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Editorial Como não encontramos, por enquanto, nenhuma fórmula mágica para fazer crescer a Legião enquanto organismo vivo que realmente é, fomos aprendendo, nós, o pequeno punhado de homens que lhe dá corpo, a sermos rectos nas acções praticadas. Não queremos com isto dizer que desconhecêssemos anteriormente a rectidão, muito pelo contrário, diríamos até que é uma condição necessária para se ser legionário. O que mudou, de facto, é a tomada de consciência interior dessa elevação, ou seja, vamos gradualmente subindo na nossa própria consideração enquanto militantes de uma Ordem, fiéis a determinados princípios. Uma das cláusulas auto-impostas quando assumimos a Regra é que o compromisso exige disponibilidade e como, felizmente, todos (por enquanto) trabalhamos e temos as nossas profissões e empregos, poderíamos facilmente escusar-nos com a falta de tempo e termos assim uma espécie de compromisso à la carte, consoante o humor. A actividade de grupo de um qualquer organismo humano, e em muitos casos animal, exige que cada um saiba o seu papel, e o que dele se espera é que o desempenhe o melhor possível no seio do grupo, o que exige, por conseguinte, ordem e hierarquia. Se alguém por motivo de força maior não puder realizar a sua função outro terá que o substituir e se não houver substituto alguém terá que acumular funções. O que não se pode fazer é perder o ritmo, pois é este que marca a transformação do gesto em obra realizada. Mas nós não somos uma empresa pública, semi-pública, limitada, ou SA. O nosso objectivo não é o lucro nem a produção economicista. É outra a nossa meta, ou melhor, é outro o nosso Caminho, porque na verdade, como já outras vezes o dissemos, não temos qualquer meta. Almejamos, isso sim, ser unos com o Caminho e para tal é preciso acrescentar o Ritual, ao ritmo e às pequenas realizações que nos servem de combustível para continuar a Obra. O contrário disto pensamos nós que ainda se chama individualismo, anarquia, democracia… mas já não temos certeza – a perpétua alternância está também a levar os poucos que ainda chamávamos de “nossa gente”. Mas o nosso grito não é de agonia nem de desprezo, é mais um grito de… diferença.
Na capa: Estátua de Buda com suástica no peito
ÍNDICE 2 Editorial —— ———————————————— 3 De Maistre e a Maçonaria —— ———————————————— A história secreta 4 da subversão —— ———————————————— 6 Religiosidade Indo-europeia —— ———————————————— A acção na Alemanha e 10 “A Doutrina do Despertar” —— ———————————————— Notas sobre a “divindade” 15 da Montanha —— ———————————————— 19 O simbolismo da Suástica —— ————————————————
FICHA TÉCNICA Número 2 (2ª Série) ———————————————— 3º quadrimestre 2011 ———————————————— Publicação quadrimestral ———————————————— Internet: www.boletimevoliano.pt.vu www.legiaovertical.blogspot.com ———————————————— Contacto: legiaovertical@gmail.com ————————————————
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Figura
De Maistre e a Maçonaria Julius Evola ——– ——–——————– ——————–——– ——–——————————– ——————————–——— Após ter dissertado em artigos anteriores sobre a obra e as teorias de J. de Maistre, houve leitores que nas suas cartas referiram o facto de este pensador saboiano ter sido maçon. Se nos regermos pelos padrões de medida de hoje em dia, este facto seria paradoxal e mesmo escandaloso. Com efeito, poderia haver um contraste maior do que o existente entre a religião laica da democracia, apregoada pela Maçonaria actual, e a teoria intransigente da autoridade e do poder proveniente de cima afirmada por De Maistre, seja em relação à ordem temporal e política como à espiritual? De Maistre era efectivamente maçon e pertencia à loja “La parfaite sincerité” de Chambéry do rito Escocês Rectificado com o nome de “Eques a floribus”. No entanto, devemos salientar que maçon foi também Frederico o Grande, que o foram numerosos príncipes ingleses de sangue real e que em certas circunstâncias a Igreja acusou de serem maçons alguns indivíduos próximos de Metternich, o carrasco de liberais e de democratas da sua época. Como se pode explicar tudo isto? Será, então, feita aqui uma abordagem, ainda que genérica, sobre um tema de grande interesse e bastante complexo, raramente aprofundado que é a história interna e a essência da Maçonaria. Não apenas os adversários da Maçonaria mas também muitos maçons ignoram esta questão, acreditando que a Maçonaria sempre foi aquilo que é hoje. Eles acreditam que as origens concretas da Maçonaria remontam a 1717, ano em que se constituiu a Grande Loja de Londres. As coisas são bem diferentes. A Maçonaria existia antes dessa data, a qual não foi do seu nascimento, mas sim de uma crise profunda e uma espécie de inversão de polaridade em relação à antiga tradição. O que a partir daquele período se organizou e difundiu de modo muito concreto foi a “maçonaria especulativa”, isto é, ideológica, a qual, com os ambientes maçónicos de hoje em dia, se contrapõe à “maçonaria operativa”. Não é fácil falar em poucas palavras acerca desta maçonaria. Numa interpretação mais superficial, profana e desviada, a maçonaria operativa foi a das corporações dos verdadeiros maçons, ou pedreiros, e construtores, às quais aderiram elementos distintos: a esta maçonaria estavam entregues as obras reais e os respectivos materiais de construção. Não há qualquer dúvida de que a maçonaria pré-moderna esteve em estreito contacto com tradições corporativas desse tipo, as quais remontam à
Idade Média e a épocas ainda mais remotas. Para além disto, estava inerente a estas corporações uma tradição espiritual secreta, baseada na transposição simbólica dos princípios das operações da arte da construção. A construção material convertia-se então numa alegoria para expressar uma obra criativa interior, tal qual como o templo exterior está para o templo interior; a pedra rústica a polir era a individualidade vulgar do ser humano que deveria ser rectificada até se ter adaptado através do “opus transformationis”, ou seja, através da superação da caducidade humana e pela participação numa realidade transcendente, cujos graus correspondiam aos originários da hierarquia da “maçonaria operativa” que, todavia, não se havia convertido em especulativa. Em organizações nas quais a “arte” e a “operatividade” possuíram este significado, não tendo nada a ver com o plano político e social, do período entre fins de Seiscentos e inícios de Setecentos, no qual poderá ter tido lugar um processo de degeneração, tendo assim permitido a acção de influências obscuras e a infiltração de elementos que gradualmente foram controlando aquelas organizações, infundindo nas mesmas um espírito diferente. Ou seja, conduzindo a acção sobre o plano ideológico e revolucionário e sujeitando-as a estes mesmos fins. Um marco fundamental neste processo foi precisamente a criação da Grande Loja de Londres, com a qual nasceu efectivamente aquilo que, em geral, hoje em dia se conhece por maçonaria. Porém, tal mudança significa uma involução e, mesmo, uma espécie de inversão sinistra da anterior maçonaria operativa. Muito antes da referida data, algumas constituições maçónicas estabeleceram uma obrigação de fidelidade dos seus membros não apenas aos soberanos e às leis do seu país como também à Igreja Católica. O contraste mais evidente de tudo isto haveria de ser quando da constituição de determinado grau da maçonaria posterior, no qual o neófito, para consagrar como acto ritual o seu compromisso de combater a “dupla tirania” (ou seja, o princípio de autoridade no campo político e religioso), teria de cravar um punhal na Tiara e na Coroa. Contudo, o processo de degeneração e de inversão foi gradual e não repentino. Por isso, decerto que na época de De Maistre existiam lojas que estavam excluídas de tal processo degenerativo e que conservavam, em parte, ainda aqueles vestígios da tradição espiritual anterior (poderíamos dizer “iniciática” e “esotérica”): tradição que, na sua essência, não se encontra em antítese com a doutrina contra-revolucionária de De Maistre nem com os seus princípios de autoridade, antes pelo contrário, constituíam um complemento natural.
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Análise
A história secreta da subversão Julius Evola ———————————————— Segundo um velho adágio – Diabolus Deus inversus –, o mal é menos o efeito de uma negação do que a inversão e a perversão de uma ordem superior. Esta verdade vale também no domínio histórico. A história dos erros aos quais se deve a crise da civilização moderna contemporânea terá ainda que ser escrita e é precisamente em relação a isso que o adágio citado acima se poderá revelar profundamente verdadeiro. Que os “imortais princípios” da democracia, a igualdade, a “liberdade”, o racionalismo, o internacionalismo e o laicismo maçónico, o messianismo marxista técnicoeconómico foram os principais venenos do mundo moderno, disto já ninguém dúvida. Mas poucos são aqueles que desconfiam da verdadeira origem destes erros. Supõese geralmente tratar-se de produtos de um pensamento filosófico sui generis, engendrado e difundido pelos intelectuais revolucionários. Isto só é verdade na aparência; quanto à sua génese interior, ela é bem diferente: estes erros são o resultado de processos muito precisos de involução espiritual, de profanação, de “degradação” e, enfim, de inversão. O termo “iluminismo” oferece-nos desde logo um exemplo flagrante. Na sua acepção agora comum, ele é sinónimo de racionalismo, de crítica iconoclasta, de anti-tradicionalismo. Pois bem, primitivamente, o mesmo é dizer antes da “politização” da seita dos “Iluminados”, “iluminismo” tinha um sentido totalmente diferente; referia-se à “iluminação espiritual”, ou seja, a um tipo de conhecimento supra-racional e supraindividual, que estava ligado, anteriormente, não apenas a tradições
muito precisas de natureza sempre aristocrática, mas também a uma qualificação espiritual excepcional; nada em comum, portanto, com aquilo que o termo “iluminismo” acabou por significar no seu uso comum. O mesmo se aplica à maior parte dos
Adam Weishaupt, fundador dos Iluminados
símbolos, dos “ritos” e das “dignidades” da maçonaria. Aqui, trata-se ainda de elementos que se reportam frequentemente aos antigos Rosa-Crucianos, à Ordem dos Templários, às tradições espirituais das antigas corporações, ao primeiro gibelinismo e aos próprios Mistérios Clássicos, ou seja, a um mundo que, na sua essência hierárquica, sacra e espiritual, constitui a antítese absoluta das ideologias da seita maçónica, na qual, de resto, todos estes símbolos e sinais não são mais do que uma super-estrutura morta, de que ninguém se preocupa em procurar o sentido e a origem. E é assim que no campo oposto, ou seja, anti-maçónico, se cometem frequentemente graves confusões, atribuindo, por exemplo, os caracteres da seita maçónica a antigas tradições e organizações iniciáticas que, à excepção dos sinais, não têm a
menor relação com tal seita. Na sua génese, o individualismo anárquico e o liberalismo deixavam já transparecer mais claramente o processo involutivo sobre o qual queremos chamar a atenção. É conhecida esta frase de Aristóteles sobre os soberanos: “Para estes homens, não há lei; eles próprios são a lei”. Os termos “livre”, “invicto”, “senhor da lei”, etc., surgem constantemente na literatura ascética dos indo-germanos da Ásia; à expressão sobre o “indivíduo autónomo, mestre do eu”, que se encontra no Extremo Oriente, corresponde, em certos textos dos Mistérios alexandrinos, a ideia de uma “raça primordial autónoma e sem rei”. Todos estes atributos designam uma dignidade espiritual, uma qualidade “régia”, algo de sobrenatural que só se pode conceber em relação a uma força do alto e que diz respeito apenas a uma minoria de seres superiores, os “heróis”. Pois bem, basta de profanar estes princípios, de os secularizar, de os democratizar e de fazer deles um ideal ao alcance de qualquer um, para assim os tornar instrumentos de subversão e chegar à anarquia e ao individualismo, ou seja, às atitudes e aos erros que deveriam precisamente ter por consequência a negação e a destruição do plano espiritual, o único sobre o qual estes princípios poderiam ser válidos e legítimos. Trata-se portanto de uma inversão, que implicou imediatamente uma destruição. Pode-se dizer o mesmo da ideia de “igualdade”. Sobre o plano natural, a igualdade é um absurdo: na natureza, não há nada de “igual”. Num plano mais elevado, aquilo de que se deve falar não é tanto de “igualdade” mas sim de “paridade”. Mas, mesmo aqui, são valores de tipo essencialmente aristocrático os que encontramos nas origens. É apenas entre “homens livres” e “nobres” que a “paridade” tem um valor legítimo e viril, para lá de todas as dife-
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Pois bem, basta de profanar estes princípios, de os secularizar, de os democratizar e de fazer deles um ideal ao alcance de qualquer um, para assim os tornar instrumentos de subversão e chegar à anarquia e ao individualismo.” renças de natureza, a tal ponto que, em alguns países como a Inglaterra, a expressão “par” conserva ainda hoje este significado e designa um título de nobreza. Ao democratizar e inverter esta ideia, obtém-se pelo contrário o “imortal princípio” igualitário como instrumento da subversão mundial. Foi da alta antiguidade indoeuropeia que se transmitiu à Idade Média germano-romana, e depois às tradições que dela recolheram em certa medida a herança espiritual, a ideia de Império, de Regnum, entendida como uma realidade não apenas política, mas também metafísica, como uma ordem superior que não se opõe ao princípio da “nação”, mas supera-o fornecendo como ponto de referência uma organização mais alargada, de tipo não apenas temporal, mas também espiritual; também, em todas as suas manifestações autênticas, o Imperium apresentava traços religiosos e apoiavase numa autoridade espiritual real, fundamento do seu direito supranacional. A involução de semelhante concepção desemboca no internacionalismo e no cosmopolitismo antinacional. Trata-se aqui efectivamente de um autêntico rebaixamento e de uma autêntica falsificação: enquanto que o Império encontrava a sua justificação no que é superior à nação, a destruição internacionalista tem como ponto de referência aquilo que é inferior à nação, e é ela que leva de um tipo de ordem hierárquica e diferenciada ao nivelamento, à
desnaturação, ao híbrido, à promiscuidade. Poder-se-iam fazer considerações análogas sobre a ideia “messiânica”. Sabe-se que esta ideia, na sua origem, estava estreitamente ligada à própria concepção do Regnum e que, além disso, era precisamente nessa base que ela era conhecida dos Indo-europeus arianos, muito antes de o ser dos judeus ou dos cristãos. O Ariano pensava assim no advento de um “Reino” e de um “Senhor Universal” justo e vitorioso, mediador entre a ordem humana e a ordem supra-humana. Pois bem, o tema messiânico reaparece nas correntes mais corruptoras da época moderna, o marxismo e o bolchevismo, mas, também aqui, trata-se de uma falsificação materialista. Trata-se da utopia absurda que consiste em acreditar que os processos económicos e técnicos, após terem eliminado toda a diferença social e todo o móbil superior, prole-
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tarizado o homem e “socializado” todos os seus bens, darão nascimento a uma nova era de felicidade e de prosperidade universal. Dostoïevski definiu justamente esta nova miragem messiânica como um Éden, que se assemelhará em tudo ao Éden mítico, com a diferença que o trabalho será a lei universal e que os indivíduos deverão previamente ser libertados de tudo aquilo que é “eu” e livre arbítrio. Este tema, que aqui apenas tratámos superficialmente, merece ser aprofundado. Com efeito, o seu interesse não é apenas teórico ou histórico. É precisamente com vista à acção que é fundamental conhecer a génese das negações e dos erros que devem ser combatidos. Caso contrário, mesmo que de boa fé, pode-se cair em erros perigosos. O que queremos dizer com isto é que, ao lutar contra a forma destrutiva tomada por uma dada ideia pervertida e deformada, pode-se facilmente acabar por combater a ideia em si, não a sabendo reconhecer por falta de princípios adequados, o que tem como resultado aumentar a confusão e a desordem. Reconstituir o processo de degradação e de inversão é pelo contrário o único meio de separar o positivo do negativo, de atacar o mal pela raiz e de alcançar os verdadeiros pontos de referência necessários para a obra de reconstrução.
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Ao lutar contra a forma destrutiva tomada por uma dada ideia pervertida e deformada, pode-se facilmente acabar por combater a ideia em si, não a sabendo reconhecer por falta de princípios adequados, o que tem como resultado aumentar a confusão e a desordem. Reconstituir o processo de degradação e de inversão é pelo contrário o único meio de separar o positivo do negativo, de atacar o mal pela raiz e de alcançar os verdadeiros pontos de referência necessários para a obra de reconstrução.”
O B O L E T I M EVO L I A N O TA M B ÉM E S T Á D I S P O N Í V E L O N - L I N E EM : W W W. B O L ET I M EVO L I A N O. P T. V U
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Crítica
Religiosidade Indo-europeia Julius Evola ———————————————— No período anterior sustentou-se por parte do movimento que esteve no poder na Europa central a justa exigência de que uma luta política não pode ser completa se não estiver fundamentada numa concepção do mundo. O termo que acabaria por se tornar um estereótipo, Weltanschauung, significava a atitude geral que o homem deveria assumir não só perante o mundo e a vida, mas também em relação aos valores éticos e espirituais, de modo tal a abarcar de certa maneira os próprios problemas religiosos. E para levar a cabo esta luta num plano superior pensou-se que a melhor fórmula seria o retorno às origens, ou seja, remeter-se às ideias e à maneira de sentir que foram conhecidos antes que manifestassem todo o seu poder aqueles factores que deram forma à civilização última conduzindo-a até ao spengleriano “ocaso” (espiritual) “do Ocidente”. No entanto, a mencionada orientação teve muitas vezes um aspecto “racista”. Falou-se de “arianidade”, de herança nórdico-germânica e de coisas similares. O perigo de uma limitação dos horizontes devida quer ao racismo, quer a uma utilização unilateral e tendenciosa das ideias em função simplesmente germânica, foi algo sumamente evidente. Isto aparece-nos de maneira notória num livro que no III Reich teve uma grande difusão, O Mito do Século XX, de Alfred Rosenberg, o qual no fundo era apenas uma compilação baseada em materiais de terceira mão sumamente heterogéneos. Menos reservas se impõe pelo contrário a respeito das investigações de um especialista, o professor Hans Günther, autor de numerosas obras sobre as raças e as civilizações antigas, incluindo Grécia e Roma. É digno de menção um ensaio seu no qual tratou de definir a concepção fundamental do mundo e a religiosidade dos povos indo-europeus mantendose num plano desapegado das con-
Hans F.K. Günther e Alfred Rosenberg, dois teóricos raciais nacional-socialistas
tingências políticas. Este ensaio foi reeditado (numa sexta edição) mesmo depois da guerra e apareceu agora em tradução italiana (para as Edições Ar) a cargo de Adriano Romualdi e Carlo Minutoli. O título original da obra era Frömmigkeit nordischer Artung, ou seja, “A religiosidade de tipo nórdico”; o título italiano é pelo contrário “Religiosidade Indoeuropeia”, modificação esta que nos parece oportuna e que permite obviar as diferentes reservas que, devido ao uso do termo “nórdico”, teriam que ser feitas às teses do autor. “Indo-europeu” é um conceito muitíssimo mais vasto já que o mesmo retoma diferentes estirpes e civilizações pertencentes à raça branca, incluídas as suas manifestações asiáticas (os indo-europeu do Irão, da Índia, etc.) que são também tidas em consideração por Günther, mas ainda assim resta-nos o inconveniente relativo à tese segundo a qual o núcleo originário formativo de todas estas civilizações teria sido de origem “nórdica”. Mesmo concedendo que tal termo deve ser aqui entendido de maneira particular, com referência a migrações de povos primordiais, de modo tal a não aplicar-se meramen-
te às populações nórdico-escandinavas ou germânicas-setentrionais dos tempos mais recentes, ainda assim não pode deixar de haver a tal respeito alguns equívocos. Os mesmos poderiam ser favorecidos em parte pelo amplo “Ensaio sobre o problema indo-europeu” de Adriano Romualdi que aparece como introdução ao texto de Günther e que quanto à sua extensão representa mais do dobro do mesmo. Trata-se de uma monografia desenvolvida muito seriamente, com uma ampla e variada documentação que resume tudo aquilo que a partir de investigações filológicas, antropológicas, étnicas, históricas e culturais se disse a respeito das origens indo-europeias, mantendo-se no entanto a tese nórdica com um notório acento racista. Mas independentemente disso parece-nos apropriado prestarmos atenção à extensão própria do conceito “indo-europeu” e não sem relação além do mais com aquilo que impulsionou a actual tradução italiana do ensaio de Günther. Trata-se a tal respeito da atitude de retomar a exigência da “luta pela concepção do mundo” num marco já não germânico/nacional-socialista, mas sim euro-
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peu. Escreve Romualdi a este respeito (p. 6): “Todos nós, e em particular nós, os da nova geração, sentimos que nos encontramos numa encruzilhada histórica. As antigas perspectivas nacionais, tal como fomos educados, quebram-se ao nosso redor por todo o lado. Uma auto-suficiência da pátria italiana, ou francesa ou germânica, não existe e não deve existir mais. Nacionalistas sem nação, tradicionalistas sem tradição, nós procuramos reconhecermo-nos todos numa pátria e numa tradição mais vastas”. A este respeito volta a colocar-se a ideia indo-europeia quer como mito das origens comuns, quer como ideia capaz de outorgar sentido a uma unidade europeia ou ocidental que não se reduza a um conglomerado informe. Mas é justamente por isto que a conotação “nórdica”, apesar de qualquer precisão que se efectue, aparece como algo de equívoco. Além do mais, não se podem fazer generalizações em relação a conceitos conformados por múltiplos elementos (neste caso, múltiplos povos), tanto mais quando parece que são justamente os povos europeus nórdicos (incluindo nesta altura lamentavelmente os próprios alemães) aqueles que na actualidade são os últimos a sentir exigências de tal tipo e a encarnar este tipo de concepção do mundo. Mas já nesta altura é necessário dizer algo a respeito do ensaio de Günther. Em geral, há que ressaltar que teria sido oportuno limitar-se sobretudo a uma consideração de carácter morfológico reduzindo ao máximo os factores raciais, ou seja, definir apenas uma certa forma dos valores e do modo de sentir e de comportar-se, apresentando-o sobretudo como um “ideal”. De facto poder-se-ia formular a Günther uma muito fundamentada objecção metodológica, ressaltando o modo como muitas vezes se move num círculo vicioso. Com efeito, ele reconhece que as fontes da sua investigação não podem ser constituídas pelo material fornecido pelo povos nórdicos em sentido próprio, já que até as antigas concepções germânicas teriam sido alteradas por contributos externos, célticos e “druídicos”, e inclusivamente a mitologia nórdica por excelência – os Edda – seria muito pouco utilizável como verdadeiro
Adriano Romualdi, “nacionalista sem nação e tradicionalista sem tradição”
documento do espírito nórdico; Günther considera como fontes melhores aquelas que se podem recolher do antigo mundo helénico, romano, irânico, e em parte também hindu, dentro de cujo conjunto ele no entanto opera uma certa discriminação: isola certos elementos de outros, que se encontram presentes mas que não podem ser remetidos a uma ideia no fundo preconcebida de forma apriorística como “nórdica” (ou “ariana” ou “indo-europeia”), e remete-os a influências externas, a alterações raciais produzidas por cruzamentos, etc., procedimento equivalente àquilo que na lógica se define como petição de princípio. Tal objecção perderia parte da sua força no caso de se tratar de uma abordagem essencialmente “morfológica”. De seguida as referências de Günther referem-se essencialmente às elites, e aqui vale como um postulado a ideia de que teria sido entre as elites que se teriam conservado os valores da raça originária portadora de uma superior concepção do mundo. É assim que Günther diz (p. 116): “Na verdade, muito daquilo que nos é descrito como formando parte da religião indo-europeia não é senão a expressão de castas inferiores que teriam aprendido a expressar-se na língua indo-europeia”, o que é um sinal do mencionado procedimento de discriminar a priori. Não há pois dúvida de que por parte do autor se idealizou e
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generalizou muito, fazendo silêncio a respeito de tudo aquilo que não se adaptava à sua tese. Quanto às características que segundo Günther não seriam indoeuropeias, encontramos a concepção de um Deus transcendente do qual o homem se aproxima servilmente e por medo, assim como a concepção do homem como mera “criatura”. “Posto que não é o servo de um Deus soberano, o Indo-europeu não reza prostrado de joelhos, mas sim de pé, com os olhos para o céu e os braços estendidos para o alto” (p. 122). Ele tem um sentimento de vinculação e de familiaridade com o divino, com os “deuses”. O mundo para ele não é “criado”, mas eterno, “sem princípio” e sem fim. Não conhece um dualismo entre “este mundo” e o “outro mundo”, pelo menos aquele dualismo através do qual o primeiro é desvalorizado em relação ao segundo e só no segundo se concentra o espírito. Em parte como consequência, não é sentido nem sequer um contraste “entre corpo perecível e alma imortal, entre a carne e o espírito”. Careceria pois da “redenção”, como do pecado, da salvação por obra de um “Salvador” e não como uma “auto-redenção da alma que se purifica e se submerge no profundo do próprio ser” (tal seria a orientação do misticismo indo-europeu), como aquela superação das paixões na qual consistiria a via do primeiro budismo e também do estoicismo. Quanto ao “pecado”, na maneira de sentir indo-europeia substituir-se-ia o conceito de “culpa” pelo de responsabilidade que uma “alma nobre” é capaz de assumir. Por parte do Indo-europeu o mundo teria sido concebido como ordem e como kosmos, como um todo formado por uma ratio superior. Mas esta característica parece-nos que não concorda muito com a outra, indicada igualmente por Günther, relativa a uma concepção “agonista” da existência: o mundo como arena de uma permanente luta, em correspondência com “a vocação hereditária e congénita para o combate” por parte do Ariano ou Indo-europeu. De facto, esta segunda concepção pressupõe evidentemente um dualismo, não a existência de uma ordem racional universal, mas também a presença de alguma coisa antitética em relação ao mesmo, ao kosmos,
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Günther (...) opera uma certa discriminação: isola certos elementos de outros, que se encontram presentes mas que não podem ser remetidos a uma ideia no fundo preconcebida de forma apriorística como «nórdica», e remete-os a influências externas, a alterações raciais produzidas por cruzamentos, etc., procedimento equivalente àquilo que na lógica se define como petição de princípio.” contra a qual combater. Maiores reservas impõe-nos a ideia, para nós errada, de que os Indo-europeus “teriam tido sempre a inclinação de ver na força do Destino uma coisa superior aos próprios deuses, sobretudo os Hindus, os Helenos e os Germanos” (p. 129). Não vemos como pode fundar-se uma ideia semelhante, a qual, em todo o caso prevaleceu em áreas não reputadas propriamente como indoeuropeias (como na tardia civilização etrusca e na pelásgica, não-helénica e justamente Bachofen pôde mostrar a origem pelásgica, não-helénica, que pelo contrário Günther denominaria “não-nórdica”, daquilo que na antiga Grécia se ressentiu daquela obscura ideia fatalista). Günther pelo contrário conserva-a pois serve-lhe para indicar, como ulterior característica do homem indo-europeu, a aceitação do destino ou o manter-se inquebrantável face ao mesmo: “orgulhosa altivez com a qual aceita o Destino que incumbe à própria existência, fazendo-lhe frente de pé e mantendo-se assim fiel a si mesmo” (p. 131). Além do mais Günther opera um grave menosprezo da herança da espiritualidade indo-europeia ao negar ou desconhecer aquilo que podemos denominar como a “dimensão da transcendência” na ordem do humano não menos que na do divino (onde reinaria o Destino, e não uma suprema liberdade), não tendo em conta de forma apriorística os testemunhos múltiplos e unívocos em sentido oposto. Felizmente, Günther não insistiu numa sua tese anterior, segundo a qual os Indo-europeus “nórdicos”, só depois da sua chegada à Ásia, tendo encontrado terras insuportáveis pelo clima e pelo ambiente, foram levados a inverter o seu
impulso originário de “afirmação da vida” por um outro no fundo estranho à sua raça (artfremd), o de libertar-se da vida, entendida agora como “dor”. De facto um ideal fundamental indoeuropeu foi o da “Grande Libertação”, da conquista do Incondicionado (por exemplo no budismo das origens), da saída do “ciclo da geração” (na Hélade). A razão desta atitude de Günther é que nele tiveram primazia certas preocupações “racistas” que, apesar de tudo, marcaram com uma certa tendência naturalista as suas interpretações. Assim, por exemplo, é para ele inexistente o facto de que justamente na tradição indo-ariana a “via dos deuses” (deva-yana) que conduz ao Incondicionado se encontre em contraposição à “via dos pais” (pitri-yana), que é a via daqueles cujo destino consiste em perpetuar a vida da sua estirpe aqui em baixo. É aqui que se fazem sentir as consequências da suposta indivisibilidade do corpo e alma, a qual acaba por limitar toda a superior concepção da imortalidade. No fundo Günther acaba por reduzir os horizontes espirituais a uma “imortalidade imanen-
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te” (efémera), que consiste na perpetuação e continuidade na estirpe e na raça da qual o sujeito faz parte, o que “na ordem das gerações produz perenemente a vida” (p. 147). Se bem que tentando mitigá-lo, Günther acaba por ver no panteísmo, que implica uma negação de toda a verdadeira transcendência, um traço fundamental da religiosidade “ariana” (encontramos nele a expressão “inspirado panteísmo naturalista”), o que equivale a degradá-la arbitrariamente, sustentando também um suspeito “culto à vida” como contrapartida. É bom ter presente que não se deve confundir o “panteísmo” com um concepção sacralizadora do mundo, que foi própria das origens e que deve considerar-se tradicional de forma geral, e que de nenhuma maneira deve sustentar-se como uma prerrogativa unicamente “ariana” ou indo-europeia. É no campo da ética que em parte as caracterizações de Günther têm um valor mais convincente. Ele fala dos ideais da firmeza e da grandeza de ânimo, de um natural domínio de si mesmo, de um também natural sentimento das distâncias e de não promiscuidade, da desconfiança por todo o abandono da alma e portanto por um desordenado e alienante misticismo. Além disto, indica também o sentimento de honra, a predisposição à fidelidade e à lealdade, uma comedida e consciente dignidade (a humanitas na sua acepção clássica), e o amor pela verdade e a repugnância pela mentira. A liberdade é um ideal, mas na perspectiva indicada pela frase de Goethe: “Tudo aquilo que liberta o nosso espírito sem nos elevar a um maior senhorio sobre nós próprios, corrompe-nos”. A ética que se articula em tais valores, para
Günther acaba por reduzir os horizontes espirituais a uma «imortalidade imanente» (efémera), que consiste na perpetuação e continuidade na estirpe e na raça (… ) Günther acaba por ver no panteísmo, que implica uma negação de toda a verdadeira transcendência, um traço fundamental da religiosidade «ariana», o que equivale a degradá-la arbitrariamente, sustentando também um suspeito «culto à vida» como contrapartida.”
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E´ bastante curioso o facto de Günther falar frequentemente do espírito e da nobre ética de uma «aristocracia camponesa» (poderse-ia falar, quanto muito, de uma aristocracia feudal). Aqui parece-nos aparecer o eco de um slogan «racial» do hitlerismo, «sangue e solo», pelo qual em nome de um certo «enraizamento» e de uma certa política era liquidado o precedente mito das raças arianas originárias como raças de caçadores e conquistadores ávidos de grandes distâncias e de longínquos horizontes.”
Günther seria “natural” ao Indoeuropeu, não ligada a preceitos exteriores (assim como a religiosidade indo-europeia seria “natural” e não determinada por “revelações”). Com isto pode-se concordar apenas em parte, mas com referência a uma concepção não-racista da raça. O ser “de raça” num sentido superior implica justamente como algo natural actuar e comportar-se de uma determinada maneira, mas sem necessidade de referências externas. Portanto não se pode falar de algo que seja próprio da “raça” indoeuropeia. Tais qualidades éticas naturais do “homem de raça”, para dar um exemplo, estão também presentes entre outros povos (bastará apenas a referência à nobreza tradicional do Japão) e a referência ao “tradicional” não é algo extrínseco, já que a tal respeito pode-se considerar também aquilo que se torna congénito devido a uma rigorosa tradição. Quanto à “nobreza”, ressaltemo-lo de passagem, é bastante curioso o facto de Günther falar frequentemente do espírito e da nobre ética de uma “aristocracia camponesa” (em todo o caso, poder-se-ia falar, quanto muito, de uma aristocracia feudal). Aqui parece-nos aparecer o eco de um slogan “racial” do hitlerismo, “sangue e solo”, pelo qual em nome de um certo “enraizamento” e de uma certa política era liquidado o precedente mito das raças arianas originárias como raças de caçadores e conquistadores emigrantes ávidos de grandes distâncias e de longínquos horizontes. Mencionou-se já que para isolar os elementos “nórdicos”, Günther responsabilizou sistematicamente
supostas contaminações raciais devidas a cruzamentos e a influxos exógenos desnaturalizadores por tudo aquilo que, estando de facto presente nas sociedades indo-europeias, não corresponderia a estes valores e comportamentos. De novo, isto revela o subjacente racismo biológico o qual tem muito pouco em conta o facto das misturas não serem o único factor de alteração já que são possíveis processos de involução, de decadência e de colapso no contexto da manutenção de uma suficiente integridade do sangue originário. Já no início fizemos notar que precisamente os actuais povos maioritariamente “nórdicos”, são particularmente insensíveis aos ideais “nórdicos” tal como Günther os define. No contexto histórico bastará apenas recordar este exemplo. Günther considera acertadamente como estranho à linha “ariana” o espírito da Reforma protestante, pela sua exasperação dos conceitos de pecado e da natureza irremediavelmente corrompida do homem, havendo que entregar-se apenas à fé, por necessidade da graça gratuitamente outorgada por Deus ao servidor humano (de servo arbitrio). Pois bem, a Reforma triunfou sobretudo entre os povos alemães e nórdicos, enquanto que os povos mais ao sul e ao ocidente, aos quais se atribui maior grau de alteração devido a cruzamentos, permaneceram refractários à mesma. *
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Perto do final do seu ensaio (p. 172) Günther escreve: “Com o século XX os Indo-europeus começaram a eclipsar-se no mundo da espirituali-
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dade e da história. Hoje em dia tudo aquilo que na música, na arte, na literatura (dever-se-ia acrescentar: na moral e nas formas políticas predominantes) do “Ocidente livre” é reputado como particularmente “progressivo” já não reflecte uma espiritualidade indo-europeia”. Isto parece-nos acertado, mas apenas se formos capazes de, tal como dissemos, definir aquilo que é indoeuropeu em termos essencialmente morfológicos e gerais, sem estritas referências étnico-raciais. Quanto à capacidade de conjunto dos valores “indo-europeus” (também com a finalidade de superar tergiversações, equívocos e visões unilaterais ou evidentemente idealizadas como as já mencionadas) para operarem como anima de uma nova solidariedade e unidade supranacional ocidental, dados os tempos que correm, ao contrário do que diz Romualdi, sentimo-nos bastante cépticos: não acreditamos que se possa encontrar terreno fértil para obter a devida ressonância e cristalização desses valores. Quanto ao resto, um análogo sentimento parece manifestar-se no próprio Günther quando no prefácio da última edição do seu interessante ensaio (p. 105-106), ao referir-se “à nossa era da Decadência do Ocidente”, diz: “Ainda que aquilo que permanece no mundo europeu ocidental tenha que perecer pela carência de verdadeiros Indo-europeus de raça, ou seja, de verdadeiros Ocidentais, permanecerá de todo o modo um sentimento arraigado na tradicional espiritualidade indo-europeia, aquele que foi o sentimento dos últimos Romanos (Romanorum ultimi) perante um império já não “romano”, o sentimento do carácter inquebrantável perante o destino… pelo que já Horácio exortava: Quocirca vivite fortes, Fortiaque adversis opponite pectora rebus!” Uma instância de tal tipo, além do mais susceptível de ser retomada apenas por uns poucos e talvez a ser modulada no sentido de uma desapegada impassibilidade, parece-nos mais realista que qualquer optimismo de fundo “nostálgico” (no sentido negativo deste termo em relação a certos aspectos de conhecidas tendências políticas italianas actuais), com a correspondente nova evocação das origens nórdicas.
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Autobiografia
A acção na Alemanha e «A Doutrina do Despertar» Julius Evola ————————————————
Passando à actividade que desenvolvi até ao início da II Guerra Mundial à margem das forças políticas então dominantes, poderia pensar-se que o Revolta contra o Mundo Moderno fornecia na Itália as bases doutrinárias para uma séria corrente tradicionalista da Direita dotada de verdadeira força revolucionária (ou, melhor, contrarevolucionária). Contudo, nada disso ocorreu. O livro quase não foi notado; o conjunto de ideias e horizontes que ali trouxe à luz parece ter escapado totalmente à mentalidade das “hierarquias” e dos que haviam aderido ao Fascismo – não falando da habitual intelligentsia diletante e académica que, graças à adesão conformista ao regime da época, conduzia a cultura e a imprensa italianas através de cliques fechadas. Os únicos assomos de pensamento “tradicional” que havia nesse período tinham um fundo católico e burguês e prendiam-se sobretudo à componente “exnacionalista” do Fascismo; caracterizavam-se por uma grande estreiteza de horizontes e um sectarismo deveras antipático. Até ao período do “Eixo”, a minha actividade limitou-se à direcção da página especial do diário de Farinacci, a que já me referi, e a artigos, ensaios e exames críticos conhecidos apenas em círculos restritos. Assim pois, é pura fantasia o que se escreveu em certos livros franceses recentes, a saber que fui conselheiro de Mussolini (Werner Gerson) ou a “eminência parda do Duce” (Elizabeth Antebi), entre outras razões porque até 1942, data da reconversão
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Como hóspede estrangeiro de uma nação amiga, gozava de uma espécie de imunidade; era-me permitido apresentar e afirmar ideias de um modo que durante o regime nazi seria difícil ou impossível a um alemão, a menos que se dispusesse arriscar o campo de concentração. Tratava-se de ideias que podiam rectificar o movimento político chegado ao poder, reforçando as potencialidades positivas e combatendo as negativas.” “racista” do Fascismo, que irei comentar mais adiante, não tive qualquer contacto pessoal com Mussolini. Em contrapartida, gostaria de precisar em que contexto se usou a minha obra. Como hóspede estrangeiro de uma nação amiga, gozava de uma espécie de imunidade; era-me permitido apresentar e afirmar ideias de um modo que durante o regime nazi seria difícil ou impossível a um alemão, a menos que se dispusesse arriscar o campo de concentração. Tratava-se de ideias que podiam rectificar o movimento político chegado ao poder, reforçando as potencialidades positivas e combatendo as negativas. Sabe-se que não foi Hitler quem inventou o termo III Reich, que realmente o tomou dos escritores da “revolução conservadora”, que lhe conferiam um conteúdo espiritual e tradicional referido a uma ordem de ideias semelhante à que eu próprio defendia: a tal ponto que esses escritores passaram à oposição por considerarem o uso do termo e do símbolo uma usurpação contaminante. Tratava-se, mediante uma frente secreta da Direita, de voltar gradualmente à ideia original, e, neste quadro, a minha contribuição
poderia ser útil no plano doutrinário. Em princípio, muitas das ideias valoradas pelo Nacional-Socialismo podiam entrar no mesmo quadro e servir-lhe de apoio: sobretudo a Ordensstatzgedanke, ou seja, o ideal de um Estado regido, não por uma “classe dirigente” democrática, mas por uma Ordem, uma elite formada por uma ideia, uma tradição, uma disciplina severa, um mesmo estilo de vida. Aqui, no entanto, iríamos desembocar também no “racismo”, pelo que se impunha a tarefa de rectificar as exigências que alimentavam essa tendência na Alemanha, em certos casos de forma problemática. Não me alargarei sobre este último ponto. Foi nesse quadro e nessa direcção que desenvolvi alguma actividade na Europa central até ao início da II Guerra Mundial, não só com os escritos que apontei, mas também com conferências realizadas através de diferentes contactos. Digo Europa central porque Viena, cidade onde passei o Inverno e tive ocasião de me relacionar com representantes da Direita e da velha aristocracia e com o grupo dirigido pelo filósofo Othmar Spann, que seguia a mesma linha, apresentava
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igualmente um terreno fecundo. Ali se estabeleceu uma estreita colaboração entre mim e o príncipe K. A. Rohan, que dispunha de um importante círculo de relações, e eu próprio. Assim ganhou corpo a ideia, bem vista pelos meios indicados, de coordenar os elementos que em certa medida podiam representar em toda a Europa o pensamento tradicional no plano político-cultural. A fim de conseguir contactos precisos, empreendi várias viagens pela Europa no ano de 1936. Durante uma delas travei conhecimento directo com Corneliu Codreanu, chefe da Guarda de Ferro romena, uma das figuras mais dignas e mais orientadas espiritualmente que encontrei nos movimentos nacionais da época. Em Bucareste conheci também Mircea Eliade, que adquiriu depois da guerra uma grande notoriedade graças às suas numerosas obras sobre a história das religiões, e com quem me mantive em contacto até agora. Nessa época fazia parte do círculo de Codreanu, e havia acompanhado anteriormente a actividade do “Grupo de Ur”. O período do Eixo representou para mim uma grande oportunidade, pois sempre desejara o reencontro integrador da romanidade e do germanismo à maneira “gibelina”, tendo proposto vários anos antes o “mito das duas águias” como ponto de partida da possível reconstrução europeia. No que diz respeito à Itália, porém, não foi possível fazer nada em razão do sistema das cliques oficiosas que prosperavam e sabotavam sistematicamente todas as iniciativas vivificadoras. Nos intercâmbios culturais com a Alemanha essas “hierarquias” chegaram inclusivamente ao paradoxo de utilizar conhecidos católicos sectár i o s d e s e n t i m e n t os a n t i germânicos, como Guido Manacorda, por exemplo (autor do livro A Floresta e o Templo, no qual o espírito germânico é incrivelmente falsificado). Esses meios encaravam com despeito os convites que me dirigiam para conferências e encon-
tros na Alemanha e, apesar de não ser de modo algum um elemento designado e “autorizado” por eles, era reconhecido naquele país. Em certa ocasião, nomeadamente, tentaram impedir uma das minhas viagens a pretexto da renovação do visto do meu passaporte, o que forçou Mussolini a intervir pessoalmente ao ter conhecimento de semelhantes intrigas. A referência a estes domínios relativamente exteriores não deve fazer supor que durante esse período deixei de prestar atenção às disciplinas tradicionais. De facto, recordo que no final dos anos 30, antes da fase posterior da minha actividade à margem das forças políticas, me dediquei a dois dos meus principais livros sobre a sabedoria oriental: à revisão completa de O Homem como Potência, que, como disse, conheceu o novo título de Yoga da Potência (por razões extrínsecas e devido ao que se seguiu, o texto revisto e corrigido só foi publicado depois da guerra pelo editor Bocca), e a uma obra sistemática sobre o budismo das origens intitulada A Doutrina do Despertar – Ensaio sobre a ascese búdica (que só em 1943, durante a guerra, apareceu nas edições Laterza). Com este segundo livro paguei de algum modo uma dívida que
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havia contraído com a doutrina de Buda. Já referi anteriormente a influência que um dos seus ensinamentos teve na superação da crise interior que atravessei depois da I Guerra Mundial. A seguir, fiz dos textos búdicos um uso quotidiano, prático e de realização, a fim de alimentar uma consciência destacada do princípio “Ser”. O que fora príncipe dos Sakias indicava-me uma disciplina interior que eu sentia como congénita, a tal ponto que as asceses de base religiosa, sobretudo a cristã, me pareciam estranhas. A finalidade do meu livro foi trazer à luz a natureza verdadeira do budismo das origens, doutrina que perdeu vigor e se tornou irreconhecível na maioria das suas formas posteriores, até se converter mais ou menos numa religião e no conceito que geralmente se tem dele no Ocidente. Com efeito, o núcleo essencial desses ensinamentos tinha um carácter metafísico e iniciático. A interpretação do budismo como simples moral e tendo por fundamento a compaixão, o humanitarismo, a evasão da vida, porque “a vida é sofrimento”, é extrínseca, profana e superficial a mais não poder ser. Pelo contrário, o budismo foi determinado pela vontade do incondicionado na sua forma mais
A finalidade do meu livro foi trazer à luz a natureza verdadeira do budismo das origens, doutrina que perdeu vigor e se tornou irreconhecível na maioria das suas formas posteriores, até se converter mais ou menos numa religião e no conceito que geralmente se tem dele no Ocidente (...) A interpretação do budismo como simples moral e tendo por fundamento a compaixão, o humanitarismo, a evasão da vida, porque «a vida é sofrimento», é extrínseca, profana e superficial a mais não poder ser. Pelo contrário, o budismo foi determinado pela vontade do incondicionado na sua forma mais radical, pelos que procuram dominar a vida e a morte. Não é tanto o «sofrimento» que se pretende superar, mas a agitação e a contingência da existência condicionada”
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O carácter «aristocrático» do budismo e a presença da força viril e guerreira (o rugido do leão não é mais que o anúncio da chegada do Buda) aplicada ao plano imaterial e intemporal, são os traços que pus em relevo na exposição desta doutrina, abertamente oposta às interpretações deformadas, quietistas e humanitárias que antes assinalei.”
radical, pelos que procuram dominar a vida e a morte. Não é tanto o “sofrimento” que se pretende superar, mas a agitação e a contingência da existência condicionada que tem como origem, raiz e fundamento a sede, sede que pela sua própria natureza é impossível extinguir na vida ordinária, a intoxicação ou “mania”, a “ignorância”, a cegueira que leva à identificação desesperada, híbrida e cúpida do Eu em tal ou tal forma do mundo perecível, a corrente sem fim do porvir, do samsâra. O nirvâna não é mais que a denominação negativa do trabalho de extinção da sede e da ignorância metafísicas. A sua contrapartida positiva é a iluminação ou o despertar (bodhi), no qual o termo “Buda” não é, como geralmente se crê, um nome, mas um título que significa
“despertado”. Por essa razão escolhi como título do meu livro A Doutrina do Despertar. Segundo o Buda histórico, esta doutrina perdeu-se com a passagem do tempo. Na Índia acabou por ser encoberta pelo ritualismo, pela especulação vazia e presunçosa da esclerótica casta brahmâna. O Buda reafirmou-a, anunciou-a de novo e conferiu-lhe uma formulação sobre a qual não deixou de influir a sua natureza, visto não se tratar de um brahmâna, mas de um membro da casta guerreira. O carácter “aristocrático” do budismo e a presença da força viril e guerreira (o rugido do leão não é mais que o anúncio da chegada do Buda) aplicada ao plano imaterial e intemporal, são os traços que pus em relevo na exposição desta doutrina, aber-
tamente oposta às interpretações deformadas, quietistas e humanitárias que antes assinalei. Outro ponto importante é que o budismo – no seu núcleo essencial e autêntico – não pode ser denominado uma religião no sentido corrente e teísta do termo, não porque como doutrina moral não pudesse chegar ao plano religioso, mas porque transcende e ultrapassa esse plano. Do mesmo modo que uma doutrina iniciática ou esotérica não é uma “religião”, também o budismo não é uma religião. A vontade do incondicionado conduz o asceta budista mais além do Ser e do deus do Ser, além dos céus e paraísos, considerados ataduras, do mesmo modo que as hierarquias das divindades tradicionais populares entram no finito, na contingência do samsâra que deverá transcender. Nos textos encontra-se esta forma recorrente: “Superou este mundo e o outro mundo, libertou-se das ataduras humanas e das ataduras divinas, libertou-se das duas ataduras”. Por conseguinte, o fim último, a Grande Libertação, é aqui idêntica à tradição metafísica mais pura: o cume hiper-essencial anterior e superior ao ser e ao não-ser, a toda e qualquer figuração de um deus pessoal “criador”. Ainda que o meu livro estabeleça precisões e trace adequadamente o quadro doutrinário essencial do budismo (ao indicar, por exemplo, o sentido da teoria da “cadeia das origens independentes” que conduz à existência finita e a teoria do nãoEu que esclarece o equívoco da reencarnação, etc.), foi consagrado sobretudo à prática, à ascese búdica, mediante uma exposição sistemática baseada directamente nos textos. A referência a elementos de outros ensinamentos esotéricos permitiu-me frequentemente ver mais profundamente que os orientalistas e os representantes modernos do budismo. Disse na introdução que o meu desejo de expor “um sistema de ascese completo e objectivo de forma tão clara e consciente como conclusiva, experimentado, bem
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O próprio Buda se apresenta como um homem que abriu a via por meios próprios, unicamente com forças próprias, como um «asceta combatente», mesmo que eventualmente fosse o ponto de partida de uma cadeia de mestres e de influências espirituais ligadas a eles. O lado importante do budismo das origens era a exigência prática, o primado da acção, a aversão contra toda a especulação vã, a divagação mental quanto aos problemas, hipóteses, fantasias e mitos, e portanto o primado da experiência directa e realizadora.”
articulado, conforme ao espírito do homem ariano e englobando as condições estabelecidas nos tempos recentes”, me levaram a escolher as disciplinas búdicas como as que, mais que quaisquer outras, apresentam esse carácter. Com efeito, trata-se de técnicas conscientes, livres de mitologias morais ou religiosas (no budismo, a moral é apenas um meio: ignora o fetichismo dos valores morais, isto é, o carácter imperativo intrínseco de certas normas), de técnicas que apresentam um aspecto a que se poderá chamar científico dada a precisão das diferentes fases da sua realização e encadeamento orgânico. A meta precisa e eminente desta ascese é a destruição da sede, o descondicionamento, o despertar, a Grande Libertação. Entretanto, devo fazer notar que pelo menos uma parte das disciplinas expostas é susceptível de se aplicar à vida mundana mediante o fortalecimento da alma íntima, de um certo distanciamento, do desempenho do que é invulnerável e indestrutível. Esta ascese “aristocrática” pode ter então um valor imanente. Na conclusão do livro faço uma alusão ao sentido que numa época como a actual reveste para o homem diferenciado, e como pode servir de antídoto ao clima psíquico de um mundo caracterizado por um activismo insensato identificado com forças “vitais”, irracionais e caóticas. Recordar-se-á que precisei este ponto na parte final da segunda edição de O Yoga da Potência ao falar das
premissas essenciais reclamadas pela própria via tântrica. No fundo, o princípio “Çiva” dos Tantras, graças ao qual a “Çakti” encontra o seu senhor e se une a ele indissoluvelmente, e o sentido “extrasamsárico” que o asceta budista deve alcançar e reforçar. Aparte esta questão, a alusão a uma ascese “respeitante às condições estabelecidas nos tempos actuais” remete à teoria geral da involução verificada ao longo da história, incluindo o plano existencial: a partir daí, o homem ficou longe do estádio que lhe permitia a realização espiritual efectiva, do plano em que podia contar com contactos subsistentes mas reais, com o transcendente e igualmente com suportes exteriores tradicionais. O próprio Buda se apresenta como um homem que abriu a via por meios próprios, unicamente com forças próprias, como um “asceta combatente”, mesmo que eventualmente fosse o ponto de partida de uma cadeia de mestres e de influências espirituais ligadas a eles. O lado importante do budismo das origens era a exigência prática, o primado da acção, a aversão contra toda a especulação vã, a divagação mental quanto aos problemas, hipóteses, fantasias e mitos, e portanto o primado da experiência directa e realizadora. Por isso mesmo o Buda seguiu no domínio doutrinário uma linha análoga à da “teologia negativa”, recusando teorizar e falar do grau supremo a realizar, indicando-o apenas por meio de
termos negativos relacionados com o que não é, ou, por outras palavras, com tudo o que deve ser superado. Depois da exposição das técnicas recolhidas no cânone pali, tratei brevemente no meu livro das formas sucessivas do budismo, procurando também realçar o núcleo essencial destacado do acessório, e a continuar nessas formas a sua linha central. Assim, no Mahâyâna, uma das duas grandes escolas búdicas que despertou grande interesse em certos meios ocidentais, separei o que é imputável ao ressurgimento do demónio da dialéctica e à especulação abstracta e mitologizante, ao desvio provocado pela reafirmação de exigências de tipo religioso (fenómeno inevitável quando o
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saber superior se encerra e se protege atrás do véu do esoterismo: no início, o Buda histórico opunha-se à ideia de dar a conhecer e difundir a verdade e a via que tinha descoberto), ao que é próprio de uma deslocação atrevida do ponto de referência, a saber a tentativa de descrever a visão, não do que se dirige para a iluminação, mas do que a realizou plenamente. A este propósito, encontra-se no primeiro plano a doutrina mahayânica do “vazio” e esta, complementar e paradoxal da identidade do nirvâna e do samsâra, isto é, do incondicionado e do condicionado, da transcendência e da imanência, do supra-mundo e do mundo, do absoluto e do relativo. A verdade típica dos altos cumes. Em último lugar, a minha obra oferece um resumo da rama do budismo esotérico chamado Ch’an na China e Zen no Japão. O mais interessante destas correntes é a retoma firme da exigência que caracterizava a reacção do Buda contra o bramanismo degenerado. Com efeito, foram-se sobrepondo teorizações, formas exteriores e rituais religiosos ou moralizantes na doutrina do despertar propriamente dita. O Zen fez saltar tudo isso, em muitos casos pondo a nu de maneira verdadeiramente iconoclasta o problema central, a ruptura do nível de consciência comum (a realização do satori), recorrendo frequentemente a técnicas violentas e paradoxais. Outro ponto interessante que confirma o que indiquei sobre o uso livre da ascese budista é que, graças ao Zen, o budismo se tornou também a “doutrina dos samurais”, a casta guerreira japonesa: as suas disciplinas foram criadas para criar estabilidade interna e um destacamento autêntico, não apenas na contemplação transcendente, mas também na acção absoluta. De modo mais geral, o Zen desempenhou em diferentes domínios da vida prática japonesa um papel importante na formação das atitudes interiores, o
Graças ao Zen, o budismo tornou-se também a “doutrina dos samurais”
que serviu também para desmentir a imagem deformada e unilateral do budismo concebido pela maioria. Estou entre os primeiros que na Itália falaram de maneira justa do budismo. Sucede, no entanto, que tal doutrina esteve na moda no segundo pós-guerra num contexto que atesta o incrível provincianismo de certa imprensa italiana: o interesse pelo Zen chegou inclusivamente às revistas ilustradas a pretexto de ter sido “descoberto” por certos grupos das gerações americanas mais recentes, os hipsters e os beatniks, que viam nas doutrinas irracionalistas e iconoclastas do Zen, associadas à ideia de uma iluminação repentina e gratuita, algo que ia ao encontro das suas necessidades e lhes podia evitar um irreparável desmoronamento interior. A Doutrina do Despertar apareceu também em tradução inglesa (em 1951, Ed. Luzac & Co.: o que traduziu a obra, um tal Mutton, descobriu no livro um impulso para deixar a Europa e retirar-se no Oriente na esperança de descobrir um centro onde se cultivassem ainda as disciplinas que pus em relevo; infelizmente, não tive mais notícias dele) e em tradução francesa
(1956, Ed. Adyar). A edição inglesa recebeu a aprovação oficial da Pâli Society, conhecido instituto académico de estudos sobre o budismo das origens, que reconheceu o valor da minha obra. Em virtude do livro em questão, alguns viam em mim um budista ou um especialista do budismo, o que não é exacto, já que depois de o escrever não voltei a debruçarme sobre esta matéria. De facto, um dos objectivos que me propus atingir ao indicar no meu livro sobre os Tantras o que em numerosos aspectos é a via da afirmação, do empenho, da utilização e da transformação das forças imanentes libertadas com o despertar da Çakti como potência-raiz da energia vital e especialmente do sexo (a Kundalini), foi descrever nesta obra sobre o budismo a via oposta, a via “seca” e intelectual do desapego puro. Em relação ao fim último, trata-se de duas vias equivalentes na condição de serem levadas realmente a cabo. Segundo as circunstâncias, a natureza e as disposições existenciais de cada um, pode recomendar-se uma ou outra. No meu livro sobre o hermetismo evoquei outra tradição, esta ocidental, das técnicas de realização espiritual; noutra, sobre o Graal, pus em relevo o conteúdo iniciático oculto no simbolismo de certa literatura egípcia e cavaleiresca da Idade Média europeia; no estudo introdutório sobre o taoismo e nos comentários da segunda apresentação do Tao-te-king de Lao-Tsé indiquei os pontos essenciais do esoterismo desta tradição. Acrescentando a estes as contribuições contidas em Introdução à Magia e o que expus sobre a “via do sexo” num dos meus últimos livros, Metafísica do Sexo, apresentei aos que se interessam por estes domínios uma vasta documentação, recolhendo e classificando matérias de acesso muitas vezes difícil e interpretandoas adequadamente, isto é, do ponto de vista tradicional.
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Doutrina
Notas sobre a “divindade” da Montanha Julius Evola ——– ——–——————– ——————–——– ——–————– ————– Num editorial publicado pela Rivista del Club Alpino Italiano, S. Manaresi sublinhou com eficazes palavras algo que nunca é demais enfatizar, nomeadamente, a necessidade de superar a limitadora antítese entre o tipo instruído e fisicamente débil – que foi privado das forças mais profundas do corpo e da vida pelo seu auto-imposto confinamento a uma cultura feita de palavras e livros – e o indivíduo meramente desportivo, saudável, atlético e fisicamente forte – porém privado de qualquer ponto de referência superior. Para além da unilateralidade destes dois tipos é hoje necessário chegar a algo mais completo: a um tipo no qual o espírito se transforme em força e vida, e a disciplina física, por sua vez, se transforme na introdução, símbolo e quase diríamos “rito”, para a disciplina espiritual. S. Manaresi em muitas outras ocasiões tem tido a oportunidade de dizer que, entre os diversos desportos, o alpinismo é seguramente aquele que oferece as melhores possibilidades de alcançar esta união entre o corpo e o espírito. Na realidade, a grandeza, o silêncio e a majestade das grandes montanhas inclinam naturalmente o espírito para aquilo que é mais do que humano, atraindo assim os melhores ao ponto do aspecto físico da escalada (com a coragem, o auto-domínio e a lucidez mental que requer) e a realização espiritual interior, se tornarem partes complementares e inseparáveis de uma mesma coisa. É interessante ressaltar que estas ideias, que hoje começam a ser enfatizadas por indivíduos ilustres como
forma de promover uma justa orientação entre as novas gerações, podem ser atribuídas a uma muito antiga tradição, a algo a que se pode chamar “tradicional” no sentido mais amplo do termo. Embora os antigos não praticassem o alpinismo, apesar de algumas excepções rudimentares, eles tinham não obstante uma percepção muito vívida da sacralidade e do simbolismo da montanha. Eles consideravam também – e isto é muito revelador – a escalada da montanha e a residência na mesma como algo típico dos heróis e dos iniciados, ou seja, de seres que, em suma, consideravam ter superado os limites da vida comum e medíocre das planícies. Nas páginas que se seguem oferecerei alguns comentários sobre o conceito tradicional da divindade da montanha, olhando para lá dos seus símbolos até ao seu significado interior. Isto permitir-me-á evocar e definir alguns aspectos do lado espiritual do alpinismo, cuja descrição técnica representa apenas o aspecto externo, ou seja, o caput mortuum. *
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O conceito da divindade das montanhas encontra-se tanto em tradições do Ocidente quanto do Oriente, desde as tradições chinesas até aos astecas da América pré-colombiana; desde os egípcios até aos arianos nórdico-germânicos; dos helénicos aos iranianos e hindus. Esta noção encontra-se sob a forma de mitos e lendas sobre a montanha “dos deuses” ou sobre a montanha “dos heróis” – que é o lugar de residência
dos que foram “para lá arrebatados” – ou sobre lugares onde se encontram forças misteriosas de glória e de imortalidade. O fundamento geral para o simbolismo da montanha é simples: já que a terra se associa a tudo o que é humano (a etimologia da palavra “humano” vem de “humus”, solo), os cumes da terra, que se erguem até ao céu e que são transfigurados por neves perenes, expressam espontaneamente a matéria mais adequada para representar, mediante alegorias, estados transcendentais de consciência, as realizações espirituais interiores ou as aparições de modos supra-normais do ser, retratados figurativamente como “deuses” e seres sobrenaturais. Deste modo, temos as montanhas não só como “moradas” simbólicas dos deuses, mas encontramos também tradições, como as dos antigos arianos do Irão e da Média que, segundo Xenofonte, nunca erigiam templos dedicados às suas divindades, usando os cumes das montanhas para celebrar o culto e o sacrifício ao Fogo e ao Deus da Luz, encontrando nos cumes um lugar mais digno, grandioso e analogamente mais próximo do divino do que qualquer construção ou templo feito pelas mãos humanas. Para os hindus a cadeia montanhosa divina é, como todos sabem,
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os Himalaias, palavra que em sânscrito significa: “a morada das neves.” Mais especificamente, o Monte Meru é a montanha sagrada que se crê estar localizada nos Himalaias. É importante notar duas coisas. Primeiro, o Monte Meru é concebido como o lugar em que Shiva, o “grande asceta”, levou a cabo as suas meditações. Em segundo lugar, foi a partir daqui que Shiva fulminou Kama, o deus hindu do amor, quando este tentou expor o seu coração à paixão. Na tradição hindu, a ideia de ascetismo absoluto e de austera purificação da natureza é associada ao cume mais alto da montanha. Esta ideia é inacessível a qualquer coisa proveniente da luxúria e do desejo e é portanto estável num sentido transcendente. Assim, nas antigas fórmulas védicas para a consagração dos reis, vemos figurar precisamente a imagem da “montanha” simbolizando a estabilidade do poder e do imperium que o rei assumirá. Por outro lado, no Mahabharata vemos Arjuna ascender aos Himalaias para praticar o ascetismo porque está escrito que “apenas nas altas montanhas poderia ele alcançar a visão divina”; do mesmo modo, o imperador Yudhisthira viaja até aos Himalaias para alcançar a sua apoteose ao subir à “carruagem” do “rei dos deuses.” É igualmente notável que a palavra em sânscrito paradesha signifique “sítio elevado” ou “região alta”, e, portanto, num sentido meramente material, cume de montanha. Mas paradesha pode estar etimologicamente associado com a palavra caldeia
pardes, da qual deriva o termo paraíso, que foi transformado num conceito teológico dogmático pela fé judaico-cristã. Na noção original ariana de “paraíso”, encontramos uma associação íntima com o conceito das alturas, dos cumes; esta associação, como veremos mais à frente, encontra-se formulada claramente na concepção Dórico-Aquéia do Olimpo. Neste ponto, deve-se dizer algo sobre as lendas helénicas relativas às personagens míticas que foram “arrebatados para a montanha”. É sabido que os helenos, tal como a maioria das tribos arianas, possuíam uma visão marcadamente aristocrática do post-mortem. O destino da maior parte das pessoas, daqueles que nunca se haviam elevado acima da vida comum, era o Hades, uma existência residual e larval pós morte, desprovida de verdadeira consciência, passada no sub-mundo das sombras. A imortalidade, ao lado dos deuses olímpicos, era o privilégio dos heróis, ou, por outras palavras, era uma conquista excepcional de uns poucos seres superiores. Nas mais antigas tradições helénicas encontramos que a imortalidade dos heróis se deduz especificamente no símbolo da sua ascensão às montanhas e do seu “desaparecimento” nas montanhas. Assim, encontramos novamente o mistério das “alturas”, já que neste “desaparecimento” devemos ver o símbolo material de uma transfiguração espiritual. As expressões “desaparecer”, “tornar-se invisível”, ou “ser arrebatado até às alturas”, não devem ser tomadas num
sentido literal, mas significam essencialmente ser introduzido virtualmente no mundo além dos sentidos, no qual não há morte e removido do mundo visível dos corpos físicos, que é o da comum experiência humana. Esta tradição não se encontra apenas na Grécia. No budismo faz-se referência a uma montanha na qual aqueles que alcançam o despertar espiritual, descritos pelo Majjhima Nikkaya como “mais que homens, seres invictos e incorruptíveis, livres e inatingíveis pelos apetites, redimidos”, desaparecem. As tradições taoistas chinesas falam do Monte KuenLun, no qual lendários seres régios encontraram a poção da imortalidade. Existe algo parecido em algumas tradições islâmicas orientais relativamente a pessoas que através da iniciação foram “arrebatadas” para os cumes, sendo deste modo poupadas à experiência da morte. Os egípcios antigos falavam sobre uma montanha (Seth Amentet) atravessada por um caminho, através do qual os seres destinados à imortalidade “solar” eventualmente penetravam numa “terra triunfante”, na qual, segundo uma inscrição hieroglífica, “os líderes que se assentam no trono do Grande Deus proclamam a sua vida eterna e poder.” Atravessando o Oceano Atlântico, no México pré-colombiano encontramos uma impressionante correspondência com estes símbolos: a grande montanha Culhuacán (que significa “montanha curvada”, porque o seu cume inclina-se ligeiramente para
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baixo), era considerada um ponto divino que mantinha uma ligação com as regiões inferiores. De acordo com as tradições ancestrais americanas, alguns imperadores astecas desapareceram sem deixar rasto numa montanha análoga. Pois bem, como é sabido, este mesmo tema encontra-se nas lendas da Idade Média Ocidental Romano-Germânica: montanhas como o Kyffhauser e o Odenberg são lugares para os quais se acredita terem sido levados reis tais como Carlos Magno, Artur, Frederico I e Frederico II, os quais alegadamente nunca morreram e esperam pelo momento em que aparecerão novamente. No ciclo das lendas do Graal, encontramos o Monte Montsalvat, que segundo Guénon significa, “montanha da saúde” ou “montanha da salvação”; o grito de guerra dos cavaleiros medievais era “Montjoie” e numa lenda à qual não corresponde naturalmente nenhuma realidade histórica, mas que nem por isso deixa de ter um rico significado espiritual, atravessar uma montanha era o passo que precedia a coroação “imperial”, sagrada e romana, de Artur. Não poderei descrever em detalhe o significado interior destes símbolos e mitos, especialmente dos que concernem aos reis desaparecidos que um dia retornarão, tema que por outro lado, tratamos exaustivamente noutro lugar. Direi unicamente que nestes mitos de diversas origens encontramos o tema comum da montanha concebida como uma sede de imortalidade onde os indivíduos espirituais alcançam a realização e os heróis desaparecem, como na antiga tradição helénica. *
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Diremos algo mais sobre dois pontos: sobre a montanha como sede do haoma e da glória e sobre a montanha como Valhalla. O termo iraniano haoma corresponde ao sânscrito soma, a chamada bebida da imortalidade. Nestas duas antigas ideias arianas temos a associação de diferentes conceitos, parcialmente reais e parcialmente simbólicos, parcialmente materiais e parcialmente traduzíveis em termos que descrevem a experiência espiritual. As tradições hindus, por exemplo, descrevem o soma quer como um deus quer como o sumo de uma
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A imortalidade, ao lado dos deuses olímpicos, era o privilégio dos heróis, ou, por outras palavras, era uma conquista excepcional de uns poucos seres superiores. Nas mais antigas tradições helénicas encontramos que a imortalidade dos heróis se deduz especificamente no símbolo da sua ascensão às montanhas e do seu «desaparecimento» nas montanhas. Assim, encontramos novamente o mistério das «alturas», já que neste «desaparecimento» devemos ver o símbolo material de uma transfiguração espiritual.” planta que é capaz de induzir sentimentos de exaltação, sentimentos esses que eram tidos em grande conta e eram induzidos durante os rituais de transformação interior para proporcionar uma espécie de gosto da imortalidade. Tal como Buda comparou a uma alta montanha o estado “no qual não há o aqui ou ali, nem vir e ir, apenas calma e iluminação como no oceano infinito” (o nirvana), nós lemos no Yashna que o misterioso haoma cresce nas altas montanhas. E, uma vez mais, encontramos a associação da ideia de altura com a ideia de um entusiasmo capaz de transformar, inspirar e guiar indivíduos àquilo que não é meramente humano, mortal e efémero. O mesmíssimo tema encontra-se também na Grécia, no primeiro período dionisíaco. Segundo testemunhos muito antigos, aqueles que, durante os festivais religiosos, fossem possuídos pelo “divino furor de Dionísio”, eram arrastados até aos cumes selvagens das montanhas trácias por um estranho e arrebatador poder que surgia nas suas almas. E no entanto há algo mais que pode rectificar o que quer que seja ainda caótico e não completamente puro ao nível “dionisíaco”; é o antigo conceito iraniano, exposto no Yasht, acerca da montanha, nomeadamente, o poderoso Monte Ushi-darena, que é também a sede da glória. Na tradição iraniana, a “glória” (hvareno ou farr) não era um conceito abstracto. Era concebida como uma força real e quase física, embora invisível e de origem não humana. A glória era de forma geral um privilégio da luminosa raça ariana, mas especialmente pertencente a reis,
sacerdotes e conquistadores pertencentes a esta raça. Um símbolo testemunhava a presença da glória: a vitória. A glória era atribuída a origens solares, já que o sol era visto como o símbolo de um ente luminoso que todas as manhãs triunfava sobre a escuridão. Transpondo estes conceitos sub specie interioritatis, a glória expressava as façanhas de raças vitoriosas, nas quais a superioridade é poder (vitória) e o poder é superioridade, como nos seres celestiais solares e imortais. No Yasht está escrito que não só a planta do haoma (dos estados dionisíacos) cresce nas montanhas, mas também que a montanha mais poderosa, Ushi-darena, é o trono da glória ariana. Chegamos ao último ponto: a montanha como Valhalla. A palavra Valhalla foi popularizada através da obra de Richard Wagner, que em muitos aspectos adopta uma interpretação literal dos antigos conceitos nórdico-escandinavos dos Edda, de onde obteve a sua inspiração. Tais conceitos estão, no entanto, abertos a interpretações mais profundas. Valhalla significa literalmente “a corte dos heróis caídos”, da qual Odin era o rei. Trata-se do conceito de um lugar privilegiado de imortalidade (nestas tradições, tal como nas tradições helénicas, a maior parte das pessoas está destinada a ter depois da morte uma existência obscura e larval no Niflheim, o equivalente nórdico do Hades), reservado aos nobres e aos heróis caídos no campo de batalha. Quase como no ditado, segundo o qual “o sangue dos heróis é mais precioso para Deus que a tinta dos filósofos ou as orações dos
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Valhalla significa literalmente «a corte dos heróis caídos», da qual Odin era o rei. Trata-se do conceito de um lugar privilegiado de imortalidade reservado aos nobres e aos heróis caídos no campo de batalha. Nestas tradições ancestrais, morrer num campo de batalha era o sacrifício mais apreciado pela divindade máxima (Odin, Wotan ou Tiuz) e o mais proveitoso de todos os feitos supra-humanos. Odin fazia dos guerreiros caídos seus filhos e tornava-os imortais, juntamente com os reis divinizados, no Valhalla.” fiéis”, nestas tradições ancestrais, morrer num campo de batalha era o sacrifício mais apreciado pela divindade máxima (Odin, Wotan ou Tiuz) e o mais proveitoso de todos os feitos supra-humanos. Odin fazia dos guerreiros caídos seus filhos e tornava-os imortais, juntamente com os reis divinizados, no Valhalla, lugar frequentemente associado com Asgard, a cidade dos Asen, os seres divinos da luz envolvidos numa batalha permanente contra as criaturas tenebrosas da terra (elementarwesen). Os conceitos de Valhalla e de Asgard apresentavam originariamente uma relação imediata com a montanha, tanto que Valhalla se tornou o nome de montanhas suecas e escandinavas. Além disso, quando se pensava que se localizava em antigas montanhas, tais como o Helgafell, Krossholar e Hlidskjalf, o Valhalla foi concebido como a sede dos heróis e dos príncipes divinizados. O Asgard aparece amiúde nos Edda como Glitmirbjorg, “a montanha resplandecente” ou como Himinbjorg, no qual as ideias de montanha e céu luminoso, ou de uma qualidade luminosa e celeste confundem-se. Assim encontramos o tema central do Asgard como uma montanha altíssima, sobre cujo cume gelado brilha uma luz eterna, acima das nuvens e da neblina. A montanha como Valhalla é também o lugar de onde a chamada Wildes Heer parte tempestuosamente e o lugar para onde retorna. Trata-se aqui de um antigo conceito popular nórdico que foi formulado num nível
mais elevado quando foi associado ao exército comandado por Odin, um exército composto por heróis caídos. Segundo esta tradição, o sacrifício heróico da própria vida (que na tradição romana se chamava mors triumphalis e através do qual o iniciado vitorioso se juntava às fileiras dos heróis e dos soldados vitoriosos) serve também para acrescentar um novo recruta àquele exército espiritual irresistível, a Wildes Heer, de que Odin, deus das batalhas, precisa para alcançar um derradeiro e transcendente objectivo: lutar contra o ragna rökkr, ou seja, contra o obscurecimento do divino que espreita o mundo desde um passado distante. Através destas tradições, assumidas no seu significado íntimo em vez de na sua forma mitológica exterior, chegamos ao conceito mais elevado deste ciclo de mitos sobre a divindade da montanha, que é quase um eco destas realidades distantes. Lugar do despertar, do heroísmo, e por vezes de uma morte heróica transfiguradora; lugar de um entusiasmo conducente a estados transcendentes; lugar de puro ascetismo e de uma força solar triunfante que se opõe a todos os poderes que paralisam, obscurecem e degradam a vida – esta parece ser a percepção simbólica dos antigos acerca da montanha. Esta percepção emerge num ciclo de lendas e mitos que estão dotados de muitas características similares, sen-
do que os exemplos mencionados acima são apenas uns poucos de entre uma extensa lista. Naturalmente, não sugiro adoptar evocações anacrónicas dos mitos, e no entanto esta não é meramente uma lista de curiosos exemplos históricos. Por trás do mito e do símbolo que são condicionados pelo tempo existe um espírito que pode sempre reviver e tomar uma expressão eficaz em novas formas e acções: isto é o que realmente importa. O melhor que podemos desejar às novas gerações é que o alpinismo não se torne na profanação da montanha. Além disso, espero sinceramente que todas aquelas sensações profundas na raiz da deificação mitológica das montanhas pelos antigos possam ser progressivamente despertadas e voltem a exercer uma influência resplandecente sobre aqueles que, hoje, levados de forma confusa pelo instinto a superar as limitações inerentes ao quotidiano da vida comercial e mecânica das planícies, trepam rochas, cristas, e paredes rodeados pelo céu e pelo abismo, avançando em direcção aos cumes gelados e luminosos.
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Símbolos da Tradição
O simbolismo da Suástica A suástica é um dos símbolos mais difundidos e mais antigos. Encontra-se do Extremo oriente à América central, passando pela Mongólia, Índia e Norte de Europa. Foi familiar aos Celtas, aos Etruscos, à Grécia antiga, e o ornamento chamado grega deriva dela. Alguns pretenderam fazê-la remontar aos Atlantes, o que é uma forma de indicar a sua remota antiguidade. Seja qual for a sua complexidade simbólica, a suástica, pelo seu próprio grafismo, indica claramente um movimento de rotação em torno de um centro imóvel, que pode ser o eu, ou o pólo. É, pois, um símbolo de acção, de manifestação, de ciclo e de regeneração perpétua. Foi neste sentido que acompanhou muitas vezes a imagem dos sábios da humanidade: Cristo, das catacumbas ao Ocidente medieval e ao nestorianismo das estepes: Os Cristos romanos são muitas vezes concebidos em torno de uma espiral ou de uma suástica: estas figuras dão ritmo à atitude, organizam os gestos, as pregas das vestes. Por aí se reintroduz o velho símbolo do turbilhão criacional em torno do qual se dispõem as hierarquias criadas que dele emanam; Buda, pois ele representa a Roda da Lei (Dharmachakra) girando em torno do seu centro imutável, centro que frequentemente representa Agni. A simbologia dos números ajuda a compreender melhor o sentido de força totalizante deste emblema: a suástica é feita de uma cruz cujos braços, como nas orientações vectoriais que definem um sentido giratório e depois o reenviam para o centro, são quadruplicados. O seu valor numérico é, portanto, quatro vezes quatro, isto é, dezasseis. É o desenvolvimento em potência da Realidade, ou do universo. Desenvolvimento do universo criado que se associa a estas grandes figuras criadoras ou redentoras invocadas mais acima; desenvolvimento duma realidade humana que exprime o extremo desenvolvimento dum poder secular, o que explica as suas atribuições históricas, de Carlos Magno a Hitler. Aqui intervém igualmente o sentido do seu movimento giratório, quer se trate do sentido
directo astronómico, cósmico e, portanto, ligado ao transcendente: é a suástica de Carlos Magno; ou do sentido inverso, chamado dos ponteiros do relógio, pretendendo colocar a infinitude e o sagrado no temporal e no profano: é a suástica hitleriana. Guénon interpreta estes sentidos opostos como a rotação do mundo visto de um e de outro pólo; os pólos em questão são o homem e o pólo celeste e não os pólos do globo terrestre. Esta simbologia, em todos os casos totalizante, encontra-se também na China, onde a suástica é o sinal do número dez mil, que é a totalidade dos seres e da manifestação. É também a forma primitiva do carácter fang, que indica as quatro direcções do espaço. Poder-se-ia relacionar também com a disposição dos números do Lo-chu, o qual, em qualquer dos casos, evoca o movimento de giro cíclico. Tomada na sua acepção espiritual, a suástica por vezes substitui pura e simplesmente a roda na iconografia hindu, por exemplo, como emblema de Ganech, divindade do conhecimento, e às vezes manifestação do princípio supremo. Os mações colocam-se na estrita observância da simbologia cosmográfica, considerando que o centro da suástica é a estrela polar, e que os quatro gamas que a formam são as quatro posições cardeais da Ursa Maior em torno daquela, o que pode ajudar a interpretar a reflexão de Guénon referida mais acima. Existem ainda outras formas secundárias da suástica, como a forma de braços curvos, utilizada no País Basco, e que evoca com uma especial clareza a figura da espiral. É o caso também da suástica clavígera, em que cada braço é constituído por uma chave: é uma expressão muito completa dos simbolismos das chaves, correspondendo o eixo vertical à função sacerdotal e aos solstícios, o eixo horizontal à função real e aos equinócios. Fonte: A. Gheerbrant e J. Chevalier, Dicionário dos Símbolos
Da esquerda para a direita: suástica japonesa, suástica romana, suástica jainista, suástica ameríndia, suástica grega