E D I Ç Ã O 0 2 . APAC RIO PIRACICABA
SEXO FRÁGIL
/EDITORIAL
O ano que começou com tragédia. Ninguém vai conseguir tirar de 2017 a marca do massacre em uma unidade prisional no primeiro dia do ano. Outras rebeliões se seguiram. Vozes de ódio se levantaram contra aqueles que cumprem suas penas, mas nenhuma delas foi capaz de abafar o óbvio: há algo de errado com aquilo que chamamos de “justiça” e representamos com uma senhora de olhos vendados. Foi nesse contexto que chegamos à APAC de Rio Piracicaba para produzir este número da revista A ESTRELA. Pela primeira vez, contaríamos com uma turma de mulheres. Elas, que cumprem pena longe de casa porque não há unidades suficientes para permitir a proximidade com as famílias. Elas, que acabam abandonadas pelos companheiros que antes já visitaram sob chuva ou sob sol em outros presídios. Elas, que se preocupam com os filhos do lado de fora e sabem que são tão negligenciados por toda a sociedade como elas próprias foram e ainda são. Elas, que um dia foram violentadas, agredidas, negadas. E ainda são. Elas que (dizem) são o sexo frágil se mostraram fortes. Enfrentaram temas que nenhum participante deste trabalho já tinha encarado. Buscaram em suas memórias as suas mais profundas dores. Questionaram o que tantos querem tornar natural. Mostraram sua solidariedade com os rebelados dos presídios. Apontaram hipocrisias. Elas que (dizem) são competitivas, superaram suas diferenças para trabalhar em equipe. Deixaram de lado suas vaidades para evidenciar, com suas maquiagens e habilidades, as belezas de outras mulheres. Elas, de quem pouco se espera, fizeram mais do que qualquer um já fez antes nesta revista.
REALIZAÇÃO
FOTO DE CAPA
Nitro
Diogo Droschi
Cinco kits de câmeras para muitas fotógrafas: ficou difícil saber a autoria da imagem da capa. Mas com certeza foi uma delas: Angellys Carla Pavione, Débora Camila de Andrade, Graziela Magdala dos Santos, Jessika Francisca Gonçalves, Jhenifer Graciele Silva, Juliana Kesly Silva, Sarah Jordana Andrade e Simone Alves Moreira
MAKING OF E SUPORTE GERAL
FOTO DE CONTRACAPA
Maria Navarro
Certamente a autora foi ou a Débora Camila de Andrade ou Jessika Francisca Gonçalves
COORDENAÇÃO, EDIÇÃO E OFICINAS
Leo Drumond Natália Martino PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO
EDIÇÃO E FINALIZAÇÃO DE CONTEÚDO AUDIOVISUAL
MARCA E LOGOTIPO DESTA EDIÇÃO
Leo Drumond Maria Navarro
Raquel Eleny dos Reis Amanda Cristina Gualberto
AUTORES
IMPRESSÃO
Amanda Cristina Gualberto Angellys Carla Pavione Débora Camila de Andrade Eloisa Aparecida Batista Franciele Aparecida Moreira Gláucia Silva Gomes Graziela Magdala dos Santos Jessika Francisca Gonçalves Jhenifer Graciele Silva Juliana Kesly Silva Lilian Pedrosa Silva Marileia Pereira da Cruz Raquel Eleny dos Reis Sara Amorim Sarah Jordana Andrade Shirlene de Fátima Soares Simone Alves Moreira
Rona Editora TIRAGEM
1.000 AGRADECIMENTOS
Ao Rumos Itaú Cultural, por viabilizar este trabalho; À APAC de Rio Piracicaba, por permitir a nossa presença às vezes tão barulhenta dentro da unidade; À FBAC, em especial a Eleni Andrade e Valdeci Ferreira, por nos indicar os caminhos e nos dar o suporte necessário para cada nova edição desta revista; Às recuperandas Fabíola Vitorino e Elaine Pereira, que inicialmente não queriam participar do trabalho e depois se deixaram envolver e ajudaram de forma essencial na produção de cada pauta; Às recuperandas Cintia Profeta, Dieula dos Santos, Ernanda de Souza, Fernanda da Cruz, Janete Romualdo, Ketlen Maria Xavier, Margarete de Oliveira, Natacha Gonçalves, Rosimeire da Silva, Simone Aparecida Amaral e Tatiane Lima, que chegaram à APAC no meio deste trabalho e, no lugar de desconfiarem de nós, se entregaram, ajudaram, contaram suas histórias e participaram de várias das atividades. Ao músico João Antunes, por ajudar com os instrumentos rítmicos da marchinha “Algema nele”.
BORBOLETA PRETA P. 4
FALTAM PRISÕES OU SOBRAM PRESOS? P. 18
CADÊ A MINHA MÃE? P. 6
ESCRAVAS DO CRACK P. 20
POR AMOR P. 8
HOMEM NÃO MARCHA COM MULHER P. 22
SEMENTES DE ÓDIO P. 9
VERSÕES P. 24
LÁGRIMAS P. 10
GARIMPO P. 26
ALGEMA NELE P. 14
CORRESPONDÊNCIA
VIDA DEPOIS DA PRISÃO P. 16
PORQUE EU? P. 29
P. 28
LIMITES ROMPIDOS P. 31
BORBOLETA PRETA
N A S C I N O R I O D E J A NE IR O , no Meier. Morava com
uma mulher que se dizia minha mãe, mas, dela, só tenho as piores lembranças. Um dia, ela saiu para comprar leite. Eu me lembro como se fosse hoje. Chovia muito e uma borboleta preta enorme entrou em casa. Foi quando minha pequena e linda irmã Lorraine começou a chorar muito. Sem parar. Era época de futebol e meu padrasto, irritado, mandou que ela calasse a boca. Como ela não obedecia, o desgraçado pegou um caibro e começou a bater nela. Fiquei com medo e me escondi debaixo do sofá. Lá de baixo, eu só via sangue e pedaços de corpo caindo no chão. Minha pequena e linda irmã tinha apenas 1 ano e 8 meses de idade. O caixão precisou ser fechado e ninguém pôde nem se despedir. Outro irmão, minha mãe doou. Ele se tornou um grande homem e hoje é da Marinha do Brasil. Eu e os outros filhos fomos todos maltratados. Para mim, ela dizia que o dia mais infeliz da vida dela foi quando eu nasci. Quando eu tinha 11 anos, ela colocou outro desgraçado para dentro. Ele só bebia, cheirava e batia na minha mãe e em nós. Um dia, o gigolô começou a abusar sexualmente de mim. Falei com 4. A ESTRELA
texto:
Angellys Carla Pavione, Graziela Magdala dos Santos e Simone Alves Moreira
fotos:
Amanda Gualberto, Gláucia Silva Gomes, Marileia Pereira da Cruz e Simone Alves Moreira
a minha mãe e ela me chamou de vagabunda, disse que eu me oferecia para o homem dela. Foram três anos assim até eu sair de casa e ir morar na rua. Passei fome e frio, peguei muita chuva e fui muito humilhada por dois anos. Engravidei e tive que voltar para o inferno. Não aguentei muito e sai de casa de novo. Pedi ajuda para o primeiro homem que vi na frente. Minha filha tinha nascido só há cinco dias. Ele me acolheu, mas não de graça: tive que ser a mulher dele. Ele me bateu, me humilhou, tudo outra vez. Ele também bebia e cheirava muito pó. Fiquei com ele dois anos. Fugi e acabei em uma casa abandonada, sem porta nem janela. Pouco tempo depois descobri que estava grávida daquele homem. E eu só tinha 16 anos. Assim, entrei no crime. Virei “mula”1. Fui presa. As marcas da minha história estão no meu corpo, na minha mente e no meu coração. As angústias me corroem todos os dias. O perdão não existe em mim. [Texto baseado na história de Graziela Magdala dos Santos]
Mula: quem transporta a droga
1
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CADÊ A MINHA MÃE? texto:
fotos:
Sarah Jordana Andrade com colaboração de Lilian Pedrosa Silva e Juliana Kesly Silva Angellys Carla Pavione, Débora Camila de Andrade, Graziela Magdala dos Santos e Jhenifer Graciele Silva
J U L I A N A D O R MI A quando foi acordada por seu filho mais velho
dizendo que a casa estava cercada por policiais. Ela se levantou e, de tão nervosa, fez xixi nas calças. Ao mesmo tempo, em um bairro próximo, Lilian foi surpreendida enquanto amamentava seu filho de apenas dois meses. O mesmo acontecia com Jordana, nessa época foragida, que dava mamadeira para seu bebê de quatro meses. Enquanto todas elas estavam prestes a serem presas, Sarah vivia o oposto. Saía da cadeia e ia ao encontro do seu filho. Mas ele não a reconheceu. Aos nove anos de idade, não a via há mais de dois anos. Só depois de alguns dias, ele perguntou: “mãe, onde você estava esse tempo todo?”. “Você ainda é muito novo, filho, não é hora de falar disso”, foi a resposta dela.
6. A ESTRELA
Os três filhos de Juliana entraram para o quarto chorando. Lilian se agarrou ao seu bebê enquanto pôde, mas logo após o depoimento ao delegado precisou entregá-lo a uma tia. Foi o momento mais doloroso, sentia que não o veria por um bom tempo. Jordana pediu piedade ao policial: “me deixa fugir?”. Ele não permitiu e ela foi ao banheiro onde seu filho mais velho tomava banho: “você sabia que a polícia viria um dia, né? Eles estão aqui agora e eu tenho que ir”. Juliana foi levada algemada para a viatura. O mais difícil foi ouvir coisas como “mas, mãe, quem vai levar a gente para a escola?”. “Deus está com vocês” - foi o que Juliana disse aos seus filhos enquanto era colocada na viatura. É o que ela repete para eles há um ano e cinco meses a cada telefonema. Lilian também enfrentou uma pergunta difícil, dois meses depois de ser presa, na primeira visita da sua filha mais velha, de apenas 4 anos: “mamãe, porque você fez coisa errada?”. O filho de Jordana saiu do banho e não perguntou nada. Quando ela foi levada, ele sumiu. A avó o encontrou no quarto. De joelhos, com o terço nas mãos, pedia a Deus pela vida da mãe. Dois anos fora da cadeia e Sarah precisou voltar ao presídio para visitar o marido. Levou o filho. Ainda nem tinham entrado, quando ele perguntou: “era aqui que você estava, né mãe?”. Ela respondeu que sim. “Agora é a hora certa de contar?”, ele perguntou. Teve que ser. [ Texto baseado nas histórias das autoras] – Imagens meramente ilustrativas
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POR AMOR texto:
Débora Camila de Andrade e Marileia Pereira da Cruz
fotos:
Débora Camila de Andrade
Aos 18 anos, conheceu o seu primeiro amor. Amor bandido. Não demorou muito. Ele, preso. Pena: 108 anos. Ela, guerreira, nunca o abandonou. As visitas, pelo vidro da penitenciária de segurança máxima. Sofrimento. Um pedido: vá viver sua vida. Acatou. O amor teve que ser transformado em amizade. Segundo amor. Mar de rosas. Até aparecerem os ciúmes doentios dele. Matá-lo teria sido a melhor solução. Não teve coragem. Retorno à casa dos pais. O pai, tenente. Ensinou a atirar. Não imaginava como a lição seria usada. Terceiro relacionamento. Brigas. Traição. Sangue nas mãos. Ninguém nunca descobriu. Mas ela “caiu” assim mesmo. Tráfico. Prisão. Terror. Arrependimento. Transformação. [Texto baseado na história de Sara Amorim]
8. A ESTRELA
Corredor de celas. Revista, procedimento. 70 presas. Agentes masculinos e femininos. A ordem é tirar a roupa e agachar. Não, não tiro. Spray de pimenta. Cassetete. Não tiro. Algemas. Segue pro pátio. Sol escaldante. Comida? Não. Água? Não. Spray de pimenta? Sim.
SEMENTES DE ÓDIO
texto:
Sarah Jordana Andrade com a colaboração de Amanda Gualberto e Jhenifer Graciele Silva
Diariamente, presídios, penitenciárias e delegacias são cenários de agressões físicas e psicológicas. Por isso, a chegada à APAC é tão surpreendente. Aqui, cenas vividas por algumas de nós.
Chega a noite, cela de castigo. Roupas arrancadas. Pés e mãos algemados para trás. Colchão retirado. Fome, sede, dores. Ódio. * Interrogatório. A delegada loira, bonita. Saltos altíssimos. “Onde eles estão?” Sem resposta. “Pendurem!”, ordena. O corpo suspenso pelas algemas. Nú. Na cabeça, uma sacola. Os pés tentando tocar o chão. Banho de água gelada. Choque. Raiva, humilhação.
Ódio. *
Socos nas costas. Palavras de humilhação. Empurrões, puxões nos cabelos.
Ódio. Comida? Estragada. Água? Suja. Visita? Humilhada. Nome? Virou número. Espaço? Não tem.
Ódio
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LÁGRIMAS texto:
Sara Amorim com colaboração de Amanda Gualberto
fotos:
Angellys Carla Pavione, Débora Camila de Andrade, Franciele Aparecida Moreira, Marileia Pereira da Cruz, Sara Amorim, Sarah Jordana Andrade e Shirlene de Fátima Soares
1
C E R E S P IPAT IN G A , 26 D E J A NE IR O .
10h50, onze detentas prontas para o bonde2. Um Pálio Weekend Getap, uma Hilux. Quatro policiais militares. Oito detentas atrás de um dos carros. Muito calor, pouco espaço. Presa passa mal. Vômito, urina e suor. Duas horas de viagem. Carro abafado. Mais calor, mais suor. O cheiro? Sufocante. Chegada na Apac. Corpos cansados da estrada, dos maus-tratos. O Infopen3 não interessa, serão chamadas pelo nome. Procedimento4? Nunca mais. Vem o choro de alívio.
10. A ESTRELA
Vermelhão5? “Aquilo é quente e tem um cheiro horrível”. Mesmo assim, Margarete se recusa a trocar de roupa. “Não visto essas coisas de mulher”. Ganha outras peças. Mais choro. Entrada no regime fechado. Receios, dúvidas. Reencontros, alívio. Lágrimas. Hora do almoço. Pratos de vidro, garfo e faca. Comida da Dona Quitéria6. “Parece que estamos em casa”. Choro de alegria. Janete vai falar com os filhos pelo telefone. Primeira vez em mais de um ano. Choro. Simone descobre que as visitas não passam por revista íntima. O filho vai poder visitá-la. Choro.
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Margarete não terá a mesma sorte. A única filha, de 17 anos, morreu há alguns meses. Assassinada pelo namorado. 1
Ceresp: Centro de Remanejamento do Sistema Prisional. São lugares precários construídos para abrigar temporariamente pessoas privadas de liberdade. Diante da falta de vagas do sistema, acabam abrigando detentos por anos.
2
Bonde: transferência
3
Infopen: Informações Penitenciárias, número pelos quais as presas são identificadas. Nas unidades prisionais maiores, elas são tratadas por esses números, não por seus nomes.
4
Procedimento: revistas às quais as presas são submetidas a cada vez que saem de um ambiente para o outro (da cela para o pátio do banho de sol, por exemplo)
5
Vermelhão: forma como as internas se referem ao uniforme vermelho utilizado no sistema prisional.
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Dona Quitéria: interna responsável pela comida na APAC de Rio Piracicaba.
Choro – mas esse não é de alegria. Hora do lanche – e do cigarro. No Ceresp, proibido. A solução: fumar casca de maçã. Ou folha de eucalipto. Ou teia de aranha. Tatiane se depara com o espelho. Magra, mal cuidada. “Que mancha é essa no meu rosto? E esse cabelo? Eu era cabeleireira antes de ser presa! O que aconteceu comigo?” Gilete queimado e as cinzas viravam lápis de olhos. A embalagem de absorvente pressionada sobre o rosto virava cor. Era a maquiagem no Ceresp. Primeiro dia de APAC. Colegas emprestam maquiagem de verdade, visitantes tiram fotos. A mulher está de volta. O crime? Ficou lá fora.
12. A ESTRELA
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ALGEMA NELE composição:
fotos:
Amanda Gualberto, Marileia Pereira da Cruz, Sara Amorim e Simone Alves Moreira Angellys Carla Pavione, Débora Camila de Andrade, Graziela Magdala dos Santos, Jessika Francisca Gonçalves, Jhenifer Graciele Silva, Juliana Kesly Silva, Sarah Jordana Andrade e Simone Alves Moreira
M A R C HINH A D E C A R N AVA L com recado especial para
Bruno Júlio, ex-secretário da juventude do Governo Federal, que afirmou, sobre as rebeliões sangrentas em várias unidades prisionais do país em janeiro deste ano, que “tinha que fazer uma chacina por semana”. Vídeo disponível no site www.projetovoz.com
14. A ESTRELA
Bruno pensa que o preso é lixo, o preso não é lixo não Por causa de tanto descaso, Revoltado faz rebelião.
O governo não acredita na nossa recuperação. Falta verba, falta emprego, e o crime não acaba não.
Bota a algema nele. Bota a algema nele.
Aí irmão, se liga, não adianta matar preso não. Preso tem filho e família e tem no peito um coração.
E D I Ç Ã O 0 2 . A PA C R I O P I R A C I C A B A . 1 5
Patrícia de Moura Silva
: AT E N Ç Ã O CONTÉM IR O N IA
C U R R I C U L U M
V I T A E
Rua Vitória Regia, 970, Bairro Peroba, João Monlevade/ MG
DA D O S PE S S OA I S
F OR M AÇ ÃO
Data de nascimento: 15/03/1987 Idade: 29 anos Estado Civil: amaziada Naturalidade: João Monlevade/ MG Ensino Médio incompleto Escola Estadual Luiz Prisco de Braga
CURSOS C OM PL E M E N TA R E S
Embalagem e distribuição de pedra e cocaína Local: Boca de fumo do bairro Peroba Análise de dados para estelionato Local: sigiloso Artesanato de armas Local: Presídio Feminino José Abranches Gonçalves
VIDA DEPOIS DA PRISÃO texto:
fotos:
Recepcionista de eventos Local: APAC Rio Piracicaba Costura e artesanato Local: Centro de Remanejamento do Sistema Prisional (Ceresp) Ipatinga E X PE R I Ê NCI A S PROF I S SION A I S
- Comerciante de entorpecentes ilícitos - Vendedora de documentos falsos - Cozinheira
Débora Camila de Andrade, Gláucia Silva Gomes, Graziela Magdala dos Santos, Jhenifer Graciele Silva, Jessika Francisca Gonçalves Angellys Carla Pavione, Débora Camila de Andrade e Marileia Pereira da Cruz
C A RTA
DE
A PR ESEN TAÇ ÃO
Prezado Senhor diretor Michael Mether, venho através desta carta, que encaminho com o meu currículo, pedir que considere minha candidatura à vaga aberta na Teksid. Sei que não tenho experiência no ramo, mas aprendo rápido e preciso muito deste emprego. Saí da cadeia há quatro meses, ainda moro “de favor” e estou necessitada de muitas coisas. Cometi erros, mas já paguei por eles. O que me levou ao crime foi exatamente a falta de oportunidades. Várias vezes pedi serviço e muitas pessoas fecharam as portas para mim. Espero que o senhor não faça o mesmo para eu não ter que abrir as portas do crime de novo. Só posso mostrar minha capacidade na prática e preciso da sua confiança. Caso leia esta carta e me dê uma oportunidade, vou fazer jus à chance que me der. Repito: errei, mas já paguei. Por favor, não seja mais um a me discriminar. Desde já, agradeço, Patrícia Silva.
16. A ESTRELA
E D I Ç Ã O 0 2 . A PA C R I O P I R A C I C A B A . 1 7
FALTAM. PRISÕES. OU.SOBRAM. PRESOS?. texto:
Amanda Gualberto
fotos:
Angellys Carla Pavione, Juliana Kesly Silva e Simone Alves Moreira
18. A ESTRELA
A L E I D E D R O G A S , de 2006, acaba com a prisão de usuários
e aumenta a pena para traficantes. Mas o que define um traficante*? A quantidade de drogas apreendida? A classe social? A aparência física? E se ele estiver de terno? Pode ser enquadrado como traficante? Os antecedentes criminais? Mas e se sua dívida com a Justiça já estiver paga? É justo condená-lo pelo que fez no passado? Os familiares dos presos podem ser testemunhas da defesa? Não? E os policiais que prenderam podem ser testemunhas da acusação? Sim? Um ex-traficante pode viver uma vida honesta? Será que é possível mudar de vida? E se ele te pedisse emprego, você daria? Será que prender vendedor de “dolinha”** vai acabar com o tráfico?
* A lei não define diferenças objetivas entre usuários e traficantes. Desde a sua publicação, o número de suspeitos enquadrados no tráfico subiu em mais de 300%. ** Dolinhas: pequenas quantidades de maconha E D I Ç Ã O 0 2 . A PA C R I O P I R A C I C A B A . 1 9
20. A ESTRELA
Débora Camila de Andrade
fotos:
que restava, mas, aos 17 anos, foi assassinada pelo namorado. Isso aconteceu há alguns meses. Margarete Martins, 38 anos, ainda chora. Está sozinha. Quer abandonar a vida do crime, mas quando o alvará de soltura chegou, em fevereiro, não tinha para onde ir. Acabou em um albergue em Ipatinga, onde voltou a fumar crack. Roubava para sustentar o vício. Perdeu a filha e, 18 dias depois, já estava presa de novo. Já tem o direito a progressão de regime, vai para o semiaberto e poderá ficar sete dias do lado de fora das grades. Ela tem medo: ainda não tem para onde ir.
N ÃO T E M FA MÍL I A . A filha, Mênia, era a única pessoa
Amanda Gualberto
texto:
Teve vários relacionamentos que não deram certo e, por isso, entregou os filhos: dois estão com a avó e dois com o pai. Foi presa e sentenciada três vezes por 157 (roubo) e 33 (tráfico de drogas). Entrou no crime por curiosidade, por querer dinheiro para comprar de tudo, mas o que era curtição virou um vício incontrolável. A verdade é que nunca buscou outro caminho, mas agora é diferente. Está presa há 1 ano e 10 meses e soube que o filho, de 15 anos, está profundamente envolvido com o crime. Não quer isso pra ele. Ela quer recuperá-lo, mas não sabe como recomeçar a vida.
A O S 15 A N O S D E ID A D E , Dieula Alves, hoje com 30 anos, já estava envolvida com crack e com prostituição.
ESCRAVAS DO CRACK
E D I Ç Ã O 0 2 . A PA C R I O P I R A C I C A B A . 2 1
de. Desde então, Natacha Gonçalvez, de 25 anos, não conseguiu mais se libertar do vício. Foi presa como traficante enquanto fazia “um corre” em troca de uma pedra. Tem um total de 11 anos e 2 meses de sentença e tudo que sonha é sair da cadeia, se casar de verdade, ter outro filho para ela cuidar e se reaproximar dos quatro que ainda estão vivos. Quer mostrar para família que é capaz de mudar de vida. Não sabe, porém, se terá essa oportunidade.
F U M O U C R A C K pela primeira vez aos 14 anos de ida-
HOMEM NÃO MARCHA COM MULHER texto:
fotos:
Raquel Eleny dos Reis com a colaboração de Eloisa Aparecida Batista, Franciele Aparecida Moreira e Shirlene de Fátima Soares Amanda Gualberto, Franciele Aparecida Moreira, Gláucia Silva Gomes, Graciele Silva, Jessika Francisca Gonçalves, Jhenifer Graciele Silva e Sara Amorim
22. A ESTRELA
M I N H A V I D A E R A D E O S T E N TA Ç Ã O . Fazia o que queria, não precisava me
preocupar com nada, principalmente com dinheiro. Mas eu marchava com ele. Por um ano eu fui ao presídio todo fim de semana, não faltei a nenhuma visita íntima. Era sol ou chuva, eu estava lá. Eu usufruía de uma boa vida enquanto ele estava preso, é verdade, mas nunca deixei que faltasse nada para ele. Nem mesmo drogas ou celulares. Não deixava faltar nada mesmo, para tudo eu dava um jeito. Até que essa “vida boa” me rendeu uma sentença alta. 17 anos e seis meses. Ele me mandava cartas. Eram cheias de mentiras, mas eu acreditava. Por isso foi um choque quando a amante dele acabou presa no mesmo lugar onde eu estava há cinco meses. Ela rodou levando drogas para ele no presídio. Meu chão desabou. Não acreditava que ele teria coragem de fazer isso comigo. Doeu muito, muito mesmo. Como se não bastasse eu estar presa, ele ainda teve que esfregar a amante na minha cara. Eu queria esganá-la. Não tive essa oportunidade, ela não estava na mesma cela que eu. O que eu fiz foi escrever uma carta para ele terminando tudo. O abusado me respondeu: “não fica assim, amor, quando eu sair te explico tudo e você vai entender”. Entender o que? Foi assim que acabou um casamento de dez anos. [ Texto baseado na história de Raquel Eleny dos Reis]
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VERSÕES
texto:
Jessika Francisca Gonçalves com colaboração de Angellys Carla Pavione , Jhenifer Graciele Silva, Juliana Kesly Silva e Raquel Eleny dos Reis
fotos:
Jhenifer Graciele Silva
F O I U M A C E N A M A R C A N T E . Eles estavam com mandato para fazer
busca na casa de baixo. Como não acharam ninguém, chutaram nosso portão, que estava só encostado, e entraram. Chutaram a porta do quarto da minha mãe e começaram a bater nela. Outros policiais da (Polícia) Civil vieram para o meu quarto e apontaram uma pistola para a minha cabeça. Eu estava na cama com meu filho de um aninho e meu ex-namorado. Depois, eles colocaram a gente na cozinha. Mandaram meu ex deitar e, com os pés na cabeça dele, um policial perguntava onde estava a droga. Nesse dia, levaram minha mãe, meu padrasto, meu irmão e meu ex-namorado. A delegada me ameaçou e disse que iria voltar para me buscar. Foi essa a única vez em que estive frente a frente com uma delegada. Seis meses depois, na audiência judicial, a família inteira foi inocentada. Hoje, de novo, estive com um delegado, desta vez o responsável pelas comarcas de Rio Piracicaba e João Monlevade, Alberto Gomes Vieira. Fui recebida com muita educação e ele respondeu a todas as minhas perguntas. Fiquei satisfeita com as respostas, que me pareceram sinceras apesar de serem diferentes do que eu já vivi e vi em prisões. 24. A ESTRELA
Como o senhor avalia a mudança de administração dos presídios, antes feita pela Polícia Civil e hoje responsabilidade de agentes penitenciários? Acho que só melhorou. A Polícia não tem material humano e estrutura para, além das suas funções, administrar presídios. E o senhor considera que o tratamento dos presos melhorou? Não posso afirmar porque nunca trabalhei em cadeias ou presídios. Qual a prioridade para combater a violência? Hoje todos os crimes, de forma geral, estão ligados ao tráfico, esse acaba sempre sendo o pano de fundo. O senhor acredita na afirmação de que muitos usuários de drogas estão sendo presos como traficantes? Não. Hoje o que acontece na prática é o contrário. O traficante se passa por usuário. Na nossa realidade, lá na unidade, a gente vê muitos usuários enquadrados como traficantes. Alguns usuários, para sustentar o vício, acabam praticando uma das mais de vinte condutas que caracterizam o tráfico. Se, em troca da droga, ele transporta para o outro lado da rua para entregar para outra pessoa, por exemplo, ele está praticando um ato que é típico do tráfico. Ele pode até ser usuário e não traficante, mas a sua conduta se encaixa no tráfico. A Polícia Civil tem estrutura suficiente para investigar casos de crimes violentos, como homicídios? A estrutura é precária, mas aqui na região nosso índice de apuração é de praticamente 100%, mesmo com todas as dificuldades. Quais dificuldades? A principal é falta de pessoal, mas tem também o excesso de burocracia. Sempre temos que prestar contas, é muita planilha, relatório, papel. Qual é o procedimento adequado para cumprir mandatos judiciais? O procedimento legal é chamar as pessoas e se identificar antes de cumprir a diligência. Mas há muitos relatos de abusos... Eu não sei porque não gosto de ir, fui só em dois ou três. Mas qualquer violência durante o cumprimento de mandatos é errada, inconstitucional, ilegal. É preciso cumprir as diligências sem abusos. Também existem denúncias de violência em interrogatórios policiais. O senhor acredita que isso acontece? Acredito sim, no âmbito do país, de outros estados. Aqui na região eu nunca ouvi falar. Mas sabemos que em outros lugares, estados do norte e nordeste por exemplo, pode acontecer. Lá a cultura é mais retrógrada. Há alguma solução para a violência no Brasil? O Brasil não tem solução para nada, quem dirá para a violência! O que o senhor acha do método APAC? É uma das poucas boas coisas que existem no Brasil. Se os governos tivessem a vontade real, efetiva, de ressocializar as pessoas que cometeram atos ilícitos, investiria no método. Se o senhor tivesse um filho e ele pudesse ser enquadrado em algum artigo do Código Penal, agiria com ele da mesma forma que age com a gente? Hoje eu digo que sim, mas não tenho filhos e todos dizem que a gente só sabe quando tem. Então não sei. E D I Ç Ã O 0 2 . A PA C R I O P I R A C I C A B A . 2 5
GARIMPO
texto:
Amanda Gualberto
fotos:
Angellys Carla Pavione, Débora Camila de Andrade, Eloisa Aparecida Batista, Jhenifer Graciele Silva, Marileia Pereira da Cruz e Shirlene de Fátima Soares
DE PONTO A PONTO F O I A I N D A N A I N FÂ N C I A , en-
quanto observava suas primas, que Amanda aprendeu a bordar em ponto cruz. Gosta de desenhar flores e borboletas e as cores preferidas são verde e rosa. Consegue se manter hoje com seus bordados e aguarda ansiosa a liberdade, que deve chegar em outubro deste ano. Quando o dia chegar, quer abrir um salão de beleza e usar outras habilidades aprendidas muito cedo, aos 13 anos de idade: manicure e cabeleireira.
CUIDADOS S IM O N E A M A F L O R E S e plan-
tas. Cuida não só regando, mas também conversando. Dá bom dia às plantas da APAC todos os dias. Acaba de construir uma horta suspensa, onde pretende criar hortaliças e ervas medicinais. Quando acabar sua pena, quer continuar cuidando: dos filhos e dos netos.
TRAÇOS E L A J Á D E S E N H AVA ,mas foi
na cadeia que aperfeiçoou os traços. Trocava seus desenhos pelos itens que precisava na prisão. Cíntia gosta de desenhar rostos, paisagens e flores. Mas o que quer mesmo é ser soldadora. Já fez o curso e espera ter uma oportunidade quando voltar para as ruas.
26. A ESTRELA
BOA ALUNA E R A V E N D E D O R A de roupa e,
quando foi presa, aprendeu com uma companheira de cela a fazer crochê. Superou a professora e aprendeu não só a copiar desenhos, mas também a criá-los. Hoje, faz com amor seus trabalhos e se sustenta com a venda dos tapetes, bolsas e roupas. Pretende sempre fazer esses artesanatos, mas quer que um dia isso seja diversão enquanto estuda medicina.
É BONITO M A NICUR E e cabeleireira desde
os 13 anos de idade, Jhenifer, hoje aos 22 anos, cuida da beleza de todas as recuperandas do regime semiaberto da APAC Rio Piracicaba. Ela, que já trabalhou em vários salões de beleza na Grande BH, ama o que faz. De decorações nas unhas a cortes modernos nas madeixas, ela faz de tudo. Está presa há três anos e quando conquistar sua tão sonhada liberdade, pretende continuar se divertindo com unhas e cabelos.
LETRAS C A B E L E R E IR A e dona de casa
antes de ser presa, há 3 anos e 5 meses, Mariléia sempre gostou de fazer música, poesia e teatro. Na APAC, está investindo no talento e já montou vários roteiros. É uma das autoras da marchinha “Algema Nele”, reproduzida nesta revista. Mãe de quatro filhos, pretende recomeçar quando voltar à liberdade. O sonho é ter um restaurante.
E D I Ç Ã O 0 2 . A PA C R I O P I R A C I C A B A . 2 7
CORRESPONDÊNCIA
28. A ESTRELA
UM RECADO PARA OS PRESOS REBELADOS DO PAÍS
PORQUE EU? texto: foto:
Sarah Jordana Andrade
Franciele Aparecida Moreira
DE U S T E M UM P R OP ÓSI T O na vida de cada pessoa.
Cumprir pena com dignidade, como ser humano, foi a graça que Ele me concedeu. Busquei com muita oração, sacrifício e obediência. A APAC é para todos, mas, infelizmente, a população prisional é muito maior do que o número de APACs. Femininas são apenas seis, todas em Minas Gerais. E porque logo eu estou aqui e não nos tantos presídios e penitenciárias superlotados? Minhas lágrimas foram colhidas, as orações da minha mãe, filhos e amigos foram atendidas. Estou na APAC porque o propósito de Deus se cumpriu em minha vida. E, hoje, peço a Deus para que esta oportunidade chegue a todas que estão em sofrimento no sistema comum.
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30. A ESTRELA
BASTIDORES
LIMITES ROMPIDOS P O U C O M A I S D E 3 0 M U L HE R E S ocupavam os regimes fechado e se-
miaberto da APAC de Rio Piracicaba quando chegamos. Número de internas bem menor do que o das primeiras unidades visitadas por essa equipe. Das vinte que começaram o curso, muitas precisavam se ausentar vez ou outra para cumprir suas tarefas internas, fosse vigiar a portaria ou servir a comida. O espaço, pequeno. Menor, muito menor do que os cenários em que produzimos as edições anteriores. Também menos diverso. Nenhuma oficina, pouco além de celas e um pequeno pátio. O desafio de produzir material para toda a revista, sem dúvida, seria maior. Foi dada a largada. Nas aulas, muita coisa a ser dita, muitas vozes simultâneas. “Gente, uma de cada vez, por favor”. Nas pautas, a força
de quem resolveu olhar de frente para as dores que a vida ofereceu. “Quer um copo d’água para se acalmar?”. No trabalho, a criatividade que o espaço não conseguiu limitar. “Quem faz as fantasias?”. Quem antes torcia o nariz (“ninguém tira foto minha, hein?”), aos poucos se rendia e se envolvia (“tenho uma roupa pra essa personagem, ajuda?”). Quando todas já se mostravam à vontade em seus novos papéis de jornalistas e fotógrafas, onze novas internas romperam com a rotina. O susto de quem chegava captou a atenção de todas, que se revezavam em explicar as novas regras, tentar aliviar as dores de feridas ainda abertas e registrar tudo. A cada conversa, uma nova sugestão de pauta. Porque jornalismo é isso: reagir às mudanças da realidade transformando-as em histórias.
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