E D I Ç Ã O 0 1 . APAC SÃO JOÃO DEL REI
TEATRO DO RECOMEÇO
/EDITORIAL
PRIMEIRO ATO: de frente para o juiz, recebe dele a sentença de prisão que mudará sua vida para pior, muito pior. SEGUNDO ATO: dormindo “de valete” em uma cela superlotada 24 horas por dia se acostuma com o cheiro fétido que domina o ambiente. TERCEIRO ATO: é levado “de bonde” para a APAC, onde volta a estudar, a trabalhar, a tomar banho de sol e de água quente. E a ser tratado como gente. QUARTO ATO: um trio de pessoas desconhecidas chega por ali, dá umas aulas, mostra umas câmeras, negocia uns minutos fora da unidade prisional e diz que vai fazer uma revista com tudo o que for produzido. QUINTO ATO: “como a gente pergunta isso pro juiz sem ele ficar ofendido?”, “nossa, a foto ficou toda preta, o que aconteceu?”, “vou escrever um rap, mas você consegue pra mim uma base?”. SEXTO ATO: uns voltam ao presídio fétido, agora como jornalistas. Outros saem do regime fechado pela primeira vez e conhecem as maravilhas do semiaberto. Há ainda quem encara de novo o juiz, agora para entrevistá-lo.
REALIZAÇÃO
Nitro COORDENAÇÃO, EDIÇÃO E OFICINAS
Leo Drumond Natália Martino PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO
Diogo Droschi MAKING OF E SUPORTE GERAL
Maria Navarro EDIÇÃO E FINALIZAÇÃO DE CONTEÚDO AUDIOVISUAL
FOTO DE CAPA
Walla dos Santos
Ciro Thielmann Leo Drumond Maria Navarro
FOTO DE CONTRACAPA
AUTORES
LOGOTIPO DESTA EDIÇÃO
Adilson Ramos André Calsavara André Gustavo Bruno Alves Bruno Antônio Cassio Santiago Dalton Rodrigues Dione Cristiano Dioleno do Carmo Ernani Paulo Francisco Raimundo Geovanni Oliveira Márcio Claudino Marcos Vinícius Haroldo Júnior Jefferson Cristiano Jonathas Diego Raimundo Aparecido Roberto Carlos Roberto Luciano Rômulo Alves Walla dos Santos Wandir Silva Wellington Paixão
Cássio Santiago e Vítor Magalhães
IMPRESSÃO
Rona Editora TIRAGEM
1.000
Dione Cristiano
24 HOMENS E 5 CÂMERAS
Foram mais de 15 mil fotos produzidas em uma semana pelos 24 homens que participaram da edição A ESTRELA São João Del Rei. Tudo a partir de cinco kits de câmeras e lentes emprestadas pela Nikon, nossa apoiadora desde a revista piloto. Alguns grupos foram divididos para cuidar de cada câmera em uma lógica de revezamento definida por eles, responsáveis pelo equipamento 24 horas por dia. Ao fim, o desafio foi saber quem clicou cada momento. Tentamos creditar todos os possíveis autores de cada imagem e, de antemão, pedimos desculpas a eles por qualquer equívoco.
AGRADECIMENTOS
Rumos Itaú Cultural, por permitir a continuidade deste trabalho; Nikon, por acreditar desde o início n’A ESTRELA; APAC de São João Del Rei, pelo apoio incondicional, em especial a Antônio Carlos Fuzatto, Dani Fazzion, Jefferson Mauro da Silva, Rafaella Cristina Vieira e Thaís Santos; Maria Navarro, por mergulhar de cabeça neste projeto.
“olha, esse texto tá bom, mas dá pra melhorar...”, “tá sem foco, vai lá e repete”, “e se você tentasse escrever de forma mais poética?”, “mudem o ângulo, quero ver vocês se sentando e deitando no chão, subindo na cadeira...”, “tá escrito certo, mas tá sem alma, o que você sentiu lá? Conta no texto...”, “já fizeram o holofote pra gravar a cena do júri?”, “ei, já sincronizou a letra do rap com alguma das bases?”. OITAVO ATO: “não consigo, não vai dar”. “consegue sim, vai lá que você consegue”. NONO ATO: “não vai dar pra ter pausa depois do almoço, galera. Todo mundo no auditório pra fazermos um balanço do que falta”. DÉCIMO ATO: “não tem problema, a gente dorme mais tarde hoje pra terminar esse filme”. “E se vocês vierem no sábado? Aí fazemos aquelas últimas entrevistas”. “Putz, não sabia que a história dele era assim”. DÉCIMO PRIMEIRO ATO: a revista é publicada. Junto com um curta-metragem que encena um júri de homicídio – com consultoria mais do que especializada – e uma série de outros vídeos. Confiram nossa programação e aguardem os próximos atos. SÉTIMO ATO:
NÓS CONTRA OS OUTROS P. 4 R.G. P. 6 FRENTE A FRENTE P. 8 DO OUTRO LADO DO MURO P. 10 SAUDADES P. 12 BOCA SUJA P. 14 DR. ARMANDO E A CONDENAÇÃO P. 15 E SE SUA VIDA TIVESSE QUE CABER EM UMA GAVETA P. 16 O CHEIRO DO INFERNO P. 17 GARIMPO P. 20 AMADOS MESTRES P. 22 AMOR POR CORRESPONDÊNCIA P. 24 QUE HORAS O PAPAI VOLTA? P. 26 IMPRENSA P. 28 ELEIÇÕES 2016 P. 29 O QUE NINGUÉM JAMAIS VERÁ P. 31
4. A ESTRELA
Bruno Alves com a ajuda de Dioleno do Carmo e Marcos Vinícius Haroldo Júnior
Para ele, a falta de uma verdadeira família. Para os outros, só mais um neguinho no caminho do crime. Para ele, a busca implacável por uma vida melhor. Para os outros, um caminho que não traria nada de bom. Para ele, a proteção dos amigos custe o que custar. Para os outros, falta de amor com o próximo. Para ele, era o “mais medroso”. Para os outros, o mais perigoso. Para ele, um cara tranquilão. Para os outros, frio e calculista. Para ele, surge uma esperança. Para os outros, sem chance. Para ele, a APAC. Para os outros, parque de diversões para bandido. Para ele, oportunidade de renascer das cinzas. Para os outros, acabou, é o fim. Para ele, mudança. Para os outros, não há recuperação. Para ele, um caminho difícil. Para os outros, esquece, já era. Para ele, é possível ser o que quiser. Para os outros, desconfiança. Para ele, chega. Quer paz – para ele e para os outros.
fotos:
texto:
( b a s e a d o n a s pa l av r a s d e c ás s i o a d r i a n o s ilva )
ESPERANÇA Moravam no mesmo bairro e não demorou muito a se tornarem a dupla mais temida de São João Del Rei. Hoje, Cássio cumpre pena no regime fechado da APAC de São João Del Rei, enquanto Jeferson, já em liberdade condicional, é o inspetor de segurança da unidade prisional. Os textos a seguir foram produzidos a partir das entrevistas realizadas com os dois. Parte dos depoimentos está disponível em vídeo no site www.projetovoz.com
E L E S E R A M A MIG O S D E INFÂN C I A .
NÓS CONTRA OS OUTROS
E D I Ç Ã O 0 1 . A PA C S Ã O J O Ã O D E L R E I . 5
Bruno Alves
Ele quer ser herói. Será que para ser herói dos amigos é preciso matar por eles? Será que sujeito homem precisa dar tiro para ser herói? Será que sujeito homem tem que segurar a bronca sozinho para não levar os amigos para a cadeia? Será que sujeito homem percebe que sua mãe não sorri no dia da visita? Será que um verdadeiro sujeito homem faria sua mãe chorar? Será que sujeito homem levaria a sua mãe para a cadeia? Será que sujeito homem não chora? Será que sujeito homem não tem coração? Será que sujeito homem não tem sentimento? Será que sujeito homem percebe seus erros ao limpar os túmulos de quem matou? Será que sujeito homem tem vergonha de pegar no pesado? Será que sujeito homem tem medo da solidão? Será que sujeito homem pode mudar? Será que sujeito homem pode ser exemplo para quem quer se recuperar e mudar de vida? Um dia sujeito homem percebe que só uma mudança radical pode fazer dele um herói de verdade.
texto e fotos:
( b a s e a d o n a s pa l av r a s d e j e f f e r s o n m a u r o d a s ilva )
HERÓIS
R.G. texto:
Raimundo Aparecido Adilson Ramos, Bruno Antônio, Cassio Santiago, Haroldo Júnior, Márcio Claudino, Roberto Luciano, Rômulo Alves, Walla dos Santos e Wellington Paixão
fotos:
Marcas são importantes, tem seus sentidos. Brigas de amantes, estou perdido. Quem é você? Sou aquele que recebeu, por falta de fé, um corte profundo no coração. É meu assunto. Facada certeira. Um bicho que corrói. Férreo sentimento, coisa de momento que no presente, ainda dói. Hoje está cicatrizada. Será? Criança abandonada, onde está? Está aí para qualquer parada. Um corte no peito. Que beijo! Apaixonado desejo. Pá, pá, pá. Mano, fui ferido. Tô escondido, mas a cicatriz, não. Não tem como esconder, é minha emoção, meu prazer. Relatar marcas da vida. Está explícita, ferida, para quem quiser ver. É o meu R.G.
6. A ESTRELA
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FRENTE A FRENTE
*
Entrevistado por Geovani Oliveira com perguntas elaboradas com a ajuda dos demais recuperandos fotos: André Gustavo e Jonathas Diego
T O D A S A S V E Z E S em que eu estive frente a frente com o juiz da Vara
Criminal de Execução Penal de São João Del Rei, Ernani Barbosa Neves, foi para ser julgado por ele. Ganhei 19 anos de reclusão. Mas, dessa vez, foi diferente, eu era o entrevistador, não o réu. Eu teria a oportunidade de tirar dúvidas minhas e dos outros recuperandos da APAC sobre seus critérios de julgamento e de concessão de direitos, como remição de pena. Confesso que tive medo de fazer essas perguntas. Achei que ele poderia ficar ofendido, chateado. Mas logo me senti mais à vontade e vi que suas respostas eram claras. Meus amigos não gostaram, muita coisa não era o que eles queriam ouvir. Para mim, foi esclarecedor. Pelo menos, agora sabemos o que ele pensa. Pela primeira vez, foi bom ficar frente a frente com o juiz. O que o senhor acha do Sistema Penitenciário brasileiro? Não atingiu sua finalidade. Foi criado com o sentido de reeducação, mas o presídio, talvez pela massificação, talvez pelo desinteresse do Estado que transforma a cadeia em um depósito de seres humanos, não conseguiu atingir sua finalidade de ressocialização. Nesse vácuo, *Entrevista disponível também em vídeo no site www.projetovoz.com
8. A ESTRELA
a APAC aparece. Porque a APAC atinge o objetivo e o presídio não? Primeiro porque na APAC não existe interferência do Estado. Outra questão é que tem número limitado de pessoas, não existe nenhuma APAC com mil, dois mil presos. Agora, digo sempre que é necessário que haja o Sistema Prisional. A gente diz que o presídio é o inferno e a APAC é o purgatório. Se não existir o inferno, não pode existir o purgatório. As pessoas aqui valorizam a APAC porque já conheceram o que é o presídio, o que é viver atrás das grades, ociosamente o dia inteiro e, quando saem, saem com dois agentes penitenciários armados até os dentes, chamando de bandido, às vezes batendo, todo mundo gritando palavras de ordem, “cala a boca”, “anda”, “não anda”. Só quem passa por isso pode valorizar uma instituição como APAC. E quais critérios o senhor utiliza para transferir alguém do presídio para a APAC? O primeiro critério objetivo que usamos é o de que quanto maior a pena, maior a chance de vir pra APAC. Não adianta um preso que tem a pena de dois meses, três meses, um ano vir para cá. Ele não vai ficar muito tempo e a APAC exige um tempo de permanência, de aprendizado, pra que a pessoa possa retornar pra sociedade. Outro detalhe é o tempo de pena cumprido. Não é justo pegar quem chegou
os agentes disseram “vai”. Ele falou: “vocês vão me matar, não saio daqui de jeito nenhum, acham que eu sou besta? Querem que eu vire as costas para dizer que eu fugi e me matar”. Ele se agarrou ao carro dos agentes penitenciários, aí veio outro recuperando e disse “não, vamos comigo, se tiver que morrer, morremos nós dois”. Ele foi. Quis fugir, já que não tinha nem muros, mas resolveu esperar o dia seguinte porque achou que estariam esperando por ele do lado de fora. Dia seguinte, mês seguinte, ele estava lá. No final, todos nós, todos juízes, o aplaudimos. Depois do café, fui conversar com ele e perguntei porque ele mudou tanto. Ele disse: “porque um dia eu entrei na sala de vocês e todo mundo me xingava e apontava o dedo – você é bandido, safado, desonesto, canalha. Hoje entrei na sala de vocês sem algema, sem agente. Vocês ouviram minha história e me aplaudiram. É isso que me faz não querer voltar para aquela vida”. Foi aí que me tornei um defensor do método. A APAC não é o fim, mas é o caminho pra chegarmos à ressocialização. Quais são as diferenças entre a APAC e o presídio que o senhor considera as mais importantes? No presídio, a tônica é a detenção. A pessoa é encarcerada, vigiada. Na APAC, temos a responsabilização. Damos a ele a oportunidade de mostrar que ele é capaz de viver em sociedade. Não existe agente penitenciário, arma de fogo, cachorro nem palavras de ordem. O recuperando usa roupa civis e não o uniforme vermelho fedorento, que já é um estigma por si só. Ele é chamado pelo nome. Não existe ociosidade na APAC, ninguém fica encarcerado ao longo do dia. No presídio, o preso fica sem fazer nada o dia inteiro, só pensando em coisas ruins, xingando e descrendo no ser humano, na sociedade. A vida na APAC começa cedo: acorda às 6h, faz oração, toma café da manhã e vai trabalhar. Aqui temos formação escolar, profissional, humanística. Queremos que saiam daqui melhores. Temos muitos exemplos de pessoas que viviam na criminalidade e que hoje eu coloco a mão no fogo por elas de que não vão voltar. há um mês em detrimento de quem está esperando há três, quatro anos. São esses mais o critério do bom comportamento e da não utilização de drogas. O senhor acha justo aplicar o exame toxicológico assim que a pessoa chega à APAC? Não seria melhor esperar 90 dias, já que lá no presídio tem mesmo muita droga e alguns usam até para dormir, para passar o tempo? Sou radicalmente contra as drogas. Se as pessoas querem usar, porque tenho que interferir? Se a pessoa quer se matar, porque tenho que interferir? Porque não é em função apenas da pessoa, mas da sociedade. Convivo diariamente na sala de audiência com muitas mães e esposas que chegam e dizem “olha, ele é uma boa pessoa, mas quando usa drogas muda completamente”. Por isso fazemos esse exame. Queremos evitar que as pessoas usem drogas no presídio e usamos o método prêmio-castigo para isso. Discordo de que usam pra dormir. Se a pessoa, convivendo em uma sociedade tão pequena como o presídio, não consegue se conter, como vai se conter vivendo com outros 100 mil habitantes? Dizem que o alcoólatra não pode se aproximar de bebida, acho que tem que se aproximar sim. Ele só vai mostrar que é resistente quando tiver disponibilidade. Ele tem que querer mudar. É preciso convencimento pessoal. A APAC é um caminho para melhorar o Sistema Penitenciário? Não tenho menor dúvida em relação a isso. Eu era descrente da APAC, achava um absurdo quando me falavam que preso tomava conta da prisão, eu achava que era como dar a chave do galinheiro para a raposa. “Isso não existe, é utopia”, eu pensava. Até que fui convocado para participar de um seminário em Itaúna. Fui contra a minha vontade, fui aborrecido. Mas lá tinha um recuperando que foi quem mudou minha opinião. Ele tinha praticado todos os crimes que o Código Penal prevê, tinha mais de 50 anos de prisão. Ele contou que um dia chegaram na cela e disseram para arrumar as coisas que ele mudaria de presídio. Quando chegaram perto da APAC,
Agora uma questão que é a dúvida da maioria de nós, recuperandos. Quais são os critérios pra conceder as remições e porque as vezes demora tanto para julgar? São os critérios definidos na lei. Lamentavelmente, há um tempo atrás as remições não estavam sendo levadas a sério, eram feitas a torto e direita. Recebemos relatórios rasurados, com meses e meses de remição feitos em uma só sentada. A remição, perdão parcial da pena, tem que ser levada a sério. Por isso, a análise criteriosa tem que ser feita. Chegamos a receber relatórios absurdos, de pessoas que teriam trabalhado 30 dias por mês, 24 horas por dia. Isso é um total absurdo, a pessoa não ia ao banheiro, não almoçava, não dormia? Pessoas que estavam fazendo a laborterapia e era concedido remição, isso não é possível. Outra questão é que temos um universo grande de pessoas e pouca gente pra trabalhar na nossa secretaria. Mas, na medida do possível, estão sendo concedidas as remições. E quando a pessoa sai da prisão? A falta de oportunidade na rua, onde ninguém estende as mãos, pode mexer com a cabeça da pessoa? Lamentavelmente sim. Dizem que no Brasil não existe prisão perpétua. Mentira. Existe sim. Infelizmente todos aqueles que passaram pela prisão, embora tenham pago suas dívidas com a sociedade, carregam na sua testa uma estrela dizendo “eu já pratiquei crimes”. Se ele for pedir um emprego e for sincero dizendo que já passou por um presídio, a pessoa que está fazendo a entrevista vai dizer que a vaga já foi preenchida. Uma vez uma pessoa para quem eu concedi livramento condicional voltou para a minha frente três meses depois. Eu questionei porque ele tinha voltado para o crime. Ele disse “quando eu saí daqui, eu fui pedir emprego e ninguém me deu. Eu quis voltar para a sociedade e ninguém quis me aceitar. Eu não tive oportunidade e tive que voltar a praticar crimes”. Sempre que falo disso, eu digo “se não der oportunidade, você está criando mais um pra assaltar a sua casa e matar sua família”. E D I Ç Ã O 0 1 . A PA C S Ã O J O Ã O D E L R E I . 9
DO OUTRO LADO DO MURO
fotos: Bruno Antônio, Dione Cristiano, Ernani Paulo, Marcos Vinicius e Wandir Silva
LEMBRANÇAS DE OUTRA VIDA texto:
Dione Cristiano
Q U E S E N S A Ç ÃO B O A aquele cheiro. Me lembrei da minha casa, de
quando eu ia cuidar das minhas galinhas. Era um momento só meu, quando eu relaxava a minha mente e renovava meus pensamentos. Estou preso há 1 ano e 6 meses no regime fechado da APAC e não conhecia o galinheiro, onde trabalha quem está no semiaberto. Hoje, estive lá para fotografar, mas não sei quando terei outra oportunidade assim. Ainda falta 1 ano e dois meses de pena para eu cumprir no fechado. Uma parede me separa de lá, mas das minhas lembranças, ninguém pode me separar.
IDAS E VINDAS DE UM RECUPERANDO texto:
Ernane Paulo
E U E S TAVA N O R E G IME S E MI A B E R T O e desfrutava de uma liberdade
inexplicável. Meus sonhos cada vez maiores, a chance de ter uma profissão, ajudar a minha família e dar uma casa para a minha mãe. Mas eu ainda tinha um processo pendente e logo veio a condenação. Mais nove anos de pena. Fui regredido para o regime fechado e meus sonhos foram aprisionados comigo. Mas hoje estive lá fora para fotografar. Senti saudade e vi meus sonhos renascerem. Descobri que eles jamais poderão ser detidos.
10. A ESTRELA
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SAUDADES texto: foto:
Raimundo Aparecido Maria Navarro
Que vontade de algo mais. Era a felicidade, dantes era paz. Envolvido pela rotina da vida em família. Poder estar no quarto, ouvindo funk, pensando nas baladas. Muito curtia. Eu nadava, pô, era muita alegria. No celular, telefonemas: quer me beijar? Vamos para lá. Expor os sentimentos, coisas de momento. Sintam só, o cheiro da broa, melhor que pó, não é? Que coisa boa, ir a pé até a praça. Ver pessoas. Um abraça, outro brinca. Um bebe. Dá uma pinga, esposa briga. Vida rotineira, valores despercebidos. Por bobeira, hoje somos proibidos. Encarcerados, estamos impedidos. Somos privados da liberdade. Atos impensados, que na verdade nos trouxe para a cadeia. Mas o amor, ainda corre nas veias.
12. A ESTRELA
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BOCA SUJA texto e fotos:
Bruno Alves, Geovani Oliveira e Wandir Silva
– Caralho, mano Chita, satisfação em te ver, espero que goste daqui. mano chita – Porra, Wandir, a satisfação é minha! Mas caraca, mano, você engordou pra caramba! wandir – Então, mano, é que o pilantra do Fuzatto* cortou o cigarro e isso tá me dando a maior neurose. Já falei, já implorei, já chorei, mas nada! mano chita – Então, camarada, ‘tava” louco para desenrolar essa ideia mesmo. Cheguei aqui com uns caretas no bolso e, na geral, eles me tomaram. zé carioca – Pô, cumpade, não fica de neorose não, isso vai ser legal pra tu, pra tua saúde. mano chita – Ah, tem uns aí falando em voltar pro presídio, acho que vou entrar nesse bonde. Lá não tem que ficar nessa neura de ‘não pode cigarro, não pode celular, não pode isso, não pode aquilo’. Lá pode tudo. zé carioca – Ô cara, tá maluco? Nem pense nessa fita de voltar pra aquele lugar sinistro, cheio de mofo. wandir – Para de fofoca, maluco, até parece que é assim, que vai e volta na hora que quer. Mas que essa proibição é autoritária demais, isso é. mano chita – Aí, Zé Carioca, você nunca fumou, não tem nem ideia do que é ficar sem fumar. Não ‘tô’ aguentando. zé carioca – Qual é, Wandir, em vez de ‘tu dá’ uma ideia de responsa, tu vem com esse papo sinistro? Qual é a sua? ‘Tá’ só atrapalhando, ‘tô’ bolado contigo. wandir – Pô, ficar sem fumo é embaçado. mano chita – É, mas, pensando bem, pode ser bom mesmo. zé carioca – Aê mano Chita, gostei de ver. wandir – Caralho, o papo é reto mesmo, né? Vou pensar melhor nessas ideias. wandir
* Presidente da unidade
14. A ESTRELA
Raimundo Aparecido Francisco Raimundo, Geovanni Oliveira, Jefferson Cristiano, Márcio Claudino e Raimundo Aparecido
* Confira também curta-metragem sobre o mesmo assunto, disponível em www.projetovoz.com
Raimundo Aparecido
texto:
desenho:
autor:
*
DR. ARMANDO E A CONDENAÇÃO
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E SE SUA VIDA TIVESSE QUE CABER EM UMA GAVETA? fotos:
16. A ESTRELA
André Gustavo
O CHEIRO DO INFERNO texto:
fotos:
Wellington Paixão com a ajuda de Haroldo Júnior Haroldo Júnior com a ajuda de Wellington Paixão
NÃO HÁ COMO NEGAR QUE, nos dias que precediam meu retorno ao presídio, fiquei pensando mil fitas sobre como seria voltar a exatos 2 anos, 1 mês e 24 dias atrás, tempo em que cumpro pena na APAC. Sabia que seria bom rever alguns irmãos, mas pensei em qual seria a aceitação dos presos em relação a mim, pois fiz parte do CSS*. Ao chegarmos, eu nem sabia mais por onde entrar, devido a algumas reformas no prédio. Fomos recebidos, claro, por alguns agentes penitenciários, que nos levaram até a sala do diretor onde conversamos sobre as restrições. Daí, fomos levar, acompanhados de agentes, Natália e Maria, da equipe da revista A ESTRELA, para conhecer o presídio. * Conselho de Sinceridade Solidariedade. Órgão formado pelos internos que ajuda a diretoria da APAC na manutenção da disciplina. Seus membros podem atuar na aplicação de sanções internas e relatar para a administração falhas graves que, em alguns casos, resultam no retorno ao presídio comum. Os membros do CSS às vezes não são bem vistos por aqueles presos que nunca cumpriram pena na APAC – são considerados “polícia”, “preso atrasando a vida de preso”.
Fomos aos pátios, corredores e celas. Nós, infelizmente, conhecíamos esses lugares, que nos trouxeram muitas recordações. Muitos irmãos nos cumprimentavam e, ao nos ver com câmeras, queriam saber o que estávamos fazendo. Pediam ajuda para serem transferidos para a APAC. “Dá meu nome pro Fuzatto, pede pra ele me colocar na lista”. Na face de cada um deles, um semblante abalado, abatido, cansado pela frustrada esperança da liberdade que parece nunca chegar pelas grades. Ou talvez pela opressão, pela falta de fé, pelo abandono da família – ou por saber que fazem a família sofrer. Foi bom podermos apertar as mãos de alguns amigos e conhecidos, pelo menos daqueles que chegavam até a capa**. As entrevistas*** foram momentos muito delicados. Marcados por um clima tenso e olhares fixos. Cada resposta nos dava a impressão de ser acompanhada por um filme na cabeça de cada um. Já sentimos na pele muito do que os entrevistados relataram. Ainda sentimos algumas coisas, já que ainda cumprimos pena, apesar de agora na APAC, com mais humanidade e dignidade, exatamente como manda a LEP (Lei de Execuções Penais). Confirmei também algo que já tinha ouvido antes: o odor de homens amontoados, apodrecendo atrás das grades. Não me recordo desse cheiro quando cumpri pena lá, talvez por ter me acostumado. Mas ele é real. Aos amigos que ainda estão no presídio, só posso deixar um recado: estamos juntos! Grade. Disponíveis em vídeo no site www.projetovoz.com
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“Fomos aos pátios, corredores e celas. Nós, infelizmente, conhecíamos esses lugares, que nos trouxeram muitas recordações. Muitos irmãos nos cumprimentavam e, ao nos ver com câmeras, queriam saber o que estávamos fazendo.”
18. A ESTRELA
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GARIMPO textos:
Roberto Luciano, Roberto Carlos, Cassio Santiago Bruno Antônio, Cássio Santiago, Giovanni de Oliveira, Roberto Carlos, e Roberto Luciano fotos:
O A O IT L A P DO CHÃO N A R P
do r n an r e F do A S, pera o ILH o F é alh U A S A njos trab ão. E D u D s e o I s r is PA ve ed riqu , mas te a sua p ema n e H is t ito com no s fazia râns de t ompido o anos que c irr inte por cin tudo o tos de p u e li té Fico m, ond com pa forte. A u ir u o com tesanat eram se ade de v ar na nid has era asin oportu ntinuou e C . colé nhou a nde co m ano ga ,o do ru que PAC ade po ransferi . A a t ade para a ativid até ser ntid as e , m s a s ,m ese me ad o m rcenari rabalho ntar t a o qu a ma ot odo arte da m duzit a r á l a p p u ro nde ré da le p Apre mesmo is por e mo ma r, e co a gost os móv a vida a acaba a d n g ar gem alvez si o sua pe se torn T d é dos. ro quan esmo m i cene sonho APAC. o a mas nário d o i func
20. A ESTRELA
O D N I R B O DESC ALENTO T M U
de ois p e r d opia c TA R N a I P ar m U A do p e está e i O d Ç e E p u da COM um strato q diretor r r e b b Víto rece uadro a iano. O e o l q ã a uum useu it olicit aç u inseg s ti m de za um e sen se tipo e s f s e a s C ã A PA Magalh a feito e esenhav i u s d v Alve nca ha ntão só ceito a , u ie im ro. N ho, até smo ass eu cons l e e d a trab afites. M urpreen capaz r s era pre em g fio e se que ue sem u a i s n o de smo. V plo de q ítor ve e V a , m m e e go juda o ex m. Hoj a , u e m é iz d ir al s e, assi nos le d s E o . A ro ia em pod s quad a famíl pinta. “ u o u e de s tar a s nquant n e e t sus tir livre n se se berta”. li arte
E U Q “É O O SEI E GOSTO” QUE
o Julh o. heir P l a r R r SE a se ssão DE já er a profi já S a l E , au er ANT de P aprend ndo viu de r a s a ua ida Cé eçou m e, q ela ativ ade m o ve C lid op to jo ixonad ar a qua nho, i u r m so pa elho . O ando va a esta oderia m família o qu s, fia p d i u e s p u q m da no e terro ida ês a de v , foi in rante tr tunidad ím u or pres poré eso e, d ma op o d u a r l té h foi p m nen uma ce rdido a e se ecou balho em tinha p i transf o á a f J ar onh de tr mum. ndo s a a u q u e co dio eranças C. Volto estava d iA á sp as e ara a AP mpo, j serralhe o te p o rido pouco do com ue sei e q n e, em rabalha o. “É o t ã ç novo institui zer”. fa a ro n osto de g que O, RES
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AMADOS MESTRES texto e fotos:
André Felipe, Dalton Rodrigues, Rômulo Alves e Wala dos Santos
CAÍ DE PARAQUEDAS. Era uma realidade que eu não conhecia e
não tinha muitas expectativas. Eu estava desempregada e fui chamada para substituir uma professora do sistema prisional. Medo, eu não tinha, mas achava que encontraria pessoas mal encaradas, diferentes das que encontrei. No presídio, eu estranhava muito os gritos. Demorou um pouco para que eu entendesse que, na verdade, era uma forma de eles se comunicarem. Uma vez um dos presos me ameaçou, mas quantos professores de escola pública já foram ameaçados ou agredidos? Até hoje pessoas próximas me questionam com muito receio. Vários professores nem tinham conhecimento de que existem escolas dentro do Sistema Prisional. Depois de alguns anos trabalhando no presídio e na APAC, porém, esses questionamentos já nem afetam mais. Hoje eu sinto que pertenço a esse lugar. Acredito que essa seja a minha missão. Sou grata por deixar meus filhos em casa todos os dias e vir aqui trocar conhecimento. Todos os anos vou concorrer às vagas e quero me aposentar aqui. (texto escrito com base nos depoimentos dos professores Simone Guerra, 43 anos, Júlia Zerlotini Lucas, 29 anos, Nilton Joaquim Vieira, 52 anos, e Jalina da Silva, 27 anos)
22. A ESTRELA
“No presídio, eu estranhava muito os gritos. Demorou um pouco para que eu entendesse que, na verdade, era uma forma de eles se comunicarem.”
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AMOR POR CORRESPONDÊNCIA
Depoimentos concedidos a Dalton Rodrigues, que também selecionou as frases a serem publicadas fotos: André Gustavo
A MB O S E S TÃO P R E S O S . Cada um
em uma APAC. O casamento sobrevive.
De: Renata Para: Ernani “Você me dizia que eu não deveria nunca querer estar presa. Agora estou e entendo o que você já sentia, como é difícil ficar longe de quem amamos”
De: Fabiano Para: Fernanda “Quando fiquei sabendo que você foi presa me senti um fracassado. Meu mundo desabou” De: Fernanda Para: Fabiano “Nunca vou me esquecer daquele reveillon, quando saímos de um show e fomos embora a pé. Na chuva, brincando, jogando água um no outro, como crianças”
De: Luís Cláudio Para: Karen “Busco uma mudança de vida por mim e por você” De: Karen Para: Luís Cláudio “Eu te amo. Você é o meu mundo, a razão dos meus sorrisos”
De: Ernani Para: Renata “Me lembro do dia do nosso casamento. Você estava linda, com os cabelos cacheados e um vestido maravilhoso que destacava sua pele morena. Obrigado por nunca ter desistido de mim e ter ficado sempre ao meu lado”
24. A ESTRELA
E D I Ç Ã O 0 1 . A PA C S Ã O J O Ã O D E L R E I . 2 5
QUE HORAS ELE VOLTA? texto:
fotos:
*
Haroldo Júnior André Gustavo e Wandir Silva
D A R B A NH O N O ME U F IL H O , levar para a escola. Jogar bola com ele,
soltar pipa. Dar conselhos sobre os namorados, estar ao seu lado. Era só o que eles queriam – mas estão presos. *Confira também o rap sobre esse tema, disponível no site www.projetovoz.com
F I Q U E I M U I T O A N S I O S O quando meu filho estava para nascer. Minha
esposa engravidou na visita íntima, quando eu ainda estava lá no presídio. Fui transferido para a APAC e, no momento em que o milagre aconteceu, me levaram ao hospital para conhecê-lo. Hoje, quando tenho visita íntima, meu filho, de seis meses, vem também. É quando consigo ver o trabalho que dá cuidar de uma criança. Ele acorda a noite inteira e, em casa, minha esposa está sozinha para cuidar dele. Dalton Rodrigues, 32 anos
26. A ESTRELA
C IN C O A N O S S E M V E R A F IL H A até que me destaquei em um curso
de mecânica do Sesi/ Senai aqui na APAC. Como prêmio, o juiz me concedeu uma semana e duas passagens aéreas para ir até Rondônia. Quando ela me viu, me chamou de papai. Depois, me rejeitou e despedaçou meu coração. Chorando cheguei, chorando saí. A saudade hoje aperta, mas depois de uma semana foi por causa dela que voltei para a cadeia. Quero dar o exemplo de que, na vida, é preciso sempre fazer o certo, não o fácil. Roberto Carlos, 39 anos
E U E S P E R AVA a minha irmã para a visita de domingo. Quem veio no lugar, porém, foi minha filha. Desmoronei quando ela disse que me amava. Não a via há 10 anos. Agora, todos os domingos ela está aqui. Há pouco tempo, chegou e me pediu consentimento para começar um namoro. Foi a primeira vez em que me senti pai de verdade.
Wandir Silva, 39 anos
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IMPRENSA texto e fotos:
Bruno Antônio, Márcio Claudino, Walla dos Santos e Wellington Paixão
São João Del Rei, 23 de agosto de 2016 Rachel Sheherazade, Nós, recuperandos do regime fechado da APAC masculina de São João Del Rei, viemos, por meio desta carta, falar sobre as suas opiniões emitidas no Jornal do SBT. Em uma delas, por exemplo, você fala de um cantor adolescente, o Justin Bieber, e defende suas atitudes, como pichações de muros, prostituição, violência contra fãs, envolvimento com drogas. Alega que tudo é motivado por ele estar em fase de crescimento e em busca da sua identidade. Afinal, quem nunca se perdeu ou procurou se encontrar? “Atire a primeira pedra quem nunca foi rebelde”, em suas palavras. Em outro, você critica um adolescente negro da periferia, que você nem sabe o que faz ou quem é. Apoia a sociedade que quer fazer justiça com as próprias mãos e, assim, o amarra em um poste para chamar a polícia. Diz que o rapaz era um marginal, que se tratava de legítima defesa da sociedade e que o rapaz só fugiu porque tinha culpa e não queria encarar a polícia. Já pensou que ele pode ter fugido por outras razões, como medo de apanhar, como tantas vezes acontece com moradores da periferia diante da polícia? Tendo em vista os fatos expostos, o intuito desta carta é saber sua verdadeira opinião. Em apenas duas reportagens já podemos observar que você não tem coerência. Duas pessoas que quebraram regras e normas constituídas pela nossa sociedade são vistas de formas diferentes por você. Já que é uma jornalista de rede nacional e tem grande audiência, você tem a responsabilidade de informar, não de condenar – isso deve ser feito pela Justiça. Então, fica a pergunta: será que você, enquanto ser humano e profissional, sustenta princípios e valores condizentes com a nossa sociedade ao deixar tão claro o preconceito com as classes sociais mais baixas? Atenciosamente, recuperandos do regime fechado da APAC masculina de São João Del Rei.
28. A ESTRELA
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Política
São João Del Rei, 25 de Agosto de 2016
ELEIÇÕES 2016 O
candidato à prefeitura de São João Del Rei (MG) Dione Boladão, do Partido Doidão (33), esteve em campanha na APAC em agosto. Ele foi ovacionado quando prometeu instalar banheiras de hidromassagem nas celas e garantir saídas temporárias para que
EXCLUSIVO
todos possam ir a estádios de futebol assistir às finais de campeonato dos seus times. Ele disse, ainda, que vai providenciar Chandon e caviar para todos os presos. O vídeo exclusivo do comício pode ser conferido em nossa página www.projetovoz.com.
“Ele disse, ainda, que vai providenciar Chandon e caviar para todos os presos.”
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30. A ESTRELA
BASTIDORES
O QUE NINGUÉM JAMAIS VERÁ Q UE M V IU DE F OR A , viu homens entrevistando, fotografando, escreven-
do, filmando, encenando. Viu uma diretoria que confiou totalmente em nós. Viu homens sentenciados a privação de liberdade saindo da unidade prisional com câmeras nos pescoços. Viu esses mesmos homens parados na rodovia fotografando. Mas foi mais, foi muito mais do que isso. Foi eles se emocionando por serem cumprimentados pelos motoristas da rodovia, que não sabiam ser eles presos e os viam apenas como homens. Foi eles voltando a sonhar ou a temer porque sentiram um cheiro do qual não se lembravam mais.
Quem viu de fora, viu trocas de palavras, de sorrisos, de lágrimas. Viu abraços de parabenização, de carinho e de consolo. Viu mesas divididas nas refeições, viu sessão de cinema em unidade prisional. Mas foi mais, foi muito mais do que isso. A cada vez que alguém nos confiava um trecho da sua história e dos seus sonhos, nos sentíamos mais próximos. A cada vez que alguém se emocionava por conseguir cumprir uma tarefa com louvor, nos sentíamos todos vitoriosos. A cada nova ideia, uma nova força-tarefa para cumpri-la. Uma de nós estava gripada. Um recuperando avisou alguém da horta, que colheu as ervas e mandou para alguém da cozinha, que fez um chá e pediu para outro entregar. Outro de nós estava muito cansado. Emprestaram a ele a toalha, o chuveiro, a cama e até o perfume. Um recuperando nos ensinou os sinais de mão que deveríamos fazer para entrar “no bonde”. Outro nos chamou de “vida loka”. Outro explicou o truque da fila mais rápida do almoço. E assim se seguiu a semana. Até que em algum momento das mais de 12 horas de convivência diárias, não existia mais “um de nós” ou “um deles”. Éramos um só grupo. Sentíamos angústia com os medos uns dos outros, torcíamos pelos sonhos dos colegas, nos emocionávamos com suas histórias. “Montinho neles!”, gritou um dos recuperandos pouco antes de sentirmos vários deles pulando sobre nós no dia em que fomos embora. Já éramos amigos. Quem viu de fora, viu muita coisa. Quem viu esta revista, viu muita coisa. Mas só quem viveu o processo de criação desta A ESTRELA levará sempre as lembranças dessa que, para muitos de nós, foi a semana mais intensa de nossas vidas.
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