Quarenta anos do Experimento Stanford de Prisionizacao lelio braga calhau 2011

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UNIVERSIDADE VALE DO RIO DOCE FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS CURSO DE PSICOLOGIA

Lélio Braga Calhau

QUARENTA ANOS DO EXPERIMENTO STANFORD DE PRISIONIZAÇÃO (SPE): papéis sociais, regras, obediência à autoridade e o "Caso Abu Ghraib"

Governador Valadares 2011


Lélio Braga Calhau

QUARENTA ANOS DO EXPERIMENTO STANFORD DE PRISIONIZAÇÃO (SPE): papéis sociais, regras, obediência à autoridade e o "Caso Abu Ghraib"

Monografia para obtenção do grau de bacharel em Psicologia, apresentada á Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Vale do Rio Doce. Orientador: Roberto Jório Filho

Governador Valadares 2011


Lélio Braga Calhau

QUARENTA ANOS DO EXPERIMENTO STANFORD DE PRISIONIZAÇÃO (SPE): Papéis sociais, regras, obediência à autoridade e o "Caso Abu Ghraib"

Monografia para obtenção do grau de bacharel

em

Psicologia,

apresentada

á

Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Vale do Rio Doce.

Governador Valadares, ___ de ________ de ___.

Banca Examinadora: _____________________________________________ Prof. Ms. Roberto Jório _____________________________________________ Prof. Ms. Solange Batista Nunes Coelho Leite _____________________________________________ Prof. Omar Azevedo Ferreira


Dedico esse trabalho à memória de minha falecida avó, Carmem Silva Braga e à minha mãe, Maria de Fátima Silva Braga.


AGRADECIMENTOS

Agradeço ao professor Philip Zimbardo pela cessão dos materiais publicados neste trabalho. Ao professor Alvino Augusto de Sá (USP), amigo criminólogo, por ter sido a inspiração pela minha entrada no Curso de Psicologia no ano de 2006 e por todas as mudanças decorrentes disso em minha vida. Agradeço ao meu orientador, Prof. Roberto Jório Filho, pela dedicação, lealdade e desprendimento em supervisionar este trabalho. Agradeço aos meus colegas professores do curso de Psicologia e, em especial, aos servidores da área administrativa da UNIVALE (DRA, SPA e Biblioteca) que sempre me apoiaram quando necessitei de auxílio. A todos que, de alguma forma, contribuíram para que este trabalho fosse possível. Alguns já não estão mais comigo, mas nunca serão esquecidos.


“De um modo geral, se aceita que nenhuma atividade pode ser levada a cabo com sucesso por um indivíduo que esteja preocupado, uma vez que, quando distraída, a mente nada absorve com profundidade, mas rejeita tudo quanto, por assim dizer, a assoberba. Viver é a atividade menos importante do homem preocupado, no entanto, nada há mais difícil de aprender; por todo o lado, encontram-se muitos instrutores das outras artes: na realidade, algumas destas artes são captadas tão intensamente por simples rapazes que assim as podem ensinar. Mas aprender a viver exige uma vida inteira e, o que te pode surpreender ainda mais, é necessário uma vida inteira para aprender a morrer.”


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SĂŞneca, in 'Da Brevidade da Vida'


RESUMO

Em 1971, o Professor Dr. Philip Zimbardo organizou um experimento de simulação dos efeitos da prisionização no subsolo da Faculdade de Psicologia da Universidade de Stanford, em Palo Alto, Califórnia, EUA. Vinte e quatro alunos foram selecionados de um grupo de setenta inscritos para simularem papéis sociais de prisioneiros e guardas. Após seis dias, de quatorze previamente planejados, o experimento foi abortado, tendo em vista que alguns alunos entraram em grande sofrimento emocional. O problema do presente estudo é a importância que o "Experimento Stanford de Prisionização - SPE" tem para a moderna Psicologia Social. Objetivou-se estudar quais forças situacionais tão poderosas, como as existentes no mundo carcerário real, submergiram e influenciaram de forma efetiva sujeitos e pesquisadores. O objetivo geral é identificar, descrever e analisar as principais forças situacionais presentes no SPE e seus paralelos com as torturas praticadas por soldados norte-americanos no "Caso Abu Ghraib. O objetivo específico é identificar como normas, papéis sociais, a obediência a autoridade e conformidade influenciaram fortemente os rumos do SPE, e como se demonstraram presentes, também, nas torturas praticadas em 2003 no presídio iraquiano de Abu Ghraib. O método utilizado é pesquisa bibliográfica. Palavras-chave: Prisionização. Papéis sociais. Conformidade.


ABSTRACT

In 1971, Professor Dr. Philip Zimbardo set up a simulation experiment of the effects of prisionização in the basement of the Psychology Department at Stanford University in Palo Alto, California, USA. Twenty-four students were selected from a group of seventy subscribers to simulate roles of prisoners and guards. After six days, fourteen previously planned, the experiment was aborted, given that some students came in great emotional distress. The problem of this study is the importance that the "Stanford Prison Experiment - SPE" is to modern social psychology. Which aimed to study so powerful situational forces, such as real prison in the world, and influenced submerged effectively subjects and researchers. The overall objective is to identify, describe and analyze the main situational forces present in the SPE and its parallels with the torture committed by American soldiers in "Case Abu Ghraib". The specific objective is to identify as norms, social roles, obedience to authority and line strongly influenced the direction of the SPE, and as shown also present in the 2003 torture in Iraqi prison in Abu Ghraib. The method used is literature. Keywords: Prisionisation. Social roles. Compliance.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................................9 2 PEQUENA BIOGRAFIA DE PHILIP ZIMBARDO............................................................14 3

EVOLUÇÃO

CRONOLÓGICA

DO

EXPERIMENTO

STANFORD

DE

PRISIONIZAÇÃO (14 A 20 DE AGOSTO DE 1971)..............................................................17 3.1 ORGANIZAÇÃO PRÉVIA DO EXPERIMENTO.................................................................18 3.2 PRIMEIRO DIA – 14 DE AGOSTO DE 1971.......................................................................21 3.3 SEGUNDO DIA – 15 DE AGOSTO DE 1971.......................................................................22 3.4 TERCEIRO DIA – 16 DE AGOSTO DE 1971.......................................................................23 3.5 QUARTO DIA – 17 DE AGOSTO DE 1971..........................................................................24 3.6 QUINTO DIA – 18 DE AGOSTO DE 1971...........................................................................24 3.7 SEXTO DIA - 19 DE AGOSTO DE 1971..............................................................................25 4 PAPÉIS SOCIAIS E REGRAS...............................................................................................25 5 OBEDIÊNCIA À AUTORIDADE..........................................................................................30 6 O EXPERIMENTO MILGRAM............................................................................................33 7 OBEDIÊNCIA Á AUTORIDADE E SPE..............................................................................37 8 O CASO ABU GHRAIB...........................................................................................................40 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................49 REFERÊNCIAS...........................................................................................................................52


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1 INTRODUÇÃO

A Psicologia é uma ciência nova. Quando tomamos a data da instalação do laboratório de Wundt1 (1879) em Leipzig, Alemanha, e a comparamos com a história da Medicina, Filosofia, Matemática, Astronomia etc. chegamos à fácil constatação que a Psicologia, com pouco mais de cento e trinta anos de existência científica, ainda possui um vasto caminho a ser percorrido no que concerne à consolidação do seu pensamento. Embates conceituais, paradoxos, discussões apaixonadas, polêmicas ideológicas, próprias de jovens (como a Psicologia o é) surgiram e surgirão no desenvolvimento epistemológico de seu saber. Entre as polêmicas conceituais, podemos citar a discussão (que nunca terá fim) se prepondera o pensamento do seu tempo (Zeitgeist) ou a capacidade de superação pessoal de cada indivíduo no surgimento de novas idéias ou teorias. Constata-se que, ora o Zeitgeist, ora o indivíduo, mantêm uma árdua disputa para apontar qual é o ator principal da evolução do saber científico. Podemos citar na Psicologia, Watson, Skinner, Rogers, Bandura, e, em nosso estudo, Solomon Asch, Stanley Milgram e Philip Zimbardo, como cientistas que estiveram à frente de seu tempo e se destacaram produzindo novos conhecimentos e que impulsionaram o saber psicológico. Sigmund Freud, também, foi além, ao balançar para sempre as estruturas do pensamento ocidental (e da Psicologia) com a Psicanálise. Ser o primeiro ao apresentar uma nova idéia, um novo ponto de vista científico, uma nova teoria, possui suas recompensas, mas também há um custo pessoal e profissional que a sociedade "cobra" desse "explorador", notadamente quando tratamos da vida na Academia. Esses psicólogos-cientistas ousaram, acertaram, erraram, se expuseram, foram criticados, mas, de alguma forma, escreveram seus nomes no panteão da História do Pensamento Psicológico pelas contribuições de valor que ofereceram à humanidade.

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Wilhelm Wundt (1832-1920) é geralmente celebrado nos manuais de história de psicologia como o fundador da psicologia científica. Como data para esta fundação, é freqüentemente citado o ano de 1879, quando ele inaugurou o Laboratório de psicologia experimental da universidade de Leipzig, supostamente o primeiro em seu gênero. ARAÚJO, Saulo de Freitas. Wilhelm Wundt e a fundação do primeiro centro internacional de formação de psicólogos. Temas em Psicologia – 2009, Volume 17, número 01, p. 09.


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E dentro dos diversos ramos da Psicologia, podemos citar, em especial, a Psicologia Social, como grande contribuinte do desenvolvimento social com o estudo dos grupos. A Psicologia Social tem contribuído de forma muito positiva nas últimas décadas para se compreender melhor o ser humano nas suas interações com diversos grupos distintos na sociedade. O ser humano não é uma ilha. Durante sua existência ele influencia e se deixa influenciar por outras pessoas ou grupos. São essas dinâmicas sociais que são o objeto de estudo da Psicologia Social. Quando falamos em grupos, estamos abordando um tema que, de certa forma, é o tema fundante da Psicologia Social. Os primeiros estudos sobre os grupos foram realizados no final do século 19 pela então denominada Psicologia das Massas ou Psicologia das Multidões. Um dos primeiro pesquisadores deste assunto foi Gustav Le Bon, autor de um conhecido tratado intitulado "Psicologia das Massas" (Psicologie des Foules, no francês). Pode-se dizer que, de uma certa maneira, os pesquisadores do final do século 19 foram influenciados pela Revolução francesa e, mais precisamente, pelo impacto que causou nos pensadores do século 18 (como foi o caso de Hegel). Os pesquisadores se perguntavam o que teria sido capaz de mobilizar tamanho contingente humano, como o que fora mobilizado durante essa revolução. (BOCK; FURTADO; TEXEIRA 2002, p.

217-218). O estudo dos grupos e suas interações ganharam grande impulso após o final da Segunda Guerra Mundial, quando a comunidade científica, em certo grau atônita, procurou estudar, inclusive, os mecanismos que levaram ao surgimento e a ascensão do Terceiro Reich na Alemanha nazista. Como entender que tais atrocidades foram praticadas em solo alemão com o conhecimento de tantas pessoas (grupos) e puderam ir á frente contra vítimas indefesas (judeus, ciganos, pessoas com necessidades especiais etc.), sendo só interrompidas quando a Alemanha foi derrotada de forma definitiva pela Tríplice Aliança? Nesse contexto, Farr (2002, p. 191-192): A necessidade de compreensão do Holocausto movimentou a agenda de pesquisa em psicologia social por décadas, após o fim da guerra. Era difícil, para muitos, compreender, e muito mais difícil ainda aceitar, o que tinha acontecido nos campos de concentração. G. W. Allport aceitou, para publicação no Journal Abnormal and Social Psicology, um artigo de Bettellheim (1943) sobre como era a vida num campo de concentração, enquanto esses campos ainda existiam. Bettellheim, ele próprio, tinha estado em Dachau e Buchenwald. Eisenhower insistiu que seus soldados lessem esse artigo antes de irem libertar alguns desses campos.


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Ou seja, a importância de se entender as relações de grupos foi, mais uma vez, impulsionada, agora por conta do Holocausto, e a humanidade demandava respostas, ou pelo menos, possíveis caminhos para se compreender porque tamanhas atrocidades foram levadas á frente pelos nazistas, com a concordância, omissão culposa ou dolosa do próprio povo alemão. Segundo Zimbardo e Gerrig (2005, p. 627): A expressão de Hannah Arendt, "a banalidade do mal", reverbera no século XXI. Sessenta anos se passaram desde o holocausto nazista, e várias outras ondas de terror foram desencadeadas no mundo. Enquanto escrevemos estas palavras, no outono de 2000, o Oriente Médio mais uma vez explode em violência ao se enfrentarem israelenses e palestinos na Cisjordânia. Noutras partes, um levante popular na Iugoslávia levou a derrocada do brutal ditador Slobodan Milosevic, mas tudo indica que ele e os membros de seu regime irão escapar do julgamento por crimes de guerra. Na Nigéria, o conflito entre membros das tribos Hausas e Youruba deixou milhares de mortos no último ano e dezenas nos últimos dias. Existe uma tendência a olhar esse tipo de circunstâncias e enxergar a loucura, de procurar personagens que sejam insanos ou simplesmente maus, tais como Adolph Hitler. A expressão de Hannah Arendt - "a banalidade do mal" - nega essa análise; ao invés disso, ela observa a facilidade com que forças sociais podem levar pessoas normais a realizar ações horríveis.

Essa "banalidade do mal" trazida á tona em 1963 pela obra de Hannah Arendt, que cobriu o julgamento do nazista Eichmann em Jerusalém, com muita probabilidade, impulsionou também as pesquisas da época sobre como as interações sociais possibilitariam que atos de tamanha crueldade pudessem ocorrer, ainda mais, sendo praticados por pessoas "comuns". Por volta das décadas de sessenta e setenta, diversos psicólogos sociais se encontravam realizando pesquisas para compreender a dinâmica social dos grupos em situações diversas, e que, poderiam ou não, influenciar os questionamentos acima. Dentre eles, podemos citar, pelo menos, Solomon Eliot Asch e Stanley Milgram, que, em suas pesquisas sobre influência dos grupos, começaram a trazer a público demonstrações concretas de que a "banalidade do mal", em específico no caso de Milgram, não era um comportamento "privativo" de ditadores sanguinários, mas que, em determinadas circunstâncias e sob a influência de forças situacionais, poderia influir negativamente o comportamento de qualquer indivíduo.


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Foi imbuído no propósito de entender melhor essas interações sociais dos grupos que Philip Zimbardo deu início a várias pesquisas da Psicologia Social na Universidade de Stanford, Califórnia, EUA, para compreender melhor essas influências e interações entre os grupos sociais. Vivíamos, então, o fim da década de sessenta do século passado e o mundo se encontrava em uma efervescência cultural sem precedentes. Nunca antes a figura da autoridade (familiar, educacional, política, militar, religiosa etc.) fora tão questionada. As normas e os papéis sociais também eram debatidas por diversos setores sociais e pela própria Contracultura. Não haveria um momento mais propício, a nosso ver, na história da humanidade para que o Zeigeist permitisse o surgimento de polêmicos, mas riquíssimos estudos sobre tema como a obediência à autoridade, conformidade, normas, papéis sociais etc. Philip Zimbardo, no ano de 1971, promoveu uma experiência nas instalações físicas da Faculdade de Psicologia da Universidade de Stanford, em Palo Alto, Califórnia, EUA, que iria marcar para sempre a história da Psicologia Social (e também da própria Psicologia). A simulação ficou conhecida internacionalmente como Stanford Prison Experiment (SPE), em tradução, “Experimento Stanford de Prisionização (SPE)” e foi objeto de elogios e críticas por parte da comunidade científica. Documentários, livros, desenhos e até filmes 2 exploraram a idéias nucleares do Experimento, tamanha a discussão apaixonada que o mesmo provoca em todos que tomaram conhecimento de sua existência. Nesse experimento, um grupo de pesquisadores da Faculdade de Psicologia da Universidade de Stanford (EUA), liderados por Zimbardo, reuniu um grupo de voluntários (24 alunos universitários) e os submeteram a uma experiência de simulação de ambiente prisional no subsolo daquela Faculdade. Durante o experimento as condições de um presídio (celas, guardas, prisioneiros, punições etc.) foram simuladas e provocaram grande sofrimento nos prisioneiros. O SPE foi cancelado prematuramente no sexto dia, considerando que se constatou que estava saindo de controle, sendo que foi abortado antes do período de 14 dias que havia sido previamente estabelecido. 2

Entre vários, podemos registrar os filmes ficcionais: A experiência (Alemanha, 2001) e Detenção (EUA, 2011). Dezenas de documentários também foram produzidos, entre eles, podemos registrar: Quiet rage, Stanford University, 1991.


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Psicólogos, filósofos, teólogos, criminólogos etc. questionam diversos pontos do experimento. A questão ética é uma das grandes críticas e há sérias dúvidas que na atualidade um experimento da mesma envergadura passasse pelo crivo das comissões de éticas das faculdades de Psicologia. Tudo leva a crer que a importância dos dados levantados e a singularidade do “Experimento Stanford de Prisionização” ainda serão objeto de polêmicas no decorrer de mais de cento e trinta anos de Psicologia e não se chegará a um consenso. O SPE, mesmo após quarenta anos de sua realização, ainda desperta paixões em seus debates e possui defensores e opositores na comunidade científica. O problema do presente estudo é a importância que o "Experimento Stanford" tem para a moderna Psicologia Social. Poderia uma simulação, como a que foi realizada, possibilitar que forças situacionais tão poderosas como as existentes no mundo carcerário real submergissem e influenciassem de forma efetiva sujeitos, pesquisadores, terceiros (ex: capelão, que visitou os prisioneiros no presídio simulado) e familiares? É o que pretendemos demonstrar nessa investigação. O método utilizado é pesquisa bibliográfica com consulta a livros, documentos oficiais e registros cinematográficos sobre a fase preliminar, o desenvolvimento e os questionamentos que se levantaram após a realização do SPE e dos experimentos de Asch, Milgram e dos registros das torturas ocorridas em 2003 no presídio iraquiano de Abu Ghraib. O objetivo geral é identificar, descrever e analisar as principais forças situacionais presentes no SPE e seus paralelos com o "Caso Abu Ghraib", onde, iremos demonstrar, que forças situacionais similares às enfrentadas no SPE influenciaram a prática de torturas por soldados norte-americanos reservistas no presídio iraquiano de Abu Ghraib. O objetivo específico é identificar como as normas, papéis sociais, a obediência à autoridade e a conformidade influenciaram fortemente o rumo do SPE, e como se demonstraram presentes, também, em um nível muito maior, nas torturas praticadas em 2003 no presídio iraquiano de Abu Ghraib. O presente trabalho de pesquisa é dividido em três partes.


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Na primeira parte, iremos explorar questões históricas envolvendo a organização do experimento. Iremos expor detalhadamente nuances da realização do evento, para que possamos em um momento posterior dispor de dados mínimos para que seja feita uma avaliação do mesmo. Na segunda parte iremos tratar da teoria psicológica desenvolvida por Philip Zimbardo para o caso. Trataremos dos processos psicológicos envolvidos na experiência. Desenvolveremos o conceito desenvolvido por Zimbardo com o nome de “Efeito Lúcifer”, ou seja, a capacidade que o ambiente possui de provocar em determinação situações comportamentos altamente cruéis por pessoas que não o praticariam em situações corriqueiras. Na terceira e última parte, discorreremos sobre da proximidade do experimento de Zimbardo com a polêmica experiência conhecida como “Experimento Milgram”, de 1961, que tratou da obediência à autoridade e o "Caso Abu Ghraib". Por fim, é de se registrar que os quarenta anos (1971-2011) do aniversário do "Experimento Stanford de Prisionização", bem como a atualidade de suas reflexões, reavivadas fortemente com as torturas de prisioneiros no "Caso Abu Ghraib", foram de grande motivação para a escolha desse importante tema a ser objeto do presente estudo.

2 PEQUENA BIOGRAFIA DE PHILIP ZIMBARDO

Philip George Zimbardo (Phil Zimbardo) nasceu em 23 de março de 1933 em Nova York, EUA. Concluiu a graduação em Psicologia na Brooklyn College em 1954. Concluiu o mestrado em 1955 e o doutorado em 1959, ambos em Psicologia, pela Universidade de Yale. Ensinou em Yale entre 1959 e 1960. De 1960 a 1967, ele foi professor de psicologia na Universidade de Nova York. De 1967 a 1968, ele ensinou a Universidade de Colúmbia. Ele se juntou á faculdade da Universidade Stanford em 1968. Teve uma infância e juventude bastante difícil numa área muito pobre de Nova York, de forma que o estudo da violência está sempre presente de uma forma ou de outra em suas


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pesquisas. É descendente de imigrantes sicilianos que se fixaram, nos Estados Unidos no início do século XX. Zimbardo foi o idealizador do Experimento Stanford de Prisionização (SPE). Durante a simulação Zimbardo atuou como o superintendente do fictício presídio de Stanford. Ele se casou pouco depois do SPE com a aluna do Doutorado que o advertiu no sexto dia do SPE para o fato de que o Experimento estava causando grande sofrimento emocional nos participantes e que ele era o responsável por isso. Presidiu no ano de 2002 a Associação Americana de Psicologia (APA), que teve Stanley Hall como seu primeiro presidente (1892). Zimbardo se aposentou em Stanford no ano de 2003, mas continua de forma muito ativa, escrevendo livros, artigos e proferindo palestras mundo afora, determinado a contribuir com suas idéias para o desenvolvimento da Psicologia Social. Zimbardo atuou como testemunha-especialista no julgamento pela Corte Marcial do Sargento Chip Frederick, um dos militares norte-americanos acusados pelas torturas do "Caso Abu Ghraib", e que foi condenado ao final como um dos responsáveis pelos "atos isolados e malucos de uns poucos soldados", segundo a versão do governo norte-americano, no "Caso Abu Ghraib".


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Figura 1 - Philip Zimbardo no laboratório da Universidade de Stanford (1970). Fonte: arquivo pessoal do Professor Philip Zimbardo.

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EVOLUÇÃO

CRONOLÓGICA

DO

EXPERIMENTO

PRISIONIZAÇÃO (14 A 20 DE AGOSTO DE 1971)

STANFORD

DE


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Antes de traçarmos os pontos principais que envolvem o polêmico e fascinante SPE é importante que façamos sua contextualização do ponto de vista histórico para que ele possa ser melhor compreendido. Era o ano de 1971. A contracultura3 de forma avassaladora atingiu a sociedade ocidental no final da década de sessenta do século passado. Instituições sociais importantes como o casamento, família, autoridade, trabalho etc., que passaram de uma forma pouco afetada na década de cinqüenta, foram objeto de contestações em várias partes do mundo. Movimentos sociais na luta pela paz, direitos dos negros, defesa do meio ambiente, feminismo, entre outros, passaram a ser objeto de grande contestação social. Manifestações, ora pacíficas, ora violentas, eclodiram quase ao mesmo tempo em vários países. A revolta negra é apenas um dos aspectos, e para certos observadores um modelo, do vasto movimento contestatório que, no momento mais forte do recrutamento para o Vietnã, dilacera a nação nos seus alicerces morais e nas suas referência socioculturais. Se a reivindicação feminista, canalizada por múltiplas associações, milita a favor de uma emancipação-igualdade de fato iniciada desde há vários lustros, a contestação da juventude, particularmente da juventude intelectual, entrega-se a uma crítica radical do establishment. O repúdio do modelo de consumo e das normas de sucesso social faz o sucesso efêmero da nova esquerda, nascida no campus de Berkeley, que agrega numa mesma condenação a hipocrisia do ensino universitário, o imperialismo americano, o poderio oculto do complexo militar-industrial e a exploração da classe operária. Outros encontram refúgio numa marginalidade que, em ruptura com o consenso dos anos cinqüenta, desenvolve mais do que inventa os contra-valores de uma América pacifista e hedonista, libertada dos mitos produtivistas e das proibições do puritanismo. (DROZ; ROWLEY, 2000, p. 448-449).

Culturalmente podemos registrar que o mundo vivia em uma efervescência de novas situações, contestações, valores que passaram a ser questionadas em um curto prazo de tempo. Poucos na década anterior imaginariam o grau das mudanças que seriam deflagradas na década de sessenta e que tiveram como pano de fundo a ação de vários movimentos questionadores por parte da população. 3

A expressão "É proibido proibir", dentre outras, consagradas por músicas, filmes, seriados, são a face desse importante período da história do pensamento moderno. Drogas, sexo, felicidade, rock and roll, se misturaram num verdadeiro caldo cultural que questionava o pensamento dominante da cultura ocidental.


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A efervescência dos anos 60, como a luta pelos direitos civis e o pacifismo de oposição á Guerra Fria, é hoje traduzida com o signo "Maio de 68", fraturando a estrutura da sociedade puritana hegemônica até os anos 60 a partir das fissuras causadas pelo surgimento da adolescência nos anos 50 (entre outros grupos, por óbvio). Na realidade, trata-se de um conjunto de lutas heterogêneas (da Primavera de Praga contra a tecnoburocracia da União Soviética á luta pelos direitos civis dos negros dos EUA, passando pelo tropicalismo no Brasil e os protestos pacifistas contra a Guerra Fria, movimento feministas etc.) que se aglutinaram em torno da contestação do autoritarismo, da repressão e, modo geral, do ethos burguês. (PINTO NETO, 2011, p. 112-113).

O experimento foi, então, realizado em um período de grandes mudanças na cultura ocidental, onde a autoridade, normas sociais etc. passaram a ser questionadas pela sociedade civil em diversas partes do mundo.

3.1 ORGANIZAÇÃO PRÉVIA DO EXPERIMENTO

Zimbardo e seus pesquisadores adaptaram uma parte do andar subterrâneo da Faculdade de Psicologia da Universidade de Stanford para que ali fosse criada a fictícia “Prisão do Condado de Stanford”. As portas das salas foram substituídas por portas com grades e o corredor foi utilizado como o pátio da prisão. Um pequeno espaço foi utilizado como cela de "solitária". Ainda comum em sistemas prisionais pelo mundo afora, ela funciona como uma cela de isolamento e serve como instrumento de punição pela Administração do presídio. Foi feito contato com a Polícia local, que atuou no início do experimento buscando os alunos que faziam o papel de prisioneiros em suas casas. Eles chegaram a ser levados para a delegacia de polícia e foram identificados criminalmente (procedimento policial popularmente conhecido como "tocar o piano"), tudo para dar uma melhor simulação de uma prisão real aos sujeitos do experimento.


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Foram feitas diversas reuniões anteriores ao início do experimento onde foram debatidos os detalhes do mesmo, que foi programado previamente para se realizar em quatorze dias.

Figura 2 - Agente prisional na fictícia “Prisão do Condado de Stanford”, em verdade, uma adaptação realizada no subsolo da Faculdade de Psicologia da Universidade de Stanford. Fonte: arquivo pessoal do Professor Philip Zimbardo.

Câmeras filmadoras foram instaladas de modo que o experimento pode ser registrado integralmente para posterior análise.4 Os voluntários foram selecionados através de uma publicação no jornal. Cerca de setenta pessoas responderam ao chamado e a equipe de Zimbardo selecionou posteriormente vinte e quatro universitários para que participassem do experimento. Entre eles estava o aluno Tommy Whitlow. Segundo Zimbardo e Gerrig (2005, p. 596):

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De todo o material produzido chama a atenção pela qualidade o documentário (cerca de 50 minutos) Quiet Rage: the Stanford Prison Experiment, de 1991, disponível em DVD. Foram entrevistados alguns dos prisioneiros e guardas do SPE.


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Tommy e seus companheiros de cela eram todos voluntários que haviam respondido a uma anúncio de jornal e aceitado participar de um experimento de duas semanas sobre a vida na prisão. No cara ou coroa, a alguns dos voluntários foi designado o papel de prisioneiros, e ao restante, o de guardas. Todos haviam sido escolhidos a partir de um grupo de estudantes voluntários que, com base em testes psicológicos e entrevistas, haviam sido considerados como cumpridores da lei, emocionalmente estáveis, fisicamente saudáveis e “normais, como a média”. Os detentos viviam na cadeia permanentemente, enquanto os guardas trabalhavam turnos normais de oito horas.

A escolha dos alunos que seriam os prisioneiros e os que seriam os guardas, após a seleção inicial, foi feita de forma aleatória. Segundo Zimbardo e Gerrig (2005, p. 597): Cada estudante poderia ter desempenhado qualquer um dos papéis, e muitos dos que estavam no papel de guardas relatavam sua surpresa com a facilidade como que gostaram de controlar outras pessoas. o simples ato de vestir uma farda do suficiente para transformá-los, de passivos alunos de faculdade, em guardas de prisão agressivos. Que tipo de pessoa você se torna quando se investe e sai de papéis diferentes? Onde termina o seu senso de self pessoal e como sua identidade social?

Essa advertência de Zimbardo e Gerrig é desconcertante, mas atual. Walt Disney imortalizou, em 1950, uma situação similar no desenho "Pateta, o rei do volante" 5, onde o personagem (Pateta), quando pedestre (Sr. Walker), é uma pessoa dócil e pacífica, e ao assumir a direção de um veículo automotor, desfrutando de uma inebriante sensação de poder, e tal qual a dualidade de "O médico e o monstro", do escritor Robert Louis Stevenson, já em um novo papel social, o de motorista (Sr. Wheeler), passa a agir com extrema violência com os pedestres e os outros motoristas.

3.2 PRIMEIRO DIA – 14 DE AGOSTO DE 19716

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O vídeo de pouco mais de seis minutos pode ser acessado em http://www.youtube.com/watch?v=cfnrHz_gM20 Informações extraídas do documentário Quiet Rage: the Stanford Prison Experiment, disponível em DVD, Universidade de Stanford, 1991. 6


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A organização do SPE tomou todas as medidas necessárias para que os prisioneiros tivessem uma percepção mais próxima possível de uma prisão real. Os prisioneiros se submeteram a "ritos de passagens" após serem detidos no primeiro dia. A Polícia foi convidada para apoiar o evento e dar mais realidade á experiência que os alunos voluntários iriam passar. Narram Zimbardo e Gerrig (2005, p. 596): Em um domingo de verão, na Califórnia, uma sirene perturbou a tranqüilidade da manhã do estudante universitário Tommy Whitlow, enquanto se ouvia o barulho dos pneus do carro da polícia freando em frente à sua casa. Em alguns minutos, Tommy foi acusado de ter cometido um crime, informado de seus direitos constitucionais, revistado e algemado. Depois de ser fichado e ter registradas suas impressões digitais, ele foi vendado e transportado para a prisão distrital de Stanford, onde foi despido e borrifado com desinfetante e recebeu um uniforme de detento com um número de identificação na frente e atrás. Tommy se tornou o prisioneiro 647. Outros estudantes universitários também foram presos e receberam números.

É evidente que a participação da Polícia, com os seus procedimentos rotineiros de identificação de suspeitos, serviu como um “batismo” dos alunos voluntários, em especial, os que faziam os papéis sociais de prisioneiros. É, também, muito próxima a situação dos “ritos de passagem” existentes nos presídios e que foram tão bem estudados por Erwin Goffman. Tal “rito” serviu para trazer a percepção dos voluntários para uma aproximação da real sensação de uma pessoa que é presa por praticar um crime. Segundo Goffman (2001, p. 29): Além da deformação pessoal que decorre do fato de a pessoa perder seu conjunto de identidade, existe a desfiguração pessoal que decorre de mutilações diretas e permanentes do corpo – por exemplo, marcas ou perda de membros. Embora essa mortificação do eu através do corpo seja encontrada em poucas instituições totais, a perda de um sentido de segurança pessoal é comum, e constitui um fundamento para angústias quanto ao desfiguramento. Pancadas, terapias de choque, ou, em hospitais para doentes mentais, cirurgia – qualquer que seja o objetivo da equipe diretora ao dar tais serviços para os internados – podem levar estes últimos a sentirem que estão num ambiente que não garante a integridade física.


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Os prisioneiros, após o "rito de passagem" criado com a ajuda da Polícia, receberam uniformes com números, sendo que os guardas somente se dirigiam aos mesmos pelos números e não por seus nomes. Eles tiveram que usar toucas na cabeça, para simular a situação de terem suas cabeças raspadas (procedimento comum em presídios reais).

3.3 SEGUNDO DIA – 15 DE AGOSTO DE 19717

O segundo dia do experimento se iniciou com uma inusitada situação. Os prisioneiros resolveram fazer uma rebelião contra o experimento e o tratamento que vinha sendo prestado pelos guardas. Os guardas eram proibidos de usar violência física contra os prisioneiros. A solução "encontrada" foi a de convocar os guardas8 que estavam de folga para, juntos, poderem neutralizar a rebelião que se iniciava no presídio. Castigos físicos (fazer flexões) ou morais (lavar a tampa da privada com as mãos) passaram a ser utilizados com mais freqüência pelos guardas para manter a lei e a ordem dentro do presídio. O prisioneiro 8612 é identificado como um dos líderes da rebelião e pede para abandonar o experimento. Após receber punição, ele passa a demonstrar situação de intenso sofrimento emocional e o professor Zimbardo opta por "libertá-lo" antes do fim do experimento.

3.4 TERCEIRO DIA – 16 DE AGOSTO DE 1971

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Informações extraídas do documentário Quiet Rage: the Stanford Prison Experiment, disponível em DVD, Universidade de Stanford, 1991. 8 Enquanto os prisioneiros ficavam vinte e quatro horas por dia no SPE, os guardas trabalhavam em turnos de oito horas.


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No terceiro dia o assédio por parte dos guardas sobre os prisioneiros aumentou e os castigos eram muito freqüentes. Para receberem as visitas (parentes) o presídio passa por uma limpeza geral, com o objetivo de não gerar ansiedade, desconfiança ou dúvidas "desnecessárias" e que pudessem atrapalhar a continuidade do experimento. Chega, então, ao conhecimento de Zimbardo e sua equipe que o prisioneiro 8612 iria (supostamente) voltar com ajuda e resgatar os “prisioneiros” restantes. Instaura-se uma confusão na organização do experimento e os "prisioneiros" por cautela foram removidos para outro espaço, com o objetivo de evitar que fossem resgatados por 8612 e seus colegas. Esse resgate nunca aconteceu. 3.5 QUARTO DIA – 17 DE AGOSTO DE 19719

Aumentam as humilhações dos prisioneiros. São aplicadas punições como lavar o vaso sanitário com as mãos. Um prisioneiro é deixado como punição por 07 horas na solitária (quando só havia autorização dos pesquisadores para o prazo máximo de 01 hora). Visita de um capelão aos prisioneiros do presídio. Prisioneiro 819 é libertado, após dar sinais de grande sofrimento emocional, mas se recusa a sair do SPE, tendo em vista que seria considerado um "traidor" pelos outros membros do grupo (guardas e prisioneiros). Prisioneiro 416 é identificado com uma das lideranças dos presos. É punido com exercícios físicos e de forma humilhante é obrigado a cantar um hino religioso "Amazing Grace" na frente de todos no pátio da prisão. 9

Informações extraídas do documentário Quiet Rage: the Stanford Prison Experiment, disponível em DVD, Universidade de Stanford, 1991.


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3.6 QUINTO DIA – 18 DE AGOSTO DE 197110

Prisioneiro 416 se recusa a comer e passa a resistir de forma mais intensa. É colocado na solitária. Prisioneiros são obrigados pelos guardas a bater na porta da solitária e dizer "Obrigado, 416!". É realizada uma audiência de livramento condicional, sendo o benefício negado a todos os prisioneiros.

3.7 SEXTO DIA – 19 DE AGOSTO DE 197111

O experimento é abortado, após uma aluna do doutorado ter chamado da atenção da organização do evento, para o sofrimento emocional acentuado por que passavam os prisioneiros.

4 PAPÉIS SOCIAIS E REGRAS

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Informações extraídas do documentário Quiet Rage: the Stanford Prison Experiment, disponível em DVD, Universidade de Stanford, 1991. 11

Informações extraídas do documentário Quiet Rage: the Stanford Prison Experiment, disponível em DVD, Universidade de Stanford, 1991.


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Um dos pontos que se destacou durante o desenrolar do SPE é que os prisioneiros, em face das privações que ocorriam durante o experimento, poderiam ter dado fim ao mesmo a qualquer momento, apenas se recusando a seguir as regras de seus novos papéis sociais. Bastaria que eles parassem de seguir as regras do experimento para que tudo fosse colocado a perder e o experimento fosse imediatamente cancelado. Isso decorria do fato que a cooperação dos prisioneiros era essencial para que as condições do presídio fossem simuladas a contento. Não havendo cooperação a simulação da instituição prisional seria impossível e o experimento teria que ser cancelado. Todavia, eles não tiveram forças para romper as normas do experimento, mesmo estando em situação de grande sofrimento psíquico. Na tentativa de compreender as características das transformações dos bons jovens garotos no SPE, eu previamente delineei um número de processos psicológicos que foram essenciais para perverter os seus pensamentos, sentimentos, percepções e ações. Nós vimos como a básica necessidade de pertencer, a associação e ser aceito por outros, tão central na construção de uma comunidade e na coesão familiar, foi desviada no SPE para se conformar com as novíssimas regras emergentes habilitadas para os guardas abusarem dos prisioneiros. (ZIMBARDO, 2008, p. 258, tradução nossa).

Embora o fim do SPE estivesse sempre ao alcance das mãos dos prisioneiros, eles conseguiram se organizar numa rebelião (que foi combatida pelos guardas e pela direção do presídio) exercendo o papel de prisioneiros, mas foram incapazes de dar um fim ao SPE apenas com a recusa simples de seguir as normas do SPE. Em resumo, conseguiram fazer mais (uma rebelião) no papel de prisioneiros, mas foram incapazes de fazer o menos (uma simples desobediência, falta de cumprimento das normas) como universitários que o eram.

A sabotagem estava sempre ao alcance dos

prisioneiros, e seria o fim do SPE, mas em momento algum foi efetivamente colocada em prática. Ou seja, a conformidade aos novos papéis sociais (prisioneiros) foi nuclear para que, tanto prisioneiros como guardas, se mantivessem durante todo o SPE seguindo as regras que haviam sido estabelecidas previamente para o SPE.


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No primeiro dia foram explicadas aos prisioneiros no primeiro turno as dezessete regras que os mesmos deveriam seguir durante todo o experimento. São elas: 1. Prisioneiros devem permanecer em silêncio durante os períodos de descanso, depois das luzes serem apagadas, durante as refeições, e sempre que ele estiverem do lado de fora no pátio da prisão; 2. Prisioneiros devem comer na hora das refeições e somente nesses períodos; 3. Prisioneiros devem participar de todas atividades do presídio; 4. Prisioneiros devem manter suas celas limpas de forma permanente. As camas devem estar organizadas e os objetos de uso pessoal devem estar limpos e organizados. O piso deve estar limpo. 5. Prisioneiros não devem se mover, intrometer-se, desfigurar, destruir paredes, tetos, janelas, portas e qualquer objeto da prisão; 6. Prisioneiros nunca devem operar os controles de iluminação; 7. Prisioneiros devem se dirigir um ao outro apenas por números; 8. Prisioneiros devem se dirigir sempre aos guardas como "Senhor Oficial Correcional" e ao diretor como "Senhor Chefe Oficial Correcional"; 9. Prisioneiros não devem nunca se referirem a sua condição como "experimento" ou "simulação". Eles estão presos até o livramento condicional; 10. Prisioneiros poderão utilizar o lavatório por apenas 5 minutos. Nenhum prisioneiro será autorizado a retornar ao lavatório com menos de 01 hora. O lavatório será controlado pelos guardas; 11. Fumar é privilégio. Fumar será permitido após as refeições ou na discricionariedade dos guardas. Prisioneiros não devem nunca fumar nas celas. Abuso do privilégio de fumar acarretará permanente revogação do privilégio; 12. Correspondência é um privilégio. Toda correspondência entrando ou saindo no presídio será inspecionada e censurada; 13. Visitações são privilégio. Prisioneiros que estão autorizados a receber visitas devem recebê-los na porta do pátio. A visita vai ser supervisionada por guardas e o guarda poderá encerrar a visita de forma discricionária; 14. Todos os prisioneiros em cada cela ficarão de pé toda vez que o diretor, o superintendente da prisão, ou qualquer outro visitante chegar ao local. Prisioneiros devem aguardar ordens para sentar ou para retomar suas atividades;


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15. Prisioneiros devem obedecer as ordens emanadas pelos guardas em todas vezes. Uma ordem emanada por um guarda substitui qualquer ordem escrita. Uma ordem do diretor substitui as ordens dos guardas e as ordens escritas. Ordens do superintendente da prisão são supremas; 16. Prisioneiros devem reportar todas as violações de regras aos guardas; 17. Falhas na obediência de qualquer uma das regras acima podem resultar em punição. (ZIMBARDO, 2008, p. 44, tradução nossa).

Um dos ângulos possíveis para se entender o caso é apontado pela “teoria dos papéis sociais”. Ela pode explicar o conformismo dos prisioneiros que só foram “libertados” do experimento, que lhes causava um grande sofrimento psíquico, pelos próprios pesquisadores no sexto dia, quando ele foi abortado com antecedência. Segundo Zimbardo e Gerrig (2005, p. 595): Um papel social é um padrão de comportamento sociamente definido que se espera de uma pessoa quando ela está funcionando em um determinado ambiente ou grupo. Diferentes situações sociais apresentam diferentes regras. Quando você está em casa, poderá aceitar o papel de filho ou irmão; quando está na sala de aula, aceita o papel de aluno; em outras oportunidades, você é o melhor amigo ou namorado.

Então, se constata que a pessoa possui vários papéis sociais distintos em sua vida social. E cada um desses papéis gera na sociedade um conjunto de expectativas coletivas distintas para aquela pessoa. Ou seja, as força situacionais são influenciadas também pelos papéis sociais e pelas regras vinculadas a esses papéis. Segundo Zimbardo e Gerrig (2005, p. 595): As situações também são caracterizadas pela operação de regras, ou seja, diretrizes comportamentais para determinados ambientes. Algumas regras são declaradas explicitamente pro meio de sinalização (não fume, proibido comer em aula), ou ensinadas de forma explícita a crianças (respeite os mais velhos, nunca aceite balas de estranhos). Outras regras são implícitas, isto é, são aprendidas por meio de transações com outros em determinados ambientes.


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E cada papel social demanda regras distintas. Isso é bem claro no sistema prisional real, onde os prisioneiros se submetem ás regras legais, ás determinadas pelo Poder Judiciário (na sentença de condenação), ás determinações da direção do presídio e ás regras não escritas da comunidade carcerária. Se o interno desrespeitar essas regras será punido por cada um dos setores de onde emanaram essas regras. No mesmo sentido leciona Giddens (2004, p. 29): Por intermédio do processo de socialização, os indivíduos aprendem os seus papéis sociais - expectativas socialmente definidas seguidas pelas pessoas de uma determinada posição social. O papel social de "médico", por exemplo, envolve um conjunto de comportamentos que devem ser seguidos por todo e qualquer médico, independentemente das suas opiniões pessoais ou maneiras de ver. Na medida em que todos os médicos partilham este papel, é possível falar em termos genéricos de um modelo de comportamento profissional dos médicos, independente dos indivíduos específicos que ocupam essas posições.

Os voluntários seguiram, em grande parte, tanto os papéis de prisioneiros, como o de guardas. Eles poderiam ter abandonado a qualquer momento a experiência, simplesmente se omitindo em seguir as normas. Ao mesmo tempo em que havia a dor e o sofrimento emocional havia a possibilidade de sabotar o projeto, mas essa saída não foi seguida nem pelos prisioneiros e nem pelos guardas. Zimbardo, que fazia o papel de superintendente do fictício presídio, só cancelou o experimento quando uma pesquisadora12 externa criticou a experiência e o sofrimento que estava sendo imposto aos voluntários, sendo então o fim da experiência antecipado do décimo quarto para o prematuro sexto dia. Vê-se, então, que os papéis sociais que eram exercidos pelos sujeitos (estudantes) do experimento (bem como o próprio Zimbardo e sua equipe de pesquisadores), foram dominados pelos novos papéis sociais que exerciam durante o SPE (prisioneiros, guardas e diretores do presídio). Zimbardo era o organizador do experimento e professor de Psicologia da Universidade de Stanford, profissional profundamente preparado para o exercício do cargo, e preocupado com a integridade dos guardas e prisioneiros. Todavia, nem ele foi capaz de vencer 12

Curiosamente, Zimbardo posteriormente se casou com essa pesquisadora, Christina Maslach, que era aluna do doutorado em Psicologia da Universidade de Stanford.


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as forças situacionais que emergiram no SPE. Entre os papéis sociais de professor de Psicologia e o de Superintendente do fictício presídio, Zimbardo acabou sendo dominado pelo segundo. As expectativas do Superintendente do presídio se sobrepuseram às expectativas sociais do Professor de Psicologia. A situação só foi encerrada quando uma pesquisadora (externa) colocou Zimbardo e sua equipe no verdadeiro foco do SPE, que era o da prevalência do papel de Professor de Psicologia. Então, Zimbardo, não hesitou em suspender o SPE. A questão dos papéis e regras é de grande importância em uma instituição prisional real. Todo presídio possuir regras não escritas e que devem ser totalmente respeitadas pelos prisioneiros, sob pena de violência por parte de seus pares. Algumas mais conhecidas são: não passar informações dos presos para a administração prisional, pagar suas dívidas com os outros presos, não mexer com as mulheres de outros presos no dia da visita etc. São notórios os casos de homicídios praticados nos sistemas prisionais mundo afora por conta de situações onde a vítima desrespeitou o código de conduta (regras estabelecidas) de forma não escrita pelos internos. Em resumo, sobre a força das regras sociais, Zimbardo ressalta o seu caráter nuclear no SPE. Forças situacionais no SPE combinadas com um número de fatores, sendo que nenhum deles atuou dramaticamente isolado (mas juntos)¸ foram poderosos no seu conjunto. Uma das características-chave foi o poder das regras. Regras são formais, formas simplificadas de controle informal para comportamentos complexos. Elas trabalham externando regulamentos, estabelecendo o que é necessário, aceitável e recompensado e o que é inaceitável e, portanto deve ser punido. (ZIMBARDO, 2008, p. 212, tradução nossa).

5 OBEDIÊNCIA À AUTORIDADE

A obediência à autoridade foi também um dos pontos centrais do SPE. Em ação interativa com a questão dos papéis/regras sociais, ela criou uma força situacional muito forte e quase que irresistível, que levou os prisioneiros a prosseguirem com o experimento, mesmo em situação de grande sofrimento físico e emocional.


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Em 1981, um filme, "A Onda", causou bastante controvérsia no cinema, ao tratar da questão dos nazistas e como aquele grupo (em menor número) pode dominar um país inteiro, sendo que a história do filme, ambientada em uma escola norte-americana, explorou de uma forma muito competente a possibilidade que influências de grupos podem ter no comportamento de indivíduos. Entre eles, estava a obediência à autoridade. A obediência faz parte da realidade social de forma incontestável. No macro, haveria o caos se todos agissem da forma com que quisessem e sem limites. Para tanto há a lei, que previamente define as ações que são autorizadas pelos cidadãos. No micro, há necessidade de que os grupos interajam entre si e de forma organizada e a obediência faz parte disso. No decorrer de nossa aprendizagem (ainda crianças) já internalizamos normas sociais básicas, tais como, obedecer a nossos pais, professores, policiais etc. A figura da autoridade é uma representação social que se faz necessária para que a sociedade possa funcionar de forma adequada. Seria impossível o progresso se toda a regra pudesse ser contestada permanentemente por todos e nada pudesse ser feito. Obediência e autoridade são dois institutos sociais que estão ligados entre si. Milgram (1983, p. 19) ensina que: A obediência é o mecanismo psicológico que liga a ação individual a propósitos políticos. É o cimento que prende os homens aos sistemas de autoridade. Fatos da história recente e a observação do cotidiano sugerem que, para muitas pessoas, a obediência pode ser uma tendência de comportamento profundamente enraizada, e até mesmo um impulso prepotente que anula toda a formação sobre ética, simpatia e conduta moral.

Para cancelar o experimento bastaria aos prisioneiros interromperem sua colaboração. Ao invés disso, eles incorporaram os papéis sociais de prisioneiros e se submeteram às regras de autoridade do fictício presídio. Bastaria a resistência passiva e com a interrupção de obediência a qualquer dos comandos para que a experiência fosse inviabilizada. O filme "Julgamento em Nuremberg" de 1951, um clássico do cinema imortalizado pela interpretação de diversos atores de primeiro escalão do cinema norte-americano, nos conta a história de um julgamento de juízes que atuaram na época do período nazista na Alemanha e


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cometeram atrocidades em suas decisões (legitimando as decisões e leis do governo do III Reich). Essas pessoas não eram consideradas criminosas, pelo contrário, gozavam de uma elevada reputação social e legitimidade de suas ações. Todavia, serviram de uma forma ou outra, ao Terceiro Reich (então, no poder) e foram condenados por terem cometido "crimes contra a humanidade". Após a queda do muro de Berlim, diversos militares (guardas) que atiraram em pessoas que tentaram atravessar o "muro da vergonha" foram julgados e condenados pelos mesmos motivos. Em suas defesas, sempre alegaram que apenas cumpriram ordens. Eichmann, um dos comandantes do governo nazista, em seu célebre julgamento em Israel alegou que também apenas obedecia ordens. Pereira, comentando o trabalho que Hana Arendeth produziu, em face do julgamento de Eichmann afirma ([2009?], p. 3): De qualquer forma, a partir do exemplo de Eichmann, ela alertava que a propensão dos seres humanos a fazer parte de um grupo, a se identificar, aderindo impensadamente a idéias, opiniões e “deveres” pode levar ao cometimento de males inseparáveis. O pertencimento, ao exigir o alinhamento, só se realiza às custas do desrespeito, do ódio e da destruição do “diferente”. A adesão a opiniões da maioria ou de um grupo carrega consigo a possibilidade de matar. Convencido de que cumpria um dever, Eichmann seguiu ordens e deixou de pensar por si próprio. Seria essa a “banalidade do mal”. Segundo Hannah Arendt, o desumano se esconderia em cada um de nós. Continuar a pensar e interrogar a si próprio, os atos, as normas, é a única condição para não ser tragado por esse mal.

Então, o que se vê é que a obediência á autoridade está presente em várias situações de práticas de atos reprováveis no curso da humanidade. Quantos massacres foram perpetrados na Antiguidade e Idade Média por soldados que apenas cumpriam ordens do rei, papa ou do senhor feudal? Os nazistas alegavam que apenas cumpriam as ordens superiores do Terceiro Reich. Os soldados que atiraram para matar nas pessoas que tentaram atravessar o "Muro de Berlim", foram, em vários casos, condenados posteriormente pela Justiça e não se aceitou a "justificativa" apresentada pela defesa de que apenas obedeciam ordens superiores.


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A obediência à autoridade também se apresentou de forma surpreendente no caso das torturas praticadas em 2003 no presídio iraquiano de Abu Ghraib. Os soldados envolvidos tinham ou poderiam ter noção de que agiam de forma errada, mas preferiram se submeter aos acontecimentos, mesmo que as ordens fossem (de certa forma) claramente ilegais.

6 O EXPERIMENTO MILGRAM

Em 1963, Stanley Milgram, na Universidade de Yale, promoveu um polêmico experimento que demonstrou cabalmente a força situacional da obediência à autoridade na vida das pessoas comuns. Nesse experimento, uma pessoa era selecionada (professor) para participar de uma atividade de Psicologia (dizia-se que era para testar a memória e a aprendizagem). Ela recebia um comando de um "pesquisador" para apertar um botão que "aplicava" uma descarga de energia elétrica em uma terceira pessoa (que ficava na sala ao lado). Essa "descarga" era apenas uma simulação, pois a pessoa que a "recebia", não tomava choque algum. Ela apenas simulava que estava recebendo uma descarga dolorida. A "força" dessas descargas era aumentada gradativamente e um grande desconforto na sala do professor e do sujeito do experimento era causado com as reclamações que iam ficando cada vez mais desesperadoras por parte das pessoas que estavam ali no experimento (em outra sala) recebendo supostas descargas. Segundo Zimbardo e Gerrig (2005, p. 648): O paradigma experimental básico de Milgram envolvia participantes individuais que deveriam aplicar, em outras pessoas, aquilo que acreditavam ser choques elétricos extremamente dolorosos. Esses voluntários pensavam estar participando de um estudo científico sobre memória e aprendizagem. Eles foram levados a crer que o propósito educacional do estudo era descobrir como a punição afetava a memória, de forma que a aprendizagem pudesse ser melhorada pro meio do equilíbrio adequado de recompensa e castigo. Em seus papéis sociais de professores, os participantes deveriam punir cada erro cometido por alguém que cumpria o papel de aprendiz. A principal regra que eles foram orientados a seguir era aumentar o nível de choque a cada vez que o aprendiz cometesse


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um erro, até que a aprendizagem estivesse livre de equívocos. O pesquisador, vestido de branco, funcionava como figura de autoridade legítima, apresentando as regras, organizando a atribuição de papéis (por meio de um sorteio viciado), e ordenando aos professores que cumprissem sua tarefa sempre que os aprendizes hesitassem ou discordassem. A variável dependente era o nível final de choque que um professor daria antes de se recusar a continuar a obedecer à autoridade. O choque era aplicado por uma máquina que chegava até 450 volts em pequenos passos de 15 volts.

A situação era altamente estressante para o professor (voluntário), pois embora houvesse uma ordem clara do pesquisador para aplicar uma suposta descarga elétrica cada vez mais forte, que poderia até matar o aluno (na verdade, um ator) se fosse verdadeira, o experimento foi à frente na grande maioria dos casos. Segundo Zimbardo e Gerrig (2005, p. 648-649): O estudo for organizado para fazer com que o participante pensasse que, ao seguir ordens, estaria causando dor e sofrimento e, talvez, até mesmo, matando uma pessoa inocente. Cada professor recebeu uma amostra do choque de 45 volts, para sentir a quantidade de dor que causava. O aprendiz era um homem agradável, de maneiras gentis, de cerca de 50 anos de idade, que mencionava algo sobre um problema cardíaco, mas estava disposto a ir adiante como o procedimento. Ele foi preso a uma "cadeira elétrica" e se comunicava com o professor por meio de um sistema de interfone. Sua tarefa era memorizar pares de palavras, dizendo a segunda quando ouvisse a primeira. O aprendiz, em seguida, começava a cometer erros segundo um roteiro pré-estabelecido, e o professor começava a lhe aplicar os choques. Aos 75 volts, ele começava a gemer e reclamar; aos 150, pedia para ser liberado do experimento; aos 180 gritava não poder mais resistir á dor. Aos 300 volts, insistia que não mais tomaria parte no experimento e deveria se liberado. Gritava, falando sobre seu problema cardíaco. Se um professor executasse ou protestasse contra a aplicação do próximo choque, o pesquisador dizia "o experimento exige que você continue" ou "você não tem escolha, você tem que continuar".

A tensão do professor aumentava muito a cada aplicação do choque elétrico, mas a autoridade legítima (pesquisador) que estava presente determinava que devia continuar o procedimento

mesmo assim e isso gerava um conflito no professor. Embora o conflito e

desconforto aumentassem bastante, a grande maioria foi até o final da aplicação dos "choques", mesmo em uma quantidade capaz de matar o terceiro que estava recebendo as "descargas elétricas".


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Um fato bastante surpreendente foi o resultado final. Stanley Milgram, antes da realização do evento, pediu a um grupo de psiquiatras que fizessem um prognóstico de qual percentual de professores chegaria ao último estágio (450 volts - choque elétrico severo).

Figura 3 - Diagrama do Experimento Milgram. Fonte: site: http://www.libertyforlife.com/eye-openers/authorities_mind_control.html

Segundo Zimbardo e Gerrig (2005, p. 649): Quando Milgram solicitou que 40 psiquiatras fizessem uma previsão do desempenho dos participantes nesse experimento, eles estimaram que a maioria não passaria de 150 volts (com base na descrição do experimento). Segundo suas opiniões profissionais, menos de 4% dos participantes ainda estariam obedientes aos 300 volts, e apenas cerca de 0,1 % continuaria até o fim, aos 450 volts. Os psiquiatras presumiram que apenas aqueles poucos indivíduos que fossem anormais de alguma forma, sádicos, que gostassem, de causar dor em outros, obedeceriam cegamente a ordens para continuar até o choque máximo.

Como veremos a seguir, os psiquiatras que fizeram esse prognóstico erraram e muito. O índice de pessoas que foi até o choque potencialmente mortal foi muito superior a isso e não guardava nenhuma correlação com o fato do sujeito ser anormal ou sociopata. Talvez, em parte, isso tenha ocorrido, pois o viés de análise da Psiquiatria não é focado nas interações sociais


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complexas, mas em um diagnóstico de uma situação possivelmente orgânica de mal funcionamento do corpo humano. Segundo Zimbardo e Gerrig (2005, p. 649): Os psiquiatras basearam suas avaliações nas qualidades disposicionais presumidas das pessoas que desenvolveriam esse tipo de comportamento anormal. No entanto, eles estavam subestimando o poder dessa situação especial para influenciar o pensamento e as ações da maioria das pessoas envolvidas nesse contexto social. A conclusão impressionante e perturbadora era o quanto esses especialistas estavam errados: a maioria dos participantes obedeceu integralmente à autoridade. Nenhum desistiu antes dos 300 volts; 65% aplicaram o choque máximo de 450 volts ao aprendiz. Observe que a maioria das pessoas discordou verbalmente, mas não desobedeceu em termos de comportamento, Do ponto de vista da vítima, essa é uma diferença fundamental. Se você estivesse nesse lugar, teria alguma importância o fato de que os participantes dissessem que não queriam continuar machucando-o (discordassem), se, a seguir, aplicassem choques repetidos (obedecessem)?

Ou seja, as pessoas, submetidas a situações estressantes de obediência à autoridade, podem, mesmo contestando, se submeterem a uma situação que não concordariam normalmente e praticar atos que machuquem outros indivíduos. No SPE, a força situacional da "obediência à autoridade" foi intensa e impediu que os prisioneiros abortassem o experimento (com o simples descumprimento de qualquer das ordens), pelo contrário, reagiram contra as autoridades constituídas com rebelião (comportamento de prisioneiros, não de sujeitos de um experimento psicológico).13 Nem Zimbardo e sua equipe escaparam dessa influência das forças situacionais, pois, se fosse levada em conta apenas a vontade da equipe de Stanford, eles teriam ido até o décimo quarto dia do Experimento, sendo que só quando foram advertidos por uma pessoa de fora do SPE é que atentaram para o fato que o Experimento já havia escapado do controle e o sofrimento dos prisioneiros era inaceitável. Em resumo, não seria um exercício difícil comparar a atuação da equipe que buscava levar o experimento até ao décimo quarto dia (previamente ajustado) com o experimento Milgram (onde grande parte dos professores chegou ao último grau de suposto choque extremo). 13

De forma muito inteligente, Zimbardo e seus pesquisadores incluíram nas 17 regras iniciais escritas a proibição dos voluntários de se referirem ao experimento como simulação.


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7 OBEDIÊNCIA Á AUTORIDADE E SPE

Ficou, ainda, claro que a obediência à autoridade também foi um do elementos nucleares da dinâmica de relações do SPE (e, como veremos á frente, também no caso das torturas em Abu Ghraib). Aliás, não poderia ser de outra forma, pois estamos tratando de uma simulação de uma unidade prisional, onde os guardas são autoridades legítimas e representantes do Estado em face dos prisioneiros. Os guardas receberam uniformes adequados, apito, correntes e óculos escuros. São símbolos de poder e instrumentos utilizados em presídios verdadeiros. Então, estavam eles em situação de serem autoridades legítimas dentro do SPE e as expectativas de todos foram que os mesmos agissem como guardas de um presídio real. Todavia, uma regra básica era que não poderia haver agressões físicas. Isso, como veremos, foi com o passar dos dias, substituído pelos guardas por intimidações emocionais (inclusive, com conotações sexuais), castigos físicos (fazer flexões no corredor) e morais (lavar a privada apenas com as mãos). São visivelmente próximas as forças situacionais que influenciaram o SPE e as que existem em um presídio real. Diversos autores, entre eles, Erwing Goffmann, já se dedicaram a escrever sobre as dinâmicas sociais existentes dentro de um presídio (instituição total), não só no tocante entre as relações entre os prisioneiros, bem como, as existentes entre os agentes prisionais e esses internos. Os presídios, embora seja de pouco conhecimento da sociedade civil, nem sempre existiram como os conhecemos. Somente em meados do século XVIII que os mesmos passaram a possuir a configuração que atualmente conhecemos. Antes disso, a prisão era utilizada apenas como um mecanismo para se garantir a aplicação de uma pena, quando do posterior julgamento. Antes do Iluminismo, as penas, no geral, eram muito desproporcionais, sendo que, em muitos


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casos, eram penas corporais, morais (degredo, desterro etc.) ou mesmo pena de morte. A banalização da pena de prisão, com "os culpados de sempre", surge como decorrência de uma necessidade de se punir melhor. Michael Foucault denuncia isso (1999, [102]): Durante todo o século XVIII, dentro e fora do sistema judiciário, na prática penal cotidiana como na crítica das instituições, vemos formar-se uma nova estratégia para o exercício do poder de castigar. E a “reforma” propriamente dita, tal como ela se formula nas teorias de direito ou que se esquematiza nos projetos, é a retomada política ou filosófica dessa estratégia, com seus objetivos primeiros: fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular, coextensiva à sociedade; não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais profundamente no corpo social o poder de punir.

Os presídios, então, representam um mal necessário para a sociedade capitalista. O crime sempre existiu e o local adequado para o cumprimento da pena dos casos mais graves (homicídio, latrocínio, estupro, roubo etc.) é o presídio como o cumprimento de uma pena privativa de liberdade. Há na atualidade um movimento de setores da sociedade para se abolir os presídios, mas isso ainda não passa de uma intensa utopia, haja vista que se a mediação, composição e transação são relativamente bem aceitas pela sociedade, há, com muita razão, grande resistência para que isso ocorra nos casos de maior gravidade. Nas últimas duas décadas tem ocorrido uma mudança no perfil das pessoas que cumprem penas. Além de casos graves, há cada vez mais presos condenado por tráfico de drogas, também, de presos reincidentes em pequenos delitos. A Constituição Federal brasileira garante aos condenados que não terão seus direitos restringidos, além dos quês estiverem expressamente descritos na sentença condenatória. Isso na prática não ocorre, pois a realidade do sistema prisional é bem mais complexa do que a prevista em lei. Há limitações a direitos nos presídios também pelas normas sociais que impõe, inclusive, obrigações entre os presos. Embora não-escritas (na maioria das vezes), seu cumprimento é vital para que nada de trágico corra com o preso durante a execução da pena. Embora a lei exista e esteja a regular todas as ações sociais, nos presídios a comunidade que ali está detida ou trabalha possui regras e normas informais, que são de grande


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importância para se compreender a realidade do estabelecimento prisional. Ficar apegado a questões burocráticas e meramente descritas nas leis acaba sendo uma visão pouco profunda e distorcida sobre o que realmente acontece atrás das grades. Nesse ponto, a Psicologia Social, com seus estudos científicos sobre as dinâmicas de grupos sociais, acaba por revelar informações bastante seguras sobre as relações sociais existentes no sistema carcerário. O SPE, ao simular as condições de um presídio real, trouxe à tona de forma bastante realista, parte das dinâmicas perversas existentes no universo carcerário. O "Caso Abu Ghraib", de forma muito mais intensa, demonstrou efetivamente os estragos que um grupo de guardas (sem supervisão adequada) pode fazer dentro de uma prisão. Um dos problemas enfrentados pela humanidade e ainda sem solução em curto prazo são os abusos que historicamente vem sendo denunciados de guardas (agentes prisionais) contra internos. Embora haja previsão legal de punição severa por crime de tortura, como no Brasil, os abusos continuam sendo praticados de forma sistemática por todos os cantos, haja vista que as condenações por crime de tortura no sistema prisional ainda são extremamente raras.14 8 O CASO ABU GHRAIB

Em 2004, a mídia internacional divulgou uma série de fotografias de soldados norteamericanos torturando e humilhando presos iraquianos (possíveis "insurgentes") na Penitenciária de Abu Ghraib, Iraque. Essas fotos haviam sido tiradas em 2003 pelos próprios militares que praticaram os abusos e causaram protestos em várias partes do mundo. Como os Estados Unidos, país que se intitula defensor da paz mundial, poderia estar á frente de torturas e abusos no Iraque? O ditador Saddam Hussein havia sido expulso para se "libertar o povo do Iraque" e as fotos contradiziam claramente os objetivos da missão norte-americana no território iraquiano. 14

Um fato que nos causa perplexidade é o fato de que nos presídios norte-americanos as ações dos guardas são filmadas quase sempre por câmeras de seguranças distribuídas por todo o presídio, tanto para proteção dos internos, como para evitar que os agente públicos sejam acusados criminalmente por fatos que não tenha praticado (ex: abuso de autoridade, tortura etc.). No Brasil, a gravação dessas ações é praticamente inexistente. Sem supervisão (fiscalização) efetiva os guardas acabam tendo uma grande margem discricionária para atuar na condução dos presos, o que traz o perigo concreto de se descambar para o abuso.


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O que se viu no presídio de Abu Ghraib se tornou uma crônica de uma tragédia anunciada. Tudo, desde o início, conspirou para que algo desse errado naquele presídio, que era um dos maiores do Iraque e fora desativado por Saddam Hussein pouco antes da chegada dos norte-americanos a Bagdá, pois os soldados que foram enviados para lá não estava preparados para administrar um presídio. E nem as instalações físicas do presídio o estavam! Segundo Gourevitch e Morris (2008, p. 13-14): As prisões de Saddam eram as casas de máquinas do seu poder, fábricas de terror e de aniquilação. Por roubar uma galinha ou um xampu alguém poderia ficar preso durante anos. Para crimes contra o Estado - reais ou imaginários - não havia limite para a tortura. Quartas e domingos eram dias de enforcamento na prisão de Abu Ghraib, 32 quilômetros a oeste de Bagdá. Não raro, uma centena de pessoas era pendurada pelo pescoço nos cadafalsos, e quando a superlotação dificultava a acomodação de novos prisioneiros, a casa de morte fazia hora extra. Abu Ghraib foi a maior e mais notória das prisões de Saddam, sinônimo de inferno sobre a terra, e foi ali, onde as extremidades dos subúrbios de Bagdá se encontram com a aridez plana do deserto, depois do aeroporto, que o anúncio da anistia causou o maior aglomerado espontâneo de pessoas de que se tinha memória no Iraque".

Essa anistia que Saddam concedeu poucos dias antes do ataque norte-americano serviu, também, para recrutar mais soldados para lutarem do lado do regime. A prisão foi desativada e parcialmente destruída, sendo reformada às pressas pelos EUA para que pudesse receber "prisioneiros perigosos". Foi aí, que já começaram, a surgir os problemas, pois a reconstrução foi feita de forma não organizada e a alocação de soldados despreparados na prisão levou, também, aos acontecimentos de extremas torturas. As fotografias das torturas e humilhações atravessaram rapidamente o mundo e o escândalo para o governo norte-americano só aumentava a cada dia.


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Figura 4 - Militar norte-americana pratica maus tratos com preso iraquiano em Abu Ghraib. Fonte: arquivo pessoal dos militares que foram acusados e que foi confiscado pelo ExĂŠrcito dos Estados Unidos.


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Figura 5 - Militar norte-americana posa do lado de cadáver de preso iraquiano em Abu Ghraib. Fonte: arquivo pessoal dos militares que foram acusados e que foi confiscado pelo Exército dos Estados Unidos.

Figura 6 - Militares norte-americanos pratica maus tratos com presos iraquianos em Abu Ghraib. Fonte: arquivo pessoal dos militares que foram acusados e que foi confiscado pelo Exército dos Estados Unidos.

O governo, como normalmente o faz, negou inicialmente a gravidade dos fatos, que foram só aumentando com o surgimento de maiores detalhes com fotografias onde prisioneiros eram torturados, supostamente eletrocutados, humilhados, abusados sexualmente, atacados por cães ferozes etc. Com o agravamento da situação perante a comunidade internacional, e como já era de se imaginar, a posição do governo foi de desqualificar os militares subalternos que as praticaram, acusando-os de verdadeiros sociopatas infiltrados nas Forças Armadas. Era a famosa defesa baseada na "teoria das maçãs podres", ou seja, aquelas torturas foram praticadas, segundo o governo dos EUA, exclusivamente pelas "ações doentias de alguns militares malucos". De fato, os militares não tinham nada de sociopatas ou coisa parecida, e, em alguns casos, se tratavam de militares reservistas (aqueles que inscrevem para servir - geralmente por questões financeiras - e poucos anos depois voltam á vida civil).


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Ou seja, não eram sociopatas e conhecendo-se notoriamente a realidade organizacional das Forças Armadas dos EUA é claro que tais atos não poderiam ser realizados sem o conhecimento prévio e aprovação dos militares de alta patente. A vida militar é baseada na hierarquia e disciplina, não há como comandados agirem de forma tão aberta sem que os oficiais superiores tivessem conhecimento da situação. Segundo Gourevitch e Morris (2008, p. 199): Sem experiência, sem treinamento, sob ataque e cumprindo ordens para fazer a coisa errada, os PEs reservistas de baixa patente que implementaram a execrável guerra ao terrorismo no bloco da IM na segurança máxima de Abu Ghraib sabiam o que estavam fazendo era imoral, e sabiam que, se aquilo não era ilegal, deveria ser. Sabiam que era seu direito, e também o seu dever, desobedecer a uma ordem ilegal e levá-la ao conhecimento de seu superior imediato, e, se isso falhasse - ou se esse superior fosse a origem daquela ordem -, continuar informando aos escalões superiores na cadeia hierárquica até obterem uma satisfação.

Nesse sentido, o depoimento de duas militares reservistas, que foram punidas pelo Exército posteriormente por essas acusações, Megan Ambuhl e Sabrina Harman, são bem ilustrativos. Megan Ambuhl, narra que: "Você e é ensinado desde o começo que deve seguir as ordens que recebe, e se não fizer isso vai se dar mal", disse Megam Ambuhl. "E se as seguir, obviamente também vai acabar se dando mal se alguém descobre que eles não gostaram das ordens que lhe foram dadas. É fácil para esses oficiais aposentados, coronéis, generais, majores, ou seja lá quem forem, ficar lá no seu canto e dizer 'Bem, essas pessoas deveriam saber que eram ordens ilegais, e eles deveria se insurgir contra aqueles tenentes, coronéis e majores. Deveriam ter se levantado contra eles naquele momento, em uma zona de guerra, onde vidas estavam sob risco'. É meio irrealista pensar que isso iria acontecer." Além disso, disse Ambuhl, "Naquele momento, todo mundo em nossa cadeia de comando disse que estava tudo OK. As perguntas foram feitas e respondidas. Então, depois disso, o que lhe resta fazer?". (GOUREVITCH; MORRIS, 2008, p. 199-200).

Sabrina Harman, complementa a ideia de Ambuhl: “Não sei o que eu poderia ter feito diferente", disse Sabrina Harman. "Eu poderia ter dito: 'Dane-se, eu não trabalho mais aqui' e ser presa por desobedecer a uma ordem. Eu acho. Mas não sei. Tenho certeza que todo mundo pode fazer algo diferente. Mas eu


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simplesmente não sei o que teria feito de diferente se fosse posta de novo na mesma situação. (GOUREVITCH; MORRIS, 2008, p. 200).

Uma observação deve ser feita para se compreender melhor o tamanho do problema. No SPE e no Experimento Milgram, os envolvidos eram civis e não estavam em uma zona de guerra. Em Abu Ghraib, havia o risco iminente de morte (além de ser uma situação real de guerra, o presídio era atacado todos os dias com morteiros e foguetes por "insurgentes"), o que aumentava dramaticamente a pressão de respeito às normas, papéis sociais e conformidade no cumprimento dos papéis de militares do Exército norte-americano. A vida militar, como é notório, é baseada na hierarquia e disciplina, e comportamentos que ferem esses princípios são punidos com extremo rigor.15 Um fato que chama a atenção é que os interrogatórios em Abu Ghraib eram realizados por interrogadores profissionais (alguns eram civis) da Inteligência Militar (IM) e não pelos soldados reservistas (que eram da Polícia do Exército - PE) e faziam a segurança do presídio. Curiosamente, os interrogadores profissionais da IM aparecem apenas em segundo plano (e somente em algumas das fotos). Todos os militares que foram condenados à pena de prisão eram apenas coadjuvantes nos interrogatórios, que eram realizados de forma brutal pela Inteligência Militar (IM). Segundo Gourevitch e Morris (2008, p. 199): Sem experiência, sem treinamento, sob ataque e cumprindo ordens para fazer a coisa errada, os PEs reservistas de baixa patente que implementaram a execrável guerra ao terrorismo no bloco da IM na segurança máxima de Abu Ghraib sabiam o que estavam fazendo era imoral, e sabiam que, se aquilo não era ilegal, deveria ser. Sabiam que era o seu direito, e também o seu dever, desobedecer a uma ordem ilegal e levá-la ao conhecimento de seu superior imediato; e, se isso falhasse - ou se esse superior fosse a origem daquela ordem -, continuar informando aos escalões superiores na cadeia hierárquica até obterem uma satisfação.

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Esse dilema do descumprimento de ordens supostamente ilegais no ambiente militar é explorado de forma recorrente no cinema norte-americano. Podemos citar, como exemplos, os filmes: Maré vermelha (1995) e Questão de honra (1992).


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O que ocorreu para que militares de baixo escalão torturassem presos iraquianos no presídio de Abu Ghraib daquela forma tão irracional e com total desrespeito aos direitos humanos das vítimas? Posteriormente, os militares subalternos foram escorraçados perante a mídia internacional, tiveram suas vidas manchadas pelas acusações do caso, foram condenados á penas de prisão e expulsão com desonra do Exército e o governo negou estar envolvido, ou que tivesse conhecimento dos atos isolados praticados pelos soldados reservistas. Os militares praças envolvidos receberam a culpa exclusiva pelos acontecimentos, sendo que nenhum militar com patente superior a sargento foi condenado a pena de prisão, mesmo com provas cabais do conhecimento da situação pelas cadeias superiores de comando militar do Exército dos Estados Unidos da América. Prevaleceu, ao fim, a tese de que o caso havia sido uma exceção na ação do exército norte-americano, e que apenas algumas "maçãs podres" havia realizado todas as torturas, de forma clandestina e sem o conhecimento do Sistema. Foi a saída mais conveniente ao governo norte-americano utilizar esses militares como "bode expiatórios" do caso. Para Philip Zimbardo, as similaridades do SPE com as forças situacionais que agiram sobre os militares do presídio de Abu Ghraib eram de uma desconfortável e indesejável proximidade (embora no SPE tivessem ocorrido em menor grau). A questão para Zimbardo era o foco colocado pelo governo que aquele militares seriam "maçãs podres" das Forças Armadas. Em outro sentido, Zimbardo acreditava que os militares acusados eram pessoas normais, como suas fichas demonstravam, mas que foram contaminados pelo "barril podre". Ou seja, a pergunta correta nãos seria por que as "maçãs podres" fizeram isso?, ou por que "o barril fez isso ás maçãs", mas por que o "fazedor de barris podres (sistema) fez isso com as maçãs"? Segundo Zimbardo (2008, p. 329, tradução nossa): O projeto do Experimento Stanford de Prisionização tornou evidente inicialmente que nossos guardas eram "maçãs boas", sendo que algumas se tornaram azedas ao longo do tempo por conta de forças situacionais poderosas. Além disso, eu posteriormente


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percebi, junto com minha equipe, que isso era responsabilidade do Sistema que fez tal situação trabalhar de forma tão efetiva e tão destrutiva. Nós falhamos em providenciar restrições "de cima para baixo" adequadas para prevenir abusos em prisioneiros, e nós definimos uma agenda e procedimentos que encorajaram um processo de desumanização e desindividualização que estimulou guardas a agirem criativamente de maneiras cruéis. Ainda mais, poderíamos aproveitar a força do Sistema para terminar o experimento quando ele começou a sair do controle e quando o denunciante me forçou a reconhecer minha responsabilidade pessoal pelos abusos".

Em ambos os casos, no SPE e no caso de Abu Ghraib, houve intensos paralelos das forças situacionais que agiram de forma tão poderosa e totalmente sem controle. O ditado popular "cabeça vazia, oficina do diabo" também se apresentou nos dois casos. Tanto no SPE, como em Abu Ghraib, os guardas passaram por situações de relativo tédio e ficaram incentivados a fazer "algo emocionante" para quebrar a rotina. Ora, se o sujeito está em uma posição de controle, possui uma supervisão ineficiente (ou nenhuma), ele pode agir a seu bel prazer (para o bem ou para o mal). Tanto no SPE como em Abu Ghraib, os guardas combateram de forma "criativa" o tédio com punições esdrúxulas e ilegais nos dois casos. Zimbardo (2008, p. 352, tradução nossa) continua sua comparação: O tédio operou em ambas as configurações de prisões, criado por muitas horas naquelas noites quando tudo estava sob controle. Tédio foi um potencial motivador para a tomada de ações que poderiam trazer alguma excitação, alguma sensação de busca de controle. Ambos conjuntos de guardas decidiram por sua conta própria "fazerem as coisas acontecerem" que eles achavam que poderia ser interessante ou engraçada.

Outro fator que poderia ter influenciado os militares do caso de Abu Ghraib é o do "pensamento grupal", mas, embora algumas pessoas tenham citado que o "pensamento grupal" tenha influenciado os soldados de Abu Ghraib, Zimbardo discorda desse posicionamento. Zimbardo (2008, p. 354, tradução nossa) explica que: Eu não acredito que essa forma tendenciosa de pensamento (que promove um consenso de grupo com a posição do líder) estava agindo no meio dos guardas do período da noite, porque eles não estavam sistematicamente planejando os abusos.


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Figura 7 - Guardas do SPE praticam maus tratos em prisioneiro (1971). Fonte: arquivo pessoal do Professor Philip Zimbardo.

Figura 8 - Militares norte-americanos simulam eletrocutamente em prisioneiro de Abu Ghraib (2003). Fonte: arquivo pessoal dos militares que foram acusados e que foi confiscado pelo ExĂŠrcito dos Estados Unidos.


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Tanto no SPE como em Abu Ghraib, então, os guardas não começaram suas ações já previamente intencionados a cometerem os abusos. Todavia, em face das forças situacionais presentes (regras, papéis sociais, conformidade, obediência á autoridade etc.) estava o caminho aberto para que abusos fossem praticados pelos grupo de guardas. Não havendo esse conluio inicial dos abusos, Zimbardo entende, então, que não haveria a possibilidade que o "pensamento grupal" tivesse agido, tendo em vista que não houve uma ação nesse sentido.

9 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O "Experimento Stanford de Prisionização" (SPE) foi realizado no ano de 1971 na Universidade de Stanford, EUA, e marcou a história da Psicologia Social, como um dos eventos de estudo de interações de grupos de maior repercussão da Psicologia, influindo estudos científicos similares, trabalhos acadêmicos e causando grande interesse na mídia e sociedade civil, incluindo aí, o cinema. O SPE foi realizado num período de grandes contestações sociais, onde o movimento da contracultura apresentou á sociedade civil questionamento sobre instituições sociais até pouco tempo pouco questionadas como a família, trabalho, autoridade, música, valores, consciência social etc.


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Não é coincidência que poucos anos antes outros estudos de grande conexão, por conta do Zeitgeist, então, vigente, tenham possibilitado que experimentos como o se Asch (1961) e Milgram (1963), tenham sido levado adiante com questionamentos sobre o padrão de comportamento dos indivíduos após serem influenciados por grupos sociais. Dentre os pontos trabalhados pelo SPE, em especial, ficará a contribuição que o mesmo possibilitou à sociedade civil no tocante a normas, conformidade, papéis sociais e a obediência à autoridade. Embora submetidos a grande sofrimento emocional e físico os sujeitos do SPE foram incapazes de suspenderem sua participação no SPE, tendo em vista que a identificação com os papéis sociais (e as regras respectivas) criaram forças situacionais poderosíssimas, que impediram os participantes de simplesmente abandonaram o evento. Isso só foi possível, quando um aluna (pessoa externa ao SPE) alertou o professor Zimbardo no sexto dia que o SPE estava causando grande sofrimento para os sujeitos e que Zimbardo era o responsável direto por isso. Após a "revelação" de uma pessoa que não participava ativamente do SPE, Zimbardo se reuniu com os outros pesquisadores e o evento foi precocemente cancelado no sexto dia. As forças situacionais presentes no SPE foram fortes o suficiente para influenciarem os “prisioneiros”, “guardas", a direção do presídio (Zimbardo e seus pesquisadores), bem como agentes externos, como a família dos sujeitos e até um capelão. A obediência à autoridade, estudada por Stanley Milgram em diversos experimentos nas décadas de sessenta e setenta, também foi crucial para se compreender a dinâmica das forças que atuaram no SPE (e também em Abu Ghraib no caso das torturas de 2003). A autoridade é um instituto social importante para a civilização e que tem um papel importante na organização da estrutura social. Os guardas exerciam papéis sociais de autoridade legítimos perante os prisioneiros, que os obedeciam com alguma contestação e reclamações, mas pouco se fez para enfrentá-los diretamente (ex, uma pequena rebelião) durante o SPE. A utilização de materiais como correntes, uniformes militares, óculos escuros (para impedir o contato visual) reforçaram nos "prisioneiros" o papel de autoridades dos "guardas", havendo aceitação e submissão á autoridade emanada dos mesmos, bem como a da direção do presídio.


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Para Zimbardo, a pergunta que deve ser feita quando tratamos do "SPE" e do "Caso Abu Ghraib" não é "Por que as maçãs podres fizeram isso?", mas "Por que o barril podre fez isso com as maçãs?". A teoria de Zimbardo causou grande polêmica, mas de forma muito eficiente, traz a questão para a necessidade de se lançar luzes também para a responsabilidade do sistema social (fazedor de maçãs podres), da estrutura organizacional que possa ter influenciado "as maçãs" durante a realização de atos reprováveis. O SPE, os institutos sociais das normas, conformidade, papéis, obediência à autoridade, e a similaridade das forças situacionais no "Caso Abu Ghraib" desqualificam a versão, muito utilizada ainda por pessoas nos altos escalões de vários governos EUA, de que atos reprováveis praticados por pequenos grupos de agentes públicos sejam apenas fruto das ações isoladas dessas pessoas. Em conclusão, o "Experimento Stanford de Prisionização", promovido em 1971 por Philip Zimbardo, e as torturas praticadas por militares reservistas no presídio iraquiano de "Abu Ghraib", no ano de 2003, comprovam a capacidade que forças situacionais poderosíssimas possuem em influenciar a ação de "pessoas comuns" ou até de militares (treinados para matar e morrer no cumprimento do dever em uma guerra). O SPE completa quarenta anos no ano de 2011 e o Experimento se provou ainda, atual, controverso e desafiador para a Psicologia Social. O episódio das torturas no presídio de "Abu Ghraib" também renovou a importância de se estudar institutos sociais como papéis, conformidade, regras e obediência à autoridade na realidade prisional, para se evitar que situações de abusos similares sejam praticadas nos presídios.


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REFERÊNCIAS

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GOUREVITCH, Philip; MORRIS, Errol. Procedimento operacional padrão. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. MILGRAM, Stanley. Obediência à autoridade. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. QUIET Rage: the Stanford Prison Experiment. Direção: Ken Musen. Local: Universidad de Stanford, 1971. 1 DVD (XX min.), color., legendado. PEREIRA, Wagner Pinheiro. O julgamento de Nuremberg e o de Eichmann em Jerusalém: o cinema como fonte, prova documental e estratégica pedagógica. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/nuremberg/eichmann_nuremberg_israel.pdf. Acesso em: 01 de nov. 2011. SURHONE, Lambert M; TENNOE, Mariam T.; HENSSONOW, Susan F. Stanford prison experiment: Philip Zimbardo, Abu Ghraib torture and prisoner abuse, disorientation, despersonalisation, deindivindualisation. USA: Betascript Publishing, 2010. ZIMBARDO, Philip. The Lucifer Effect: understanding How Good People Turn Evil. New York: Random House, 2008. ZIMBARDO, Philip; GERRIG, Richard J. A psicologia e a vida. 16. ed. Porto Alegre: Artmed, 2005.


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