bem como a aparição na mídia, foi ampliado em 2001, quando decidiu interpretar a popular personagem dos videogames “Lara Croft” no blockbuster “Lara Croft: Tomb Raider” (2001). Foi durante as locações deste filme, realizadas no Camboja, que a atriz testemunhou as condições de vida precárias daquele país, devido principalmente à guerra civil entre grupos que disputavam o poder desde sua independência em 1953.8 A partir desta experiência, Jolie começou a se interessar pelas condições das populações em risco e a visitar campos de refugiados ao redor do mundo. Em decorrência do envolvimento com o trabalho humanitário, ela recebeu, em cerimônia de 27 de agosto de 2001, o título de “Embaixadora da Boa Vontade” do ACNUR, sob o qual passou a apoiar, principalmente em campanhas públicas, as atividades desenvolvidas e promovidas por esta agência da ONU9. Parte do resultado deste trabalho pode ser visto no livro Notes from my travels: Visits with Refugees in Africa, Cambodia, Pakistan and Ecuador, lançado em 2003 e cuja renda é revertida para o ACNUR10.

Fontes: Disponível em <http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/unprof_b.htm> e em <http://migre.me/a655Y>, ambos com acesso em 25 jul 2012. 6 Fonte: Disponível em <http://www.ibge.gov.br/paisesat/main.php> Acesso em 25 jul 2012. 7 As informações biográficas sobre a atriz tiveram como fonte o Internet Movie Database (IMDB), o qual está disponível em <http:// www.imdb.com/name/nm0001401/bio> Acesso em 25 jul 2012. Fontes adicionais serão indicadas. 8 Fonte: Disponível em <http://www.ibge.gov.br/paisesat/main.php> Acesso em 25 jul 2012. 9 Fonte: Disponível em <http://www.unhcr.org/3b85044b10.html> Acesso em 25 jul 2012. 10 Fonte: Disponível em <http://www.unhcr.org/3f9e8bb77.html> Acesso em 25 jul 2012. 5

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Uma Atriz “Na Terra do Sangue e do Mel”: angelina jolie, a guerra da bósnia e um estudo sobre...

Estas atividades influenciaram de forma considerável a vida pessoal da atriz. Num dos primeiros campos que eu visitei, havia 400.000 pessoas. Era um mar de miséria humana. Em Serra Leoa, eu vi dezenas de milhares com seus braços e pernas cortados [por rebeldes], crianças órfãs. Eu me senti completamente arrasada. Chorava constantemente. Eu me senti culpada por tudo o que eu tinha. Então percebi que eu não estava fazendo favor algum a estas pessoas chorando. Continuei revoltada com as injustiças até não poder pensar direito. Respirei fundo e foquei em como poderia ajudar. Descobri que era útil como pessoa. Quando encontrei pessoas sofrendo, isto colocou minha vida em perspectiva. Isto me colocou dentro de uma visão maior do mundo.11

Em 2002, Jolie adotou um refugiado cambojano, Maddox; e em 2005, foi a vez de uma menina refugiada etíope, Zahara. Em 2003, gravou o filme “Amor sem Fronteiras” (2003), cuja personagem principal, interpretada por ela, abandona uma vida de luxo para se dedicar à ajuda humanitária. Em 2007, ela adotou Pax, um menino vietnamita com, na época, 3 anos de idade. Em abril de 2012, em reconhecimento a seu envolvimento e sua dedicação, Angelina Jolie foi nomeada “Enviada Especial do Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados António Guterres”. Sob esta nova função, a atriz deverá representar tanto a agência ACNUR quanto o próprio Alto Comissário em nível diplomático, tendo a prerrogativa de, em reuniões internacionais, discutir e propor medidas que envolvam os deslocamentos globais.12

Foi a partir destas experiências que Angelina Jolie resolveu escrever e dirigir o filme In the land of blood and honey (2011). In The Land Of Blood And Honey (Itlobah)13 O filme ITLOBAH não foi o debute de Angelina Jolie na direção. Ela havia dirigido o documentário A place in time em 2007, um relato que acompanha 3 minutos na vida de pessoas em várias partes do mundo, gravados em janeiro de 2005 exatamente a partir do meio-dia do horário de Greenwich (Greenwich Mean Time – GMT). No entanto este filme não foi lançado comercialmente.14 Já In the land of blood and honey foi lançado oficial e comercialmente em dezembro de 2011 nos EUA por um importante estúdio, o GK Films, responsável por produções como “A invenção de Hugo Cabret” (2011) de Martin Scorsese e “Sombras da Noite” (2012) de Tim Burton. O filme concorreu ao Globo de Ouro de 2012 na categoria de melhor filme estrangeiro. Há duas versões do filme, uma em inglês e a outra em bósnio.15 Além de dirigir, Angelina Jolie escreveu o roteiro desta história que se passa em plena Guerra da Bósnia e acompanha o envolvimento amoroso entre uma bósniomuçulmana e um bósnio-sérvio. Ao longo deste drama de guerra os personagens principais interpretados pelos atores bósnios Zana Marjanović (Ajla) e Goran Kostić (Danijel) se encontram em diferentes situações, apesar de estarem em lados opostos do conflito. Ele é um soldado de uma tradicional família militar sérvia e ela uma pintora muçulmana.

Fonte: Disponível em <http://www.imdb.com/name/nm0001401/bio> Acesso em 25 jul 2012. Tradução nossa. Fonte: Disponível em <http://www.unhcr.org/pages/49c3646c56.html> Acesso em 25 jul 2012. 13 Será adotada, ao longo deste artigo, a denominação inglesa do filme, uma vez que não há previsão para o lançamento do longa metragem no Brasil. Com esta indefinição fica comprometida a tradução oficial em português. 14 Fonte: Disponível em <http://migre.me/a37LY> e <http://youtu.be/Y_Bec3KaiDY> Acesso em 25 jul 2012. 15 Fonte: Disponível em <http://migre.me/9ZrR1> e em <http://www.imdb.com/company/co0209646/>. Ambos com acesso em 25 jul 2012. 11

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Ao longo do filme o espectador é conduzido pelo desenrolar do romance entre Ajla e Danijel e principalmente pelo agravamento das hostilidades. Os recursos fílmicos utilizados para contextualizar a intensificação dos combates são notícias em inglês da mídia internacional acerca da situação, apresentadas geralmente em sincronia com cenas dos quartéis generais sérvios em atividade e da encenação de fatos reais que aconteceram ao longo da guerra, como as execuções em massa, os estupros e as violações de direito internacional humanitário (DIH) por parte dos sérvios, como na cena do bombardeio a um comboio da Cruz Vermelha16. Apesar de relatar fatos verídicos, ITLOBAH é uma obra de ficção e uma representação do passado. Ele expressa, portanto, determinado posicionamento e “motivações ideológicas de seus realizadores”. (NAPOLITANO, 2007, p. 65). Sendo assim, mesmo mostrando momentos de dúvida por parte dos sérvios quanto ao tratamento dispensado aos bósnios e croatas, o discurso do longa metragem é dirigido para a vitimização daqueles que foram acuados por forças incomparavelmente mais fortes e para a crítica ao posicionamento das autoridades internacionais, visto a demora da intervenção no conflito. Os sobreviventes são retratados como vítimas que mesmo sofrendo não culpam o inimigo que os massacra. Esta representação chega ao ápice na fala de um dos personagens

que divide um esconderijo com um grupo de fugitivos em Sarajevo: “Não consigo odiar todos os sérvios.”17 Por outro lado, a falta de ação da comunidade internacional a princípio e a tardia intervenção efetiva no conflito são claramente expostas e criticadas pela roteirista. Assim, enquanto no início do longa metragem a mensagem se restringe à apresentação do contexto histórico da guerra, no término, antes dos créditos finais, a mensagem é incisiva ao afirmar que “Por 3 anos e meio, a comunidade internacional falhou em intervir de maneira decisiva e cessar a guerra na Bósnia”18. O texto continua expondo os resultados da guerra (ou como pretende, os resultados da extemporânea intervenção internacional): o cerco em Sarajevo por forças sérvias foi o mais longo da época moderna e o mais mortífero em solo europeu desde a Segunda Guerra Mundial; metade dos bósnios foram obrigados a se refugiar, deixando, portanto, seus lares; “durante a guerra, mais de 50 mil mulheres bósnias foram estupradas, levando à primeira condenação por violência sexual, ela mesma considerada como crime contra a humanidade”19. Tais pontos serão trabalhados em seguida. A Memória e a Identidade Conforme afirma o jornalista Robert D. Kaplan, os Bálcãs é uma região de pura memória:

“(...) Tendo em vista os dois objetivos essenciais do DIH, quais sejam: proteger aqueles que não participam (por exemplo, os civis) ou que estão impossibilitados de participar (por exemplo, prisioneiros de guerra, enfermos, feridos, etc) de conflitos armados; e limitar o uso da violência ao que seja necessário para se atingir o resultado desejado com o conflito (...)” (BORGES, Leonardo Estrela. Coleção para entender: O direito internacional humanitário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p.18) 17 Fonte: JOLIE, Angelina; KING, Graham; HEADINGTON, Tim; MOORE, Tim (produtores); JOLIE, Angelina (diretora). In the land of blood and honey. [filme-vídeo]. EUA, 2011, 127 min. color. Tradução nossa. 18 Fonte: idem. Tradução e grifo nossos. 19 Fonte: idem. Tradução nossa. 16

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Uma Atriz “Na Terra do Sangue e do Mel”: angelina jolie, a guerra da bósnia e um estudo sobre... [...] onde ‘cada sensação e memória individual afeta o grande movimento de choque entre povos’, e onde o processo de História e memória foram ‘mantidos em espera’ pelo comunismo por 45 anos, ‘criando deste modo um tipo de efeito multiplicador para a violência’. (KAPLAN, 1993 apud MUELLER, 1997, p. 99, tradução nossa).

Esta tensão entre as diversas etnias presentes na Bósnia, e no próprio território da ex-Iugoslávia como um todo, aparece em diversos diálogos do filme. Os mais emblemáticos são uma conversa entre Danijel e seu pai Nebojsa, personagem vivido pelo ator croata Rade Šerbedžija, logo no início da guerra; e outro diálogo entre este personagem, Nebojsa, e Ajla. Ao ser questionado por Danijel sobre a necessidade do conflito e a intensidade dos ataques, o pai responde: “Você acha que nós estamos sendo muito severos? Eu entendo. Você é jovem. Você não se importa com o passado”20. O segundo momento ocorre enquanto Ajla está pintando o retrato de Sebojsa. Este conta a história de sua família e se concentra na figura de sua mãe, apontando como ela foi explorada pelas muçulmanas. Sebojsa finaliza o relato com o massacre perpetrado por turcos e Ustashas (ou ustaše: organização fascista croata21) que a matou juntamente com 4 de seus irmãos em plena Segunda Guerra Mundial. Estes dois momentos são importantes para mostrar a relação com o passado e é significativo que o personagem mais velho seja o portador da lembrança, ou melhor do rancor, que “justificou”, ou melhor, que sustentou, o presente (guerra). O rancor, mas especialmente o perdão, são temas recorrentes nos estudos da

memória. Hannah Arendt explanou sobre o perdão em sua obra “A condição humana” (2001). Devido à irreversibilidade da ação, o perdão é definido, segundo a autora, como uma faculdade que “serve para desfazer os atos do passado, cujos ‘pecados’ pendem como espada de Dâmocles sobre cada nova geração” (ARENDT, 2001, p. 249)22. Hannah Arendt (2001, p. 249) relaciona o ato de perdão com a libertação, pois do contrário, os homens ficariam eternamente presos a um só ato do passado, e “seríamos para sempre as vítimas de suas consequências.” Ela ainda caracteriza o perdão como o oposto da vingança e como alternativa da punição. Sobre esta última relação, ela ressalta que −e isto é um limite que a autora coloca ao perdão­− é impossível aos homens perdoar o que não pode punir e nem punir o que é imperdoável. E completa: “Realmente, é isto que caracteriza aquelas ofensas que, desde Kant, chamamos de ‘mal radical’, cuja natureza é tão pouco conhecida, mesmo por nós que sofremos uma de suas raras irrupções na esfera pública.” (ARENDT, 2001, p. 253). Certamente se referindo à experiência nazista, a pensadora conclui a questão afirmando que não se pode nem punir e nem perdoar tais atos porque eles extrapolam e destroem os “negócios humanos” e as “potencialidades do poder humano”. Neste sentido, uma vez que, segundo a autora, o perdão é da esfera dos negócios humanos, algo que destrói tal esfera, igualmente inviabilizaria o perdão. Já Paul Ricoeur (1996) afirma que, contrariamente ao que entende o senso comum, o passado não é estanque e determinado, mas a possibilidade de novas

Fonte: idem. Tradução nossa. Fonte: Disponível em <http://pcmlp.socleg.ox.ac.uk/archive/transition/issue03/bosnia.htm> Acesso em 25 jul 2012. 22 “A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo.” (ARENDT, 2001, p. 15) 20 21

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interpretações muda ou cria novos sentidos para o que já ocorreu. Tal alternativa por sua vez possibilita a libertação da dívida pretérita. Ricoeur (1996) ressalta que o que deve ser resolvido, no sentido de finalizado, é a dívida que o passado carrega, não a lembrança em si. E é neste trabalho relacionado à lembrança que atua o perdão, “porque o perdão dirigese não aos acontecimentos cujas marcas devem ser protegidas, mas à dívida cuja carga paralisa a memória e, por extensão, a capacidade de se projetar de forma criadora no porvir.” (RICOEUR, 1996, p. 7) O autor ainda ressalta que o perdão, mais do que representar o resultado da soma do trabalho de lembrança com o trabalho de luto, é o amálgama entre estes dois termos, pois o que ele adiciona a esta equação é a generosidade, uma vez que o perdão é uma prerrogativa não da vítima, mas do perpetrador. E visto que o perdão pode ser negado “é com o preço destas reservas que a grandeza do perdão se manifesta.” (RICOEUR, 1996, p. 7). Quanto aos termos trabalho de memória e trabalho de luto, Ricoeur (2007) faz uso dos ensaios de Freud acerca da questão. O trabalho de lembrança se relaciona ao que Freud analisou em pacientes que não expressavam o fato pretérito em forma de lembrança, mas sim em forma de repetição. E a repetição não é o mesmo que a recordação uma vez que, no tratamento dos traumas, é a repetição o obstáculo que representa as resistências do recalque, e o reconhecimento da lembrança representa a reconciliação entre o enfermo e o recalcado, o que se constitui no âmago da terapia psicanalítica. A proposta terapêutica é fazer com que o paciente consiga acessar esta lembrança, confrontá-la e aceitá-la como

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parte de si. O que interessa para Ricoeur é, e o paralelo é nítido, esta noção do trabalho no acesso à lembrança, difícil no caso de eventos traumáticos e ao qual se relaciona o perdão. Quanto ao outro termo, “[...] o trabalho de luto é coextensivo à empreitada psicanalítica em seu todo enquanto renúncia e resignação que culmina na reconciliação com a perda.” (RICOEUR, 2007, p. 85) O trabalho de memória entre os bósnios aparece, por exemplo, no Memorial e Cemitério Srebrenica-Potočari em Srebrenica, o qual foi erguido para lembrar o massacre da população bósnia de Srebrenica em julho de 1995, com um total de 8.000 vítimas. Em 11 de julho de 2012, 20 anos depois do início da guerra, foram enterrados os restos mortais de 520 vítimas do massacre, após as devidas identificações; sendo que 3.000 pessoas já tinham sido enterradas neste cemitério23. Uma vez que os familiares presentes nestes enterros são da geração posterior ou da mesma geração daqueles que faleceram, esta memória é recente e referências a ela integraram as filmagens de ITLOBAH. O ator Ermin Bravo, que interpretou o personagem Mehmet, usou no longa metragem as calças remendadas que o irmão mais velho tinha realmente utilizado no combate ao cerco de Sarajevo. E apesar de ser criança na época, ele fez questão de revelar em seu teste para o filme as impressões que tinha da guerra, como o fato de ter se esquecido do gosto de uma banana, numa referência à alimentação a que tinha acesso e que se restringia àquela lançada pela ajuda humanitária, a qual consistia em sua maioria de arroz, massa, leite em pó e um tipo de queijo líquido (GIOVANNI, 2011). Este exemplo torna

Fonte: Disponível em <http://memoryandjustice.org/site/srebrenica-potochari-memorial-and-cemetery/> e em <http://migre. me/9ZrTo> Ambos com acesso em 25 jul 2012.

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evidente o fato de que a gravação do filme potencializou o efeito memorial para aqueles atores que de alguma forma viveram a guerra. Ao recorrer à idéia de monumentalização desenvolvida por Marcos Napolitano (2007), que por sua vez se baseou nos conceitos de documento e monumento elaborados por Le Goff, pode-se considerar o filme ITLOBAH como um tipo de monumentalização, não do fato histórico como defende Napolitano para seus exemplos (filmes Amistad de 1997 e Danton de 1983), mas da própria memória do evento. Le Goff (2003, p. 538) afirma que “O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro –voluntária ou involuntariamente– determinada imagem de si próprias.” Desta forma, nenhum documento, segundo este autor, é primário e objetivo, ao contrário, ele foi produto da sociedade que o criou, sendo portanto definido como monumento. Para Marcos Napolitano (2007), o filme é uma representação do passado, e sendo assim, revela influências ideológicas de seus autores, bem como indica os valores em voga na época de sua confecção, associando-se portanto ao conceito de monumento definido por Le Goff. No caso do longa metragem dirigido por Angelina Jolie, apesar de poder ser classificado como filme histórico e de fato ser uma representação do passado, ele se propõe a ser uma monumentalização da memória da guerra. Trata-se das recordações que o acontecimento pretérito gerou e é esta imagem memorial que se pretende perpetuar. As principais mensagens do filme são “conhecer para não repetir” e “lembremse de que é isso o que acontece quando a comunidade internacional não intervém”. Conforme afirma Le Goff (2003, p. 526), “o monumento tem como características o ligarse ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntariamente, das sociedades históricas

(é um legado à memória coletiva) [...]”E qual melhor instrumento de perpetuação que um obra cinematográfica empreendida por uma atriz hollywoodiana conhecida mundialmente? E ainda auxiliada pela associação com o próprio contexto atual, no qual a comunidade internacional novamente se defronta com outro conflito bélico (na Síria) caracterizado por denúncias de massacres da população civil e mais uma vez assume um posicionamento reticente no que se refere à intervenção direta. As memórias das vítimas de tragédias remetem à análise que Jean-Michel Chaumont (2000) realiza a partir da vitimização dos sobreviventes da Shoah. Antes tido como personagem digno de glorificação, o herói cede seu lugar à vitima como personagem principal de narrativas. Desta maneira, os sobreviventes da máquina nazista foram valorizados e o prestígio adquirido por este grupo fez com que outros grupos, que igualmente sofreram perseguições, massacres e genocídios, quisessem seu quinhão de valorização e reconhecimento. Sendo assim, as vítimas da Guerra da Bósnia teriam também um tipo de direito a este tratamento. O autor ainda afirma que a razão desta valorização do estatuto da vítima se deve às pretensões de inserção social: “[...] os ‘desfiliados’ não têm, como os explorados, a possibilidade de estabelecer uma relação de força (como paralisar o aparelho produtivo por meio da greve, por exemplo) para negociar uma posição mais favorável dentro do sistema.” (CHAUMONT, 2000, p. 182, tradução nossa) É através do reconhecimento que a vítima se sente valorizada e com isso pode se inserir na sociedade. Tal concepção fica clara no discurso de lançamento do filme em Sarajevo em fevereiro de 2012, no qual Jolie se dirigiu à população (em sua maioria bósnio-muçulmanos), primeiro expressando o

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que parecia ser um agradecimento em bósnio e em seguida declarando que: “Eu sei que o filme trará muitas memórias dolorosas, eu sei que será difícil para vocês assistirem, mas eu espero que quando o fizerem, o filme não só lembre o que sofreram mas também lembre a vocês tudo a que sobreviveram”24. O filme como um dispositivo memorial leva à indagação sobre a aplicação do conceito de lugar de memória à obra. A origem desta idéia elaborada por Pierre Nora (1993) no início da década de 1980 estava na constatação de que determinadas características da época influenciavam a percepção da memória. A hegemonia do efêmero e a noção de esvaecimento das coisas pretéritas provocavam a necessidade de se arquivar tudo o que restava. (D’ÁLESSIO, 1992/1993) Foi neste contexto que surgiu a definição dos lugares de memória, os quais, segundo o autor, eram sobretudo restos de uma memória que era viva pois mantida pelo grupo; e que teriam que se caracterizar pela presença de materialidade, funcionalidade, significado e intencionalidade. Uma década depois, acompanhando a adoção e a utilização do termo por diversos autores, Nora o redefiniu e passou a afirmar ser lugar de memória “[...] toda unidade significativa, de ordem material ou ideal, da qual a vontade dos homens ou o trabalho do tempo fez um elemento simbólico do patrimônio da memória de uma comunidade qualquer.” (NORA, 1993 apud ENDERS, 1993, p. 133/134) No caso aqui analisado, se a flexibilidade na aplicação do conceito assim o permitir, o filme seria lugar de memória tanto por simbolizar a memória da guerra quanto por ainda satisfazer àquelas características mencionadas

anteriormente. Neste sentido, o filme possui materialidade e sua funcionalidade está ligada à fixação e perpetuação das memórias já discutidas anteriormente. Definido como uma representação, ele, por definição, carrega uma considerável carga simbólica. E a intencionalidade aparece nos discursos de Angelina Jolie e nas motivações para a realização do longa metragem: “As pessoas sentiram como se o mundo tivesse se esquecido deles. [...] O filme foi feito para lembrar às pessoas da guerra, mas apenas um pequeno grupo realmente entenderá.” (JOLIE, 2011, p. 19 e 22, tradução nossa) O compartilhamento de fatos, e principalmente de tragédias, reforçam o vínculo grupal, sobretudo porque a dor é dirigida a um perpetrador (indivíduo ou grupo) que é comum. Joël Candau (2011, p. 151) afirma que a identidade de um grupo se fundamenta “com frequência em um ‘lacrimatório’ ou na memória do sofrimento compartilhado” Ainda sobre a relação entre memória e identidade, o autor afirma que: [...] memória e identidade se entrecruzam indissociáveis, se reforçam mutuamente desde o momento de sua emergência até sua inevitável dissolução. Não há busca identitária sem memória e, inversamente, a busca memorial é sempre acompanhada de um sentimento de identidade, pelo menos individualmente. (CANDAU, 2011, p. 19).

Os acontecimentos trágicos vividos por um grupo igualmente suscitam um dever de memória, conforme afirma Candau (2011). E ainda segundo este autor, o dever de memória é um direito, pois deve envolver pelo menos a possibilidade de transmissão das experiências vividas para que a ameaça do esquecimento possa ser afastada, ainda que este exercício

Fonte: Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=RCXTfW0FgQI> Acesso em 25 jul 2012. Tradução nossa.

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de compreensão e comunicação seja difícil, pesado e vergonhoso, devido ao fardo que o passado representa. Para Ricoeur (2007), o dever de memória se une ao trabalho de memória e de luto, já mencionados, em direção ao futuro, como algo que deve ser lembrado no porvir, e esta projeção futura é sustentada pela idéia de justiça. É a justiça que, ao extrair das lembranças traumatizantes seu valor exemplar, transforma a memória em projeto; e é esse mesmo projeto de justiça que dá ao dever de memória a forma do futuro e do imperativo (RICOEUR, 2007, p. 101) .

A partir destas últimas considerações acerca do dever de memória, e do compartilhamento de memórias traumatizantes, pode-se refletir sobre a questão da violência sexual e da constituição de campos de estupro durante o conflito nos Bálcãs. A violência contra a mulher foi um ponto importante na Guerra da Bósnia, pois foi utilizada como arma de guerra e como instrumento de limpeza étnica. Nos campos de estupro, a gravidez de mulheres bósnio-muçulmanas por homens bósnio-sérvios foi utilizada para a purificação da raça (sérvia). Uma mesma mulher chegou a ser violentada “até 10 vezes por dia”. (GIOVANNI, 2011, p. 22, tradução nossa) Segundo a pesquisadora Andréa Peres (2011) a questão do estupro é ainda um tema tabu, sobre o qual as mulheres silenciam. Portanto, o dever de memória se mantém como uma questão sensível e ainda por se definir devido à recentidade da experiência. A fala de uma das personagens retratadas no filme, após sofrer o abuso, é significativa deste ponto: “Rezo para que nunca mais veja

meu marido de novo. [...] Ele não deve saber o que fizeram comigo. Eu quero morrer.”25 Conforme afirma Francisco Farias (2012), “[...] as situações traumáticas produzem fraturas no funcionamento psíquico e deixam restos indeléveis de difícil elaboração.” Ainda segundo este autor a memória se prestaria ao acesso aos eventos ocorridos em tempo pretérito, no entanto, este acesso não é “tão linear, visto que aspectos são acrescidos ou retirados dos fatos, durante o processo de recordação.” (FARIAS, 2012). Disto surge o conceito freudiano do “a posteriori” que se refere ao espaço entre o fato ocorrido ou a experiência original e a lembrança formada deste fato, ou seja, sua representação possível. Tanto no “a posteriori” como na lembrança pode-se reconhecer a produção de algo indizível refratário à significação que, no pensamento freudiano, recebe a denominação de trauma, como sendo algo de natureza inassimilável que produz o sintoma ou memória-lacuna. Por uma ou outra via, situamos uma espécie de resto que se introduz na memória de modo a caracterizá-la como a perpetuação de um enigma, formulado em termos de um corpo estranho incrustado no psiquismo (FREUD, 1893/1976a) e não como o regresso a um passado já vivido. Com isso, constatamos que há uma defasagem entre rememoração e construção de uma história. (FARIAS, 2008).

Por esta razão, os relatos das experiências pelos sujeitos que passaram por experiências traumáticas exigem um trabalho melindroso que pressupõe dispositivos capazes de lidar com essa memória do indizível porque vergonhosa e humilhante, no caso daquelas mulheres.

Fonte: JOLIE, Angelina; KING, Graham; HEADINGTON, Tim; MOORE, Tim (produtores); JOLIE, Angelina (diretora), op. cit. Tradução nossa.

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A discussão, no entanto, ficaria incompleta caso não fosse examinada de forma mais criteriosa a relação entre a atriz Angelina Jolie e aquela comunidade. Sendo Jolie norte-americana, torna-se premente a indagação acerca dos motivos que a fizeram escrever e dirigir esta história. O primeiro fator que constitui parte da resposta é o seu trabalho humanitário, o qual a aproximou dos acontecimentos da região que ainda sofre com os efeitos da guerra.26 O envolvimento da atriz com questões relativas aos direitos humanos é indiscutível, sendo o recente cargo que recebeu no ACNUR reflexo disso. Por outro lado, o fato de pertencer à mesma geração daquela que viveu efetivamente a guerra facilita a identificação com o grupo e o compartilhamento de memórias. Segundo Jolie, “[Enquanto] Eu estava dirigindo de volta para casa saindo das minhas aulas em Los Angeles, ela [Vanessa Glodjo, atriz que interpreta a personagem Lejla] estava fugindo dos ataques de francoatiradores para voltar às aulas”27. Po d e - s e i g u a l m e n t e re c o r re r a o que Joël Candau (2011) expõe sobre a responsabilidade com relação ao passado. Segundo o autor, este tipo de obrigação deve-se ao receio de perda daquela memória pela qual o indivíduo se sente responsável. Ele afirma que, “na maior parte do tempo, trata-se de pura ilusão, pois, pelo menos em relação ao passado que não podemos mais habitar, não somos responsáveis por nada, exceto pelo sentimento de nossa

responsabilidade.” (CANDAU, 2011, p. 203) Este compromisso parece ter sido assumido por Angelina Jolie e é perceptível em diversas cenas do ITLOBAH. Numa das mais emblemáticas, ouve-se o locutor das notícias transmitidas ao longo do filme, recurso já exposto neste trabalho, citando literalmente a frase do então Secretário de Estado norte-americano (James Baker) que se tornou famosa: We don’t have a dog in this fight. (Não temos interesse neste conflito).28 Candau (2011) afirma que aquela ilusão deveria ser abandonada para que memórias traumáticas pudessem ser encaradas de forma menos dolorosa. Mas neste caso, e aqui igualmente conta-se com uma flexibilização do conceito, a responsabilidade permitiu e constituiu a identificação com outros. Criticar a posição dos EUA significa também assumir que ele errou em não ter intervindo a tempo e desta forma evitado que o conflito gerasse a série de catástrofes que produziu. E sendo ela cidadã deste país, o vínculo identitário fica estabelecido para sustentar a responsabilidade mencionada. Decerto que assim como Angelina Jolie é produto de sua cultura e de suas experiências, o filme é produto do presente. A confiança excessiva na comunidade internacional, como se a intervenção fosse a solução definitiva para os problemas da região, revela inclusive uma certa ingenuidade da atriz29. A cena final, na qual o personagem Danijel, confessando ser criminoso de guerra, entrega-se aos soldados da ONU é emblemática para mostrar o

58.515 refugiados deixaram a Bósnia e Herzegovina no ano de 2011, segundo dados do ACNUR. Fonte: Disponível em <http:// www.unhcr.org/pages/4fd9a0676.html> Acesso em 25 jul 2012. 27 Fonte: Disponível em <http://migre.me/a3Cft> Acesso em 25 jul 2012. Tradução nossa. 28 Fonte: JOLIE, Angelina; KING, Graham; HEADINGTON, Tim; MOORE, Tim (produtores); JOLIE, Angelina (diretora), op. cit. Tradução nossa. 29 O jogo de interesses entre os principais países do cenário internacional na época, agravado pelo processo de colapso da URSS, caracteriza o contexto extremamente complexo da situação política da Iugoslávia na década de 1990, sendo a questão da intervenção igualmente delicada. Para maiores informações, consultar o texto The International Community’s Response to the Yugoslav Crisis: 1989-1995 de Matjaž Klemencic. KLEMENCIC, Matjaž. The International Community’s Response to the Yugoslav Crisis: 19891995. In: EES NOON DISCUSSION, Washington, 2006. Meeting Report 320. Disponível em <http://migre.me/a51SM> Acesso em 27 jul 2012. 26

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desejo por remissão que é recorrente na cultura norte-americana. Tal momento do longa metragem igualmente representa uma alegoria da crença de Jolie na instituição para a qual “trabalha”, a ONU, e por corolário a crença na efetividade da defesa dos direitos humanos que esta instituição promove e nos mecanismos de punição de violações destes direitos, representados principalmente por órgãos a ela coligados como o Tribunal Penal Internacional. No entanto, estas considerações não invalidam a análise realizada. Ao contrário, a questão da identificação entre Jolie e aquele grupo é real e pode ser em parte entendida pelo que Michel Pollak (1992) chama de memória “por tabela”, segundo a qual é possível uma identificação com determinado passado por uma pessoa que não tenha compartilhado, nem no espaço nem no tempo, o evento do grupo que gerou aquela memória, mas a socialização política ou histórica faz com que haja a “projeção” da mesma. Neste sentido, o contato com as recordações pode gerar um certo grau de envolvimento entre o indivíduo que está tomando conhecimento daquelas memórias e o grupo que a gerou. Tal vínculo é sugerido, por exemplo, na seguinte declaração de Angelina Jolie: Eu queria saber se aquela enxurrada de emoções que eu tinha colocado na página eram mesmo um roteiro, um filme, e não apenas uma ilusão minha [...] Eu não faria este filme de nenhum outro modo a não ser na região onde a história se passa, e com atores locais.30

Ademais, faz-se necessário reconhecer a multiplicidade de identidades que estão à disposição do indivíduo na pós-modernidade,

de forma a adaptá-lo aos diversos matizes sociais, ou aos diferentes grupos com os quais ele possa entrar em contato. (Stuart Hall, 2003) Portanto, a ciência daquelas recordações, auxiliada em parte pela comparação com as próprias memórias, vividas em outro lugar decerto, mas na mesma época, tudo isso, pode-se dizer, influenciou Angelina Jolie. Cita-se parte de uma entrevista em que a atriz relata a experiência de gravação do longa metragem e que vem ao encontro do que foi dito até o momento: Eu quero passar 2 anos, eu quero aprender sobre uma nova técnica, e mais importante, quero aprender sobre uma História e um país e um povo, e eu sei que se focar nisto, em poucos anos estarei melhor. Terei crescido como pessoa e terei aprendido alguma coisa sobre a vida. E fazendo isso, espero que eu possa retornar com algo que faça bem para todas aquelas pessoas que confiaram em mim e que se aproximaram e que de certo modo compartilharam e colocaram suas próprias histórias em risco.31

Outra questão que engendra reflexão é o posicionamento de Angelina Jolie no contexto internacional, não apenas como celebridade hollywoodiana, mas também como figura pública engajada em causas globais, no caso, a defesa dos direitos humanos. É sabido que nas últimas décadas, devido à emergência de preocupações especialmente com o clima e com a defesa do meio ambiente, novos atores passaram a ocupar a cena internacional, além dos já tradicionais Estados Nacionais. Este novo ator é a chamada sociedade civil, que tem cada vez mais influenciado decisões na esfera internacional. “Em outras palavras, a sociedade civil, conforme minha definição, é o processo por meio do qual indivíduos

Fonte: Disponível em <http://migre.me/a6Xk9> Acesso em 25 jul 2012. Fonte: Disponível em <http://migre.me/a7PHG> Acesso em 25 jul 2012. Tradução nossa.

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Maritsa Sá Freire Costa

negociam, argumentam, discutem contra ou concordando uns com os outros e com os centros de autoridade política e econômica.” (KALDOR, 2003, p. 585, tradução nossa) Apesar de não ameaçarem a prerrogativa dos Estados, a sociedade civil global detém uma influência que deve ser considerada, principalmente ao fazer uso dos recursos midiáticos e das redes sociais que estão à disposição de um número cada vez maior de pessoas ao redor do mundo atualmente. Angelina Jolie é uma ativista da causa humanitária e devido à fama que possui, tal trabalho de fato adquire uma visibilidade considerável. Ela se posiciona com relação à questão e este filme é certamente resultado deste posicionamento, que pode participar de um debate maior sobre, por exemplo, a origem das tensões que existem entre grupos étnicos diferentes que ocupam um mesmo território, que por sua vez pode se valer de questões relativas à memória para auxiliar as negociações. No entanto, o interessante deste ativismo é que ele não tem nas atividades do presente, como os movimentos ligados à defesa do meio ambiente por exemplo, a base para o discurso intimidador para o futuro. Ao contrário, o discurso deste ativismo tem no passado suas lições e suas ameaças para o porvir, afinal faz-se necessário “conhecer para não repetir”.

e por fazer parte da mesma geração das pessoas que possuem a experiência do conflito, quanto por ter assumido parte da responsabilidade por seu país ter intervindo tardiamente na região. A espetacularização em torno de sua figura levou visibilidade à máxima do “lembrar para não repetir”, fazendo dela uma importante personagem da sociedade civil global da atualidade. Ademais, o discurso e a intencionalidade do longa metragem monumentalizam a memória do evento. O fato dos atores envolvidos nas filmagens terem participado de alguma forma do conflito potencializa o discurso memorial objetivado pelo ITLOBAH. Porém o trabalho de memória e o dever de memória, especialmente na questão do estupro, bem como o perdão são questões em aberto para aquela comunidade, uma vez que a guerra ainda faz parte de um passado muito recente. O filme pode ser entendido como instrumento de um ativismo humanitário que não reconhece o presente como uma ameaça para o amanhã, como o das causas ambientais, mas sim uma propaganda que utiliza o passado como ameaça dirigida ao futuro. Afinal, segundo Ricoeur é a idéia de justiça, baseada nos fatos traumáticos, que projeta o dever de memória, e com ela a lição do “conhecer para não repetir”, em direção ao porvir.

Conclusão

Referências Bibliográficas

Este artigo teve como mote a análise do filme In the land of blood and honey, escrito, dirigido e produzido pela atriz Angelina Jolie. Apesar de não pertencer à comunidade que de fato viveu a Guerra da Bósnia (1992 a 1995), a identificação da atriz com o tema se fundamenta tanto pelo trabalho humanitário a que se dedica

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DOI: 10.5433/2237-9126.2012ano6n11p87

Analisando Imagens do Corpo Masculino na Revista Junior

Muriel Emídio Pessoa do Amaral Jornalista, Mestrando em Comunicação Midiática pela Universidade Estadual Paulista (Unesp/ Campus Bauru), pesquisando a representação do corpo nos discursos imagéticos midiáticos.

Resumo

Esse artigo pretende analisar as representações do corpo masculino na revista Junior, veículo direcionado ao público gay. Pelo arcabouço teórico sobre a representação do corpo midiático e a metodologia recente desenvolvida por Javier Marzal Felici (2011) serão percebidos como são articulados os signos para a construção imagética do corpo masculino nesse veículo homoerótico. A metodologia proposta vai ao encontro das referências teóricas desse trabalho, pois é considerado o contexto sócio-cultural da fotografia, além dos estudos dos signos que compõe a imagem. Dessa forma, o artigo pretende verificar como as noções subjetivas de desejo estão decodificadas de forma iconográfica nas representações veiculadas em publicações homoeróticas. Palavras-chave: corpo masculino; homoerotismo; fotografia; representação

Abstract

This article aims to analyze the representations of the male body in Junior magazine, vehicle targeted to the gay public. Through the theoretical plan about the representation of the mediatic body and the recent methodology developed by Javier Marzal Felici (2011) will be perceived how the signs for the construction of the male body imagery in that homoerotic vehicle are articulated. The proposed methodology meets the theoretical references of this work, because is considered the socio-cultural context of the photography, in addition to studies of signs that compose the image. Thus, this paper aims to verify how the subjective notions of the desire are decoded in iconographic form in the representations disseminated in homoerotic publications Keywords: male body, homoerotic, photografy, representation

Recebido em: 10/09/2012

Aprovado em: 05/10/2012

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Muriel Emídio Pessoa do Amaral

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Pensando o corpo O corpo se tornou um objeto de estudos de várias áreas do conhecimento, não se limitando apenas aos estudos das ciências biológicas, mas também sendo foco de interesse das ciências humanas. Por ser o elo entre as condições biológicas e as referências culturais dos indivíduos, o corpo traz marcas da fisiologia humana e também da cultura e da sociedade em que está inserido e, provavelmente por essa condição, que o corpo desperta atenção entre os estudos científicos; uma entidade instável que trafega em várias áreas e permanece em constante mutação orgânica e cultural. Ao ser interpretado não apenas nas condições biologizantes, o corpo se torna representação da cultura em que está inserido, trazendo marcas e signos estampados pelas interferências culturais: cores, formas, piercings, tatuagem, diferentes silhuetas, roupas e uma série de outros ornamentos e estéticas. Além dos movimentos culturais, o corpo também é interpretado levando em consideração a subjetividade de cada indivíduo para o entendimento e reconhecimento do próprio corpo em contato com a sociedade em que está inserido. Na atualidade, o corpo tem sido interpretado como sendo uma representação valor na sociedade (Goldenberg, 2002) na intenção de ser modificado tanto pelas tecnologias de intervenção corpórea como as cirurgias plásticas e exercícios físicos, um alto custo pelo investimento em nome da cultura vigente do narcisismo (Lash, 1983) que 88

pretende oferecer sinais de saúde, beleza e desejo. Os discursos midiáticos se apropriam dessas representações para consolidar o próprio discurso, interpretando o corpo como um bem de consumo simbólico, no sentido de promover a projeção dos receptores desses conteúdos nas imagens veiculadas na mídia. As capas de revistas veiculam corpos esguios, malhados, sem “defeitos”, longes das celulites, rugas ou marcas de expressão, signos que são reflexos da idade e também do desleixo. Na atualidade, as evidências do tempo e o acúmulo de gordura são condições que rejeitadas nas representações midiáticas e também nos desejos da sociedade contemporânea porque trazem consigo proximidade com a morte, não apenas da condição biológica, mas também do desejo por outros corpos. O corpo que não está dialogando com as propostas de midiática de saúde, bem-estar e beleza, pode estar fora dos circuitos do desejo. O discurso midiático apresenta a característica marcante de apresentar certa restrição quando o assunto é a representação do corpo, veiculando massivamente imagens do corpo como um bem simbólico para a contemplação do desejo e do consumo. Qualquer forma de representação alheia às formas conhecidas pelo discurso midiático causa estranheza (Baccega, 1998). No discurso imagético, existe essa mesma semelhança, ainda mais quando se trata do corpo, que se torna um instrumento decodificador de linguagens subjetivas que

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enuncia e agrega valores socioculturais (Garcia, 2005). Assim, o corpo midiático absorve e é consumido pelos seus receptores pois está ligado diretamente às condições sociais e culturais, rompendo os paradigmas biológicos, que se apresenta como um “imagem, texto não-verbal que representa um ideal” (camargo; Hoff, 2002, p.26-27). Nos veículos de comunicação homoeróticos, objeto de estudo desse trabalho, essa persistência de representação se estabelece das mesmas condições. Em sua maioria, o corpo masculino é representado com considerável tônus muscular, ausente de pelos, cabelos impecáveis e a pele sem as marcas do tempo como as rugas e linhas de expressão. O corpo é liso, conotando jovialidade, apresentando signos de remetem à virilidade e masculinidade. Mesmo havendo outras formas de representação do corpo em outras estéticas, a representação do belo e viril se torna um discurso majoritário, abafando as outras formas de representação do corpo masculino. A valorização do belo e do viril pelas representações midiáticas são reflexos da cultura urbana e contemporânea de interpretar o corpo, que perpassa as noções de consumo e as interferências de tecnologia para qualificar e posicionar o corpo. A p ro p o s t a d e s s e t ra b a l h o é d e refletir, através da análise de fotografia, as representações dos corpos masculinos em um veículo homoerótico frente aos conceitos da cultura contemporânea do consumo. Para isso, foi escolhida a revista Junior, da editora Mix Brasil, que começou a circular em todo território nacional a partir de 2007 e ainda permanece em circulação. Para o corpus foram selecionadas três capas aleatórias do ano de 2010, quando a revista passou a ter circulação mensal, sem a circulação de alguma edição especial que pudesse substituir alguma edição mensal. A revista Junior é voltada ao público gay, não apresenta conteúdo pornográfico e

tem como linha editorial apresentar matérias sobre cultura, comportamento, moda, “baladas” de são de interesse ao público gay. A revista se articula para propor o consumo desses bens ao público, como apresenta o primeiro editorial da revista Você sabe há quanto tempo acompanhamos a efervescência do mercado editorial gay no exterior? Anos e ano, morrendo de vontade de fazer uma revista bacana por aqui. Ela seria assumida sem ser militante, sensual sem ser erótica, cheia de homens lindos, com informação para fazer pensar e entreter. [...] Mesmo sem saber exatamente quantos somos e onde estamos, acabamos evidenciando nossa existência pelo vigor do nosso mercado [...]. Outras áreas como o turismo e moda já descobriram que não vivem sem nós. Outros estão começando a entender isso agora (Revista Junior, nº1, out. 2007).

Ainda no editorial deixa em evidência as noções de consumo e valorização do corpo na revista. Com a metodologia, pretende-se verificar com essas noções estão explicitadas nas imagens dos corpos. É interessante perceber que as noções de consumo as relações da atualidade e se configura como um dos movimentos para o reconhecimento como cidadãos (Canclini, 2008), ou seja, enquanto o indivíduo está consumido, sejam bens materiais ou simbólicos, ele está inserido em um contexto social e é reconhecido como cidadão, e a comunicação midiática é um desses bens de consumo apto para que seja consumido pela sociedade. Metodologia: lendo fotografias A metodologia desenvolvida por Felici (2011) é abrangente no sentido de contemplar várias áreas do conhecimento para ser fundamentada, não se limitando apenas em conceber a fotografia em sua materialidade, mas também em outros olhares e outros contextos do conhecimento.

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Essas áreas dialogam entre si e se articulam na intenção de oferecer um sentido para o discurso fotográfico; dentre as áreas estão a Semiótica, Semiologia, História, Linguística, Artes e Design. A escolha dessa metodologia se deu justamente pela abrangência de várias áreas do saber e a organização como são compostos os níveis da análise. É interessante a conclusão de Felici ao considerar a fotografia como sendo uma metalinguagem, pois se articula de forma semelhante ao sistema de linguagem verbal, todavia com signos diferentes. A consideração da fotografia como sendo uma metalinguagem se dá pela intencionalidade da articulação dos signos para a formação do discurso, mas com signos não-verbais. Os níveis considerados pelo autor níveis são articulados de tal forma que são analisadas as condições mais materiais da fotografia, considerados mais objetivos, direcionando aos níveis mais enunciativos, em que são feitas as análises mais subjetivas da obra. Se podría afirmar que el análisis de una fotografía consiste em la distinción de distintos niveles, desde la estricta materialidad de la obra, y su relación com el contexto históricocultural, hasta un nivel enunciativo. (idem, p.174)1.

Com essa concepção, a análise se inicia com o reconhecimento da fotografia a ser analisada e com o nível contextual, uma forma se situar a fotografia no tempo e no espaço físico e a autoria da imagem (título, autor, nacionalidade, ano, procedência da imagem, gênero e movimento artístico), bem como parâmetros técnicos (coloração da imagem, formato, câmera, suporte, lentes). Com esses apontamentos, são feitas as reflexões gerais desse nível apreendendo

uma síntese dos itens analisados. Assim, o próximo passo é avançar para o nível morfológico. Nessa estância de análise serão verificados os signos que compõem as imagens da fotografia, desde elementos mais primordiais condizentes à noção de geometria e espaços (ponto, linha, plano, escala, forma) e elementos que oferecem percepções sensoriais tácteis e visuais (textura, nitidez da imagem, iluminação, contraste, tonalidade). Esse nível trabalha as noções sensoriais da imagem dialogando com as teorias da gestaltianas sobre a percepção de fundo/plano, no sentido que a ocorrência desses elementos desse nível de análise se manifesta pela condição de percepção em fundo e plano na imagem. A sequência da metodologia segue com o nível compositivo. Esse nível de análise serão consideradas as relações existentes ente os elementos no nível anterior, oferecendo condições de estética e composição, chamado de “ponto de vista sintático” (p.175). Nessa parte são concebidas intenções de valor operativo, percebendo as intenções implícitas no discurso fotográfico, que vão além dos signos apresentados na superfície da imagem. Dentro das concepções sintáticas são analisados elementos de ordem escalar (perspectiva, profundidade, proporção), elementos dinâmicos (tensão, ritmo). Ainda nesse nível são consideradas as noções de tempo e espaço, essas concepções não são entendidas necessariamente apenas como referências cronológicas e geográficas, mas também por condições subjetivas de qualificação. No nível enunciativo são articulados de forma mais explícita os marcadores do discurso fotográfico, colocando em evidência o ponto de vista físico, ou seja, a posição do

Pode-se afirmar que a análise uma fotografia consiste na distinção de distintos níveis, desde a materialidade propriamente dita da obra, e a sua relação com o contexto histórico-cultural até o nível enunciativo.

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anaLisanDo imagens Do corpo mascuLino na reVista Junior

fotógrafo frente ao objeto fotografado, a atitude dos personagens, os qualificadores (relação de afinidade entre o fotógrafo e o motivo fotografado), transparência, sutura e verossimilhança (que se relaciona com o quanto a fotografia traz de verossímil), marcas textuais (elementos que denunciam alguma característica do autor/estilo), olhar dos personagens (direção do olhar dos seres da imagem fotográfica) e relações intertextuais que faz alguma alusão à existência de alguma outra obra existente. Cualquier fotografía, en la medida em que representa una selección de la realidad, un lugar desde donde se realiza la toma fotográfica, presuponde a existencia de una mirada enunciativa. El examen de esta cuestión tiene consecuencias muy notables para conocer la ideologia implícita de la imagen, y la visión de mundo que transmite. En este sentido, se propone una batería de conceptos sobre los que reflexionar, desde el punto de fisico, la actude de los personajes, la presencia o ausencia de calificadores y marcas textuales, la transparencia enunciativa, los mecanismos enunciativos (identificação x distanciamento) , até o exame de las relaciones intertextuales que la imagen fotográfica promueve. (idem, p.218)

Ao final da análise desses elementos que totalizam 64 itens, divididos em quatro níveis, há na sequência a Interpretação Global do

Figura 1

Figura 2

Texto Fotográfico, que consiste na síntese e apresentação dos elementos analisados como uma forma de compreender as intenções do discurso fotográfico. Análise de Imagem das Capas da Revista Junior Com a construção do arcabouço teórico desse trabalho e uma breve contextualização da linha editorial da revista, serão feitas as análises das fotografias de capa . A metodologia proposta por Felici (op. cit.) não se inicia propriamente dita na verificação da imagem em sim, mas leva em consideração os contextos sociais da produção da fotografia em questão, a tecnologia e as práticas utilizadas, bem como o material, filmes e câmeras e uma abordagem da bibliografia do autor da imagem. As análises de imagem das capas da revista Junior serão analisadas em concomitância. Esse procedimento será adotado pela redundância dos signos escolhidos para a ilustração da publicação: homens sem camisa, com músculos torneados, sendo fotografados em plano médio (do quadril para cima) ou plano pequeno (na altura do peito). As imagens foram escaneadas das capas de cada exemplar dos meses de julho, agosto e outubro de 2010, respectivamente.

Figura 3

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Nível Contextual Sobre o nível contextual, as fotografias foram produzidas no ano de 2010 e veiculadas na mesma publicação. Elas foram produzidas no Brasil por fotógrafos brasileiros e não pertencem a nenhum movimento artístico ou alguma escola que possua alguma estética definida. As fotografias são coloridas, não se tem conhecimento do formato original dessas, mas foram veiculadas em capas de formato de 21 cm x 27,5 cm. Os fotógrafos que produziram as imagens Felipe Lessa, Marco Ovando e Márcio Del Nero, autores das fotografias das capas das figuras 1, 2 e 3, respectivamente, não fazem parte do quadro de funcionários da editora da revista, sendo contratados pelos trabalhos que serão analisados nesse artigo. Essa modalidade de contratação é um movimento muito freqüente na atualidade em que os prestadores de serviços são free-lancers, além disso, todos os fotógrafos exercem o ofício não atendendo apenas aos serviços de veículos de comunicação, mas também produzem fotografias artísticas, ensaios de moda para outros veículos de comunicação ou para álbuns pessoais. É interessante perceber a versatilidade da concepção da imagem dessas fotografias. O estilo dessas imagens, muito embora tenham sido produzidas para circularem em veículos de comunicação, como discursos fotográficos jornalísticos, pois os modelos retratados são entrevistados, há indícios que tais imagens possam ser interpretadas em outras formas de categorização devido às interferências técnicas e aos resultados adquiridos com a produção da fotografia. Essas imagens trazem indícios de fotografias artísticas, por conta da produção retratada como a ocorrência de maquiagem e sinalizadores de intervenções para estética dos corpos, cabelos e peles dos 92

modelos. As imagens também poderiam ser interpretadas também como fotografias de moda por deixarem em evidência o corpo e também estimularem o desejo no sentido de se verem como os corpos apresentados nas capas dessa revista. Não se tem registro do tipo de equipamento utilizado, bem como os tipos de lentes ou outros aparatos. Por serem fotografias contemporâneas, acredita-se que sejam aparatos digitais e ainda houve intervenção tecnológica para o tratamento das imagens por programas de computadores. Como conclusões sobre esse nível, podese considerar que as produções de revista são mais elaboradas no sentido da escolha dos modelos e as intervenções nos corpos dos mesmos. A tecnologia aplicada na produção das imagens e a diluição da identidade das imagens são aspectos importantes para a ser considerados, pois evidenciam as formas de produção e representação das imagens na contemporaneidade de revistas que apresentam essa linha editorial. Nível Morfológico Sobre o nível morfológico, que analisa os elementos mais primários que constituem as imagens, essas fotografias também apresentam semelhanças. Os modelos retratados apresentam semelhanças quanto ao corpo, diferenciando em algumas representações de postura, mas que de alguma forma se empenham quanto à intenção de demonstrar desejo e sensualidade. O corpo tensionado para deixar em evidência os músculos, a pele lisa, o cabelo arrumado, boca avermelhada, a cabeça levemente abaixada e os olhos semicerrados são alguns dos indícios retratados sobre a condição para despertar o desejo no receptor das imagens e que são constantes nas três imagens

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Analisando Imagens do Corpo Masculino na Revista Junior

selecionadas. Na Figura 1, o corpo do modelo é apresentado quase por completo, evidenciando o contorno dos músculos, pele bronzeada, correntes e acessórios dourados, cinto e calça em tons dourados e bronzeados. Os signos verbais da edição o nome da revista “Junior” e a frase em inglês “Golden Boys” (traduzindo “Menino Dourado”) – Último ensaio de Edilson Nascimento” fazem dialogam signos não-verbais de mesma tonalidade, fazendo alusão à preciosismo e à beleza do modelo. Quanto à Figura 2, há a permanência dos alguns dos signos, com a diferença que o modelo retratado é loiro, com os olhos azuis e de pele bronzeada. Entretanto o modelo está o braço erguido à altura do ombro, com a mão apoiada na nunca. A chamada principal dessa capa traz com signo os dizeres “Inverno Quente”, que também complementa a imagem do modelo que se apresenta com o torso despido. Nenhum outro componente acompanha o modelo na imagem Na Figura 3, o modelo divide o cenário com uma queda de água, o corpo dele está molhado, carrega um colar com o dizer “hot” (traduzindo “quente”) em vermelho e, mais uma vez, a fotografia completa os signos verbais para a chamada principal “As 5 praias que vão bombar no verão”. O ponto das imagens é o mesmo nas três amostras: na altura dos olhos dos modelos. Os olhares são direcionados a essa área e não apresenta pontos no que se refere à textura, pois a superfície dos signos retratados são lisos. Como o ponto de fixação da imagem não se encontra no ponto geométrico da fotografia, há certo desequilíbrio estrutural nas imagens. As linhas existentes nas imagens são as que contornam o corpo dos modelos em contraposição ao fundo da imagem, são linhas orgânicas e curvilíneas, pois acompanham o tônus muscular dos modelos.

As imagens selecionadas não apresentam perspectivas quanto ao plano, há apenas um plano nas fotografias que é justamente plano em que se encontra o modelo. Referente à grandeza escalar, como já citado, se encontram, em plano médio (da cintura para cima), nas figuras 1 e 2, e em plano pequeno (da altura do peito para cima), a figura 3, o que deixa em mais evidência detalhes dos corpos dos modelos. Com essa grandeza escalar e com a fotografia sendo colorida, o corpo é alvo primordial do olhar, pois está em destaque e realçado em seus detalhes. Quanto à forma, os elementos apresentam a forma estabelecida entre o fundo neutro das imagens e a linha do corpo que delineia os músculos dos modelos, não apresentando qualquer outra forma de representação de forma. No quesito textura, as três imagens quase não apresentam textura. A forte incidência de luz artificial, a presença de flash, a alta resolução da fotografia não permitem a ocorrência de textura na imagem. Além disso, os modelos não possuem pelos no corpo e o corpo parece que está besuntado por algum óleo, pois apresenta superfície lisa e brilhosa, com exceção da Figura 3, em que o modelo está molhado, mas, mesmo assim, não apresenta condições suficientes para considerar que a imagem apresenta textura. As três imagens se configuram com boas condições de nitidez justamente pela ausência de textura, alta luminosidade e a incidência de poucas sombras. Quanto ao plano, as três imagens se apresentam um plano único, ou seja, os signos que compõem a imagem estão todos inseridos no mesmo plano, não havendo a existência de outros planos ou de profundidade. A luminosidade das três imagens é artificial e, possivelmente, não há a incidência de iluminação natural. Os

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focos de luzes estão localizados à frente dos modelos e também, no caso das Figuras 2 e 3 à esquerda e um pouco elevados à altura dos olhos do fotógrafo, o que faz ocorrer sombras. Referente ao contraste, as imagens não apresentam proporções significativas de contrastes, salvo a linha existente entre o corpo dos modelos e o fundo neutro e na Figura 3 a existência da queda de água e a corrente com o pingente vermelho com o escrito “hot”. Para concluir esse nível de análise, podese afirmar que as imagens exploram os elementos de uma forma muito básica no sentido de não apresentar muitas variações das formas de representação de ponto, linha, planos, forma, espaço e referências à iluminação se repetem constantemente e de forma convencional e sem uma exploração mais intensa dos signos morfológicos. Nível Compositivo Esse estágio de análise são analisadas as relações estabelecidas entre os elementos do nível anterior. O primeiro item desse nível é a perspectiva, todavia, nenhuma das três imagens selecionadas apresenta incidência de perspectivas, uma vez que os signos que compõem as imagens se encontram em um mesmo plano e não presença de profundidade. Outro quesito é a incidência de ritmo, é a ocorrência da repetição de elementos semelhantes que se apresentam de tal forma que ofereçam uma constância de representação. As imagens analisadas não apresentam ritmo porque não há repetição de elementos semelhantes, se apresentando de forma estática e também sem transmitir sensação de movimento. Referente à tensão, quesito subsequente que se faz alusão à ocorrência de discordância, 94

assimetrias ou, até mesmo a existência de significados diferentes dentro da mesma imagem, pode-se afirmar que as imagens analisadas apresentam poucos pontos de tensão. Há em comum às três imagem a relação do corpo dos modelos e o fundo da imagem e ao fato de que o ponto geométrico não coincide ao ponto de atração da imagem e, na Figura 3, há signos que não dialogam como a queda d´água e pingente vermelho. A relação dessa imagem oferece uma condição dialética para essa imagem. Quanto à proporção, as imagens apresentam medidas de proporções equilibradas de representação, nos signos que compõem os corpos dos modelos se apresentam simétricos, sem muita variação de proporcionalidade. Quanto à distribuição de peso, quesito que se refere à composição da imagem e a sensação de equilíbrio, as três imagens não apresentam distorções referentes a esse ponto. O mesmo acontece com o quesito chamado de Peso dos Terços, em que a imagem é dividida em três parte iguais imaginárias longitudinalmente e depois latitudinalmente. Com esse procedimento, serão analisadas a distribuição dos signos em cada uma das partes divididas e perceberá que as imagens se concentram no centro das partes divididas. Com isso, essas imagens se enquadram quanto a representações estáticas no quesito de ordem icônica, que é justamente o item que analisa os elementos da fotografia com uma concepção icônica. Sendo assim, os elementos se apresentam de forma geral equilibrados, estáticos e simétricos, não havendo muita variação de representação. Dialogando com esses quesitos, há a relação estática/dinâmica que oferece sensações de movimento às imagens. Como já analisadas, as imagens não apresentam signos que ofereçam condições para que

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haja dinamismo, com exceção da Figura 3 que por conta da queda de água existe há certa noção de movimento, mas de uma forma muito simples. As demais fotografias não apresentam signos que ofereçam condições de movimento. Quanto ao trajeto visual, que é o percurso realizado pelos olhos para perceber a fotografia, as três imagens apresentam o mesmo trajeto: primeiramente os olhos dos modelos e, depois, em direção descendente ao corpo dos modelos, acompanhando os contornos dos músculos. Outro quesito se refere à pose dos elementos da fotografia. As imagens selecionadas apresentam semelhanças muito forte referentes à pose dos indivíduos, como o fato dos modelos não estarem em poses espontâneas, mas retratados de forma produzida com o intuito de promoção de intencionalidades. Os músculos tencionados, a posição da cabeça levemente abaixada, os olhos semicerrados e a olhar direcionado ao fotógrafo traduzem a questão do desejo e da sensualidade do corpo, intimando os receptores da imagem. Na Figura 1, onde o corpo aparece com mais completude que as demais, os músculos do abdômen também se encontra contraído junto com os demais músculos que aparecem na imagem. Já na Figura 2, o modelo está com o braço erguido e com a mão apoiada na nuca, deixando em evidência a axila e o bíceps tencionado. Na Figura 3, a pose deixa em evidência o tórax do modelo e a relação entre os outros signos: a água e o pingente do cordão. Além desses elementos analisados, há os elementos de representação de tempo e espaço. O primeiro quesito a ser analisado quanto ao espaço é o quesito Campo e Fora do Campo. Esse item se refere à condição dos elementos contidos na imagem se encontram no espaço retratado ou remete

a outros espaços não especificados na imagem, que seriam representações mais subjetivadas desses quesitos. Dessa forma, nas três figuras selecionadas, as imagens estão em campo, pois os signos que as compõem não as remetem a outros espaços e estão representadas no plano em que a fotografia contempla. Assim, o campo dessas representações pode ser considerado como campo fechado interno, ou seja, há indícios que não seja ao ar livre e se foca exclusivamente no signo retratado. Essas condições deixam indícios para considerar que o espaço também se configura como sendo um espaço plano, porque não há exploração de profundidade e se apresenta também como um espaço concreto, pois não incidências de subjetivações de outros espaços ou de outras formas de interpretações de outro espaço. Ainda há o quesito encenação, que se refere à capacidade da imagem de se referir à realidade quanto ao espaço, em não ser um espaço produzido intencionalmente. Como há a intencionalidade de não marcar o espaço, pode-se afirmar que a condição do espaço é encenado no sentido de favorecer para a apreciação dos corpos retratados. No nível compositivo há as relações de tempo da fotografia. Quanto a esse quesito, pode-se considerar que as marcas de tempo são praticamente inexistentes, seja o tempo dentro de uma concepção cronológica ou dentro de uma concepção mais subjetiva. As três imagens não apresentam instantaneidade, ou seja, o ponto exato de captura da cena, pois são imagens produzidas. Não tem marcas de duração, pois não apresentam sensações de movimento, as representações dos signos dessas fotografias são estáticas. Ainda referente ao tempo, as imagens não apresentam marcas de intertextualidades, que seriam discursos verbais contemplando

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as fotografias, o que mais se aproxima disso é a presença das chamadas das matérias na capa. As únicas referências de tempo que as imagens possuem condizem às marcas da produção das fotografias quanto à contemplação de tecnologia e a estética dos modelos: é perceptível que foi utilizado de meios tecnológicos para se chegar às formas de representação do corpo dos modelos. Quanto às conclusões desse nível, podese afirmar que a composição não apresenta variações mais elaboradas, até por que os elementos morfológicos também não apresentam representações muito complexas. É interessante perceber que nas fotografias das capas dessa revista houve a preocupação primordial de deixar em evidência as representações de corpos com músculos túrgidos, em detrimento de qualquer outra forma de representação do corpo. Não deixando em evidência as relações de tempo e espaço, que induz a imortalidade do corpo musculoso, deixando para trás as possíveis marcas do passar do tempo e os índices de espaço, sendo as imagens contempladas em qualquer condição de espaço. Nível Enunciativo Esse é o último nível da análise de imagem que tem como objetivo verificar as articulações entre os elementos e níveis analisados anteriormente. De acordo com Felici (op.cit), as imagens constroem discursos que são baseados na formação de enunciados que, por sua vez, trazem intencionalidade. Dessa forma, assim como os discursos verbais não são neutros, a construção dos discursos visuais também não o é. O primeiro passo para perceber os mecanismos de enunciação da imagem, é verificar a direcionamento do olhar dos seres da imagem, quando houver. Nesse 96

caso, os três modelos foram registrados olhando diretamente ao fotógrafo. Assim, o olhar deles intimida, seduz o apreciador da imagem. Ainda quanto aos personagens da fotografia é importante perceber a posição em que foram registrados, interpretando as poses em que se encontram. O modelo da Figura 1 oferece um ar infantilizado pela cabeça e olhos levemente abaixados, mas isso não ameniza o tom de sensualidade da imagem devido à exposição do corpo e a produção dos cabelos e maquiagem. Já na Figura 2, os músculos estão enrijecidos, com o braço levantado deixando em vista a axila. Acredita-se que essa pose é uma forma de sedução do macho para atrair as fêmeas, deixando exalar o cheiro para o acasalamento. O modelo da Figura 3 também deixa transparecer a sedução, ainda com presença da água e os cabelos molhados. O próximo passo é verificar os sinais de qualificação, ou seja, de perceber o grau de envolvimento e empatia existente entre os signos contidos na imagem e o fotógrafo da imagem. Acredita-se que por serem profissionais que estão envolvidos em produções de moda e capas de revistas, há a uma certa empatia sobre a análise desse quesito. A presença de indícios de outras produções de quaisquer espécies também deve ser levada em consideração. Seria como se as imagens analisadas fizessem alusões ou analogias a outros materiais já produzidos ou apresentados. Nessas três imagens, pode-se falar que corpos expostos, ao menos com o torso a mostra, é uma estratégia utilizada em vários veículos de comunicação que não necessariamente direcionado à comunidade gay. Revistas de esporte, de alimentação, pornográficas para o público masculino e de comportamento também trazem estampados

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corpos à mostra. Uma dinâmica semelhança foi utilizada nas edições da revista Shadow’s Magazine of Physical Culture, que começou a ser editada em 1899 seguindo até os anos de 1940. A publicação trazia na capa fotografias feitas por Eugene Shandow que retratava um homem musculoso na prática de alguma atividade física ligada ao fisiculturismo e o lema da revista era “Fraqueza é uma Doença”, fazendo reverência à qualidade de um corpo musculoso e saudável. A revista foi o primeiro veículo de comunicação que se tem registro que nos discursos verbais e não-verbais transmitiam a ideia de que saúde e beleza são sinônimas. Dentro do item enunciação, as três imagens são qualificadas como aproximação, devido à posição dos elementos fotografados. O último item da análise consiste na identificação da concepção da imagem dentro de uma concepção estilística, podendo ser: clássica, barroca e neo-barroca. O primeiro estilo, como o próprio nome diz, se refere a representações convencionais, muito semelhantes à estética proposta pelos artistas que pintavam aristocratas em séculos anteriores ou de retratistas do século XIX, nas primeiras ocorrências da fotografia. Eram produções sem muitas elaborações ou preocupações em seguir algum estilo artístico; uma visão parcial e unilateral. Já a estética barroca, abrange a crise no sentido do processo de concepção se basear também em outras práticas artísticas e em outros referenciais estilísticos como as colagens e pastiches e uma concepção de profundidade na composição das imagens. E a concepção neo-barroca se apóia na diluição da identidade da imagem. A representação imagética não está firme quanto a um ou poucos conceitos para própria definição, que além da percepção da crise presente no estilo barroco, essa estética faz uso outras técnicas, a valorização da mescla de conceitos. Dessa

forma, as imagens das capas podem ser consideradas como clássicas por que não atendem a formas muito diferenciadas de representação. Os modelos são posando para uma fotografia que será veiculada em um veículo de comunicação. Interpretação Global do Texto Fotográfico Esse ponto não seja a ser considerado mais um nível, mas pode ser entendido como conclusões gerais da análise. Sendo assim, as imagens escolhidas pelo veículo de comunicação homoerótico não apresentam estilos mais apurados de representação. O corpo é o canal escolhido para dialogar, um reflexo da contemporaneidade de valorização narcísica das representações corporais. O desejo e o consumo pelo corpo são referências marcantes nas representações dos corpos nos veículos direcionados a esse público. Além disso, há a persistência de escolher apenas uma forma de retratar o corpo: sendo considerado musculoso, jovem e com aspectos de saúde, no sentido de se apresentar robusto e másculo. Qualquer outra proposta de um discurso que se diferencie das representações analisadas podem não serem bem vindas. As imagens do veículo homoerótico em questão não oferecem abertura para outras formas de representação. Corpos acima do peso, com pelos ou de homens mais maduros estão exclusos dos modos de representação. Considerações Finais Com a construção do arcabouço teórico e a análise de imagem, pode-se considerar a necessidade de valorização do corpo pelos discursos midiáticos e pelas representações sociais atreladas ao corpo. Muito embora

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haja outras representações do corpo na mídia, mesmo minoritariamente e que não seja necessariamente um corpo esculpido pelos exercícios físicos e outras intervenções da tecnologia, existe a prevalência das representações de corpos musculosos e definidos nos veículos midiáticos, incluindo veículos homoeróticos com as capas da revista Junior. A insistência dessa forma de representação imagética do corpo masculino na revista se explica pelo contexto em que o veículo se encontra no tempo e no espaço. Na atualidade as concepções de consumo estão atreladas às formas de participação no meio social e reconhecimento dos indivíduos como cidadãos. Essa referência sobre o consumo pelas representações midiáticas está relacionada com as formas de interpretar o corpo também como um bem de consumo ao alcance do receptor, mesmo que a imagem do corpo seja uma representação simbólica do desejo. Quanto à análise de imagens, a revista apresenta um discurso unilateral quanto às representações do corpo masculino nas fotografias. Com signos que exprimem força, sensualidade e desejo, o corpo retratado nessas imagens não foge das raias do consumo. Há a necessidade de não alterar os códigos de representação do corpo, o que leva a acreditar que o consumo dessas representações contempla a necessidade do público da revista Junior, na mesma intensidade que o corpo representado contempla o contexto sócio-cultural em que a revista está inserida.

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Referências Bibliográficas BACCEGA, Maria Aparecida. Comunicação e Linguagem. São Paulo: Moderna, 1998. CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e Cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: UFRJ Editora, 2008 CAMARGO, Francisco Carlos; HOFF, Tânia Maria Cesar. Erotismo e Mídia – São Paulo: Expressão & Arte, 2002. FELICI, Javier Marzal. Cómo se lee una fotografía: interpretaciones de la mirada. 4ª Edição- Madrid: Cátedra, 2011. GARCIA, Wilton. Corpo, Mídia e Representação: estudos contemporâneos – São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005. GOLDENBERG, Mirian et. al.. Nu & Vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca – Rio de Janeiro: Record, 2002. LASH, Chistopher. A Cultura do Narcisismo: a vida americana numa era de esperança e declínio – Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1983 Revista Junior. Edição Nº01. São Paulo: Editora Mix Brasil, outubro de 2007. Revista Junior. Edição Nº 19. São Paulo: Editora Mix Brasil, julho de 2010 Revista Junior. Edição Nº 20. São Paulo: Editora Mix Brasil, agosto de 2010 Revista Junior. Edição Nº22. São Paulo: Editora Mix Brasil, outubro de 2010

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DOI: 10.5433/2237-9126.2012ano6n11p99

Visualidade e Encenação da Históra no Filme “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1969) de Glauber Rocha Rodrigo Poreli Moura Bueno Professor Assistente do curso de História da Universidade Federal do Tocantins (UFT/campus de Porto Nacional). Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/campus de Assis). Pesquisa temas referentes à Teoria e Filosofia da História, com ênfase nas relações entre arte cinematográfica, história e memória.

Resumo

O escopo principal deste trabalho é discutir e compreender como se dá a interface entre história e cultura visual no filme “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” de Glauber Rocha. Nesta obra, a composição de temas como a honra, valentia, piedade, o sincretismo religioso e a luta entre bem e mal, remetem-nos a um universo cultural fantástico, da memória coletiva, tão presente na literatura oral, principalmente, a de cordel. A montagem teatralizada e a performance dos personagens, expressam disposições inconscientes e descontroladas na textura de imagem e som, negando uma idéia linear de história e aproximando-a de uma noção entre mito e fábula. Assim, pretende-se saber o que a referida película retém destas tradições e o modo de expressálas em imagens cinematográficas. Palavras-chave: Cinema Brasileiro; Glauber Rocha; Memória e História.

Abstract

The main scope of this paper is to discuss and understand how is the interface between history and visual culture in the movie “Antonio das Mortes” by Glauber Rocha. In this work, the composition of themes such as honor, courage, piety, religious syncretism and the struggle between good and evil, lead us to an amazing cultural universe, of collective memory, as present in oral literature, especially in the “cordel”. The theatrical mise-en-scène and the characters’ performance, express unconscious and uncontrolled dispositions in the texture of image and sound, denying a history’s linear perspective and approaching it of an idea between myth and fable. Thus, we intend to know what the film retains these traditions and the way of expressing them cinematographically. Keywords: Brazilian Cinema; Glauber Rocha; Memory and History.

Recebido em: 17/07/2012

Aprovado em: 05/08/2012

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Pode-se dizer que no Brasil de fins da década de 1960, com o agravamento do regime militar, a censura e a crise dos movimentos sociais e políticos, o cineasta Glauber Rocha empreendeu novos desafios para a relação entre arte e política, percebendo a necessidade de renová-las em suas obras cinematográficas. Dessa maneira, a tensão entre as já citadas arte e política, identificada na trajetória deste cineasta, adquiriu outra inflexão, pois passou a se inscrever em outro contexto histórico. Agora, sua preocupação recairá na busca para a constituição de um cinema terceiro-mundista, que recusasse os modelos cinematográficos norte-americanos e europeus, e fosse capaz de se comunicar com o grande público. Como sabido, nessa época, inicia-se outra fase do Cinema Novo, na qual a politização da arte contra a indústria passa a se defrontar com um Estado autoritário, e com a ruptura da certeza revolucionária que abrigou anteriormente a estética de Glauber Rocha. Seus textos e artigos, a partir deste período, demonstram a preocupação de articular uma estratégia de distribuição e exibição dos filmes, já que o seu objetivo era fortalecer a industrialização cinematográfica nacional e promover um sistema de distribuição e produção para o cinema brasileiro e latinoamericano. O intento parece ser o de buscar desvios e atalhos a partir dos quais possa manter, em movimento, o seu fazer artístico imagético-antropofágico.

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O seu filme “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” (1969), inserese neste contexto histórico-político e reflete as discussões e mudanças estéticas realizadas e debatidas neste período. Aqui, o cineasta baiano consegue atingir um ponto de equilíbrio e boa receptividade como produto cinematográfico. Também, a partir desta obra, ele definirá o seu cinema como “ideogramático”, ou seja, caberia ao artista recriar símbolos abstraídos da mitologia cultural brasileira e projetá-los em uma nova linguagem, com múltiplos sentidos (VENTURA, 2000, p. 255-256). Na medida em que essa simbologia é constitutiva do imaginário cultural brasileiro, a linguagem será a expressão dialógica e recodificada desse imaginário. Deve-se dizer ainda que o filme reivindica uma estética política épico-didática, no qual há a apropriação criticamente dos elementos da cultura popular. Neste projeto chamado de épico-didático, a épica demonstrará a partir de uma prática poética a força criativa do subdesenvolvimento, por sua vez, a didática operaria como eixo interpretativo que organiza a poética em uma forma éticapolítica. (VENTURA, 2000, p. 256). Assim, percebe-se que com esse projeto estético-político, o cineasta não só buscava se distanciar dos mitos colonialistas, mas, também inventar outros, agora libertadores, soberanos e autônomos. Glauber Rocha, a partir de “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, desejava construir um

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cinema que se singularizasse, independente, anti-colonialista e “nacionalista”. Assim, por meio dessa arte cinematográfica, tornar-se-ia possível contribuir para a “libertação” do país e do terceiro mundo. Este autor filma “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, ciente da necessidade de aproximação com o grande público. Por isso, apoia-se em alguns gêneros cinematográficos de apelo popular, como o western, por exemplo, e reutiliza alguns dos temas e personagens de seu filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol” realizado em 1964. Podemos ver ainda, aqui, a questão do messianismo, do cangaço e a presença enigmática do matador de cangaceiros “Antônio das Mortes”. Destaque para este personagem que é recolocado diante das forças sociais e políticas com as quais esse matador se relacionava no filme anterior (ROCHA, 2004, p. 176-177). O contraste simbólico, entre o Brasil moderno e o sertão, é o ponto de partida para os questionamentos de Antônio das Mortes e o fim que lhe reserva. A estética de Glauber “[...] traz novamente a teatralização, o planoseqüência, a câmera na mão, a fala solene, as longas seqüências de reflexão em que os personagens mergulham na imobilidade e as tensões deságuam na discussão sobre o poder, o mito e a história” (XAVIER, 1993, p. 162). No filme de 1969, o cordel também acompanha a narração do espetáculo teatral e se faz presente não somente na voz do narrador/cantador da história, como ainda figura na fala dos personagens. Antônio e o cangaceiro Coirana fazem, por exemplo, um duelo de repentes antes da briga com facas. O cangaceiro conta e canta sua história de vida em forma de versos. Um elemento da cultura popular nordestina que antes assumia

um aspecto extra-diegético, ou seja, fora da realidade da narrativa, passa a ter, em alguns momentos, um aspecto intra-diegético neste filme. Nas palavras de Fernão Pessoa Ramos, “o sertão mítico já não pode mais ser representado em sua ‘pureza’, e a interação com o resto do país contemporâneo gera, através do contraste, uma das formações mais caras à alegoria tropicalista” (RAMOS, 1987, p. 377). Neste momento, o sertão é um mundo colonizado, ou está prestes a ser. O progresso, que no filme anterior era um elemento na iminência de acontecer, concretiza-se agora. As estradas e o capital das multinacionais já estão invadindo o sertão, é o passado no presente. Sobre o assunto, Ismail Xavier complementa: Não estamos no sertão de Deus e o Diabo, microcosmo fechado a compor um mundo de interações sociais orgânico, coeso. Aqui, o sertão já não se põe no centro, revela seus limites e reconhece todo um mundo para além de suas fronteiras, mundo de onde vem toda uma série de novidades que minam pela base a tradição (XAVIER, 1993, p. 164).

Na explicação do próprio cineasta, em “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” arma-se um cenário na pequena cidade sertaneja de Jardim das Piranhas, para examinar as possibilidades do embate entre aqueles que já haviam mostrado o seu poder efetivo de lutas, os messiânicos e cangaceiros. Em suas palavras: Eu acho o ‘Dragão’ o meu melhor filme, uma realização perfeita das minhas idéias. Lá eu tenho um palco, uma limitação espacial. Eu realizo um ‘mise-en-scène’ brechtiano com signos da sociedade brasileira onde eles realmente tinham que realizar no Terceiro Mundo (ROCHA apud GERBER, 1982, p. 90).

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É dentro desse universo recheado de simbolismos que o contraditório Antônio das Mortes retorna para se redimir de seus pecados anteriores. O personagem é apresentado ao espectador como antes, matando cangaceiros, algo que faz de modo inquestionável, e continua lacônico e tranqüilo como na obra de 1964. Agora, relembra saudoso da época em que conheceu Lampião e Corisco, quem ele achava ter sido o último dos cangaceiros, morto por ele. Antônio vai até a cidade de Jardim das Piranhas para se certificar se Coirana era realmente um cangaceiro, e se fosse, teria que matá-lo também (VALENTINETTI, 2002, p. 98). Em princípio, Antônio quer continuar a cumprir sua missão, a de não deixar cangaceiro vivo no mundo. Missão que recebera no filme anterior e que realizara soberanamente, e para fazê-lo agora, rejeita qualquer quantia em dinheiro. Contratado pelo delegado Matos e rejeitado pelo Coronel Horácio, Antônio fere Coirana gravemente, que morre após longa agonia. Antônio se arrepende amargamente do crime e vê, na figura de uma Santa, uma forma de redenção. Redenção que ele busca e cultiva a partir de então, e se não realiza no plano social, tenta realizar-se no plano pessoal. Para tanto, percorre um caminho inverso pregado por Corisco anteriormente. Nessa guerra, Antônio procura arrumar o desarrumado (VALENTINETTI, 2002, p. 99-100). Nas explicações de Célia Tolentino temos o seguinte: É por isso que Antônio das Mortes volta no filme de 1969, para poder redimir-se diante da história e confessar que lutara do lado errado, porque não compreendia seu papel. Afinal, a guerra que veio não acabou com a miséria do sertão e, ainda por cima, levou muitos sertanejos para amargar a pobreza nas cidades,

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como ele próprio, que vive em Salvador, sem função, decepcionado, na miséria do esquecimento (TOLENTINO, 2001, p. 241).

Com a morte de Coirana, Antônio passa a ser o protetor e defensor dos beatos e cangaceiros. Ele percebe que, no passado, estava do lado errado e que agira mal. Nesse ponto, as dúvidas e questões que atormentavam Antônio e o tornavam uma pessoa contraditória, deixam de existir. Agora ele sabe distinguir o certo do errado, o bem do mal. E para fazer o bem, procura de alguma forma ajudar o grupo de Coirana (VALENTINETTI, 2002, p. 102). Primeiramente, pede ao Coronel que lhes dê moradia e alimentação. Negado o pedido e exterminado o grupo, Antônio revolta-se contra o Coronel e, a única forma de vingar o povo é acabando com o opressor, mesmo que em uma atitude tardia. Se no início Antônio era o Dragão da Maldade, agora passa a ser o Santo Guerreiro, figura que também é incorporada por outros personagens (VALENTINETTI, 2002, p. 105). Há, consequentemente, uma inversão de valores durante todo o filme. Novamente, segundo Célia Tolentino: Ao longo da narrativa haverá várias encarnações de santo e dragão, bem como troca de papéis. É como se pudéssemos dizer que, no chão social em que se estabelecem, a condenação ou consagração varia segundo a versão de cada lado e parece não ter vigência fora desse espaço. Assim, beatos e cangaceiros em princípio se opõem a Antônio das Mortes e Coronel Horácio. Com a conversão do ex-matador para o lado dos místicos, o velho proprietário será o dragão da riqueza, exterminador do povo inocente. Entretanto, no enfrentamento com o grande capital que ronda Jardim das Piranhas, é também um lutador para a manutenção das velhas e conhecidas estruturas de dominação contra o dragão voraz e invisível da modernização (TOLENTINO, 2001, p. 249).

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Defensor da tradição popular e da permanência do estilo de vida sertanejo, o Coronel faz um papel de Santo. Todavia, diante da população oprimida que necessita de ajuda, torna-se opressor, o Dragão. Em uma atitude cínica, pede ao seu braço direito, Batista, que abra o armazém e distribua comida entre o povo. No entanto, não pensa duas vezes antes de ordenar que Mata-Vaca e seus jagunços exterminem a sociedade formada por beatos e cangaceiros (VALENTINETTI, 2002, p. 106). Sua esposa, Laura, mantém uma relação com o delegado Matos. Ela vê nele possibilidade de sair daquele fim de mundo, onde ainda permanece porque sabe da vida cheia de regalias que o Coronel pode oferecer. Velho e cego, ela acha que o Coronel está falecendo e, certamente, será herdeira de suas terras e de sua fortuna. Para apressar essa herança, tenta convencer Matos a matá-lo que, por sua vez, tenta convencer Antônio a fazê-lo. Na recusa de Antônio e na covardia de Matos, Laura prefere não trocar o certo pelo duvidoso e, em uma atitude desesperada para mostrar ao Coronel sua confiança, apunhala e mata o delegado após descoberta a relação. Laura, das três personagens que podem simbolizar a transição entre o campo e a cidade, ela é a mais forte e mais efetiva, centro da intriga que precipita as ações e deflagra o mecanismo da vingança (VALENTINETTI, 2002, p. 106). Visualizam-se também, nesta obra, personagens tipicamente urbanos como o já referido Matos e o Professor. Matos é o dragão do progresso, a figura que pretende trazer a modernização para o sertão. Como delegado, está mais preocupado na sua carreira política. Não tem coragem suficiente para matar o Coronel. É um covarde nas palavras e nas atitudes, homem da cidade que vê no sertão uma forma de alavancar sua

vida pública. O Professor é um desiludido e está constantemente bêbado. Ainda assim, representa uma pequena fatia do progresso que adentrou o sertão, a civilização. Ele, mesmo que de forma precária, procura passar seus ensinamentos aos alunos de Jardim das Piranhas. É, em boa parte do filme, apático e debocha de Matos várias vezes. Num momento de sobriedade moral, percebe que a luta armada está iminente e, apoderando-se das armas de Coirana, é o agente executor da grande guerra, juntamente com Antônio. Os dois fazem o papel do Santo Guerreiro para lutar contra o opressor Coronel e seus sequazes. Lutará com suas ideias e seu próprio sangue, se necessário, para “vingar a metade desse sertão injustiçado”. O verdadeiro agente deflagrador dessa guerra é Coirana. Mesmo sendo “puro teatro”, é ele quem faz, em princípio, o papel do Santo Guerreiro. Papel esse que, em seguida, é incorporado por outros personagens. Liderando beatos e cangaceiros, Coirana invade Jardim das Piranhas com a finalidade de combater o Dragão da Maldade e desperta, em Antônio e no Professor, o sentimento da revolta. Sua morte é anunciada pelo matador, eficaz no cumprimento de sua missão desde Corisco, e é com ela que a teleologia da salvação se faz presente, com alguma referência à Paixão de Cristo (VALENTINETTI, 2002, p. 108). Outro papel de destaque no enredo é o da Santa. Parente de beatos e cangaceiros mortos por Antônio, é ela quem desperta no matador o sentimento de arrependimento ao impedi-lo de matar Coirana. Mulher de poucas palavras, mas de um equilíbrio e serenidade incontestáveis, perdoa Antônio pelos crimes passados e procura manter a paz entre os grupos. No entanto, percebendo que a paz já não é mais possível, ela torna-se o agente anunciador da guerra vindoura.

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Temos ainda, o denominado Negro Antão, por sua vez, revela ser neto de escravos e da vontade de voltar para a África para reencontrar sua identidade. Até o final do filme, ele é mais um entre a grande massa de oprimidos. Entretanto, incorpora, no desfecho da história, o Santo Guerreiro e, montado em um cavalo branco juntamente com a Santa, empunhando uma lança encarna São Jorge que matará o Dragão da Maldade, encravando-a no tórax do Coronel (VALENTINETTI, 2002, p. 109). Dessa forma, Antão mostra-se o mais emblemático dos Santos e, uma das cenas finais, juntamente com a Santa, o Padre e Antônio, fazem uma composição visual que remete à imagem de São Jorge mostrada no início e final do filme. O estilo da imagem atesta a natureza popular de sua circulação no mundo atual, objeto de coleção que remonta à tradição da Idade Média (os próprios elementos da imagem explicitam tal tradição: o Cavaleiro, a virgem, a Igreja) (XAVIER, 1993, p. 162). O filme termina com a figura de Antônio das Mortes caminhando em meio a carros e caminhões que cortam o sertão com estradas de rodagem, a chegada do progresso simbolizado, com vigor, pela placa da multinacional Shell. E da mesma forma que chega, o herói solitário volta, enigmático. Mesmo depois da conversão e do cumprimento da tarefa justiceira, Antônio não se integra na comunidade que favorece. A mancha que o acompanha o condena a um exílio renovado, como em westerns clássicos. No entanto, sua imagem e seu percurso solitário lembram melhor o herói do faroeste italiano, figura carrancuda que chega ao local com ares de capanga do grande proprietário, termina aliado aos oprimidos e, consumada a luta, abandona o local com o mesmo ar enigmático de sua chegada (XAVIER, 1993, p. 172). 104

Compreende-se, assim, que “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” parece assumir integralmente as diretrizes da cultura popular como saída para o projeto de modernização conservadora imposto então pelo governo militar da época. Glauber Rocha não pretende trabalhar esses elementos de forma folclorizada ou romantizada, porém, ele tenta destruir os mitos e as lendas de seu país por dentro. A visibilidade que confere ao cangaço e ao messianismo não atua para um dispositivo de poder nostálgico e conservativo. Eles são ativados por sua força de crença, não somente pelo conteúdo mitológico, pois são reconfigurados, agindo em outro campo enunciativo e servindo a outras relações de poder (BENTES, 1997, p. 26-28). O contexto político e a crise da estética do nacional-popular, interligados, vão contribuir para a emergência do tropicalismo, movimento que pregava um fazer artístico antropofágico que religaria espacialidades e temporalidades distintas. O nacional e o estrangeiro, o tradicional e o novo deveriam ser agenciados por meio de um dispositivo de poder libertário. A saída para o artista e intelectual terceiro-mundista estaria em explorar as virtualidades da “desrazão” e do “inconsciente” presentes na cultura popular, pretendendo, assim, uma ressignificação e estetização dessa cultura nativa. Diz o cineasta: A cultura popular será sempre uma manifestação relativa quando apenas inspiradora de uma arte criada por artistas ainda sufocados pela razão burguesa. A cultura popular não é o que se chama tecnicamente de folclore, mas a linguagem popular de permanente rebelião histórica. O encontro dos revolucionários desligados da revolução burguesa com as estruturas mais significativas desta cultura popular será a primeira configuração de um novo signo revolucionário (ROCHA, 2004, p. 251).

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Dessa maneira, foi esse procedimento que Glauber Rocha buscava representar nas figuras típicas do imaginário do sertão brasileiro como o “Dragão” (símbolo barroco da desmedida natureza e do desarmônico) e de “São Jorge” (símbolo da guerra e da caça). Os personagens mesclam esses aspectos e atuam em um clima de instabilidade moral, já que são atores de suas próprias lendas que se confundem com a política. Notamos estas características nos já citados personagens, como a Santa, o negro Antão, o professor de História, Antonio das Mortes, o cangaceiro Coirana, o Coronel, Laura, de origem urbana, mulher do Coronel e amante do delegado Matos, o padre, o jagunço Mata-Vacas e seu bando e o povo que louva a Santa e o negro Antão com seus cantos, danças, orações, bandeiras e estandartes. A performance imagético-antropofágica desses atores se dá em um cenário simbolizado pelo sertão, local do embate e dos conflitos. Os personagens urbanos, advindos de uma classe média abastada, são apresentados com venais, volúveis e traidores, reservando a eles os espaços fechados, a moldura das fachadas, a não-profundidade de campo e as cores berrantes tanto nas roupas como nos cenários. Já os personagens sertanejos, ao contrário, além da grande dignidade da qual se revestem, têm direito à paisagem e a composições cenográficas que lembram as pinturas renascentistas. Distinguem-se também as músicas destinadas aos beatos e cangaceiros e aos personagens citadino, bem com a própria variação do estilo na montagem das cenas (TOLENTINO, 2001, p. 246-247). Assim, tece-se no filme uma arquitetura figurativa mais barroca na qual os personagens recolocam-se em relações mutáveis uns com os outros. Os movimentos de câmera e os longos planos-sequências indicam algumas

atitudes e características dos personagens e suas posições dentro da encenação. Ora é uma câmera fixa que os detêm estáticos em cômodos, no caso dos representantes da ordem, ora é uma câmera na mão que acompanha as multidões entoando cânticos, perscrutando tatilmente o corpos dos santos e figuras do cangaço. Nesta película, compõem-se teatralizações e ritualizações dos conflitos em que o repente e a poesia de cordel não se limitam à narração e à figura de um cantador. Percebe-se que as formas próprias da cultura sertaneja se apoderam da mise-en-scène. O mesmo povo que protagoniza o conflito, também assiste o desenlace da cena. Um bom exemplo desses aspectos é o duelo entre Antonio das Mortes e o cangaceiro Coirana. Com o laço preso nos dentes, ligando um ao outro, os dois contendores tentam atingir-se. Uma cantoria de rezadeiras, seguidoras do negro Antão, emoldura o embate (o duelo é muito comum nos westerns clássicos, havendo sempre regras rígidas a serem obedecidas). A tomada é longa, sem cortes. Junto com a cantoria intermitente, confere à cena o tom hipnótico e performático. Antônio das Mortes finalmente vence Coirana, ferindo-o gravemente (CASTELO, 2004, p. 93-94). Nesta obra, a ênfase na participação do público é um aspecto que deve ser ressaltado. Consideremos, por exemplo, duas cenas: a de Coirana em sua entrada em Jardim das Piranhas, e aquela do duelo entre este e Antonio das Mortes. Nessas cenas, a presença do povo, entoando cânticos e batendo palmas, lembra-nos que estamos diante de uma representação, de uma performance. Deve-se levar em conta, igualmente, a importância da voz e dos gestos dos participantes, por um lado, e a situação de escuta, por outro. Ação dupla entre emissor e receptor, a performance oral se processa a

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partir de uma série de meios, como o ritmo lento ou rápido de uma melodia, as repetições e os gestos que formam um contexto, uma situação de comunicação culturalmente motivada. Isso significa que o tempo e o lugar onde ocorrem esta performance não são indiferentes. Ela acontece, normalmente, em lugares e datas fixas determinadas pela tradição, em circunstâncias da vida privada ou pública, importantes de alguma maneira ao destino comum (nascimento, casamento, morte) (NEMER, 2005, p. 129). Por exemplo, a chegada de Coirana a Jardim das Piranhas dá lugar a uma manifestação espontânea do povo que sai às ruas para acompanhar o cortejo liderado pelo cangaceiro e pela Santa. Ao som de cânticos que lembram os ritmos africanos, os líderes seguem à frente, dançando e balançando estandartes com as imagens de São Jorge e do Dragão. Logo em seguida, vem o povo cantando e batendo palmas. A manifestação segue seu curso até o centro da cidade onde, acompanhado pela Santa e por Antão, Coirana se apresenta ao povo e aos poderosos do local. O monólogo proferido pelo cangaceiro reporta-se a Lampião, citado nos versos da música entoada durante a procissão e na aula do professor que, na praça da cidade, pouco antes da entrada do cortejo, lembrava a seus alunos as datas importantes da história do Brasil (NEMER, 2005, p. 130). Repetido inúmeras vezes durante as primeiras cenas do filme, o nome de Lampião reforça o sentido não oficial da manifestação dirigida por Coirana. E mais, estreita os laços de pertencimento do povo com o seu passado. Dedicada à memória do cangaceiro morto em 1938, (como lembrou o professor) a performance liderada pelo cangaceiro, aparece como um momento de comunhão coletiva. Sem data ou local programados, ela surge, de repente, espontaneamente, no 106

meio do povo como resposta às vozes e aos gestos que a lideram. Neste sentido, o povo que faz parte da performance contribui tanto quanto o intérprete à sua realização (NEMER, 2005, p. 130). Colocando em relevo procedimentos correntes nas sociedades tradicionais o filme procura destacar a relação entre os protagonistas da performance e os que nela estão envolvidos. Nesse sentido, o povo que participa cantando, dançando, batendo palmas, não é apenas objeto da representação, porém, o sujeito desta performance que remete ao universo das tradições orais, em que a base da participação do indivíduo é o pertencimento a uma coletividade, a um passado comum. Transformada pelo veículo de sua transmissão, a performance, ou melhor, o filme como encenação coreografada, estabelece com seu público uma relação de distanciamento. Separado da ação encenada, o espectador não se aliena, não se deixa absorver pelo narrado, estabelecendo com as imagens um diálogo mais aberto, isto é, menos determinado pelas convenções de gênero. Porém, isso não significa que haja uma ruptura com as convenções. Na verdade, o que o filme procura fazer é apropriar-se das convenções, criando para estas, novos usos. Além do mais, a montagem fílmica construída, aqui, destaca a marcação teatral brechtiana, que desnaturaliza o confronto, não enfatizando acontecimentos, objeto da narração do narrador, mas a própria narração. Percebe-se também o desinteresse de alguns personagens como, por exemplo, o delegado Matos que parece um ator em folga, andando pela cidade enquanto espera o momento de entrar em cena. Glauber Rocha ritualiza e teatraliza a tomada de consciência de Antônio das Mortes, que ferindo Coirana, percebe que este é aliado, não um inimigo.

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Então, desencadeia-se, novamente, o transe e a violência necessários para um processo transformador e revolucionário. Por esta razão “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” inscreve-se na perspectiva global de mistura de gêneros que informam o esquema narrativo do filme no qual os personagens atuam como se estivessem participando de um jogo, de uma luta na qual a violência é tão simulada quanto à dos participantes da cantoria. O tratamento dado à violência nesta obra, uma violência encenada, teatralizada, quebra o efeito de verossimilhança da representação tal como buscado no cinema tradicional onde o convencimento do público depende da naturalidade dos atores na interpretação de seus papéis (VALENTINETTI, 2002, p. 108). Esse filme rejeita a forma tradicional de representação cinematográfica na qual a atuação dos atores deve ser o mais natural possível, a fim de passar ao público a impressão de veracidade. Obviamente, o espectador comum não leva em conta que essa naturalidade é acompanhada de um trabalho prévio (roteiro, direção) que informa ao ator o modo como o personagem deve ser interpretado. A suposta naturalidade do ator depende, portanto, do domínio das técnicas de arte dramática. Negando essa forma de interpretação, em que o artificial se faz passar por natural, os atores (livres dos códigos da representação clássica) atuam espontaneamente diante da câmera que se limitava a reproduzir seus movimentos (VALENTINETTI, 2002, p. 112-113). Relevante dizer, destarte, que “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” é um filme que trabalha quase no nível da instantaneidade, da criação simultânea à captação da imagem. Estamos aí muito próximos do cinema documentário, inclusive em relação ao uso do som direto que até

então não havia sido empregado por Glauber Rocha. A preocupação com a sincronização, com a captação do som no momento de sua emissão é um ponto que deve ser ressaltado, na medida em que a referida obra se apresenta como uma performance, como um ato de criação coletiva, em que o transe perpassa sua dimensão espetacular e figurativa. Sabe-se que uma das constantes do cinema glauberiano é a questão do transe. Dada a cristalização de determinado olhar sobre as coisas, ele possibilita desarrumálo, rearranjá-lo, trazê-lo para um espaço liso, onde possa explorar todas as suas virtualidades. O transe é transição, passagem, devir e possessão, sendo que Glauber Rocha faz dele uma forma de experimentação e conhecimento. Dá-se com o transe, deste modo, visibilidade ao invisível e dizibilidade ao indizível. Provoca-se, pois, estado de colapso nos elementos agenciados, principalmente, naquele que olha, permitindo uma variação e uma mutação nas noções de historicidade e temporalidade (BENTES, 1997, p. 26). “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, é um filme tanto da convulsão, da fabulação, quanto do dilaceramento. Nele, o sertão e seus atores são marcados pela inconstância, corroídos e carcomidos pela morbidez e pela degenerescência. Antônio das Mortes, por exemplo, cônscio de sua finitude, sabe que, após cumprir sua função, deve desaparecer. O delegado Matos, simbolizando a burguesia nacional, morre assassinado no local que acreditava que o enriqueceria. Vemos, assim, que o cineasta baiano recorre à estética do transe para intensificar elementos cinematográficos, sendo que a performance dos personagens e a teatralização das cenas permitem a emergência de forças latentes, potências de mudanças e transformações.

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Na montagem fílmica, cangaceiros e beatos olham diretamente para a câmera, ou em um silêncio inquisitivo e perturbador, ou berrando chavões revolucionários. Já figurantes e personagens secundários, ao mesmo tempo em que atuam, são também espectadores comuns. A música funciona como contraponto às imagens, possibilitando um distanciamento do que é mostrado, parecendo até algumas vezes irônico. Os gêneros cinematográficos clássicos são remodelados, principalmente o western, o fantástico/horror e o melodrama, no intuito de, implodindo por dentro o cinema hollywoodiano, atrair e conscientizar o espectador (VALENTINETTI, 2002, p. 67). Provocando o transe na composição de cenas e personagens, tentava-se decompor os mitos, produtos do colonialismo “imperialista”, auxiliando-os depois a recompor as partes, em produção ininterrupta de novas mitologias, novas fabulações, agora soberanas, nacionalistas e terceiromundistas. Na medula espinhal de “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” encontra-se o esforço do seu autor de aliar cultura popular, prática revolucionária, mito e história. Para ele, o papel histórico dos povos do terceiro-mundo se cumpre em conformidade com a tradição, não com a negação dela. Logo, a questão maior não é a superação do mito, mas a sua encenação e reinterpretação pela comunidade, em termos dos projetos de liberação (XAVIER, 2004, p. 138). Neste movimento, anuncia-se um tempo da redenção no qual este próprio tempo parece não conseguir manter sua estabilidade e precisão. Desta vez, a encenação do filme não coroa sua estória com um refrão já conhecido como “o sertão vai virar mar” junto à imagem da esperança. Em vez da invocação da ruptura, do canto que anuncia 108

a consumação de um tempo radicalmente novo, “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” retoma no final o acento melancólico de seus frequentes instantes de imobilidade, em uma espécie de refluxo da vertente épico-mítica que notadamente marcou o ponto climático dos combates nele representado (XAVIER, 1993, p. 173). Tal refluxo, no entender de Ismail Xavier, recebe um sopro a mais no plano em que Antônio das Mortes se retira para voltar à cidade grande. Na beira da estrada, o posto de gasolina assinala o trabalho de um outro tempo alheio ao sacrifício de Coirana. Tempo que se move oculto em um mundo que cerca o cenário da luta e ameaça invadi-lo, mudando os termos do conflito em Jardim das Piranhas. Tempo que se faz presente nas falas de Antônio, de Matos e do próprio Coronel, mas, esteve ausente da cronologia das rupturas evocadas no início pelo professor. Tempo acumulativo da modernização tecnológica e do crescimento econômico (XAVIER, 1993, p. 173-174). Daí ser importante mencionar ainda que o cinema político de Glauber Rocha é pródigo na reconfiguração de lendas e de mitologias. Preocupado em captar o tempo, o vir-a-ser, ele abandona a “representação” para buscar o desvio, a diferença, o que foge à explicação. Neste sentido, a história passa a ter papel fundamental, já que as temporalidades são sua matéria-prima. O tempo linear do cinema clássico, produtor do mito, da representação, é abandonado em função de uma noção de tempo fluida, variada, figurativa e barroca, capaz de em um mesmo espaço, aproximar passado, presente e futuro, possibilitando a emergência da “imagem-tempo” (Ver: DELEUZE, 1990). Na película em questão, realça-se uma narrativa permeada pelo transe na qual o tempo é múltiplo, fato este que afeta a

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história, sendo que ela já não é nem a do passado nem a do presente ou a do futuro. Essa peculiar narrativa glauberiana reúne em uma perspectiva histórica, o passado, o presente e o futuro, que por si sós são fabulações, já que tornam possíveis o ato de fala e a recriação de lendas. Destruindo os mitos de seu povo “de dentro”, Glauber Rocha tenta produzir “enunciados coletivos capazes de elevar a miséria a uma estranha positividade, a invenção de um povo” (DELEUZE, 1990, p. 269). Percebermos que atores-personagens e o povo se direcionam, um para o outro, em um “duplo devir”, resultando a obra cinematográfica um próprio ato de fabulação. Este, enquanto uma palavra em ato, um ato de fala pelo qual a personagem nunca pára de atravessar a fronteira que separa seu assunto privado da política. É a palavra emitida como ato expressivo, poético, fora da linguagem articulada do cotidiano, em fuga das significações dominantes, criadora de sentido, instauradora de acontecimento, é a linguagem rompida de seu sentido usual. Linguagem, fala, palavra, que vêm perturbar o repouso dos sentidos. Daí o cinema do Terceiro Mundo, ser um cinema que fala, um cinema do “ato de fala”, ato este que constitui a fabulação enquanto memória (TEIXEIRA, 2003, p. 61) Nesse sentido, o cineasta defrontase com uma dupla colonização do povo: como uma “exocolonização” (das “histórias vindas de outros lugares”) e com uma “endocolonização” (dos “próprios mitos” transformados em “entidades impessoais à serviço do colonizador”). Frente a essa situação, não deve o autor “fazer-se etnólogo do povo” nem tornar-se inventor de uma “ficção pessoal” (TEIXEIRA, 2003, p.61-62). Ambos os caminhos constituem uma espécie de captura a serviço do colonizador. Resta

ao cineasta, para efetivamente tornar-se “agente coletivo” de um povo por vir, ou seja, tomar personagens reais e não-fictícios, mas colocando-as em condições de “ficcionar” por si próprias, de “criar” lendas, “fabular”. Assim, pode-se notar que a obra “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” ao colocar em cena as imagens e sons da história e da política, frenéticas e ritualizadas, procura linhas de fuga e desvios na arte cinematográfica e na sociedade terceiromundista, a fim de explorar suas virtualidades, visualidades e contradições. História, fábula e tempo se entrelaçam e passam a ser atualizados, reconfigurados, potencializados, no intuito de se compreender a prórpia realidade e contribuir para um novo patamar de experiências estéticas, políticas e culturais. Referências Bibliográficas: BENTES, Ivana. O Devorador de Mitos – Introdução. In: ROCHA, Glauber. Cartas ao Mundo. Org. de Ivana Bentes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 9-74. CASTELO, Sander Cruz. “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” (1969) e o terceiro cine: entre o cinema de autor europeu e o cinema clássico hollywoodiano. 2004. f. 93-94. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza. DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. Trad. Eloísa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 1990. NEMER, Sylvia Regina Bastos. A função intertextual do cordel no cinema de Glauber Rocha. 2005. f. 129. Tese (Doutorado) – Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro. RAMOS, Fernão Pessoa. (org). História do Cinema Brasileiro. São Paulo: Círculo do Livro, 1987. ROCHA, 1977 apud GERBER, Raquel. O mito da civilização Atlântica: Glauber Rocha, cinema, política e estética do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1982. ____. A Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

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Rodrigo Poreli Moura Bueno TEIXEIRA, Francisco Elinaldo. O terceiro olho: ensaios de cinema e vídeo (Mario Peixoto, Glauber Rocha e Júlio Bressane). São Paulo: Perspectiva/ FAPESP, 2003. TOLENTINO, Célia Aparecida Ferreira. O rural no cinema brasileiro. São Paulo: Ed. UNESP, 2001. VALENTINETTI, Cláudio M. Glauber Rocha, um olhar europeu. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi: Prefeitura do Rio, 2002.

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VENTURA, Tereza. A poética polytica de Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Funarte, 2000. XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. São Paulo: Brasilense, 1993. ____. O cinema brasileiro moderno. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

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DOI: 10.5433/2237-9126.2012ano6n11p111

Antes Ver para Crer, Hoje Digitalizar para Acreditar: a fotografia e o gozo estético da cultura visual Sérgio Luiz Pereira da Silva Doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. Atualmente é professor Adjunto de Sociologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO, onde atua como professor e pesquisador no Programa de Pós-graduação em Memória Social PPGMS/UNIRIO. Ao longo da sua formação acadêmica tem se dedicado aos estudos da cultura visual, esfera pública, memória social e identidades culturais. É autor dos livros: Sociedade de Diferença: formações identitárias, esfera pública e democracia na sociedade global, publicado pela Editora Mauad, e do livro Impressões Sociológicas Interdisciplinares: saberes partilhados e fronteiras do conhecimento, publicado pela Editorial Acadêmica Española. Também é fotógrafo documentarista com trabalhos publicados em algumas revistas brasileiras.

Resumo

A cultura visual desde meados do século XX ate hoje, com as tecnologias digitais, está vinculada a todos os níveis da vida social nos quais se desenvolvem varias formas de sociabilidade e conhecimento. A produção de imagens, como modo de reprodução de realidades documentais tem possibilitado a mudança da observação sociológico, antropológica e política, provocando com isso mudanças reflexivas a todas as áreas das ciências sociais. Com isso, o nosso modus operandi de percepção visual é ampliado instrumentalizado, agindo dentro de uma lógica de consumo imagético extremamente ampliado que incide no modo estético de nos apresentarmos e produzirmos saberes. Nesse contexto, a fotografia é sem duvida um dos principais artefatos visuais que contribuem para essas mudanças, estando ela ligada ao advento das novas tecnologias digitais. Palavras-chave: Cultura visual; ação social; fotografia.

Abstract

The visual culture since the mid-twentieth century until today, with digital technologies, this bound at all levels of social life which develop various forms of sociability and knowledge. The production of images is a prodution of realites documentary that has enabled the observation of the changing sociological, anthropological and policy, thereby causing reflexive changes to all areas of the social sciences. With that, our modus operandi of visual perception is magnified instrumentalized, acting within a logic of consumption imagery that focuses greatly enlarged in aesthetic mode of presenting ourselves and produce knowledge. In this context, the picture is not doubted a major visual artifacts that contribute to these changes, it being linked to the advent of new digital technologies. Keywords: Visual culture; social accion; photographie.

Recebido em: 25/07/2012

Aprovado em: 23/09/2012

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Sérgio Luiz Pereira da Silva

Antes Ver para Crer, Hoje Digitalizar para Acreditar: a fotografia e o gozo estético da cultura visual

Introdução Vive-se hoje a busca por uma finalidade estética com objetividade digital, na composição das coisas relativas à imagem. E isso tem de fato incidido em varias áreas inclusive no campo das relações e praticas sócio-culturais. Por exemplo, o campo de produção de imagens, como modo de reprodução de realidades documentais tem possibilitado a mudança da observação sociológico, antropológica e política, provocando uma mudança metodológica e reflexiva a essas áreas das ciências sociais. Acredito que isso se deva ao fato do aparecimento das mudanças ocorridas nesses últimos cinqüenta anos, nos quais vimos surgir o advento da chamada cultura visual cada vez mais presente nas mais variadas formas de vida da sociedade informatizada. A cultura visual desde meados do século XX ate hoje esta de forma indissociada, vinculada ao mundo da vida, no qual se desenvolve modo de vida cotidiano e se reproduz cada vez mais através de imagens digitais e efêmeras. O campo da fotografia digital amadora e profissional, como um artefato visual, fortemente presente nesse campo, é sem duvida um dos que mais contribui para esse desenvolvimento da cultura visual, por produzir, reproduzir, uma quantidade imensa de imagens que ocupa um grande espaço de visualidade social. A fotografia é hoje um artefato visual do cotidiano, que faz com que a imagens estejam

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inseridas em todos os níveis da sociedade com o advento das novas tecnologias digitais. Lidamos com uma riqueza de imagens de cada vez maior e isso tem mudado as forma de sociabilidade na sociedade, através da interação visual. A questão, a saber, é o quando dessa reprodução visual, pode substituir a realidade, transformando-a em mero objeto de registro. A Hipervisualidade do Real A estética não verbal, tão própria da sociedade contemporânea, dá as imagens, um poder relativamente grande de produção, reprodução, circulação e consumo através das varias formas de visualidades, vigentes na sociedade. Essa visualidade toma cada vez mais espaço frente a outras formas de expressão e percepção nas estruturas digitais da esfera publica dos nossos dias. O processo de circulação de artefatos imagéticos, videográficos, fotográficos, iconográficos e cinematográficos, alem de toda disponibilidade de informação imagético-perceptiva por cartazes impressos, baners digitalizados, luzes em neon e outdors presentes no espaço público, ampliam o raio de alcance dessa Cultura Visual, transformando-a em um tipo de prática cultural vigente, forte e estrategicamente montada como forma de controle voltada para o contexto do consumo assim como igualmente voltada para formas digitais de interação e sociabilidade, como as redes sociais da internet.

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Antes Ver para Crer, Hoje Digitalizar para Acreditar: a fotografia e o gozo estético da cultura visual

O nosso modo operando de percepção visual é ampliada instrumentalizada, agindo dentro de uma lógica de consumo imagético extremamente ampliado que incide no modo estético de nos apresentarmos. As pessoas de uma maneira geral, nos dias de facebook e outras redes sociais, propagam sua imagem, “seu retrato”, associado a um conjunto de imagens que possa representar como melhor ela “é”, através de uma expressão estética de como ela “esta” fotografada, através da digitalização de sua própria imagem. Ou seja, hoje as imagens fotográficas digitais e em HD (alta resolução), parecem apresentam melhor as pessoas, se comparada às imagens delas próprias em carne e osso. Vemos cada vez mais digitalmente e em alta definição, imagens das mais variadas formas dentro de uma estrutura de rede, web, com muito mais freqüência comparado a outras experiências visuais do nosso cotidiano. O exercício prático de nossa cultura visual é sobremaneira, efetivado pela nossa experiência com as telas, que são cada vez mais interativa através do touch screen. Isso se dá, sobretudo, pelo fato de cada vez mais nossa experiência com o olhar, em relação à realidade, ganhar mais forca perceptiva quando visualizada na tela do computador, do iphone, ipad, smartphone e outros instrumentos de interação comunicativa eletrônica. Recentemente pude passar por uma experiência interessante, relativo ao fato de ver a realidade (ou uma parte dela) se reproduzir espontaneamente nas telas desses dispositivos eletrônicos que cito acima. Seguramente o que contarei acontece em qualquer parte do mundo, mas talvez por esta fora de casa isso me chamou mais atenção. Morando em Cádiz, passei por uma experiência que me chamou muito atenção. Numa manhã ensolarada de outono, fui

visitar um amigo, que mora a trinta minutos de minha casa a pé, e como de costume fui andando ate sua casa. Era uma quinta feira, dia normal em que a maioria das pessoas está trabalhando ou ocupada com algo. Poucos metros antes de chegar ao meu destino, tive a infeliz experiência de ver o corpo de uma jovem de trinta e sete anos, que sofrera um acidente de trânsito, com sua pequena motocicleta, sendo atropelada por um caminha de gás próximo a uma área de retorno de uma via movimentada. A cena não era nada agradável, muito triste e tensa. Porém a forma como muitos do que presenciavam a cena reagiam a ela, foi o que me chamou muito atenção. Praticamente todos, registravam aquela imagem em seus telefones celulares, maquinas fotográfica e toda a forma de dispositivo digital que lhes eram possíveis. Realmente me impactou a forma e a necessidade dos transeuntes em gravar e fotografar a cena. Fora impressionante poder ver a mobilização todas aquelas pessoas registrando um acidente fatal, tão comum em cidades de trânsito intenso, como em certa medida é a cidade de Cádiz. A questão que me chamava atenção era a necessidade do registro e o arquivamento do fato nos cartões de memórias dos dispositivos visuais. Olhar, não era mais um ato suficiente. Gravar e fotografar o ocorrido e posteriormente, como pude comprovar, compartilhar nas redes sociais as imagens do acidente era o mais importante. Pareciam que todas aquelas pessoas eram jornalista da seção Cotidiano de algum jornal local. Ou seja, havia apenas uma frenética necessidade de se fazer o registro e compartilhar nas redes sociais, apenas isso. O nome da jovem que morreu, a forma como o acidente aconteceu, a investigação sobre a culpabilidade do acidente ocorrido, o impacto que a morte daquela pessoa iria provocar em

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outras pessoas próximas a ela, e por fim a morte daquela jovem de trinta e sete anos era questão secundaria, de menor importância para todos aqueles que disputavam um melhor angulo para filmar e fotografar o corpo no chão coberto por um pedaço de papel metálico providenciado pelos poucos policiais ali presentes. Gravar a cena era a questão crucial para quase todos que ali estavam. Refiro-me a quase todos, porque havia os que os que passavam olhavam e expressavam total indiferença e outros poucos que expressavam indignação. Para a maioria de fato, se fazia necessário apenas apertar o “Rec”, tecla de gravação dos dispositivos eletrônicos e dirigir as lentes para o “corpo estendido no chão”. E nesse caso nem “o silêncio servia de amém”, como diria a letra do samba do Aldir Blank e João Bosco. Esse fato descrito aqui é importante para a nossa reflexão por colocar em questão a relação entre ética, estética e visualidade digital, dentro dessa cultura visual. Esse fato, da morte da jovem no transito, nos faz lembrar a experiência vivida pelos fotógrafos Kevin Carter, Greg Marinovich, Ken Ooterbroek e João da Silva, relatado no livro Bang, Bang Club, publicado por Greg Marinovich e João Silva (2010). Claro que guardo as devidas proporções se comparado o fato do atropelamento em Cádiz, em relação ao contexto de guerra Étnica na áfrica ocidental que os fotógrafos do Bang, Bang Clube, viveram. O livro relata a vida profissional dos fotógrafos acima citados, destacando uma questão ética fundamental vivida por todos. O exercício do olhar do jornalismo fotográfico frente à questão da existência humana. Ou o quanto pode parecer demasiadamente importante e/ou necessária, a busca por uma fotografia que apresente o que possa 114

haver de mais desumano e num contexto de guerra, considerando apenas o fato viável do ponto de vista fotográfico em detrimento do contexto maior que ele esteja inserido. Os quatro fotógrafos atuaram na áfrica ocidental e ganharam vários prêmios importantes em suas carreiras. Indiscutivelmente o trabalho realizado por eles tem um caráter de denuncia fundamental, o impacto que as fotografias mostraram, teve força para mobilizar a opinião publica e com isso produziram mobilizações política de todos os cantos do mundo, dentro daquilo que a analise que faz a Susan Sontag (1983) em Sobre a Fotografia e o poder de mudança social e político que pode proporcionar a imagem fotográfica do ponto de vista jornalístico. O que destaco não é o conjunto fotográfico documental desses fotógrafos, mas a questão que compreende a necessidade do registro visual, a todo custo, para a reprodução imagética da realidade social, em que algumas vezes o valor estético se sobrepõe ao ético. No livro, dentre vários episódios insólitos é narrado o fato de Kevin Carter presenciar uma criança esquálida sentada ao chão sendo espreitada por um abutre que esperava sua morte pacientemente para que seu corpo fosse sua comida. O fotografo registrou a cena que repercutiu com grande impacto em praticamente todos os meios de comunicação de massa no mundo e o fez ganhador de um Pulitizer, um dos maiores prêmios relativos ao reconhecimento do trabalho jornalístico mundial. Sem sobra de duvida, aquela imagem é reconhecida pela critica internacional como uma das mais impactantes na historia da fotografia jornalística contemporânea. O que destaco aqui é o seguinte fato: Quando interpelado, num programa de entrevista sobre qual foi a ação dele em

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relação aquela criança, depois de ele ter realizado aquela foto tão impactante, a resposta foi “NADA”. Ou seja, o exercício de um olhar fotográfico profissional, exercido através de lentes que captam detalhes que não podem ser captados a olho nu, numa situação em que se encontra um ser humano faminto, esquálido e esquecido em um terreno vazio, por todos que por ele poderiam se interessar, sentada diante de um abutre igualmente faminto, foi o de não fazer nada, a não ser registrar a imagem cruel através do ato fotográfico e reproduzi-la nos meios de comunicação de massa. Isso nos faz refletir sobre o exercício instrumental do olhar fora e sua relação com a questão da consciência humana. Coloco em destaque a seguinte questão: o registro e a digitalização do olhar nos nossos dias retiram, não apenas o valor da contemplação da mirada, mas, o sentido ético que ela pode remeter dentro do contexto do que a Hannah Arendt (2010) refletiu sobre a condição humana. O processo da ação social do olhar e o sentido nele contido perde completamente importância se a esse não é atribuído consciência. A condição humana ainda é mais importante que os fatos sociais isoladamente constituídos. Quanto a isso gostaria de destacar os trabalhos fotográficos do Sebastião Salgado, que contextualiza sua fotografia dentro de um projeto de humanidade, e a transforma em instrumento político de mudança social na sociedade global. O olhar fotográfico do Sebastião Salgado por mais que possa parecer instrumental, em retratar a miséria humana atende a um compromisso de consciência social que citamos antes. O que faz da ação social do seu olhar uma atitude ética e politicamente engajada, podendo ser vista

em trabalhos como Exodus (2000), Retratos de Los Ninos de Exodus (2000), Outras Américas (1999), Trabalhadores (2007), África (2010) e Terra (1997). Nesses livros citados podemos ver a experiência do olhar jornalístico fotográfico atuando dentro do campo da cultura visual com engajamento critico, promovendo uma forte influencia critica na opinião publica mundial. A Experiência do Olhar na Construção da Imagem Fotográfica O exercício do olhar no contexto c o n t e m p o r â n e o , a c e rc a d o d e t o d a disponibilidade eletrônica dos meios digitais atuais, facilita sobrevalorização do registro imagético e o seu compartilhamento social, como já falamos. Nesse sentido, os registros fotográficos, ampliam as condições de possibilidade do exercício da participação social e política com a divulgação de acontecimentos e fatos que seguramente o olhar de transeuntes e pessoas comuns, munidas de pequenos equipamentos fotográficos e videográficos divulgam imagens que dificilmente os meios de mass mídia teriam acesso. Seguramente isso proporciona uma maior participação democrática e dinamiza a cultura política participativa. Esse aspecto por um lado, enriquece e dinamiza o processo democrático de acesso e distribuição de informação; por outro, pode na mesma medida, produzir uma banalização de questões que seriam importantes, na medida em que, muitas vezes as imagens são tratadas de forma efêmera, em seu contexto de produção, reprodução e consumo. Os registros imagéticos, dentre outras coisas, adquirem um valor de representação fiel da realidade pressuposto pela promoção do compartilhamento social espontâneo em

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rede. Agora digitalizado, esse registros, em cores vivas e mais atraentes que realçam um realismo facilitado pelos aplicativos digitais, são formadores de uma opinião publica espontânea. A imagem registrada, representada e reapresentada tem força de convencimento e atrai a opinião do publico que acessa as redes nessa esfera publica eletrônica e divulga os fatos sobre valorizando o valor estético da imagem quase sempre desconsiderando o contexto histórico, social, cultural, religioso, político e, sobretudo ético que a esses fatos estão relacionados. Uma morte por acidente de tráfico, como o citado em linhas acima, tão comuns nos dias atuais, demanda registros digitais fácies de serem feitos, por qualquer pessoa, transformando o fato em um evento visual de grande atenção. E o compartilhamento através das redes sociais, tem o poder de transformar esse fato em um evento social quase que festivo, pela forma como o senso comum das pessoas estão atentas à questão estética da imagem captada e processada em detrimento da ética. É conhecida a máxima “uma imagem vale mais que mil palavras”, mas creio que no contexto contemporâneo dos dispositivos digitais, o poder do registro e compartilhamento das imagens, parecem não valer apenas mais que o poder das palavras, mas valem, a priori mais que a própria experiência do olhar. Com isso afirmo que o registro do olhar vale mais que o próprio olhar. Antes, na máxima de São Tomé, era preciso “ver para crer”, hoje, no mundo digital, pós-convencional é preciso registrar e compartilhar digitalmente para que se possa acreditar nas coisas socialmente experimentadas. Esse é um dos fatores que atribui poder a cultura visual, acreditando116

se no que se registra visualmente, para que se produza uma espécie de consumo visual. Inclusive de nossa própria imagem, dentro dessa lógica criamos imagens de nossa própria imagem para parecermos esteticamente viáveis. A representação de nossa imagem e a propagação de nossas formas de representações estabelecem novos critérios estéticos sobre as formas identitárias Silva, (2009). As formas como produzimos nossa identidade visual atende a padrões estéticos cada vez mais exigentes e cada vez mais distantes sobre o conceito de belo que aprendemos com os gregos. Para os gregos, o conceito do “Belo” atendia a valores estéticos definidos pelo equilíbrio das formas, o que pode ser entendido pelo princípio da simetria. Hoje as formações estéticas são mais singulares fora do que podemos definir por uma homogeneidade do que venha a ser concebido como belo. O nosso modo de visão ocidental durante cerca de duzentos anos, nos proporcionou uma forma teleológica relativa à visão e a razão, ou seja, a nosso modo de ver e o que pensamos sobre o que vimos. É dentro desse sentido que o conceito de Estética se traduz por percepção. Vemos para “crer”, vemos para “sentir”, vemos para “entender”, e nos dias atuais vemos para “ter” e para “ser”. Isso fez e faz da nossa forma de olhar, um instrumento objetivo, olharmos de forma centralizada e instrumentalizada. Essa forma moderna de visão esta fundada no que considero ser a ação social do olhar. Defino por ação social do olhar um modo de operação visual, teleologicamente estruturado, pautado em meios instrumentalizados e formas estéticas, no qual meios e fins recortam a realidade imagética e a representam de

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forma objetiva. A ação objetiva do olhar dota a imagem de sentido em si, muitas vezes descontextualizada dentro do seu próprio registro. Quase nunca nos perguntamos sobre o que estaria fora das margens e dos limites daquele quadrante fotográfico que define a foto. E muito menos nos damos conta que a fotografia é uma escolha que fazemos sobre o que vamos incluir e o que vamos excluir na hora do click. Uma fotografia por mais fiel que possa parecer em relação à realidade, ela é uma escolha sobre o que vamos recortar da realidade. Um recorte sobre o todo que vemos, ou seja, a captura intencional, e às vezes não, de uma parte do que se vê, pela valorização do olhar. Roland Barthes (1989) discute isso de forma muito interessante quando reflete sobre a denotação e a conotação na fotografia. A condição aparentemente objetiva e direta da fotografia durante seu primórdio, a revelou como instrumento científico e só aos poucos e essa conotação foi perdendo espaço para outros atributos expressivos constitutivos do campo fotográfico. O campo fotográfico tem interface com vários outros campos, sobretudo ao campo da sociabilidade cotidiana, no qual muitas vezes se faz arte. Esse campo artístico é visto como um campo no qual todos podem e devem assim queiram, fazer arte e produzir conhecimento e isso foi possível à medida que a pratica fotográfica, com as maquinas de pequeno formato foi sendo incorporada as pratica sociais no segundo quartel do século XX vinte e hoje esta indissociadamente vinculada ao cotidiano digital de todos no século XXI. Bourdieu (2003) apresenta a fotografia como uma arte menor que qualquer um dotado ou não de talento pode exercer e isso

é verdade, se consideramos que o processo de criação fotográfica se da não apenas com o ato fotográfico, mas com todo processo pósfotográfico de seleção, edição e exposição da imagem fotográfica. A fotografia hoje indiscutivelmente é arte, mas ao mesmo tempo ela se pretende como documento, memória, historia e varias outras coisas, até objeto sociológico. O sentido fotográfico com isso se constitui em interpretação e apresentação e é dentro desse aspecto que a fotografia se transforma num objeto distinto da realidade. E por mais próxima que essa possa estar em relação ao que foi fotografada ela é um ato de representação da realidade. Acredito haver uma relação dialética entre imagem e realidade, através desse jogo de representação e isso igualmente acreditam que fotografia é uma representação da representação dentro da cultura visual. Nesse ato de representação a ancoragem do real é centralizada na imagem sobre o real. Concluo afirmando que a fotografia, em seu ato complexo nunca vai se constituir na fidelidade a realidade, mas sim num contexto de sua interpretação estruturado pela centralidade do olhar. É com base na relação entre ação social do olhar e imagem que esse texto aponta questões sobre como definir a centralidade do olhar como uma forma de ação social dialógica e necessária nessa sociedade da informação efêmera na qual se estrutura a cultura visual. Objetividade Imagética e o Gozo Estético da Cultura Visual Antes de qualquer coisa, definimos por cultura visual o processo de produção, distribuição e circulação de conjuntos imagéticos e mensagens visuais que

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expressam as forma estéticas de comunicação da imagem nos âmbitos de sociabilidade dos espaços privados e públicos. Na sociedade pós-convencional na qual vivemos, a supervalorização, a superexposição e a super visualização de mensagens imagéticas convive paradoxalmente com a nossa incapacidade de absorver o volume de mensagens que essa cultura visual nos proporciona. O nosso senso comum e a nossa razão pratica são, em certa medida, incapazes de instrumentalmente conhecer e tomar consciência dessa exacerbação imagética contemporânea. O paradoxo se funda na contradição entre a riqueza da experiência visual e a incapacidade de lidar com a imagem dentro de um campo de conhecimento mais apropriado. Isso justifica o fato de que há uma riqueza a experiência visual no mundo contemporâneo e com isso é preciso desenvolver uma habilidade de analise desse campo cultural. Nesse sentido, a cultura visual é uma “tática para estudar a genealogia, a definição e as funções da vida cotidiana pós-moderna [...]”. (MIRZOEFF, 2003, p. 20). A sociedade contemporânea é marcada pelo advento da hipervisualidade, um bombardeio de mensagens visuais que cumprem o papel de colonizar a consciência, segundo Martin-Barbero e German Rey (2001) o papel que a televisão e os meios pluridirecionais de medias assumem na sociedade contemporânea, redefine a ordem e o poder da cultura visual. A televisão como a principal mídia unidirecional é a mídia que tem o maior poder de desarticular e rearticular o campo cultural e em especial o campo da cultura visual, com sua bipolaridade entre realidade e ficção, ócio e trabalho e vanguarda e atraso e isso se dá pelos processos de percepção desarticulados entre espaço e tempo no mundo medido pela ação interativa imediata. 118

Há com isso uma desarticulação e uma desterritorialização da forma de perceber visualmente o próximo e o longínquo, [...] que tornam mais perto o vivido ‘a distancia’ do que aquilo que cruza nosso espaço físico cotidianamente. E paradoxalmente, essa nova espacialidade não emerge do itinerário que me tira o meu pequeno mundo, se não, ao contrário, da experiência domestica convertida pela televisão e pelo computador nesse território virtual ao qual, como expressivamente disse Virilo, todos chegam sem que tenha que partir (Martin-Barbero; Ray, p. 34.).

Em outras palavras interagimos com o a ação do olhar no mundo ao mesmo tempo constituído por uma realidade virtual e uma virtualidade real. O olhar tem uma função social especifica na sociedade da informação visual e uma de suas principais funções é experimentar imagens, com o poder sensorium determinado pela intensidade da cultura visual, ou seja, pelo poder da hipervisualidade. Essa hipervisualidade sensorial advinda da imagem televisiva assim como pelo hipertexto no fluxo da esfera pública da web, fabrica o presente instantâneo. Esse presente instantâneo, mantido pelo olhar fixo no monitor aceso, cria um culto à simultaneidade da informação visual, a presentificação da imagem é descontextualizada e altista, e enche a sociedade de projeções imagéticas sem relação entre si, mas não possibilita nenhuma noção de projeto ou de futuro, segundo Martin-Barbero e Ray (op. Cit). A experiência do olhar lida com uma bricolagem no qual tempo e espaço são determinados por uma intensidade instantânea e simultânea, em detrimento da extensividade do tempo histórico. O olhar em seu contexto pragmático adquire a função de agente desprovido de consciência critica.

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Com base nisso, refletimos sobre a questão da cultura visual se constituir numa pratica cultural que fundamenta um valor de sociedade na qual a imagem tem poder social, ideológico e político, logo podemos definir que olhar é uma ação social, dotada de sentido dialógico em relação à informação visual, mas ao mesmo tempo a ação social do olhar perde sua capacidade crítica. Nesse caso a experiência estética da imagem calçada no imaginário visual dessa cultura da informação inibe a função crítica da ação social do olhar. Isso parece demonstrar que a frase em que se diz que a imagem vale mais que as palavras mantêm ambivalências desconexas. Representação e realidade integramse num fluxo de exaltação expressiva da efemeridade condensados numa espécie de gozo estético (Martin-Barbero e Ray op cit), que é realizado pela ação social do olhar na sociedade contemporânea.

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experiência didática



DOI: 10.5433/2237-9126.2012ano6n11p123

O Ensino da Cultura Brasileira através do Cinema

Víctor Amar Doutor e professor do Departamento de Didática da Universidade de Cádiz-Espanha. Diretor do grupo de pesquisa Educom, Educación y Comunicación da Junta de Andalucía e diretor da revista http sobre educação e comunicão da Universidade de Cádiz-Espanha.

Resumo

O cinema é algo mais que um divertimento. Pode ser utilizado pelas pessoas implicadas nos processos de ensino como uma ferramenta. Mas devemos amar e conhecer o cinema. No contexto espanhol não é muito frequente falar da cultura brasileira. Temos notícias pela televisão que nos fala de praias, futebol e samba. Nós temos de desmontar estes apriorismos com estratégias didáticas e planejamentos metodológicos idôneos. Olhar o cinema brasileiro pode ser um grande recurso para o ensino da cultura brasileira, só temos que abrir bem os olhos, refletir, observar e compartilhar o conhecimento através do diálogo. Palavras-chave: Cinema; ensino; didática; cultura brasileira

Abstract

The cinema is something more than entertainment. It can be used as a tool by people involved in the teaching process. But we should love and know the cinema. In the Spanish context, is not very frequent to talk about Brazilian culture. We have television news talking about beaches, soccer and samba.We have to disassemble these apriorisms with teaching strategies and reputable planning methodology. To look at Brazilian cinema can be a great resourse to teach Brazilian culture, we just have to really open our eyes, reflect, observe and share knowledge through dialogue. Keywords: cinema; teaching; didacticism; Brazilian culture

Recebido em: 22/07/2012

Aprovado em: 20/09/2012

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O Ensino da Cultura Brasileira através do Cinema “En el cine, incluso la naturalidad es algo que se fabrica”

(Manuel Gutiérrez Aragón, director de cine español)

Introdução Talvez seja pouco usual que na Espanha exista a preocupação por estudar a cultura brasileira. Sem dúvida a herança da televisão e dos noticiários esportivos tem criado uma ideia da cultura brasileira muito encaixada, onde se mistura um monte de aspectos desde uma invenção romântica até uma grande olhada sobre o folclore, apresentando um sentimento idílico da natureza, a música, o futebol ou a gastronomia – e sempre em menor grau a literatura, o cinema, o teatro ou as artes plásticas. Pela tela da televisão temos caminhado pelas praias do Rio de Janeiro, temos entrado numa favela e escutado a voz dos favelados e suas problemáticas sempre desde a perspectiva da notícia, aliás temos escutado um samba de roda ou temos assistido uma partida de futebol, inclusive temos acompanhado o último sucesso musical do momento no Brasil. Sabemos quem é Pelé ou Neymar, conhecemos a Xuxa ou Michel Telló. Também temos colegas ou familiares que têm viajado para o Brasil. Em suas malas levam lembranças de todo tipo, mas a cultura vira negócio. Assim, adquirimos um olhar muito particular e recortado (até errado) dum macro país de extensão continental. Conseguimos uma visão global de um território muito amplo que fica aglutinado e homogenizado por causa da televisão e de negócios que ficam grudados nesta tela. Quer dizer, nossa relação com a televisão não é de recusar, tão só lembrar que mostra, 124

segundo seus interesses, uma perspectiva da realidade muito fechada e previsível deste país. Nossa proposta passa por seguir assistindo à televisão, mais agora, sobretudo, mudando de tela e de formato. A tela seria do cinema, embora o formato poderia ser de um livro e, ainda melhor, misturar ambas propostas e olhar desde a varanda privilegiada da literatura e o cinema para comprender uma realidade plural e em contínua construção cultural como é o Brasil (Avellar, 1994; Caldas, Montoro, 2006). O interesse pela cultura brasileira existe na Espanha. É lógico, do contrário seria negar uma obviedade que é mais que midiática, pois os laços culturais existem desde a época de Felipe II, além do fato de compartilhar uma grande fronteira com países de fala espanhola ou vinculando com a história do cinema brasileiro. Lembramos de Francisco Serrador, um valenciano que foi o criador da Cinelândia carioca ou a Oscarito, um andalus que foi o maior sucesso nas chanchadas do meio século, até o filme antigo intitulado “A marcha do Cádiz” (1910) de Henrique de Carvalho. E, atualmente, a Espanha foi o país de acolhida de muitos brasileiros e brasileiras que tentaram um modelo de vida, possivelmente, melhor... aliás dum tempo para cá o Brasil é um de nossos países de acolhida por causa da crise econômica que a Europa está sofrendo. Mas a questão é saber olhar para a tela do cinema e ver nela uma expressão e produto cultural de grande interesse (Amar,

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O Ensino da Cultura Brasileira através do Cinema

2009). Ao mesmo tempo é preciso ter uma bagagem literária para acompanhar o desenvolvimento de uma cultura de difícil exploração, pois não é o mesmo falar do Sul através da literatura de Érico Veríssimo que acompanhar o Sertão segundo Euclides da Cunha. Do mesmo jeito que não é o mesmo ter um olhar cinematográfico da cidade maravilhosa do Rio de Janeiro através do doce balanço da “Garota de Ipanema” (1967) de Leon Hirszman, que pelo sofrimento do protagonista de “Cidade de Deus” (2002) dirigida por Fernando Meirelles e Kátia Lund. Nesta introdução apresentamos um olhar interessado como é a que tem a televisão, embora na frente de outro olhar com interesse como é a combinação do cinema e a literatura. Não é excluir a televisão de nossas vidas, de nosso cotidiano, é buscar um olhar sobre uma tela maior, não só no tamanho senão em sua consideração de análise e interpretação, junto a uma literatura inspiradora e que abra o percurso de exploração por um conjunto de Estados federativos – que com sua própria identidade contribuam a dar uma visão geral e considerações sobre um Brasil heterogêneo. Então nossa proposta do ensino passa pela motivação, a simples e atrativa motivação dentro dum contexto por explorar, longe de ser nossa proposta de ensino a única possibilidade de conhecimento. Quer dizer, o interesse deve estar nos alunos que demanda nossa experiência e a partir daí, o trabalho em comum vira uma realidade. Uma proposta de ensino Sem ter que falar muito de metodología de ensino, nossa perspectiva se inspira em uma proposta participativa e de dar atenção a uma realidade dentro da sala de aula. Um grupo de alunos e alunas vão a compartilhar não só um espaço

físico e uns interesses curriculares, embora também uma experiência num processo de ensino-aprendizagem. Tradicionalmente, a proposta está elaborada pelos professores quem tem a responsabilidade de orquestar um procedimento formativo, inspirado no professor que fala e uns estudantes que tomam nota dos conteúdos, e na data da prova – quanto mais parecido tenha o que o professor falou na sala de aula com o que o aluno escreveu em sua folha, maior será a nota. Talvez, exista um espaço para a crítica e as valorações pessoais, mas o mais normal é dar resposta às perguntas. Nossa proposta é mais flexível. Não é debater se é melhor uma que a outra, só ter presente que outra proposta é possível. Neste contexto os alunos tem seu protagonismo e temos que considerá-los como parte integrante do processo, não só como uma parte receptora e passiva. Sendo assim, eles é que dão sentido a nossa proposta, inclusive temos que ter a maturidade de saber modificar nosso desenho inicial segundo os interesses emergidos na sala de aula. Não é dar resposta aos caprichos dos alunos, é tramar uma estratégia metodológica e didática coerente, outorgando a voz à outra parte no processo que estava calada, fora das iniciativas e da gestão do conhecimento. A ideia que inspira esta estratégia metodológica de trabalho grupal é dotar de sentido aos alunos, prioritários neste processo, sendo que temos que lhes impulsionar para conhecer, pesquisar e compartilhar o saber. Do contrário, eles continuam repetindo e a avaliação seria semelhante a um fato numérico. E na perspetiva da didática esta deve ser participativa e ativa. Neste sentido, somos da opinião que temos que inspirar um bom ambiente de trabalho e, sobretudo, criar a necessidade de seguir aprendendo. Não é cumprir com

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uma experiência que poderia ser interpretada como novidade, é torná-la inovadora no fato de aprender, continuar aprendendo, a partir dum trabalho prévio. Ou seja, não é chegar à sala de aula “iluminado”, num determinado dia e mudar a metodologia. Trata-se de uma programação certa e escrupulosamente elaborada. Portanto, temos que conhecer a realidade e a sensibilidade de nossos alunos, aliás de adotar bons materiais de trabalho, pesquisa e estudo, além de uma prévia planificação e orientação desses alunos. Estando as temáticas possíveis expostas temos que estabelecer e manter um bom ambiente de trabalho, onde o diálogo, respeito e a consideração não sejam uma exceção. Ao contrário, estas requisitos devem ser a norma geral no dia a dia. Asimismo, el cine es un medio que se puede utilizar en el contexto del aula como transmisor de conceptos, actitudes, conductas, valores o contravalores, entre sus muchos usos. Aunque no sólo ha de utilizarse como un mero transmisor, ya que el cine en sí presenta la opción de analizarlo, hacerlo, disfrutarlo, compartirlo... e incluso utilizarlo a modo de forum (de debate) (Amar, 2003, p. 17)

Portanto, a atualização dos materiais de estudo tem que ser constante, assim como a disponibilidade, já que temos que dar resposta sistematicamente às dúvidas e interesses de todos e cada um dos alunos e alunas. O olhar global sobre a cultura brasileira é necessária e compatível em atender às diferentes sensibilidades de caráter mais particular. E, com certeza, a combinação de ambas estratégias didáticas e metodológicas assegurariam o êxito pelo conhecimento, ficando dessa forma apaixonados por essa cultura brasileira que pode dar a impresão que está longe de nós, aqui na Espanha, mas que no fundo fica próximo de nossa parte afetiva no processo 126

de ensino-aprendizagem, e que dá resposta às nossas sensibilidades, gostos, interesses ou, simplesmente, preferências. Neste processo a ideia é aprender a partir da própria motivação desses indivíduos e que isso os leve a aprender pesquisando, experimentando segundo suas prioridades. Dessa maneira, não só vamos conseguir indagar no conhecimento senão, também, vamos fazer um grupo de estudantes grudados onde as relações interpessoais e sociais sejam muito importantes. Aqui a cultura brasileira não só será uma parte do apartado curricular, se trata de extendê-la como uma experiência que forma parte do grupo. E neste processo do projeto são fundamentais os estudantes, e é imprescindível conseguir uma boa dinâmica de aula, mas é necessária uma excelente função dos professores que tem que gerar dúvidas – sinônimo daquele elemento que incentiva a pesquisar e o desejo por compartilhar com os demais a cultura brasileira. Assim, o cinema será nossa ferramenta de atuação. Não será uma recompensa que os professores dão quando os alunos se mostram atentos a uma lição, agora, o cinema se torna um agente metodológico e didático de intervenção, onde o olhar não só deve ser crítico, analítico ou reflexivo senão, também coerente e ativo. O cinema no contexto da cultura brasileira Não podemos esquecer que o cinema é um produto cultural, o resultado de muitos processos desde criativos a econômicos. O cinema brasileiro está sujeito a instabilidades, momentos criativos que segundo Isabella Souza “Não existe uma linha cronologicamente reta, como existe no cinema francês, no cinema russo. No caso do Brasil, cada ciclo cinematográfico surgia como se este estivesse inaugurando o cinema brasileiro”. (2004, p. 25)

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O Ensino da Cultura Brasileira através do Cinema

Neste tipo de recurso metodológico, temos que ter presente desde o grau de fabulação do filme até o nível interpretativo de nossos alunos. Por isso, trabalhar o cinema nas aulas está sujeito às intenções que, apesar do divertimento precisam mergulhar nas possibilidades para a descoberta e exploração da cultura brasileira. Posteriormente poderiamos falar do grau de verdade que eles têm, mas o primeiro passo é ficar na frente da tela e nos transformamos em expectadores, sendo capazes de separar com nosso olhar a verdade do que não é verdade, saber o que está omitido ou, simplesmente, o que é fruto do esquecido, da censura ou que não interessou ao diretor e à equipe criativa ou de roteiro do filme. A cultura brasileira, em nosso contexto espanhol, está cheio de apriorismos que devemos desmontar e fazer entender aos nossos alunos que o Brasil é algo mais que as praias, o futebol ou o samba. Quer dizer, temos uma herança muito grande da cultura do sul/sudeste do Brasil e mais exatamente do Rio de Janeiro e São Paulo. Mas conhecemos o centro-oeste, o nordeste ou o norte do Brasil? O cinema chega sobretudo pela televisão (que não passa muitos filmes brasileiros, mas é provável que assista um ou outro de sucesso), por Internet (às vezes, depois de um interesse midiático procuramos assistir, escutar, ler algo mais) ou pelo cinema comercial (que chega pouco em função da invasão do cinema norteamericano) e em menor medida com os festivais (sendo motivo de um ciclo ou cinematografía convidada; mas é uma opção de público minoritária). E, por isso, faz falta introduzi-lo através dum pretexto, seja literário (sucesso midiático como é Jorge Amado, no passado, ou Paulo Coelho, no presente), cultural (por exemplo o carnaval que é acompanhado pelas televisões da Espanha pelo menos em reportagens

e noticiários) e até desportivo (no caso do futebol, por exemplo, quando é notícia que um time como o Barcelona tem uma escola de futebol numa favela do Rio de Janeiro com formação para as crianças não só esportiva, também em valores). Ou seja, temos que procurar um incentivo que motive a iniciativa de aproximação pelo cinema brasileiro e sua cultura em geral. Não é cair no esnobismo de escolher o cinema brasileiro pelo exotismo que poderia ter para um contexto europeu, onde o sol e a exuberância enche a tela. Trata-se dum objeto de estudo complexo que não pode ser usado e jogado no lixo uma vez que acabou a experiência formativa. Trata-se de uma oportunidade de conhecer e saber que existem outras manifestações culturais além do samba, das praias ou do carnaval. O propósito educativo é crescer como pessoas, atendendo às múltiplas realidades existentes nesse país com problemas sociais, econômicos ou de desenvolvimento, mas que existem pessoas de grande valor humano, aliás, o país conta com uma riqueza histórica (Ouro Preto em Minas Gerais...), literária (de inspiração gaúcha, modernista, sertaneja...) e cinematográfica muito importante (Cinema Novo, Boca do Lixo, Embrafilme ou Vera Cruz, chanchada e pornochandada...). Vale ressaltar que há grandes univesidades (públicas ou particulares, católicas ou protestantes), um interessante patrimônio arquitetônico (Oscar Neimeyer), natural (Amazônia) ou ecológico (Capão na Bahia, Pantanal no Mato Grosso ou Iguaçu no Paraná), assim como é uma nação emergente com grandes possibilidades no futuro. Neste sentido, nossa proposta de ensino do cinema no contexto da cultura brasileira não é só histórica ou sociológica, pois no âmbito espanhol temos que procurar instrumentos de aproximação à cultura que estamos estudando. Não é falar da

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importância do cinema brasileiro com uma visão erudita. Muito pelo contrário, devemos mostrar aquela parte que entusiasma os alunos e após a motivação colocar dados de interesse para uma melhor comprensão. Temos que imaginar frente à tela realidades possíveis. Um pretexto, bem escolhido, deve nos levar para a exploração do universo

brasileiro. Devemos trabalhar com um efeito cachoeira levando o conhecimento por detrás da motivação e na frente do estudo pormenorizado. Do contrário vamos incorrer no efeito academicista do estudo do cinema. Para nós, não são apenas dados. Trata-se dum pretexto para conhecer uma cultura onde as imagens servidas pelo cinema são o vestibular para aceder ao conhecimento.

Fonte: elaboração própria

O olhar do cinema brasileiro, por exemplo, do filme Mandacaru Vermelho (1961) dirigido por Nelson Pereira dos Santos é um pretexto para conhecer o Sertão, a Caatinga e a Chapada Diamantina. Mas não é uma lição exclusivamente de geografia brasileira do estado da Bahia. Trata-se da desculpa perfeita para falar dos paus de arara, da imigração ao Brasil (sobre tudo em São Paulo), o desenvolvimento de uma região, das características multiétnicas de um território, da gastronomia, da religiosidade... E tudo vai ir caindo, como o água cai da cachoeira, levado por um discurso persuasivo, cheio de sensibilidade de uma terra exposta ao sol. Neste momento podemos falar de literatura, por exemplo, de Graciliano Ramos com duas obras como são “São Bernardo” (1934) ou “Vidas Secas” (1938) ou da música de

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Milton Nascimento com canções como “O sol”, “Estado do sol” ou “Promessas do sol”. Do mesmo jeito, a cidade do Rio de Janeiro pode ser conhecida e reconhecida pelo cinema. O filme de herança neorrealista “Rio Zona norte” (1957), dirigida por Nelson Pereira dos Santos, seria uma versão em preto e branco para ver uma história de pessoas boas que têm que se virar na vida, onde o samba e as relações humanas são importantes, não como algo frívolo, mas como elementos que conformam a própria vida. A visão colorida do Rio de Janeiro na noite pode ser assistida na segunda parte do filme “Pixote, a lei do mais fraco” (1981) de Héctor Babenco e já não só falaríamos do Rio mas também do diretor argentino que seria o pretexto para conhecer uma época do Brasil, a ditadura, o exilio, e sobetudo a vida

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destes meninos de rua que vivem sofrendo. Embora Babenco não tenha vivido no exílio, entretanto seria uma oportunidade para falar do exílio, e inclusive saber que Glauber Rocha, um dos mais grandes cineastas brasileiros morou na Espanha, ou então começar a falar do autoexilio em Parati, de Nelson Pereira dos Santos. Mas a poesia também deve estar no estudo e para isso vamos assistir ao filme “O padre e a moça” (1966) dirigida por Joaquim Pedro de Andarde a partir do poema de Carlos Drummond de Andrade, onde a métrica é o começo dum grande caminho pelo cinema novo e pela poesia, a religiosidade, as relações humanas, etc. Ou bem acompanhar a realidade das favelas com o filme “Tropa de elite” (2007) dirigida por José Padilha, dentro do contexto da política, colocando à mostra um Brasil com vontade de mudar, mas com grandes coisas por fazer, onde a violência ocupa e preocupa. Contudo, o importante é ter bons conhecimentos da cultura, realidade plural do Brasil e do cinema. O cinema é um instante mágico que serve para movimentar intenções educativas. A partir dessa iniciativa começamos a falar da cultura e também é um momento em que os professores juntos com os alunos possam trabalhar em comum com uma bateria de ações didáticas que simplifiquem o que nós temos chamado de “o ato de queda da cachoeira”. Ideias sobre o cinema brasileiro Não é mostrar uma história do cinema brasileiro, pois temos livros e páginas da Web que fazem um extraordinário trabalho. Nossa proposta de ensino passa por relacionar contextos cinematográficos com a cultura brasileira. Não é complicado, só precisamos de algumas dicas que exemplifiquem nosso labor. Por exemplo, o fato da imigração e

a pluralidade étnica poderia ser abordado levantando a quantidade de sobrenomes dos diretores de cinema brasileiro: Arturo Carrari, Walter Hugo Khouri, José Mojica Marins ou Carlos Diegues. Quatro contextos pessoais e culturais que marcam momentos da história do cinema brasileiro. Quer dizer, nosso pretexto não passa exclusivamente em dar uma aula de história, já que para isso temos os especialistas nessa matéria, nossa estratégia didática se estabelece sobre os sobrenomes destes cineastas de origens diferentes para falar da história do cinema brasileiro. No caso de Arturo Carrari – para falar dos pioneiros do cinema brasileiro (Noronha, 1994) – um cinema mudo que ficou apaixonado pelas notícias de crimes como em “Os Estranguladores” (1906) ou “O crime da mala” (1909). Al mismo tiempo aparecen las primeras comedias (Júlio Ferez, Nhô Anastásio chegou de viagem <El señor Anastasio vuelve de viaje, 1908>), adaptaciones literarias, melodramas, comedias de costumbres, obras satíricas o patrióticas, dramas históricos extraidos del patrimonio portugués. Más específicamente brasileños son los filmes cantados o “canciones ilustradas”, donde los artistas se sitúan detrás de la pantalla. (Labarrére, 2009, p. 597)

Com Walter Hugo Khouri trabalha-se as grandes produtoras do cinema brasileiro, seja a Vera Cruz (Galvão, 1981; Calil, 1987) que no Estado de São Paulo, a partir do final dos anos 40, iniciou um longo trabalho de produção com títulos como “Noite Vazia” (1964) deste mesmo diretor – um sucesso extraordinário, com uma temática intimista e quase provocadora, no qual dois amigos contratam os serviços de duas prostitutas acabando tudo em enfrentamentos pessoais, angústias e afloramento de sentimentos íntimos. Uma película comovente que faz pensar e nos introduz mais de quarenta

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longametragens no universo brasileiro, seja rural com filmes como “O Cangaçeiro” (1953) de Lima Barreto, “Grande Sertão, veredas” (1970) dirigido por Geraldo e Renato Santos Pereira ou em pequenos povoados com títulos como “Osso, amor e papagaios” (1956) dirigido por César Memolo e Carlos A. Souza Barros. Mais também desenvolvida na comédia com “Nadando em dinheiro” (1952) dirigido por Abílio Pereira de Almeida e Carlos Thiré ou no drama “Pindorama” (1970) de Arnaldo Jabor. Alías, para realizar nosso trabalho formativo existem livros extraordinários que podem nos ajudar a entender um pouco melhor o cinema brasileiro (Paranaguá, 1981 92-189; Randal e Robert,1982; Paranaguá, 1987; Ramos, 1987). Convém lembrar que a Vera Cruz foi questionada e a crítica falou sobre ela inclusive em sua própria língua, quer dizer, sobre o uso do bem patrimonial do sotaque brasileiro como indica Jean Claude Bernardet “A Vera Cruz não ficou para trás em matéria de “elegância” do diálogo bem escrito e bem dito. Mas que pouco tinha a ver com o português comumente falado no Brasil”. (1979, p. 11) O cinesta José Mojica Marins é apresentado como um modelo de cinema alternativo, não exatamente oficial. Ele vai nos introduzir no contexto do cinema paulista da boca do lixo (Abreu, 2006). Ele fez um cinema alternativo, cheio de fantasia e exageros. Um filme, “Zé do Caixão” (1968) poderia dar informações de sua autoridade como diretor. Um espetáculo cheio de conteúdo com uma estética particular que foi se desenvolvendo até as pornochanchadas – comédias eróticas sexuais que durante as décadas dos anos 70 e 80 tiveram certa aceitação, mas que experimentou uma evolução até chegar à pornochanchada de clara alusão obscena. No contexto espanhol poderíamos encontrar 130

relação entre a chanchada (Augusto, 1989) e a espanholada, onde homens e mulheres se comunicavam através do humor, gerando situações cômicas com atores como José Luis López Vázquez ou Alfredo Landa – um novo pretexto para falar do espanhol no cinema brasileiro, e vice-versa. Igualmente, o brasileiro entra ou fica próximo a nós por causa do cinema norteamericano, talvez, desde a origem com Carmen Miranda e posteriormente com as grandes produções, made in hollywood, sobre o Amazona, aventuras, viagens, etc. O último exemplo que colocamos será o pertencente ao cineasta Carlos Diegues. Conhecido por muitas pessoas amantes do cinema por filmes como o comercial “Tieta do Agreste” (1996) ou “Orfeu” (1999) inspirado na obra de teatro do poeta carioca Vinícius de Moraes e com música de Caetano Veloso. Entretanto, Cacá Diegues será quem abrirá a porta do cinema novo para falar da cultura brasileira do nordeste ao sul, com diretores como Glauber Rocha ou Joaquim Pedro de Andrade, com filmes de fição como “São Bernardo” (1973) dirigido por Leon Hirszman ou documentários como “Viramundo” (1965) de Gerardo Sarno. Aliás, por falar da problemática do nordeste pobre frente a um Brasil rico do sul, para entender os movimentos migratórios do norte para o sul, do campo pela cidade. O cinema novo (Xavier, 1983; Amar, 1993; Avellar, 1995), foi um projeto cinematográfico que misturava cinema com outras artes, sejam musicais como teatrais, de inspiração em sua origem neorrealista italiana e da nouvelle vague francesa focando para sua realidade. Acabou sendo devorado como “Macunaíma” – no romance e no filme – pelo próprio sistema e a ditadura. O exílio começou e tudo acabou. Chegaram novos diretores e a produtora Embrafilme teve

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um papel de protagonista (Cesar Filho, 2005). Todos os festivais de cinema do mundo tinham retrospectivas do cinema novo brasileiro e diretores como Glauber Rocha era reconhecido mundialmente. O cinema brasileiro não era só “Orfeu negro” (1959) dirigido pelo francês Marcel Camus ou aquele olhar sobre o nordeste romântico de “O cangaçeiro” (1953) de Lima Barreto (Caetano, 2005). Agora o cinema tinha voz própria e atores e atrizes como Antonio Pitanga ou Luiza Maranhão, entre outras grandes estrelas. Sobre os novos títulos poderíamos falar de vários deles (Butcher, 2005; Caetano, 2005). Talvez, alguns, os alunos poderiam ter assistido nas telas do computador. Não é muito complicado hoje poder ver um filme brasileiro em seu computador e até trailers que animem a assistir o filme todo. Neste sentido, poderíamos começar falando da lei do audiovisual na época do governo de Fernando Henrique Cardoso. O proceso criativo com filmes de Héctor Babenco teve continuidade com filmes como “Estação Carandiru” (2003) – sobre o cárcere e as injustiças sociais – ou Walter Salles com “Estação Central do Brasil” (1998) – uma comovente viagem ao coração do Brasil. Mas o cinema brasileiro ainda teve sucessos comerciais com filmes como “Dona Flor e seus dois maridos” (1976), de Bruno Barreto, ou o documentário “Cabra marcado para morrer” (1984), dirigido por Eduardo Coutinho (Gervaiseau, 2003: 179-189) sobre um camponês assassinado no nordeste brasileiro no princípio da década dos anos 60 e até mesmo “Conterrâneos velhos de guerra” (1991), de Vladimir Carvalho, sobre os trabalhadores na construção de Brasília. O Brasil também se dirigia para a poética com o filme “Vera” (1987) de Sérgio Toledo, sobre uma garota interna na Febem,

transexual e poeta que acabou com sua vida violentamente. Inclusive, temos oportunidade de ver cinema feito por uma mulher, no filme de “Carlota Joaquina, Princesa do Brazil” (1995) de Carla Camurati. É importante se referir aos documentários (Teixeira, 2004; Labaki, 2005; Labaki, 2006) que continuam oferecendo uma visão particular como foi o caso do filme “Marighella” (2012), dirigido por Isa Grinspum Feraz, sobre a vida do líder comunista Carlos Marighella e nas letras das canções de Roberto Carlos no filme “À Beira do Caminho” (2012), sob a direção de Breno Silveira. Na literatura, por exemplo, tem-se o filme “Corações sujos” (2011) de Vicente Amorim, baseado no livro de Fernando Morais, sobre a imigração japonesa no Brasil ou no romance “Capitães da Areia” (2011) de Cecília Amado e Guy Gonçalves inspirada na obra de Jorge Amado, com sua visão dos meninos das ruas de Salvador. O cinema continua com sucessos de público com a segunda parte de “Tropa de elite” (2010) de José Padilha, ou filmes mais minoritários como “Querô” (2007) de Carlos Cortez, sobre um jovem na cidade de Santos. Também é o caso de um projeto de rádio no filme “Uma onda no ar” (2002) dirigida por Helvécio Ratton, onde as pessoas e seus comportamentos são analisados. A comédia teve seu bom exemplo com o cenário do carnaval baiano em “Ó pai, ó” (2007) de Monique Gardenberg ou o drama com um professor em “O Maior Amor do Mundo” (2006) de Carlos Digues e a prostitução de uma menina de 12 anos em “Anjos do sol” (2006) dirigida por Rudi Lagemann. Temos ainda filmes interessantes no âmbito da ficção como é “Nosso lar” (2010) dirigido por Wagner de Assis. O documentário prosseguiu seu caminho sedutor com títulos como “Peões” de Eduardo Coutinho e animação

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com filmes como “Rio” (20011), “Grilo feliz e os insetos gigantes” (2009) ou “31 minutos” – aliás o Brasil sempre teve produções infantis desde os tempos dos Trapalhões até a Xuxa ou “Os porralokinhas” (2007). E também devemos fazer alusão ao filme de sucesso internacional como é “O palhaço” (2012) do ator e diretor mineiro Selton Mello. Ideias finais Realmente, nossa intenção é apresentar a cultura e o cinema brasileiro. Um percurso dual entre realidades históricas e fatos contemporâneos que ajudem a entender melhor um contexto complexo e emergente. Quer dizer, para nós a cultura brasileira tem uma boa aliada no cinema, do mesmo jeito que o cinema brasileiro pode-se entender melhor através de sua cultura. Talvez, os professores precisem ter e conhecer as possibilidades que se criam com uma estratégia didática. Ou seja, entendemos a didática como uma arte ou maneira de ensino, não só dos conteúdos senão também da criação de contextos para implementar o processo de ensino-aprendizagem, para ilusionar, criar um contexto. Neste sentido, o cinema é um recurso que deve estar unido a uma percepção culta da realidade – objeto de estudo. Não significa que seja erudita mas faz falta ter bons conhecimentos e motivação suficente para continuar fantasiando e transmitir vontades de seguir aprendendo. Nesta proposta de ensino da cultura brasileira através do cinema nacional, temos tentado vinculá-la a uma nova realidade persuasiva a aprender com conhecimentos existentes na cultura de origem (neste caso a Espanhola). A possibilidades de encontrar relações com o que já sabemos e o que vamos explorar seria um alicerce importante de nossa proposta. Em primeiro 132

lugar, falamos da importância da motivação (que traduzimos em ilusão por transmitir dos próprios professores e necessidade de aprender dos alunos, ambos seduzidos num discurso). Em segundo lugar, teremos as contínuas relações com a literatura, as artes, o social, etc., da cultura brasileira e a espanhola. E em terceiro lugar, seria nos valer de exemplos fílmicos de ambos países para entender as próprias relações marcadas. Motivação, relações e exemplos são as três partes duma proposta didática com o propósito de ensinar curtindo o cinema, onde as situações de aprendizagem sejam uma realidade segundo os interesses das alunas e alunos implicados. O cinema abre as portas para a cultura, mas também não fecha a possibilidade de conhecer atores, roteiros, política, cultura e filmes, modas e festivais de cinema (Bahia, 1998). O cinema é um grande pretexto e nós somos os responsáveis em levar esta prática a ser realidade fora e dentro da sala de aula. Uma experiência para explorar com as invenções dos alunos e a capacidade de sedução dos professores. E sempre tendo o diálogo como grande aliado em nossa experiência de ensino. [...] atenção especial à preservação do patrimônio audiovisual, exibição gratuita de filmes para a população carente (para o grande contingente de brasileiros que não pode pagar um ingresso de cinema e muito menos um canal a cabo onde esses filmes podem ser vistos, mas tem direito constitucional de acesso aos bens culturais de seu país). (Senna, 2004, p. 3-4)

N ó s a b o rd a m o s o c i n e m a c o m o patrimônio cultural e de transformação da cidadania, uma maneira de mudar e crescer como pessoa num contexto em contínuas mudanças. Um cinema olhado desde a cultura, interpretado com os sentidos e os sentimentos com um resultado próximo

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ao crescimento integral da população e também dos futuros educadores, onde o ensino joga com um papel de protagonista e a corresponsabilidade entre professores e alunos, cinema e cultura são muito importantes. Referências bibliográficas ABREU, Nuno César. Boca do Lixo – Cinema e classes populares. Campinas: Editora Unicamp, 2006. AMAR, Víctor. El cine nuevo brasileño: 1954-1974. Madrid: Dykinson, 1993. AMAR, Víctor. Comprender y disfrutar el cine. La gran pantalla como recurso educativo. Huelva: Comunicar, 2003. A M A R , V í c t o r. El cine y otras miradas. Contribuciones a la educación y a la cultura audiovisual. Sevilla: Comunicación social, 2009. AUGUSTO, Sérgio. Esse mundo é um pandeiro – A chanchada de Getúlio a JK. São Paulo: Companhia das Letras / Cinemateca Brasileira, 1989. AVELLAR, José Carlos. Literatura e cinema no Brasil. São Paulo: Câmara Brasileira do Livro, 1994. AVELLAR, José Carlos. Deus e o diabo na terra do sol. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. BAHIA, Berê (Coord.). 30 Anos de Cinema e Festival: a historia do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Brasilia: Fundação Cultural do Distrito Federal, 1998. BERNARDET, Jean Caude. Cinema brasileiro: propostas para uma história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. BUTCHER, Pedro. Cinema brasileiro hoje. São Paulo: Publifolha, 2005. CAETANO, Daniel (Org). Cinema brasileiro 19952005 – Ensaios sobre uma década. Rio de Janeiro: Azougue, 2005.

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Normas para Publicação

A Revista Domínios da Imagem é uma publicação dirigida pelo Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem na História – LEDI, um projeto integrado (pesquisa/extensão) do Departamento de História e está vinculada ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná – Brasil. Tal iniciativa tem como objetivo difundir o diálogo intelectual entre pesquisadores(as) que atuam em diferentes regiões do país e no exterior, bem como fomentar a interlocução entre distintas áreas que tratam dos domínios da imagem. A Revista Domínios da Imagem tem periodicidade semestral, com fluxo contínuo para o recebimento de artigos e resenhas. Conta com um Conselho Editorial e Científico e um Conselho Consultivo, compostos por pesquisadores(as) ligados(as) à várias universidades brasileiras e estrangeiras. Solicitamos aos(as) nossos(as) colaboradores(as) que enviem seus trabalhos para o endereço eletrônico que segue ao final destas normas, atendendo as seguintes especificações: • 1 (uma) folha contendo os seguintes dados de identificação: seção para a qual envia o trabalho (artigos ou resenhas), título do texto, nome completo do(s) autor(es), instituição a que pertence, titulação, endereço completo, telefone, fax e endereço eletrônico; • Os textos devem ter a seguinte formatação: editor Word for Windows, fonte Times New Roman, tamanho 12, espaço entrelinhas 1,5 cm. e com margens de 3 cm; • Todos os textos deverão ser submetidos após revisão ortográfica e gramatical; • Os artigos devem ter a extensão de 08 a 25 laudas, no máximo, incluindo imagens; • As notas deverão ser colocadas em nota-de-rodapé, as referências aos/às autores/as no corpo do texto entre parênteses e as referências bibliográficas completas no final do texto; • Os artigos serão acompanhados de título, resumo e abstract de, no máximo, 10 linhas e de 03 palavras-chave em português e em inglês, além de um breve currículo do(a) autor(a) ou autores(as) (incluindo instituição e titulação); • Os artigos e as resenhas em inglês, francês e espanhol serão publicados na língua original, sem a necessidade de título, resumo e palavras-chave em português; • As resenhas poderão ter entre 03 e 05 páginas e deverão vir acompanhadas de 03 palavraschave em português e em inglês; • As fotografias, ilustrações e/ou gráficos deverão vir em preto e branco, com resolução mínima de 300 dpi, desde que as fontes sejam devidamente mencionadas e autorizadas, respeitando a legislação em vigor; • Caso o trabalho/pesquisa e/ou experiência didática tenha apoio financeiro de alguma agência de fomento, esta deverá ser mencionada em nota-de-rodapé. • Caberá ao(a) Editor(a) responsável, a decisão referente à oportunidade da publicação das contribuições recebidas.

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