Violência Doméstica contra Crianças eAdolescentes na Modalidade Violência Física

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Curso de Capacitação

Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes MÓDULO 1

Modalidade Violência Física



Módulo I

Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes Modalidade Violência Física

2003


Esta obra foi publicada para atender aos objetivos do Curso de Capacitação no Enfrentamento da Violência Doméstica na Infância e Adolescência e realizada através da parceria entre o Unicef – Fundo das Nações Unidas para a Infância e o CECOVI. Sua reprodução total ou parcial requer prévia autorização. Imagens: budgetstockphoto.com

Cunha, Maria Leolina Couto Módulo I do Curso de Capacitação: Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes na Modalidade Violência Física / Maria Leolina Couto Cunha: CECOVI - Centro de Combate à Violência Infantil, Unicef, 2003. .budgetstockphoto.com Projeto Gráfico: Adalberto Camargo | Studio Adalba Com. | Imagens extraídas de www www.budgetstockphoto.com

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MANUAL 1 Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes Modalidade Violência Física


Garoto é torturado pela mãe desde 8 anos. “Desejo boa sorte pra ela, mas não quero ver nunca mais”. A frase, de um garoto de 15 anos para sua mãe, pode parecer cruel, mas só pra quem não conhece a história de Osmar. Desde os 8 anos, Osmar é torturado por sua mãe, Maria Aparecida, presa desde o ano passado por maus-tratos ao filho. Maria Aparecida cravou uma chave de fenda do céu da boca de Osmar, cortou sua orelha esquerda, arrancou parte de seus dentes com alicate e, de tanto chutar seu estômago, o intestino de Osmar rompeu-se. Motivo de tanta violência: Osmar se parece com uma meiairmã, filha de seu pai fora do casamento com Maria Aparecida. Os outros três irmãos, que não se parecem com a meia-irmã, nunca foram molestados ou torturados por Maria Aparecida. (Folha de São Paulo, 09/12/1995, página 03)


SUMÁRIO

Apresentação ......................................................................... 06 Objetivos do curso ................................................................. 08 Roteiro dos módulos .............................................................. 10 Organização e Redação .......................................................... 14 Lição 1 - Mitos, história e conceituação.................................. 16 Lição 2 - Diagnóstico do fenômeno ........................................ 30 Lição 3 - Dinâmica do atendimento multidisciplinar ................. 52 Lição 4 - Por uma pedagogia não violenta ............................... 60 Lição 5 - Revendo a própria história ....................................... 70 Questionário Sondagem ......................................................... 77 Exercício de aprendizagem ..................................................... 80 Bibliografia .............................................................................. 82

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APRESENTAÇÃO

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APRESENTAÇÃO

Queremos dar as boas vindas e parabenizar a todos os alunos que, com coragem e determinação, decidiram capacitar-se num ramo de estudo tão difícil como é o da violência doméstica contra crianças e adolescentes. O problema é gravíssimo, chegando muitas vezes a produzir cenas dantescas e inacreditáveis. Geralmente os agressores são os próprios pais e parentes da criança que, movidos por uma desumanidade incomensurável, aplicam, nos pequeninos indefesos, castigos que são verdadeiras torturas. Nossa história é repleta de registros que nos mostram quão grave é este fenômeno. São casos de crianças queimadas com brasa de cigarro; confinadas por meses dentro de espaços pequenos (tais como berços e caixotes), crianças que tiveram suas mãos mergulhadas em água fervente, que foram obrigadas a sentar-se na chapa do fogão acesso ou marcadas em suas faces, braços e pernas com ferro quente, que tiveram seus dedos quebrados a marteladas, crianças espancadas até a morte ou envenenadas criminosamente. Além dos maus-tratos físicos ocorrem também casos de crianças vítimas de abuso sexual, onde às vezes a violência é tão extrema que necessitaram fazer reconstituição da vagina e ânus. A lista não tem fim. O pesadelo dessas crianças é contínuo. Elas vivem dentro de um ambiente de constante terror. São as vítimas perfeitas para seus algozes. Não sabem se defender, não têm para onde escapar, necessitam desesperadamente de ajuda. Nosso objetivo, através do curso de capacitação à distância, é sensibilizar os profissionais que atuam no sistema de garantia de direitos para a gravidade desse fenômeno, incentivando o funcionamento de redes de proteção à criança e ao adolescente vitimizados, bem como o surgimento de políticas públicas dentro de uma ótica multidisciplinar e intersetorial. Acreditamos que, ao fortalecer o referencial teórico e prático dos profissionais que lidam com o público infantil, estamos dando um passo fundamental para que haja sucesso no enfrentamento dessa questão que angustia a todos nós. Maria Leolina Couto Cunha - Coordenadora Nacional do Centro de Combate à Violência Infantil - CECOVI Patrício Fuentes - Coordenador do Escritório do Unicef para o Ceará e Rio Grande do Norte 7|


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OBJETIVOS DO CURSO

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OBJETIVOS DO CURSO

Sensibilização dos profissionais que fazem parte do Sistema de Garantia de Direitos para a gravidade do fenômeno da violência doméstica na infância e adolescência.

Incentivar o funcionamento de redes de proteção à criança e ao adolescente vitimizados a fim de que seja feito o atendimento de forma multidisciplinar e intersetorial.

Fortalecer o referencial teórico e prático dos profissionais que lidam com o público infantil para o enfrentamento do fenômeno da violência doméstica contra crianças e adolescentes.

Socializar programas exitosos na área da prevenção e do atendimento de famílias para o enfrentamento da violência doméstica contra crianças e adolescentes.

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ROTEIRO DOS MÓDULOS

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ROTEIRO DOS MÓDULOS

MÓDULO 1 Violência doméstica contra crianças e adolescentes na modalidade violência física. Lição 1 Mitos, história e conceituação do fenômeno em geral Lição 2 Diagnóstico da violência física Lição 3 Dinâmica do atendimento multidisciplinar - Postura ética Lição 4 Por uma pedagogia não violenta Lição 5 Revendo a própria história Exercício de aprendizagem Bibliografia

MÓDULO 2 Violência doméstica contra crianças e adolescentes nas modalidades abuso psicológico e negligência Lição 1 A importância de valorizar Lição 2 A importância de dar segurança Lição 3 A importância de comunicar aceitação Lição 4 A importância de cuidar e proteger Lição 5 Fases do desenvolvimento infantil Exercício de aprendizagem Bibliografia 11 |


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MÓDULO 3 Violência doméstica contra crianças e adolescentes na modalidade abuso sexual intra-familiar Lição 1 Marcos conceituais Lição 2 Principais características do incesto Lição 3 Padrões de comportamento da família incestogênica Lição 4 Conseqüências do incesto Lição 5 Superando a própria dor Lição 6 Dinâmica do atendimento multidisciplinar Exercício de aprendizagem Bibliografia

MÓDULO 4 Sistema de Garantia de Direitos Lição 1 Eixo de Promoção de Direitos Papel dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente x propostas de políticas públicas para o enfrentamento da violência doméstica na infância e adolescência Lição 2 Eixo de Defesa de Direitos Papel dos Conselhos Tutelares, Centros de Defesa e Delegacias de Polícia na apuração de crimes de violência doméstica na infância e adolescência. | 12


ROTEIRO

Papel do Ministério Público e Poder Judiciário na apuração e julgamento dos crimes de violência doméstica na infância e adolescência. Lição 3 Eixo de Controle Social Externo Papel dos Fóruns sociais. Papel e funcionamento das comissões de combate aos maus tratos nos hospitais e escolas. Exercício de aprendizagem Bibliografia

MÓDULO 5 Legislação Brasileira Lição 1 Constituição Federal x Violência Doméstica na Infância e Adolescência Lição 2 Estatuto da Criança e do Adolescente x Violência Doméstica na Infância e Adolescência Lição 3 Código Penal x Violência Doméstica na Infância e Adolescência Lição 4 Código Processo Penal x Violência Doméstica na Infância e Adolescência Lição 5 Leis Especiais x Violência Doméstica na Infância e Adolescência Exercício de aprendizagem Bibliografia

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ORGANIZAÇÃO E REDAÇÃO

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ORGANIZAÇÃO E REDAÇÃO

Da organização O Fundo das Nações Unidas para a Infância - Unicef em parceria com o Centro de Combate à Violência Infantil - CECOVI, desenvolveu uma metodologia de aprendizagem à distância cujo objetivo é capacitar profissionais que fazem parte do Sistema de Garantia de Direitos para o enfrentamento da violência doméstica contra crianças e adolescentes. O programa aborda o fenômeno da violência intrafamiliar na infância e adolescência através de seminários sensibilizadores, módulos e vídeo conferências. O presente curso consiste num projeto piloto realizado no estado do Rio Grande do Norte e que conta com a implantação e monitoramento do Centro de Combate à Violência Infantil - CECOVI e a articulação e mobilização da Secretaria da Ação Social do Estado do RN, através da Fundação Estadual da Criança e do Adolescente (FUNDAC). O modelo aqui exposto poderá ser replicado através de parcerias com governos, iniciativa privada e sociedade civil, desde que conte com autorização expressa do Unicef.

Da Redação A autora, Maria Leolina Couto Cunha é advogada, com especialização em Direito Penal pela Universidade de Mogi das Cruzes e em Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes pela Universidade de São Paulo - Instituto de Psicologia (USP/LACRI). Presidente fundadora do Centro de Combate à Violência Infantil CECOVI, onde exerce atualmente o cargo de coordenadora nacional.

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LIÇÃO 1 MITOS, HISTÓRIA E CONCEITUAÇÃO DO FENÔMENO EM GERAL


MITOS, HISTÓRIA E CONCEITUAÇÃO DO FENÔMENO EM GERAL

LIÇÃO 1

Introdução A violência contra crianças e adolescentes registrada dentro do espaço doméstico sempre contou com a condescendência da sociedade. Sua prática remonta a idade antiga e as justificativas que buscam legitimá-la estão fundamentadas em mitos e preconceitos historicamente constituídos.

Objetivo da lição Vamos estudar nesta lição uma abordagem mais geral da violência doméstica contra crianças e adolescentes, fazendo a seguinte análise: 1. Principais mitos que norteiam o fenômeno 2. História da humanidade e o tratamento dispensado às crianças e adolescentes no decorrer dos séculos 3. Questões conceituais do fenômeno, no que diz respeito à sua construção científica e ideológica.

1. PRINCIPAIS MITOS Mito da Perfeição Familiar Nossa sociedade sempre alimentou a falsa idéia de que a família é sem mácula, perfeita e harmoniosa. O conservadorismo de direita reforça esse pensamento e, escudado na privacidade do lar, impede qualquer discussão e averiguação acerca das falhas e mazelas existentes dentro do convívio doméstico.

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Os estudos de GELLES (1979) e POSTER (1979) mostram que a família nuclear é palco de toda sorte de violência, estando longe de ser um ambiente imune a contendas. Tal assertiva embasase nas diferenças de gênero (masculino e feminino) e geração próprios da composição familiar. As diferenças, quando bem administradas, enriquecem e amadurecem a convivência em família. Entretanto não podemos deixar de registrar os inúmeros conflitos decorrentes delas. A família influencia todo o ecossistema social. Se sua estrutura é saudável, o ambiente comunitário refletirá isso. Entretanto, se estiver enferma, gerará frutos nocivos causadores de grandes problemas para a comunidade em que estiver inserida. Logo é fundamental desfazer o mito da perfeição familiar e buscar desenvolver mecanismos que ajudem na administração dos conflitos domésticos. A família é sagrada, mas cheia de defeitos e falhas. Não podemos encobri-la com o manto da impunidade. A privacidade da família deve terminar sempre que existir ameaça à integridade física e emocional de seus membros.

Mito do Amor Natural dos Pais Somos levados a crer que todos os pais amam a seus filhos. Entretanto tal pensamento não passa de um mito. Na verdade o sentimento de amor materno e paterno não é natural nem incondicional. Eles devem ser gerados e desenvolvidos durante o processo de gestação e crescimento do filho, mas isso pode acabar não acontecendo. Nem todas as pessoas estão aptas a desempenharem o papel de mãe e pai. Muitas necessitariam passar por um processo de cura interior e amadurecimento a fim de poder desempenhar bem estas funções, levando adiante esta missão com a responsabilidade que lhes é exigida. | 18


MITOS, HISTÓRIA E CONCEITUAÇÃO DO FENÔMENO EM GERAL

LIÇÃO 1

Mito do Fator Econômico como Causa de Violência Doméstica É comum o pensamento de que a violência doméstica contra crianças e adolescentes está associada à família de baixa renda. Entretanto, tal convencimento não passa de um mito. Na realidade esse fenômeno é universal, presente em todas as camadas sociais, sem distinção de raça ou nível escolar. A questão está na visibilidade do fenômeno. Ele é mais palpável na classe mais pobre da sociedade e menos perceptível nas classes média e alta. Isto porque estas dispõem, para camuflar as marcas desse tipo de violência, de mecanismos mais eficazes.

Mito Religioso As igrejas de confissão cristã incorporaram em sua teologia o disciplinamento físico de crianças e adolescentes como modelo bíblico de correção. Essa linha de pensadores se escuda em alguns versículos do Antigo Testamento que incentivam a ministração da vara como método pedagógico. Desfazer esse equívoco é fundamental, já que a religião influencia profundamente a dinâmica dos relacionamentos familiares. Entretanto, quebrar esse paradigma não é nada fácil, principalmente por ser um princípio que vem sendo pregado como verdade absoluta por várias gerações de padres e pastores. É preciso analisar a questão por uma nova ótica. Na verdade o que estamos colocando em questão não é a veracidade das sagradas escrituras, mas sim a necessidade de se fazer uma reflexão sobre seu contexto histórico e cultural. A bíblia contém algumas práticas e costumes, que já não acontecem da mesma forma da época em que foram escritos. Podemos citar como exemplo do que acabamos de afirmar o apedrejamento de mulheres adúlteras, que no antigo testamento era embasado na lei e que hoje não é mais usado. 19 |


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CUNHA (2003) afirma: “ O Oriente Médio do antigo e novo testamento era composto por uma sociedade fortemente machista e adultocêntrica, em que a mulher e a criança tinham pouco valor. Isso, de certa forma, influenciou os escritores bíblicos, que muitas vezes, envolvidos diretamente com a cultura de suas épocas, deixaram transparecer seus valores e costumes em suas obras. É preciso bom senso para não interpretar a Bíblia ao pé da letra, mas levar em consideração o contexto em que ela foi escrita.” Se fizermos um estudo criterioso das sagradas escrituras, veremos que em nenhum momento o Novo Testamento respalda ou recomenda o disciplinamento físico de crianças e adolescentes. Tal constatação só reforça mais ainda o que estamos defendendo, ou seja, de que o uso da vara para bater em crianças não é um princípio divino a ser obedecido, mas sim uma prática cultural.

Mito das Estatísticas Por se tratar de um fenômeno próprio do ambiente doméstico, a violência intrafamiliar é de difícil constatação. As denúncias são raras e os números existentes não condizem com a realidade. Muitos autores comparam as estatísticas existentes apenas como uma ponta de um grande iceberg. As principais causas para a ausência de denúncias são: a) O muro de silêncio erguido pelas próprias famílias que não querem compartilhar as agressões ocorridas em sua intimidade devido ao receio de incriminar a pessoa do agressor que faz parte da composição familiar. b) O medo de represálias. c) O despreparo dos profissionais que não conseguem realizar

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MITOS, HISTÓRIA E CONCEITUAÇÃO DO FENÔMENO EM GERAL

LIÇÃO 1

um diagnóstico correto quando se deparam com uma criança ou adolescente vitimizado, seja por falta de conhecimento técnico na área ou por abrigar reticências psicológicas em suas próprias histórias de vida. A ausência de denúncias e a subseqüente precariedade de dados levam a população a crer que a violência dentro do lar, direcionada a crianças e adolescentes, não existe, ou se existe, é muito pequena e de leves proporções, não chegando a ser um problema social. Esse mito faz com que a sociedade fique alienada da sua real situação. Logo é fundamental o incentivo de campanhas que levem a população a denunciar. Entretanto só a denúncia não é suficiente. São necessárias ainda coletas sistematizadas das informações disponíveis e um estudo da evolução desse fenômeno, a fim de embasar um diagnóstico mais fidedigno sobre a questão, facilitando dessa forma a cobrança de políticas públicas na área.

Dados estatísticos x Ponta do iceberg Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes na Modalidade Física De hora em hora morre uma criança queimada, torturada ou espancada pelos próprios pais. Fonte: Unicef.

12% das 55,6 milhões de crianças brasileiras menores de 14 anos são vítimas anualmente de alguma forma de violência doméstica. Ou seja, por ano são 6,6 milhões de crianças agredidas, dando uma média de 18 mil crianças vitimizadas por dia, 750 crianças vitimizadas por hora e 12 crianças agredidas por minuto. Fonte: Sociedade Internacional de Prevenção ao Abuso e Negligência na Infância

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Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes na Modalidade Abuso Sexual O Brasil ocupa o primeiro lugar entre os países da América do Sul no número de crianças e adolescentes explorados sexualmente. No mundo, nosso país ocupa a segunda posição ficando atrás apenas da Tailândia. Pelo menos 80% das crianças e adolescentes vítimas de exploração sexual comercial foram vítimas de incesto. Fonte: Dimenstein (1996).

Nos Estados Unidos, uma em cada quatro mulheres sofreu algum tipo de abuso sexual antes de chegar aos dezoito anos. Fonte: Charam: (1997).

No Brasil, uma em cada três a quatro meninas e um em cada seis a dez meninos serão vítimas de alguma modalidade de abuso sexual até completarem dezoito anos. Em mais de 1/3 das notificações de abuso sexual, as vítimas estão dentro da faixa etária de 5 anos ou menos. Fonte: Azevedo e Guerra (2000).

75% das mães de vítimas de incesto, foram também vitimizadas. Frank (1994).

Em sua grande maioria os abusadores sexuais incestuosos são originários de famílias disfuncionais. 20% a 35% deles foram vítimas de abuso sexual quando criança e 50% vítimas de maustratos físicos combinado com abuso psicológico. 35% das famílias incestogênicas abusam de álcool, sendo o abandono e rejeição fatores sempre presentes nas relações familiares. Fonte: Marshall (1990).

Para cada caso de abuso sexual notificado há vinte que não o são. Fonte: Miller (1990).

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MITOS, HISTÓRIA E CONCEITUAÇÃO DO FENÔMENO EM GERAL

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2. HISTÓRIA DA HUMANIDADE E O TRATAMENTO DISPENSADO ÀS CRIANÇAS E ADOLESCENTES A violência doméstica na infância e adolescência está sedimentada numa relação desigual de poder. É comum as crianças serem vistas pelos adultos responsáveis legalmente por elas, não como sujeitos de direitos, mas como meros objetos de propriedade. Tal forma de agir tem se perpetuado desde o início da nossa civilização. Quando analisamos o percurso histórico da humanidade podemos constatar que a violência contra a criança e o adolescente sempre esteve presente entre nós. Segundo Lloyd deMause: “ A história da infância é um pesadelo do qual recentemente começamos a despertar. Quanto mais atrás regressamos na História, mais reduzido o nível de cuidado com as crianças, maior a probabilidade de que houvessem sido assassinadas, aterrorizadas e abusadas sexualmente” (deMAUSE (1975)

Para entendermos o quadro de violência intrafamiliar contra a criança e o adolescente na atualidade é preciso compreendermos a forma de pensar e agir de nossos antepassados. Esse fenômeno destaca-se pelo seu caráter inter-geracional, que de forma cíclica, se reproduz de pai para filhos sucessivamente. Traçaremos a seguir um breve cronograma através dos séculos mostrando a história da infância e as origens da violência que nos ronda até hoje.

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Resumo Cronológico da Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes no Decorrer da História em Geral

Grécia Antiga 1.184 a.c séc XII / XIII a.c

As crianças eram propriedade do pai, que podia dispor sobre suas vidas e morte. Era comum, caso não fossem desejadas (ex: defeito físico), serem abandonadas nas estradas e qualquer adulto que as encontrassem poderia se apossar das mesmas e fazê-las escravas.

Tempos Bíblicos 2000 a.c. a 1500 a.c.

As nações vizinhas a Israel tinham por costume sacrificar seus filhos em holocausto ao deus do povo amonita cujo nome era “Moloch”. Ele exigia o sacrifício de crianças em troca de boas colheitas e prosperidade.

Séc. XII

O conceito de infância ainda não tinha sido descoberto. A criança se vestia e era retratada nas expressões artísticas como um adulto.

Séc. XIII

A criança passa a ser retratada nas artes de forma diferente do adulto.Começo da descoberta do conceito de infância (ARIÉS,1981)

Séc. XVII

O traje infantil masculino começa a ser usado

Séc. XVIII

O traje infantil feminino começa a ser usado.

Séc. XIX

A infância passa a ser objeto de estudos da psicologia, psicanálise e pediatria, ciências estas, recém descobertas e que deram à criança um sentido de valor e importância.

Séc. XX

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Denominado o “Século das crianças”, ocorreu um grande desenvolvimento da psicologia e pediatria, o que contribuiu para fazer da criança um ser de valor inestimável e insubstituível dentro do núcleo familiar. Principais documentos jurídicos internacionais: • I Declaração Sobre os Direitos da Criança - votada em 1923 e ratificada em 26.09.1923, na 5a sessão da Liga das Nações, em Genebra (Declaração de Genebra).


MITOS, HISTÓRIA E CONCEITUAÇÃO DO FENÔMENO EM GERAL

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• II Declaração Universal dos Direitos da Criança - aprovada pela Assembléia Geral da ONU, a 20.11.1959. • Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude - Regras de Beijing (Resolução 40/33 da Assembléia Geral de 29.11.85); • Convenção sobre os Direitos da Criança - iniciativa partiu da República Popular da Polônia (1978); adotada pela Assembléia Geral da ONU, a 20.11.1989; assinada pelo Brasil a 26.01.1990

Resumo Cronológico da Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes no Decorrer da História Nacional Período Colonial 1500 - 1822

Povos indígenas Guaikuku e Tupis: Matavam seus filhos gêmeos. (LEITE, 1978) Tapirapé: Acreditavam que só deveriam ter no máximo três filhos e só dois podiam ser do mesmo sexo. Caso uma criança viesse a nascer quebrando essas regras deveria ser eliminada sob pena de atrair má sorte. (BALDUS, 1978) Os filhos nascidos de união com inimigos da tribo eram mortos e devorados. A mãe, entretanto, tinha o direito de matar e enterrar o próprio filho se não quisesse que o mesmo fosse comido. (AZEVEDO e GUERRA, 1998) Era costume matar os recém-nascidos portadores de defeito físico ou quando pertenciam ao casamento anterior. (ANCHIETA, 1565) Escravatura Era comum as crianças desconhecerem a procedência paterna. Os filhos eram vendidos e separados dos pais de acordo com a conveniência do senhor de escravos (AZEVEDO e GUERRA, 1998) A mortalidade infantil era muito alta nas senzalas, que eram mantidas sob péssimas condições de higiene. (PRIORE, 1992) O senhor de escravos mantinha relações sexuais com suas escravas, entretanto, quando uma mulher branca livre engravidava de um escravo o seu destino e o da criança era a morte. (AZEVEDO e GUERRA, 1998). 25 |


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Período do Império Século XIX

Período R epublicano Republicano Século XX

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As crianças tidas fora do casamento, eram chamadas pejorativamente de bastardas e comumente eram assassinadas pelas mães solteiras ou “viúvas desonestas” na tentativa de manter as aparências e evitar um escândalo em sociedade. Tinham também o mesmo destino os filhos frutos de relações incestuosas. (GÉLIS, 1984; MAESTRI, 1988) Outra opção usada para fazer desaparecerem rastros dos filhos ilegítimos era a entrega dos mesmos nas instituições religiosas de caridade onde existia um dispositivo chamado de “roda dos expostos” onde as crianças eram abandonadas. Chamado de “ Século da criança “ Modelo familiar burguês onde a criança passa a ter valor inestimável e insubstituível. Principais documentos jurídicos nacionais: a) Constituição Federal - sancionada em 05.10.1988, que em vários artigos (226, 227, 277, 278, etc) garante proteção e defesa dos direitos da infância; b) Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - Lei 8.069, de 13.07.1990, considerado um dos mais avançados do mundo na proteção de crianças e adolescentes; c) Lei dos Crimes Hediondos - Lei 8.072, de 25.07.1990, que altera o art. 263 do ECA, no caso das penas impostas aos crimes de estupro e atentado violento ao pudor.

3. CONCEITUANDO O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES O conceito de violência doméstica contra crianças e adolescentes ainda está sendo construído, a medida em que os mitos e preconceitos vão sendo desmistificados. A multiplicidade de fatores culturais, legais e científicos envolvendo a questão, faz com que o consenso, por parte dos estudiosos desse fenômeno se torne quase impossível. Vamos a seguir traçar um gráfico cronológico dos principais autores que contribuíram de forma pioneira para a construção conceitual desse tema. | 26


MITOS, HISTÓRIA E CONCEITUAÇÃO DO FENÔMENO EM GERAL

AUTOR / ANO ZACCHIA, em 1626

AMBROISE TARDIEU, em 1860

PARISSOT e CAUSSADE, em 1929

CAFFEY, em 1946

LIÇÃO 1

DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO Abordou a questão dos maus-tratos na infância do ponto de vista médico-legal, por ocasião de necropsias que realizou em corpos de crianças vitimizadas Médico francês, criou o conceito da CRIANÇA MALTRATADA ao constatar a presença de fraturas, queimaduras, hematomas e equimoses num estudo que fez de 32 casos de crianças vitimizadas pelos próprios pais, onde 18 delas foram a óbito. (WOLFE, 1988) Publicaram nos Annales de Médecine Légale de Paris, um importante trabalho sobre “As sevícias nas crianças”. Médico americano especializado em radiologia infantil, publicou um importante trabalho sobre fraturas múltiplas de ossos longos e hematoma subdural diagnosticados em seis lactantes vitimizados pelos próprios pais.

KEMPE e SILVERMAN, em 1962

Médicos americanos, criaram o conceito da SÍNDROME DA CRIANÇA ESPANCADA,, também chamada SÍNDROME DE CAFFEY, com as seguintes características: a) As vítimas são crianças de pouca idade. b) Repetidos ferimentos de natureza inusitada, fraturas ósseas e queimaduras. c) A violência se desenvolve em várias etapas e em diferentes períodos de tempo. d) Os pais não apresentam explicações convincentes a cerca das origens das lesões. e) A prova dos maus-tratos deve ser evidenciada por radiografia (AZEVEDO e GUERRA,1997).

FONTANA, em 1971

Médico, criou o conceito da SÍNDROME DO MALTRATO ampliando o conceito de Kempe. Segundo Fontana, para a ocorrência do fenômeno bastava a presença de múltiplas e menores privações de natureza emocional, nutricional, negligência e abuso, sendo o espancamento o último grau da síndrome. 27 |


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CANGER RODRIGUES, em 1974

Foi quem noticiou o primeiro caso de maus-tratos no Brasil.

TEIXEIRA, em 1978

Pesquisador brasileiro que tem dado mais atenção ao fenômeno entre nós. Criou o conceito “SIBE - Síndrome do Bebê Espancado”.

GELLES, em 1979

Sociólogo, ampliou o conceito da violência física, considerando como tal todo ato intencional que cause dano físico a outra pessoa.. Por dano físico o autor entende a imposição, desde uma leve dor, como a palmada, podendo chegar até ao assassinato.

OCHOTORENA, em 1988

Psicólogo, definiu a violência física como: “Qualquer ação, não acidental, por parte dos pais ou responsáveis que provoque dano físico ou enfermidade na criança” (OCHOTORENA, 1988). Podemos observar acima a evolução do conceito de violência doméstica contra crianças e adolescentes. Antes, só se enquadravam nesse fenômeno formas severíssimas de maus-tratos. Hoje os autores mais modernos já buscam repudiar toda e qualquer forma de punição corporal, inclusive a palmada. Tudo isso é fruto de uma caminhada rumo à desconstituição de mitos, que paulatinamente vão cedendo lugar à cidadania de nossas crianças e adolescentes, fazendo com que deixem de ser vistas como meros objetos de tutela e passem a ser respeitadas como sujeitos de direitos. Países como a Suécia, Finlândia, Dinamarca, Noruega, Áustria, Chipre, Letônia e Croácia já proibiram, através de seu sistema normativo de leis, o disciplinamento físico de crianças e adolescentes. A lei brasileira só proíbe os maus-tratos físicos, permitindo aos pais a aplicação da punição corporal nos filhos, desde que moderadamente. Tal postura mostra como o sistema legal pátrio ainda precisa avançar (Sabemos que antes de uma lesão grave ou que provoque a morte de uma criança geralmente esta já vem sendo disciplinada com punições mais leves e que vão aumentando gradualmente). São comuns histórias de pais que, na intenção de disciplinar seus filhos de forma moderada, acabam se descontrolando e batendo nos mesmos severamente.

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“Um expert sabe quanto ainda tem de aprender, mesmo quando é considerado um expert pelos outros. Um perdedor quer ser considerado um expert pelos outros antes de ter aprendido o suficiente para saber quão pouco ele sabe.” Sidney Harris


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LIÇÃO 2 DIAGNÓSTICO VIOLÊNCIA FÍSICA


DIAGNÓSTICO VIOLÊNCIA FÍSICA

LIÇÃO 2

Introdução O profissional que trabalha com o público infantil deve ter sempre em mente que, além de prestar um bom atendimento dentro de sua área específica de atuação, ele precisa também desempenhar o papel de defensor dos direitos da criança e do adolescente. Essa tarefa deve ser executada com muita competência e compromisso, não deixando espaço para medos, omissões e projeções de traumas pessoais.

Objetivo da lição O enfrentamento da violência doméstica contra crianças e adolescentes requer uma ação conjunta de vários profissionais (advogados, médicos, psicólogos, assistentes sociais, etc) e um atendimento em rede envolvendo várias instituições (hospital, delegacia, juizado, casas lares, projetos sociais com atendimento terapêutico à família, etc). Nada pode ser mais perigoso do que o profissional que trabalha sozinho e que não possui referencial técnico-científico que respalde suas ações. Vamos nessa lição apresentar um diagnóstico sobre a violência física detalhando: 1. As principais características 2. As principais causas 3. Grupo de risco 4. Um guia prático de identificação dos maus-tratos em crianças e adolescentes, mostrando: o perfil da criança, do agressor, das famílias e os sinais característicos desse tipo de violência. Alertamos ainda para a importância de analisarmos todos os indicadores que serão aqui expostos, não de forma isolada, mas sim de forma conjunta, a fim de evitarmos enganos desnecessários. É importante fazer denúncias e encaminhamentos firmados em uma base científica.

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1. Principais Características da Violência Física Agressores mais comuns Os agressores mais comuns são os pais biológicos, adotivos e madrasta/padrasto. Segundo AZEVEDO e GUERRA (2000), as estatísticas internacionais apontam que 70% das agressões são provenientes dos pais biológicos. O cônjuge que agride mais os filhos é a mãe. Isso acontece porque a criança passa geralmente a maior parte do tempo em sua companhia. Já o pai, por conta de ter maior força física, é o que causa lesões mais graves nos filhos quando os pune corporalmente.

Natureza repetitiva do fenômeno É comum o agressor, após a prática de lesões muito graves, cair em si e ser acometido por sentimentos de remorsos, vindo então a prometer para a família que não repetirá “o incidente”. Tais desculpas geralmente são aceitas pelo cônjuge que se cala na esperança de que o fato não ocorra novamente.

Entretanto, tal omissão poderá custar muito caro à criança e ao adolescente vitimizado. Segundo KEMPE e HELFER (1977) esse fenômeno tem natureza repetitiva e sem uma intervenção que trate do agressor, a possibilidade de continuidade de maus-tratos e até de morte da vítima é de 25 a 50%. AZEVEDO e GUERRA (2000) falam que autores, em trabalhos mais recentes, estimam a reincidência desses casos em 50 a 60% quando não são instauradas as medidas de proteção necessárias.

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Síndrome do bode expiatório Chamamos de síndrome do bode expiatório o fato da maioria dos agressores de violência física eleger um determinado filho como alvo principal para receberem seus maus-tratos. É muito importante atentar para esse detalhe quando estivermos averiguando uma ocorrência de caso concreto. Às vezes o profissional responsável pela denúncia se deixa enganar pelo agressor ao comprovar o bom estado físico e emocional das crianças que residem com ele. Entretanto é necessário buscar informações sobre quantos filhos o agressor realmente tem e examinar todos eles individualmente. Tal medida se faz necessária pois pode acontecer do agressor tratar com carinho e atenção suas crianças, mas torturar sistematicamente um determinado filho que geralmente é o primogênito. Caso concreto: Conheci no interior do estado do Ceará a história de um casal que tinha vários filhos, mas que maltratava a filha de quatro anos de idade. Eles só alimentavam a mesma uma vez por dia e as vezes nem isso. O descaso era tão grande que eles apelidaram a criança de “cachorrinha”. Quando chegava a hora do almoço a família toda se reunia em torno da mesa. O cheiro da comida se espalhava na casa e a pobre criança, já sem forças dentro de uma rede, começava a gemer impulsionada pela fome atroz que sentia. Os pais desalmados gritavam aborrecidos para que ela calasse a boca. Certo dia houve uma campanha de detetização promovida pela prefeitura daquela cidade e os agentes sanitários estavam colocando veneno em todas as casas. O casal agressor então pegou a filha, que se encontrava em avançadíssimo estágio de desnutrição, e esconderam seu corpinho embaixo do colchão da cama, colocando várias roupas em cima. Um dos funcionários já quase no final da vistoria escutou um gemido vindo do quarto onde a pobre menina estava escondida e, curioso, levantou o

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colchão para ver o que estava provocando aqueles gemidos. Qual foi sua surpresa ao encontrar o corpinho já quase sem vida da garotinha que, levada as pressas para o hospital, felizmente sobreviveu. Hoje ela já tem aproximadamente 10 anos de idade e vive muito feliz com seus pais adotivos que me contaram sua triste história.

Evolução gradual da violência A criança que chega a óbito ou é vítima de uma lesão muito grave decorrente de práticas de maus-tratos dentro do ambiente doméstico, quase sem exceção já vinha sofrendo agressões anteriores de porte mais leve, que, entretanto, foram evoluindo para uma intensidade mais severa. Isso significa que a violência é gradual. Logo, se os profissionais e a comunidade em geral criarem o hábito de denunciarem as violências tidas por “mais brandas” evitaremos o desenvolvimento do fenômeno em sua forma mais grave. Caso concreto: No CECOVI, certa vez atendemos a um caso que chocou toda nossa equipe. Uma mãe completamente ensandecida, juntamente com sua companheira, pegou a filha de oito anos de idade e, com uma colher aquecida pelo fogo, queimaram a criança no rosto, faces, peito, pernas, braços e costas, em uma longa sessão de tortura. A garotinha passou três dias com o corpo coberto por queimaduras de 3º grau, deitada em cima de uma cama, sem qualquer socorro médico. É importante abrir um parêntese aqui para dizer que é comum a demora dos pais agressores em buscar o atendimento médico-hospitalar para seus filhos vitimizados, pois temem serem confrontados e descobertos em suas práticas.

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Passados os três dias, os vizinhos, desconfiados da ausência da criança brincando na rua como era seu costume, e devido aos gritos de socorro que tinham escutado no dia do crime, chamaram a polícia para verificar o caso. A polícia veio e arrombou a porta da casa levando Sarinha (nome fictício) às pressas para o hospital, onde ficou internada na UTI de queimados por vários meses, onde felizmente sobreviveu. Nossos advogados acompanharam todo o inquérito e o processo criminal que resultou no julgamento e condenação da mãe desalmada. Entretanto, o que nos deixou muito tristes (e porque não dizer “revoltados”) foi o depoimento de uma das professoras de Sarinha que nos relatou ter visto por muitas vezes hematomas palpebrais (olho roxo) na criança, bem como marcas de esganadura em seu pescoço e marcas arroxeadas feitas por surras de cinto. Ao indagarmos por que ela não tinha tomado nenhuma atitude, simplesmente nos respondeu que teve medo de se envolver com um problema que, afinal de contas, não era seu. Percebemos nesta história que a falta de denúncia dos vizinhos e a falta de ética e compromisso moral da professora contribuíram, em muito, para o calvário sofrido por Sarinha. Se tivesse ocorrido uma denúncia desde os primeiros indícios de maus-tratos, essa criança não teria passado por todo esse sofrimento. Até hoje, já quatro anos após sua tragédia, ela ainda faz cirurgias plásticas para restaurar sua pele queimada. Entretanto, sabemos que estas marcas serão restauradas através da medicina, mas as seqüelas em seu coração e alma só um milagre de Deus pode cicatrizar.

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Os agressores de violência física geralmente são pessoas “normais” Segundo GELES, 1973 e KEMPE,1975, apenas 10% dos agressores físicos manifestam quadros psiquiátricos graves. Ou seja, 90% dos vitimizadores praticam violência física acreditando estar agindo corretamente. Eles estão convencidos que o uso da disciplina corporal é apenas um método eficaz de ensino e admoestação para as crianças e adolescentes que estão sob sua responsabilidade. Caso concreto: Certa vez acompanhamos um caso no CECOVI em que a mãe mergulhou a mão de seu filho de 8 anos dentro de uma panela com água fervendo. O motivo do castigo foi porque a criança tinha tirado de sua bolsa R$ 1,00 para jogar vídeo game. Durante a entrevista perguntamos se a mesma estava arrependida e se queria pedir perdão ao filho. Ela então falou que os pais não devem pedir perdão aos filhos, pois isso lhes tira a autoridade. E quanto a estar arrependida, tinha feito “aquilo” para o bem de seu menino, pois não queria que ele crescesse um vagabundo e ladrão. Conversando mais um pouco indagamos sobre sua história de vida e ela passou então a nos contar sua infância cheia de histórias de maus-tratos. Num determinado momento de seu relato a mãe de Carlinhos (nome fictício) levantou a blusa e nos mostrou as marcas da violência que recebera da madrasta quando criança. Admirados podemos ver cicatrizes enormes feitas com ferro quente por todo seu corpo. Aquela mulher na verdade não era uma criminosa, nem estava acometida de nenhum problema “grave”, psicologicamente falando, mas sua história de vida estava sendo reproduzida fielmente na pessoa de seu filho. Hoje Carlinhos mora em uma casa lar e sua mãe o visita semanalmente. Os vínculos aos poucos estão sendo restaurados. Ela já conseguiu pedir perdão ao filho e ser perdoada por ele.

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Idade das vítimas Diferentemente das vítimas de abuso sexual, onde a predominância é do sexo feminino, na violência física as vítimas são de ambos os sexos. A literatura internacional, entretanto, mostra que existe uma maior incidência de vítimas do sexo feminino na adolescência. Segundo GUERRA e AZEVEDO, 1981, a faixa etária dos 07 aos 13 anos é a mais atingida pela violência física, sendo que a idade média para vítimas do sexo feminino é de 10 anos e do sexo masculino 8 anos.

2. Principais Causas da Violência Física Fatos geradores de violência física doméstica A crença dos pais de que a punição corporal dos filhos é um método educativo e uma forma de demonstrar amor, zelo e cuidado. Ver a criança e o adolescente como um objeto de sua propriedade e não como um sujeito de direitos. Caso concreto: Atendemos no CECOVI um caso de um menino de 7 anos de idade que apanhava muito do padrasto. Paulinho (nome fictício) tinha tanto medo de seu Pedro (nome fictício) que quando este gritava, segundo os vizinhos, Paulinho chegava a se urinar nas calças. Cientes do ocorrido, designamos uma equipe para fazer uma visita àquela família. Ao chegarmos na vila onde eles moravam a mãe de Paulinho veio a nossa procura e com muita raiva começou a nos xingar com palavras de baixo calão perguntando o que nós tínhamos ido fazer ali. Não satisfeita, Dona Maria (nome fictício) então 37 |


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levantou sua saia e abaixou sua calcinha e apontando para a marca da operação cesariana, berrava: - Olhe seus bando de “éguas” ! Vocês estão vendo essa marca aqui ? Fui eu quem pariu este menino. Se eu quiser, eu cuspo, eu piso, eu mato ele. E ninguém tem nada a ver com isso. Nem juiz, nem delegado, nem polícia vai me ensinar a criar filho meu. Ele me pertence. A baixa resistência ao stress do agressor que projeta seu cansaço e problemas pessoais nos filhos e demais dependentes. Exemplos de problemas pessoais: desemprego, dívidas, desentendimento conjugal, etc.

O uso indevido de drogas. Abuso de álcool. Pais que quando crianças foram vítimas de violência doméstica e que reproduzem nos filhos o mesmo quadro vitimizador. Fanatismo religioso Caso concreto: “ A dona de casa Teresinha da Silva Francisco, de 27 anos, usou uma tesoura para cortar a língua da filha D. C. S. F., de 10 meses, porque a criança “estava com o diabo no corpo e chorava muito”. Teresinha e o marido, o servente de pedreiro Jair Francisco, de 28 anos, foram presos ontem de madrugada na Santa Casa de Sorocaba (SP), para onde levaram a criança com forte hemorragia. A mãe contou à polícia que recebera “ordens do demônio” para tirar “alguma coisa ruim” que estava dentro da filha e a fazia chorar. Puxando a língua da criança, ela pediu uma tesoura ao marido e cortou o órgão em duas partes. Os médicos disseram que não é possível o reimplante da língua que foi decepada. “ Diário do Nordeste, 13/03/1998, Caderno Policial, página 20

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Problemas psicológicos e psiquiátricos. Caso concreto: “ C.F.C., de 4 anos de idade, foi internado no Hospital Infantil Álvaro Ribeiro com hematomas nos olhos, escoriações pelo corpo, queimaduras no abdômen e costas causadas por tampa de panela quente usada por V.F., sua mãe. O pai da criança, J.F.C, apresentou queixa no distrito policial, afirmando que a mulher apresenta distúrbios mentais e que freqüentemente espanca C.F.C. dentre os quatro filhos. “ CRAMI. 09/04/1987

3. Grupo de Risco – Crianças com Tendência a Sofrer Maus-tratos Crianças provenientes de gravidez não desejada Crianças que requerem atenção e cuidado especial, como por exemplo: recém nascidas, lactantes, portadoras de doenças crônicas ou deficientes físicas. Crianças pertencentes a famílias desajustadas. Crianças criadas em ambientes extremamente miseráveis Crianças que não correspondem às expectativas dos pais. A maioria dos pais alimenta um modelo ideal de filhos. Quando esse perfil traçado imaginariamente não corresponde com a realidade, pode ocorrer a rejeição da criança. As expectativas geralmente se concentram nas áreas da beleza física (feio, bonito, gordo, magro), do temperamento (tímido, desinibido, calmo, hiperativo) e do sexo (masculino e feminino). Crianças cujo vínculo com os pais foi interrompido, devido a parto prematuro ou hospitalizações prolongadas. Crianças provenientes de casamentos anteriores. Crianças hiperativas. Crianças adotadas para preencher as necessidades e carências egoístas dos pais.

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“Toda verdade passa por três etapas: primeiro, ela é ridicularizada. Depois, é violentamente antagonizada. Por último, é aceita universalmente como auto-evidente.” Arthur Schopenhauer

4. Guia Prático de Identificação de Maus-tratos 1º passo - Perfil da Criança Teme exageradamente os pais. Alimenta uma baixa auto-estima. Falta constantemente à escola, devido ao período de convalescença e processo de cicatrização dos maus-tratos sofridos. Geralmente é uma criança nervosa e em constante estado de alerta. Possui baixo aproveitamento escolar. Busca ocultar as lesões sofridas por temer represálias por parte do agressor. Pode desenvolver comportamento extremamente agressivo com outras crianças, reproduzindo a violência experimentada dentro do ambiente doméstico. Pode tornar-se extremamente tímida e desconfiada com relação a todos. Pode tornar-se depressiva, isolada e muito triste. Foge constantemente ou busca ficar o maior tempo possível longe de casa. Quase sem exceção, as crianças e adolescentes em situação de rua possuem histórico de violência doméstica.

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Caso concreto: Criança foge de casa para não apanhar. O drama de J.A. talvez faça parte do cotidiano de outras famílias que tiveram seus filhos foragidos de casa. Cansado das bebedeiras e dos espancamentos do padrasto, o garoto fugiu de casa desde 13 de novembro do ano passado. J.A. vendia bronzeador até altas horas da noite na praia e apanhava ao chegar em casa quando não apurava nada durante o dia de trabalho. (Jornal O Povo, 08/08/1997, Caderno Cidades, pág. 16).

Quando submetida a exame médico, manifesta indiferença, apatia ou tristeza. Pode reagir à aproximação do médico com sinais característicos de alguém que busca se defender de uma agressão como, por exemplo, proteger o rosto com as mãos e antebraços ou cerrar os olhos expressando uma atitude de alguém que sente muito medo. Choro insistente e sem explicação, de crianças de tenra idade, quando na aproximação do pai, mãe, babá, ou outro cuidador.

2º passo - Perfil do Agressor Não vê a criança como um sujeito de direitos, mas sim como um objeto de sua propriedade. Demonstra desinteresse pelo bem estar da criança, sendo raro o comparecimento a reuniões escolares, acompanhamento de vacinas, etc. Descreve a criança como preguiçosa, de má índole e causadora de problemas. Defende a aplicação de disciplina severa Demonstra irritação e pouca paciência com o comportamento próprio das crianças. (Ex: Correr, falar alto, sujar a roupa, etc)

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Possui geralmente um histórico de violência doméstica em sua própria infância Faz uso indevido de drogas e/ou abusa de álcool Caso concreto: A.F.P.S., de 10 anos de idade, foi internada no hospital-escola da PUC Campinas, com queimaduras pelo corpo provocadas por água quente, jogada pela mãe adotiva como forma de castigo. E.P.V. adotou a criança, porém busca devolver a mesma para a entidade há alguns meses, pois afirma que esta é muito rebelde. Segundo informações da vizinhança, E.P.V. é alcoólatra, deixando sua filha menor e A.F.P.S. sozinhas em casa. (CRAMI, 21/08/1985).

Mente quando indagado sobre a causa das lesões da criança, dificilmente reconhecendo sua culpa. Cobra da criança desempenho físico e/ou intelectual acima de sua capacidade. Atribui à criança a causa de problemas existentes no lar. Pode apresentar traços de imaturidade e instabilidade emocionais decorrentes da pouca idade ou por ser originário de família disfuncional. Temperamento autoritário e controlador. Pode apresentar distúrbios psicológicos ou psiquiátricos.

3º passo - Perfil da Família Geralmente ocorre a cumplicidade silenciosa entre os cônjuges. Pouca cooperação, inclusive chegando a manifestar hostilidade à abordagem de profissionais.

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Rigidez exacerbada no que diz respeito aos valores religiosos, morais e educacionais. Registro de violência doméstica contra a mulher. Existência de graves problemas financeiros.

4º passo - Identificação de Sinais Característicos de Maus-tratos Preliminarmente Como já alertamos anteriormente, o cuidado na identificação das lesões é de suma importância. Além de observar o histórico de vida da criança e o comportamento de cada membro de sua família, faz-se necessário examinar se os hematomas, fraturas, cortes, arranhões, que ela trás consigo, são originários de práticas de maus-tratos ou provenientes de brincadeiras e acidentes provocados naturalmente. Ao examinar o corpo da criança, três tipos de diagnóstico podem ser viabilizados. O primeiro deles é o diagnóstico externo, que pode ser feito tanto por médicos, como por uma pessoa leiga. O segundo tipo de identificação é o diagnóstico interno que, de ordem mais complexa, somente pode ser feito por médicos, cujos conhecimentos especializados poderão identificar as lesões através de radiografias, tomografias computadorizadas, ressonâncias magnéticas, etc. O terceiro tipo de diagnóstico trata-se de exame físico pós-morte ou exame necroscópico e só pode ser efetuado por médico legista. A obrigatoriedade desse último tipo de exame é imposta por lei (no art. 158, CPP) sempre que uma criança vier a óbito em decorrência de morte violenta ou suspeita (Ex: Quedas, acidentes automobilísticos, homicídios, envenenamentos, etc).

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Lesões Identificadas por Exame Externo Equimoses e hematomas múltiplos, localizados em várias partes do corpo, com diferentes formas e dimensões, podendo apresentar diferentes estágios de evolução em decorrência de terem sido causados em momentos diversos. Equimoses = manchas arroxeadas de menor gravidade. Hematomas = manchas e lesões provocadas por impactos fortes na pele, com rompimento de vasos sanguíneos e subseqüente derramamento de sangue por baixo da mesma. Ex: Equimoses com a forma de “marcas de dedos” nos braços e tórax, provocadas por movimentos bruscos e violentos. Ex: Hematoma palpebral (olho arroxeado)

Caso concreto: Polícia prende casal acusado de matar filha. A polícia prendeu anteontem um casal sob a acusação de ter matado a filha caçula, J. H. S. G., 2. Segundo a delegada Elizabete Ferreira Sato, o pai chegou em casa bêbado e deu um soco no olho direito de Jéssica porque a menina lhe pediu um pedaço de pão. A garota começou a chorar, o que teria deixado o pai mais nervoso ainda. Ele teria pegado a criança e a jogado contra a parede da geladeira. Jéssica teve traumatismo cranio-encefálico e morreu. (Folha de São Paulo, 03/02/1994, página 3).

Lacerações labiais com arrancamento do freio labial e/ou ferimento das gengivas, chegando inclusive a perda de dentes. Ferimentos que deixam na pele a marca dos objetos que os produziu. Tipos de objetos mais comuns: vara, chicote, fio elétrico, corda, fivela, cinto, cabide, escova de cabelo, raquetes, barra de ferro, pedaço de pau, mãos, dedos, nós dos dedos, solado de chinelo ou sapato, colher, faca, garfo, etc

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Caso concreto: A menina A.S., recém-nascida de um mês, foi atingida por golpes de vassouras desferidos pelo próprio pai. C.A.C. atacou M.J.S., a mãe, durante discussão em que a mulher o criticava por estar namorando sua amante, V.S.S., na sua frente. São todos analfabetos, desempregados e alcoólatras, e vivem pelas ruas do centro do Rio. A criança atingida morreu na madrugada, mas somente pela manhã é que sua mãe constatou que A.S. estava sem vida, banhada em sangue. Durante todo o dia de ontem o corpo de A.S., coberto com uma manta encardida e em meio a quatro velas acesas por mãos anônimas, foi velado por uma multidão de curiosos. (O Estado de São Paulo, 27/08/1986).

Ferimentos causados pelo uso de corda, fio ou corrente para prender mãos, pés ou pescoço. Caso concreto: Garotos eram mantidos acorrentados pelo pai. Dois irmãos, de oito e nove anos, foram encontrados anteontem pela polícia de Guaianazes, zona leste de São Paulo, presos a correntes fechadas por cadeados. M.S.S., 8, R.S.S., 9, moram com a família. A mãe dos garotos disse aos policiais que o marido “é um pouco violento”. Segundo ela, seu marido costuma aplicar castigos físicos nos meninos e colocá-los ajoelhados sobre grãos de milho, além de amarrá-los. As crianças foram entregues à mãe. (Folha de São Paulo, 18/12/1993, página 3, caderno Cotidiano).

Presença de mordidas humanas ou equimoses circulares produzidas por sucção, localizadas geralmente nas bochechas, tórax, abdome, nádegas e coxas. Atenção: Caso as mordidas e equimoses localizem-se em regiões como mamas ou parte interna das coxas, a hipótese de abuso sexual deve ser averiguada. 45 |


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Ferimentos da mucosa oral provenientes da ação de obrigar a criança a comer à força, através da introdução brusca e violenta de colher na boca. Ferimentos na cabeça causados por arrancamento de mechas de cabelo. Orelha de boxeador ou orelha em couve-flor: Lesões recentes ou presença de deformidades na região externa das orelhas já cicatrizadas, provenientes de lacerações traumáticas da cartilagem. Ferimentos produzidos por instrumentos perfuro-cortantes (faca, punhal, espeto, etc) usados geralmente com requinte de perversidade, mas não com a finalidade de levar a morte. Ferimentos em diferentes estágios de cicatrização que aparecem geralmente em grupo, provocados por espancamentos constantes. Queimaduras Geralmente a queimadura acidental apresenta forma irregular devido a reação que temos de afastar o corpo imediatamente do instrumento causador do dano. Já as queimaduras provenientes de maus-tratos, além de profundas, são bem delineadas. Tipos de queimaduras: a) Queimadura em forma de luva: é produzida na mão ao ser mergulhada em líquido quente. Ex: essa lesão é provocada, por exemplo, para corrigir crianças que foram pegas roubando alguma coisa, masturbando-se ou para obrigar crianças canhotas a usarem a mão direita. b) Queimadura em forma de bota: produzida no pé ao ser mergulhado em líquido quente. Ex: muitos pais usam esse tipo de maus-tratos como forma de obrigar os filhos a não saírem de casa.

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c) Queimadura de cigarro: geralmente produzida em série e localizada em regiões do corpo que ficam escondidas e cobertas (genitais, nádegas, mamilos, sola dos pés, etc). Caso concreto: M.M.S., de 9 anos de idade, foi atendida no posto de saúde municipal com queimaduras na perna provocadas pelo pai, J.E.S., com um pedaço de lenha em brasa. A aparente razão da agressão foi a briga entre os irmãos, impedindo-o de dormir, pois se encontrava cansado após brincar a segunda-feira de carnaval até a madrugada. Como antecedentes J.E.S. queimara, há tempos atrás, o lábio de outra filha, R.M.S. com cigarro. A mãe deu queixa no distrito policial e a criança foi submetida a exame no IML. (CRAMI, 04/03/1987).

d) Queimadura localizada na região genital e nádegas provocada por imersão em líquido quente. Ex: geralmente esse tipo de maus-tratos é usado para disciplinar crianças que ainda não controlam o esfíncter e urinam ou defecam nas próprias roupas. e) Queimaduras provocadas por líquidos quentes atirados propositadamente sobre a criança. Esse tipo de queimadura se caracteriza por atingir várias áreas do corpo, mantendo a mesma gravidade, atingindo geralmente a face e parte posterior do ombro. Caso concreto: Faleceu na madrugada de sábado, no hospital Monumento, em São Paulo, o garoto E.S.D., de seis anos, vítima de queimaduras por todo o corpo, causadas por água fervendo que foi atirada sobre ele por sua mãe, que se dizia “tomada por um espírito mau”. O fato aconteceu há duas semanas, em Mogi das Cruzes. Segundo explicou o padrasto do menino, W.R., o garoto se encontrava no interior da casa, quando um “espírito baixou” em S.F.S.D., mãe de E.S.D.E. “obrigou-a a fazer tudo que ele mandasse”. O espírito mandou-a buscar água fria, esquentá-la, e ela foi aos poucos jogando sobre o garoto. “Não 47 |


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tenho vergonha de contar isso, pois sei que sou inocente. Não sou louca não”, afirmou ao ser interrogada pelo delegado do Distrito Central de Mogi, que indiciou o casal em inquérito por lesão corporal dolosa. Agora, os dois terão que responder também por homicídio. Na polícia, o padrasto explicou que “o espírito que tomou o corpo de S.F.S.D. foi mandado pelo seu ex-marido que reside em Belo Horizonte, onde possui um centro espírita. Quando ela o abandonou e levou os filhos, ele prometeu vingança”. S.F.D.S. está grávida de três meses. É mãe de E.S.D. e de outro filho. Depois de haver conduzido o garoto queimado à Santa Casa de Misericórdia de Mogi, ela contou que não sabia de nada que havia feito. “Fiquei zonza e perdi os sentidos. Quando acordei, meu marido contou tudo e fiquei muito espantada. Comecei a chorar quando vi meu filhinho, internado no hospital”. (Correio Popular, 03/09/1986)

f) Queimaduras localizadas nas dobras de cotovelo, pescoço ou axilas devem levantar suspeitas de maus-tratos por serem áreas que dificilmente são queimadas acidentalmente. g) Queimaduras que retratam as formas dos objetos que as produziu, como por exemplo: ferro elétrico, chapa de fogão, colher, faca, garfo, fundo de frigideira, tampa de panela, lâmpadas, etc. Caso concreto: Z.O.C., de seis anos, foi torturada no Rio pelo seu padrasto, J.M.P., de 22 anos, que a queimou nas nádegas, coxas e pés, com um ferro de passar roupa. Na delegacia de polícia, ele explicou que a garota mexeu no despertador, fazendo com que perdesse a hora. Além de queimar a menina, colocou sal sobre os ferimentos “para arder bastante”. A mãe de Z.O.C. estava viajando e por isso ela buscou ajuda de uma vizinha que a levou ao posto policial. A garota depois de medicada foi entregue a uma unidade da Febem. (O Estado de São Paulo).

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Lesões Identificadas por Exame Interno Fraturas a) Fraturas de crânio: podem adquirir forma estrelada ou “em mapa mundi”. b) Fraturas mal explicadas no nariz, rosto, braços, pernas, que, pela ausência de tratamento ortopédico correto, podem consolidarse causando uma deformidade. Caso concreto: Criança de 4 meses tem braços e nariz fraturados pelo próprio pai. Policiais do Posto de Comando Avançado 4 (Seis Bocas) prenderam na tarde de ontem o desocupado Geraldo Inácio da Silva minutos depois dele ter agredido sua filha, a pequena R. I. C., de quatro meses, que teve os dois braços e o nariz quebrados e sofreu várias escoriações. Um dos obstáculos para fazer o flagrante do pai agressor, segundo o delegado Francisco Leite, é que a mãe da menina não compareceu à delegacia por medo ser presa devido às facadas que deu no marido. “Quando viu a filha com os braços e o nariz quebrados a mãe se desesperou e o feriu a golpes de faca nas pernas”. Perguntado pelo motivo que o levou a agredir a criança, Geraldo Inácio limitou-se a afirmar que nada tinha a declarar. (Jornal Diário do Nordeste, 16/11/1995, página17).

c) Fraturas de costelas geralmente causadas por impactos violentos causados por chutes e arremesso do corpo sobre superfícies planas. d) Fraturas de bacia, muito raras em crianças, geralmente decorrentes de impactos muito violentos.

Roturas a) Roturas viscerais localizadas no fígado, baço, rim, intestino, etc, ocasionadas geralmente por socos e chutes na parede abdominal.

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Caso concreto: Garoto é torturado pela mãe desde 8 anos. “Desejo boa sorte pra ela, mas não quero ver nunca mais”. A frase, de um garoto de 15 anos para sua mãe, pode parecer cruel, mas só pra quem não conhece a história de Osmar. Desde os 8 anos, Osmar é torturado por sua mãe, Maria Aparecida, presa desde o ano passado por maus-tratos ao filho. Maria Aparecida cravou uma chave de fenda do céu da boca de Osmar, cortou sua orelha esquerda, arrancou parte de seus dentes com alicate e, de tanto chutar seu estômago, o intestino de Osmar rompeu-se. Motivo de tanta violência: Osmar se parece com uma meia-irmã, filha de seu pai fora do casamento com Maria Aparecida. Os outros três irmãos, que não se parecem com a meia-irmã, nunca foram molestados ou torturados por Maria Aparecida. (Folha de São Paulo, 09/12/1995, página 03).

Fique em Estado de Alerta Quando Presenciar Fratura nos dois ombros em crianças abaixo de 7 anos. Ex: Sacudir a criança violentamente segurando a mesma pelos braços Lesões incompatíveis com a idade da criança. Ex: Fraturas e quedas em bebês que ainda não andam

Fratura de crânio bilateral Ex: Criança jogada contra a parede ou espancada várias vezes

Lesões no rosto com fratura do maxilar Ex: Podem acontecer em decorrência de tapas ou socos

Múltiplas Lesões ou fraturas em diferentes estágios de cicatrização. Uma injustificável demora na busca de atendimento médico para a criança.

TIPOS DE SÍNDROMES Síndrome do Bebê Sacudido É uma lesão cerebral gravíssima, ocasionada geralmente em crianças de até 02 anos de idade, devido a fortes sacudidas em seu | 50


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corpo. A brutalidade desses impactos acaba por comprometer a massa encefálica que se desloca bruscamente em decorrência da violência. Os sinais da síndrome podem ser evidenciados de várias maneiras: através de hemorragias em regiões do cérebro, contusões, edema de sistema nervoso central, hemorragia de retina, fratura da calota craniana, sangramento nas membranas que cobrem o cérebro (Hematoma subdural), variação no nível de consciência, irritabilidade, sonolência, convulsões, paralisias, problemas respiratórios, hipoventilação, coma e morte.

Síndrome de Munchausen O responsável pela criança, geralmente a mãe, mente sistematicamente acerca do estado de saúde do próprio filho. Inventando doenças, os pais induzem a equipe médica a submeter a criança à exaustivos e dolorosos exames, comprometendo progressivamente sua integridade psicológica e física. Portadores de um distúrbio mental, tais pais ou responsáveis pela criança têm por objetivo induzirem os médicos ao erro, fazendo com que os mesmos adotem tratamentos desnecessários, cada vez mais agressivos. Para isso chegam a injetar urina, fezes, veneno no corpo dos pequenos indefesos. A prática de adulterar o material colhido para exames clínicos é também muito usada. Suspeite quando identificar: a) Pais que se queixam exageradamente da fragilidade da saúde do filho, dizendo-se extremamente preocupados, afirmando de forma exibicionista como são grandes os seus esforços para cuidar do mesmo. b) Criança, cuja doença não apresenta um diagnóstico claro e que não reage ao tratamento médico. c) Contradição flagrante entre as histórias relatadas pelo agressor sobre os sintomas da doença da criança e o diagnóstico encontrado pelo médico e/ou apontado pelos exames clínicos. d) Melhora significativa sempre que a criança é afastada do agressor, vindo a recair logo que passa a conviver de novo com o mesmo. e) Insistência acerca da severidade da doença da criança, discordando do diagnóstico do médico, sempre exigindo novos exames.

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LIÇÃO 3 DINÂMICA DO ATENDIMENTO MULTIDISCIPLINAR POSTURA ÉTICA


DINÂMICA DO ATENDIMENTO MULTIDISCIPLINAR POSTURA ÉTICA

LIÇÃO 3

Introdução O atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica exige do profissional três características básicas: competência, compromisso e saúde emocional. Entendemos por competência: Capacidade técnica de realizar um bom diagnóstico das várias modalidades de violência; Conhecimento da legislação que disciplina o fenômeno; Experiência no trabalho realizado em rede. O compromisso com a causa se evidencia através: Zelo nos atendimentos Cultivo da sensibilidade e compaixão no trato dos casos concretos, fazendo com que o profissional não se embruteça e se torne indiferente face aos inúmeros atendimentos que executa. Engajamento político pela causa, tornando-se participante ativo de fóruns, conselhos setoriais e movimentos em prol do enfrentamento da questão. A saúde emocional se manifesta: Pela coragem de fazer uma autocrítica dos próprios mitos e preconceitos acerca do fenômeno. No enfrentamento e tratamento dos traumas existentes em sua história de vida.

Objetivos da lição Vamos abordar aqui a importância da postura ética no atendimento multidisciplinar da violência doméstica na infância e adolescência. As rotinas de atendimento serão trabalhadas posteriormente em outros módulos, sendo nosso foco para esta lição: 1. Realizar uma análise das dificuldades e sentimentos enfrentados pelos profissionais que lidam com esse fenômeno. 53 |


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2. Trabalhar a ética, traçando o perfil do profissional que, devido ao mau atendimento, pode colocar as vítimas de maus-tratos em risco. 3. Delinear regras básicas para um atendimento de qualidade.

1. Dificuldades e Sentimentos dos Profissionais que Lidam com o Fenômeno As dificuldades e sentimentos dos profissionais que atendem casos de violência doméstica contra crianças e adolescentes são os mais variados possíveis. Desenvolver uma atividade profissional dentro dessa área significa muitas vezes ter que enfrentar medos, dúvidas, situações estressantes que trazem profundas frustrações e desapontamentos. HADJIISKY,1990, traduz com muita propriedade, esta questão quando diz: “Não se passa impunemente pelas famílias nas quais há violência doméstica. Elas se constituem numa área de trabalho difícil, desconcertante, desencorajador às vezes. Os enigmas que elas nos obrigam a decifrar podem ser experimentados como um desafio à nossa auto-estima e ao nosso sentimento de competência sobre o qual temos necessidade de nos apoiar”

São sentimentos externados pelos profissionais: Indiferença Muitos profissionais, devido a rotina dos inúmeros atendimentos, acabam tornando-se insensíveis com a dor da criança e sua família. É necessário muita vigilância para não deixar que nossos sentimentos se embruteçam no decorrer da caminhada. Devemos sempre ter em mente que a situação vivenciada pela vítima é única, extremamente dolorosa e que a mesma se encontra bastante fragilizada. Ex: Um médico legista que ia realizar um exame de corpo delito em uma criança de 10 anos de idade chegou no corredor do IML e, de forma grosseira e sem tato, disse na frente de todos que aguardavam na fila: “Cadê a menina que foi estuprada para eu realizar logo o exame? “ | 54


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LIÇÃO 3

Ódio Outra reação bem conhecida é o sentimento de ódio e vingança do profissional, que muitas vezes se choca com a crueldade dos maustratos administrados na criança vitimizada. Apesar do grau de crueldade que nos deparamos nessas situações, é fundamental mantermos o controle e a imparcialidade no atendimento. Uma postura equilibrada ajuda muito na credibilidade dos relatórios técnicos, da investigação policial e nos desdobramentos da abordagem com a família. Ex: É comum os agressores de violência doméstica serem duramente tratados pelos policiais e técnicos que fazem o flagrante de maus-tratos graves e abuso sexual em crianças e adolescentes.

Ser conivente com práticas reprodutoras de violência doméstica Segundo NEWELL, 1989. “Em 1988, nos Estados Unidos, foi realizada uma ampla pesquisa com estudantes universitários no sentido de que descrevessem sua experiência com a punição corporal: 80% haviam sido espancados, sendo que 43% tiveram fraturas ósseas, de 35 a 38% receberam queimaduras, sofreram ferimentos na cabeça, tiveram dentes fraturados e 10% deles apresentaram um quadro de equimoses.”

Segundo o pesquisador, o que mais chamou a atenção foi o fato de apenas 3% dos universitários se acharem vítimas de violência doméstica, mostrando com isso um dado bastante preocupante: por não considerarem tais práticas abusivas quando vivenciadas por eles próprios, também não as considerarão erradas em relação a seus próprios filhos e clientes.

Fugir do enfrentamento da questão Muitos profissionais preferem evitar o desgaste que um caso de maus-tratos acarreta, adotando com isso posturas do tipo: Acreditar com facilidade numa possibilidade de acidente Atender a criança apenas em caráter emergencial sem dar continuidade ao atendimento do caso concreto Culpar a criança pelos problemas vivenciados pela família 55 |


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Dúvida As dúvidas no diagnóstico desse fenômeno são sempre uma constante no que diz respeito à: Realidade da violência, já que muitas vezes a criança vitimizada demonstra carinho pela pessoa do abusador. A gravidade dos maus-tratos A intencionalidade das lesões

Medo As ameaças e retaliações por parte dos agressores são uma possibilidade sempre presente. Muitos profissionais se deixam intimidar pelo perigo da situação. É aconselhável, sempre que possível, que a denúncia seja feita pela instituição e não pelo técnico isoladamente. Já existem em alguns Estados comissões de combate aos maus-tratos em hospitais e escolas, ajudando a desviar o foco das atenções da pessoa para a instituição que por sua vez chama para si a responsabilidade de relatar o caso concreto. Entretanto, nem sempre a denúncia pode ser feita pela instituição ou anonimamente, restando ao profissional encarar a situação com coragem, equilíbrio emocional e preparo técnico. Segundo CUNHA, 2003, “ O profissional que se acovarda frente ao sofrimento de uma criança que se encontra sob sua responsabilidade, deve pensar seriamente em trocar de profissão e público alvo.”

2. Uma questão de ética O perfil do profissional que executa um mau atendimento à criança vitimizada pode ser evidenciado de acordo com os seguintes critérios gerais: Adota uma postura de trabalho individualista, não recorrendo aos serviços executados em rede Se deixa influenciar por vínculos de amizade com a pessoa do agressor, abandonando a imparcialidade no acompanhamento do caso concreto de violência doméstica.

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Não busca capacitação técnico-científica, baseando-se apenas na própria experiência empírica para realizar seus atendimentos. Acredita ingenuamente na mudança de comportamento do agressor sem que ocorra uma intervenção externa acerca do conflito. (Otimismo irreal). Evita ter contato com a vítima e/ou sua família por medo injustificado acerca de sua segurança pessoal. Não sabe reconhecer nem lidar com seus sentimentos e valores pessoais.

3. Regras básicas para um atendimento ético e de qualidade Até que provas mostrem o contrário, o profissional deve confiar na palavra da criança. Raramente uma criança mente ou finge estar sofrendo maus-tratos O atendimento emergencial deve priorizar a segurança física e emocional da criança. Se não houver como assegurar ao mesmo tempo a segurança da criança e a reestruturação da família, deve-se escolher a criança. A família, entretanto, deve ser trabalhada nos encaminhamentos sucessivos. O profissional deve buscar manter uma postura equilibrada e imparcial, a fim de que suas emoções e preconceitos não prejudiquem a dinâmica do atendimento. Crises de choro ou raiva, na frente da criança e de sua família, estão terminantemente fora de questão. O trabalho deve ser executado em rede.. A violência doméstica é um fenômeno marcado pela necessidade da atuação de vários profissionais de diferentes áreas (multiprofissional) localizados em diferentes instituições (intersetorialidade). Ao tomar conhecimento do caso, o profissional deve cultivar uma postura discreta sobre o mesmo, evitando comentar 57 |


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detalhes da história com pessoas que não participarão na sua intervenção direta. Quando nos referimos a manter uma certa discrição, não queremos com isso incentivar uma postura de omissão ou conivência, mas sim de cuidado na apuração dos fatos, a fim de que a criança não venha a sofrer uma exposição excessiva e revitimizadora. O profissional deve tomar cuidado para não se deixar iludir e envolver pelas maneiras prestativas ou bajuladoras do agressor. A independência no atendimento deve ser mantida a todo custo. Presentes, favores e chantagens emocionais devem ser firmemente rejeitados. O profissional que lida com casos de maus-tratos severos deve buscar para si próprio uma escuta de apoio, a fim de manter sua saúde emocional estável. Essa escuta poderá ser feita por um psicólogo, pastor, padre ou um amigo de confiança. A forma de vestir e falar do profissional deve ser discreta e equilibrada. Roupas demasiadamente sensuais e chamativas devem ser evitadas no ambiente de trabalho, bem como linguagem de baixo nível ou técnica demais no trato com a criança e sua família.

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“O mais importante na vida não é a situação onde estamos, mas a direção para a qual nos movemos.” O. W. Holmes


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LIÇÃO 4 POR UMA PEDAGOGIA NÃO VIOLENTA


POR UMA PEDAGOGIA NÃO VIOLENTA

LIÇÃO 4

Após ter discutido a construção histórico-científica do fenômeno da violência doméstica contra crianças e adolescentes, trabalhado o diagnóstico da violência física e refletido um pouco sobre a questão ética no atendimento, vamos abordar nesta lição as mudanças ocorridas em nossa sociedade no que diz respeito à educação de crianças e adolescentes e quais as reações dos pais frente a esse novo momento que estamos passando. Antes de qualquer coisa é interessante observar que toda mudança trás consigo um momento de instabilidade e insegurança. O modelo educativo antigo pregava que os pais deveriam disciplinar severamente seus filhos. Tal postura era adotada ao pé da letra e não existia, na cabeça da maioria dos pais, qualquer dúvida acerca da legitimidade e eficácia desse “método pedagógico”. Atualmente, com a revolução dos conceitos dentro dessa área, muitos são os questionamentos dos pais sobre como devem se posicionar na educação de sua prole. Um sistema foi abolido, mas outro sistema ainda não foi colocado no lugar, isso porque ainda estamos na fase de construção de uma pedagogia não violenta que produza uma cultura de paz na família. Entretanto a família moderna precisa desesperadamente de respostas. As crianças não podem esperar pela consolidação desse processo que talvez dure décadas para ficar bem definido. Muitos pais, ao abandonarem o modelo antigo, descambam para o outro extremo, passando a criar seus filhos dentro de um modelo permissivo, sem regras ou qualquer tipo de limite, prejudicando o desenvolvimento saudável dos mesmos tanto quanto o sistema anterior.

Objetivos da lição 1. Desmistificar a “cultura do bater” como método pedagógico. 2. Posturas que devem ser observadas pelos pais, a fim de serem bem sucedidos na aplicação de uma pedagogia não violenta. 3. Alternativas que podem substituir com sucesso a punição física.

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1. Desmistificando a cultura do bater como método pedagógico Segundo CUNHA, 2003, bater em crianças e adolescentes não vale a pena pelos seguintes aspectos:

a) Bater em crianças e adolescentes é uma prática cultural A punição física de crianças e adolescentes é uma prática cultural e pode ser modificada. Entretanto, para que isso aconteça, precisamos investir na formação de conceitos e valores da sociedade. Citamos como exemplo a escravatura no Brasil, onde os negros eram considerados mercadorias, podendo seus donos fustigá-los com castigos físicos sem nenhuma oposição da sociedade da época. Hoje, após séculos de mudanças, é inadmissível a escravidão de um ser humano. Entretanto, tal forma de pensar da sociedade foi sendo modificada aos poucos através do discurso abolicionista e do respeito aos direitos humanos. Da mesma forma é a violência contra a mulher. Considerada por muito tempo incapaz e inferior ao homem, hoje a mulher tem ocupado seu espaço na sociedade e cada vez mais se torna abominável o ato do espancamento contra elas, principalmente se isso acontece dentro de seus próprios lares. Essa mudança de atitude também não aconteceu por acaso; pois o movimento feminista contribuiu grandemente para que os direitos das mulheres fossem respeitados. Cremos que a violência contra a criança/adolescente, hoje ainda tolerada na modalidade “palmada pedagógica”, precisa ser combatida e desmistificada a fim de que, daqui a alguns anos, a sociedade perceba o absurdo de se tentar educar uma criança através da violência física e reconheça que as crianças/adolescentes também são sujeitos de direitos, merecedores de respeito na sua integridade física e emocional.

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b) Bater em crianças e adolescentes é um ato de violência A violência doméstica contra crianças e adolescentes é marcada por uma relação desigual de poder que se estabelece entre agressor e vítima. Bater em uma criança/adolescente, dependendo da intensidade, é um ato extremamente traumatizante, devido à dor e à humilhação resultante de tal atitude. Nenhum adulto, mesmo com a desculpa de corrigir, tem o direito de provocar dor em um ser, que, pela sua própria condição física, não possui nenhuma chance de defesa.

c) Bater em crianças e adolescentes não os prepara para enfrentar a vida Fazemos muitas palestras em centros comunitários e reuniões de pais. Nessas oportunidades escutamos muitos pais argumentarem: “É melhor que meu filho apanhe de mim do que da polícia.” Tal forma de pensar é culturalmente aprendida e repassada através das gerações. Na verdade esse ditado popular é tão equivocado e está longe de expressar a realidade. Segundo estudos realizados por RALPH WELSH, 1988, Georgia, existe um elo entre condutas delinqüentes e punições físicas. As punições são mais decisivas em termos de condutas delinqüentes do que a situação econômica do criminoso. Logo, se a criança testemunha episódios de violência doméstica entre seus pais ou torna-se diretamente atingida pela mesma, ela, provavelmente, irá reproduzir esta violência naqueles com os quais ela interage e convive, mesmo que posteriormente.

d) Bater em crianças e adolescentes pode tornarse um ato progressivo e perigoso Nesses 11 anos de trabalho com violência doméstica temos observado que a maioria dos pais se descontrola, nem que seja de vez em quando, ao bater em seus filhos, a fim de discipliná-los. O que muitas vezes começa com uma simples palmada, evolui para violências maiores; geralmente antes de uma lesão grave ou que provoque a morte da criança existe um histórico de violências mais leves.

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2. Posturas que devem ser observadas pelos pais, a fim de serem bem sucedidos na aplicação de uma pedagogia não violenta Durante todo o percurso da história da humanidade sempre se acreditou que a punição física era um método legítimo e saudável para corrigir e ensinar nossas crianças. Só recentemente essa verdade, tida como absoluta, tem sido questionada. Romper com paradigmas tão fortemente consolidados não é algo fácil, mas precisamos evoluir e desenvolver caminhos que possibilitem aos pais educarem seus filhos através de uma pedagogia sem violência. Vamos traçar a seguir algumas posturas básicas que servirão de alicerce para que isso se torne possível.

a) Buscar adquirir o máximo de conhecimento sobre o desenvolvimento físico, psicológico e social de suas crianças e adolescentes. Quando os filhos nascem eles não trazem na bagagem um manual de instruções. Muitos pais ficam confusos sem saber de que forma agir. Ter conhecimento, por exemplo, das fases do desenvolvimento infantil de uma criança pode ajudar muito na compreensão do comportamento e reações da mesma. Podemos citar o caso de quem tem filhos pequenos. A melhor forma de evitar “desastres” em casa é colocando fora do alcance dessas crianças cristais e objetos delicados e fáceis de quebrar. A criança de 2 anos, por exemplo, possui um desejo de tocar, morder, cheirar e quebrar tudo que vê ao seu redor. Tal comportamento não é sinônimo de rebeldia, mas sim de um natural sentimento de descoberta do mundo que a cerca. Logo, em vez de bater e tentar domesticar a criança como se treina um animal irracional, é muito mais viável retirar de cima dos móveis os objetos que podem ser quebrados até que a criança possa discernir que é errado quebrá-los. Muitos pais espancam os filhos de (2) dois e (3) três anos para que eles não coloquem o dedo na tomada. Pelo princípio aqui exposto é muito mais pedagógico e saudável comprar protetores de tomada e tapar todas as saídas de energia da casa do que recorrer ao disciplinamento físico da criança, que sequer entende o motivo | 64


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de estar apanhando, obedecendo apenas por medo e instinto como um animalzinho assustado. Entre os (4) quatro e (5) anos a criança já é capaz de compreender as normas e regras exigidas dela, podendo os pais estabelecer um ritmo mais forte de limites e obediência.

b) Manter uma comunicação aberta e sincera com os filhos No mundo da tecnologia de ponta, da tv a cabo, do vídeo game, quase não temos mais tempo para parar e aprofundar nossos relacionamentos. A grande carência das pessoas hoje em dia é de ter alguém que as escutem, as ajudem a compreender seus dilemas e dramas existenciais. Quando trabalhamos essa questão dentro dos relacionamentos intrafamiliares o assunto ganha contornos mais tristes e desanimadores. Pressionados pelo corre-corre diário, os pais não têm tempo para dialogar com seus filhos. Quando os impasses são instaurados e decisões devem ser tomadas os pais geralmente adotam três comportamentos: Preferem simplesmente ordenar o que tem que ser feito e bloquear as linhas do diálogo. O discurso geralmente usado é: “ enquanto você estiver morando debaixo do meu teto vai fazer o que eu mandar”, “ quem come do meu pirão, come do meu cinturão”, “você não sabe ainda o que quer, não passa de uma criança”, “ cale a boca, só fale quando eu mandar”. Motivados pela culpa e/ou negligência, por não dedicarem tempo para seus filhos, preferem adotar a postura do “pode tudo”, do “liberou geral”. Assim, além de não ter chance de dialogar, a criança se sente abandonada, deixada de lado, relegada a segundo plano na vida de seus pais, se sentindo não amada e insegura. Agem da forma correta. Param e gastam tempo para escutar o que os filhos têm a dizer, levando em conta sinceramente suas opiniões e idéias. Dentro de um sistema de pedagogia não violenta o diálogo é fundamental e deve ser marcado pela bilateralidade. Ele requer 65 |


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sinceridade nas trocas de opiniões. Tem que ser feito através da argumentação e não da imposição. Deve permitir que a criança e o adolescente debatam com seus pais todo tipo de assunto, expressando seus pensamentos com liberdade, sem medos, dentro de um clima de confiança e amor. c) Ser exemplo Os pais são modelos e padrões para os filhos. A forma de agir dos adultos é imitada pelas crianças. Quanto maior o grau de intimidade existente entre eles maior a influência exercida. Ser exemplo requer de nós muito mais do que um discurso bonito. Os conselhos ensinados com palavras devem ser vivenciados nas atitudes concretas do dia a dia. Nada frustra mais uma criança do que perceber que seus pais às vezes mantêm uma atitude eivada de hipocrisia do tipo “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. d) Instituir regras bem definidas e justas A permissividade dos pais gera nos filhos sentimentos que vão desde a insegurança à certeza de que não são importantes e amados. Para que exista um convívio saudável em sociedade, a presença de algumas regras para nortear o relacionamento pacífico entre seus membros, se torna fundamental. As normas devem ser de fácil entendimento, não havendo espaço para dúvidas nem equívocos. As criança ou adolescentes que vivem em um ambiente doméstico, onde seus pais possuem o controle da situação, dando o norte a ser seguido, se sentem seguros e acolhidos. É gostoso saber que existe uma rotina regular e orientadora disciplinando tarefas diárias, tais como: horários para as refeições, tomar banho, estudar, dormir, acordar, voltar para casa, etc.É preciso, entretanto, ter cuidado para não transformar a vida familiar em um verdadeiro quartel cheio de cobranças e leis, sendo importante a adoção de uma postura de tolerância e flexibilidade em relação a essas regras. | 66


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e) Coerência na administração da disciplina Os filhos esperam dos pais um comportamento coerente quando o assunto é disciplina. A constância em seus posicionamentos é fundamental. Ou seja, a disciplina deve ser a mesma toda vez que a criança / adolescente infringir determinada regra. A criança fica propensa a um sentimento de grande frustração e insegurança quando um comportamento é permitido numa determinada ocasião e proibido em outra. Geralmente isso acontece quando a disciplina é ministrada de acordo com o humor em que os pais se encontram. Quando irritados, proíbem e castigam os filhos; se de bom humor, permitem tudo e adotam uma postura complacente. Segundo GRUNSPUN (1968): “Mesmo os animais em laboratório, quando acostumados a determinada disciplina nos hábitos, se introduzirmos estímulos inconsistentes, acabarão ficando neuróticos”

Outra questão muito importante é o apoio mútuo entre os cônjuges. Isso não quer dizer que não possam existir discordâncias entre o casal, mas sim que as divergências de opiniões, quanto ao tipo de correção, devem ser discutidas antes ou depois, mas nunca durante a aplicação da medida. Geralmente quando os filhos notam que um dos pais discorda da disciplina que está sendo aplicada, acabam por rejeitar a correção e se sentem divididos, apoiando geralmente o lado que lhes for mais favorável. Isso acaba provocando muitos desgastes nas relações intrafamiliares, gerando mágoa por parte do cônjuge contrariado e sentimentos de culpa e infelicidade por parte dos filhos. Outro problema sério é quando um cônjuge esconde do outro atitudes erradas do filho. Tal comportamento só faz reforçar a falta de limites, tornando cada vez mais difícil, para a criança e adolescente, adquirir o hábito de se responsabilizar pelos próprios atos, prejudicando assim, o desenvolvimento saudável de seu caráter.

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3. Alternativas que podem substituir com sucesso a punição física Não é nosso objetivo relacionar todas as formas de disciplinamento que podem servir de alternativa para substituir, com sucesso, a punição física de crianças e adolescentes. Nenhuma criança é totalmente igual à outra. Cada uma tem sua própria especificidade, cabendo aos pais discernir qual a melhor forma de interagir em relação a cada um de seus filhos. O importante é: seja qual for a atitude a ser tomada, o amor sempre deve estar presente e os pais nunca devem agir sob o domínio da raiva e violenta emoção. São formas de disciplinamento: a) Admoestação Admoestar é o mesmo que repreender, advertir, alertar. A admoestação verbal deve ser feita de forma firme, enérgica, mas sem raiva, ódio ou exaltação. Devemos sempre ter muita cautela com nossas palavras, pois muitas vezes as mesmas ferem mais do que mil chicotadas. Logo o cuidado para proferí-las deve ser redobrado. Ao admoestar seu filho não faça uso de: Gritos, palavrões ou palavras humilhantes. Busque fazer a advertência em um local reservado, longe da vista de todos. Após a conversa, dê um abraço bem gostoso, e diga a ele o quanto é amado e especial para você. Esclareça que ele está sendo repreendido não porque você está sentindo raiva dele, mas sim porque você o ama e se preocupa com ele. Ao fazer a repreensão deixe bem claro que o objeto da condenação é o comportamento inadequado de seu filho e não a sua pessoa ou caráter. Em vez de afirmar frases do tipo: “ Você é um mentiroso !!!”, diga: “Filho, não é correto mentir.” Ou seja, os pais devem usar a repreensão para estimular, em seus filhos, uma mudança de atitude, fazendo com que acreditem na possibilidade de superação de falhas e comportamentos indesejados. As ofensas e humilhações só reforçam a baixa auto-estima, levando ao desânimo e descrédito da própria capacidade de se reabilitar. | 68


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LIÇÃO 4

b) Suspensão de privilégios Quando o diálogo e a admoestação não surtirem efeito, a suspensão de privilégios poderá vir a ser útil. As vezes a perda da mesada durante (1) um mês pode gerar mais efeito do que uma surra. Essa forma de disciplina, entretanto, deve ser administrada com muito cuidado a fim de se evitar a manipulação dos filhos sobre as pessoas dos pais, condicionando a obediência à barganha de presentes e privilégios. Ex: Só obedeço se me deixarem passar o fim de semana na casa do primo Fabrício. A suspensão de privilégios deve ser equilibrada e de pouca duração. Os pais não devem tomar decisões com a “cabeça quente”. Agindo com calma fica mais fácil proceder com justiça, evitando a tomada de medidas exageradas que acabam fazendo com que se tenha que voltar atrás. c) Isolamento Quando a criança se mostrar agressiva em demasia, essa medida poderá ser viável. Segundo CUNHA, 2003: Não devem ser usados como lugares de isolamento: Banheiro Quarto escuro Locais onde a criança possa sentir medo. Basta retirar a criança de perto da cena em que esteja causando confusão e deixá-la sentada em uma cadeira. ATENÇÃO! O local do isolamento não deve causar medo à criança; O espaço de tempo que a criança deve permanecer no isolamento tem que ser ”bem curto”, alguns minutos somente, o suficiente para se acalmar e refletir a cerca de suas maneiras agressivas; Quando se tratar de adolescente, o isolamento deve ser aplicado de forma diferente. Exemplos de isolamento para adolescentes: Ex1: Permanecer em casa num dia de domingo; Ex2: Ser proibido de ir com os amigos ao cinema. É importante que junto com a disciplina os pais gastem tempo com diálogo franco e aberto.

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Enfrentamento da Violência Doméstica Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes na Infância e Adolescência na Modalidade Violência Física

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LIÇÃO 5 REVENDO A PRÓPRIA HISTÓRIA

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REVENDO A PRÓPRIA HISTÓRIA

LIÇÃO 5

Casos concretos de maus-tratos Pai é preso por espancamento: Policiais do 1º Distrito de Curitiba prenderam em flagrante o servente José Avelino Silva Filho. Ele é acusado de matar por espancamento o filho M. C. O., 3 anos. O menino morreu anteontem no hospital infantil Pequeno Príncipe. O laudo do IML com a causa da morte ainda não foi divulgado porque está na dependência dos exames complementares. Segundo o delegado Paul Renato Araújo, Avelino confessou que bateu no filho com o chinelo, pois ele teria feito cocô em casa. A mãe de M., Joaninha, disse que estava no médico na hora do crime (Folha de São Paulo, 06/08/1994, Caderno 01, página 03).

Mãe corta a língua da filha: A dona de casa Terezinha da Silva Francisco, de 27 anos, usou uma tesoura para cortar a língua da filha D. C. S. F., de 10 meses, porque a criança “estava com o diabo no corpo e chorava muito”. Terezinha e o marido, o servente de pedreiro Jair Francisco, de 28 anos, foram presos ontem de madrugada na Santa Casa de Sorocaba (SP), para onde levaram a criança com forte hemorragia. A mãe contou à Polícia que recebera “ordens do demônio” para tirar “alguma coisa ruim” que estava dentro da filha e a fazia chorar. Puxando a língua da criança, ela pediu uma tesoura ao marido e cortou o órgão em duas partes. Os médicos disseram que não é possível fazer o reimplante da língua que foi decepada (Diário do Nordeste, 13/03/1998, Caderno Polícia, página 20).

Polícia prende casal acusado de matar filha: A polícia prendeu anteontem um casal sob a acusação de ter matado a filha caçula, J. H. S. G., 2 anos. Segundo a delegada Elizabete Ferreira Sato, o pai chegou em casa bêbado e deu um soco no olho direito de Jéssica porque a menina lhe pediu um pedaço de pão. A garota começou a chorar, o que teria deixado o pai mais nervoso ainda. Ele teria pegado a criança e a jogado contra a parede da geladeira. Jéssica teve traumatismo cranio-encefálico e morreu (Folha de São Paulo, 03/02/1994, página 3). 71 |


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Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes na Modalidade Violência Física

J.C.S é uma adolescente que aos 9 anos de idade era molestada pelo pai biológico: Por este motivo ela foi morar com a mãe. No entanto, a situação se repetiu, visto que o padrasto de J. também a abusou sexualmente. J. afirma que não relatou o caso a mãe com medo do que poderia acontecer, pois o padrasto sustentava o lar e temia que sua mãe não acreditasse. Quando J. estava tomando banho, sua mãe flagrou seu padrasto observando a menina. Mãe e padrasto começaram a brigar. “Quando ele, com uma faca na mão, disse que ia matar a minha mãe, eu enfrentei a situação, foi quando ele bateu no meu rosto, deixando a faca cair. Sem domínio de mim, eu peguei a faca e o feri. Não queria matálo. Quando vi o sangue, comecei a gritar, pedindo socorro aos vizinhos. Tenho medo de ficar presa”. (Caso CECOVI, denúncia recebida em 24/11/2000).

A.V.M.S. 6 anos foi estuprada pelo padrasto: A criança necessita de cuidados médicos, pois está com seqüelas da violência. A mãe encontrou a filha ensangüentada e em estado de choque. (Caso CECOVI, denúncia recebida em 13/03/2000).

A menina A.S., recém-nascida de um mês, foi atingida por golpes de vassouras desferidos pelo próprio pai: C.A.C. atacou M.J.S., a mãe, durante discussão em que a mulher o criticava por estar namorado sua amante, V.S.S., na sua frente. São todos analfabetos, desempregados e alcoólatras, e vivem pelas ruas do centro do Rio. A criança atingida morreu na madrugada, mas somente pela manhã é que sua mãe constatou que A.S. estava sem vida, banhada em sangue. Durante todo o dia de ontem o corpo de A.S., coberto com uma manta encardida e em meio a quatro velas acesas por mãos anônimas, foi velado por uma multidão de curiosos. (O Estado de São Paulo, 27/08/1986).

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REVENDO A PRÓPRIA HISTÓRIA

LIÇÃO 5

Z.O.C., de seis anos, foi torturada no Rio pelo seu padrasto, J.M.P., de 22 anos, que a queimou nas nádegas, coxas e pés, com um ferro de passar roupa: Na delegacia de polícia, ele explicou que a garota mexeu no despertador, fazendo com que perdesse a hora. Além de queimar a menina, colocou sal sobre os ferimentos “para arder bastante”. A mãe de Z.O.C. estava viajando e por isso ela buscou ajuda de uma vizinha que a levou ao posto policial. A garota depois de medicada foi entregue a uma unidade da Febem. (O Estado de São Paulo).

A.C.V., de 14 anos, foi abusada sexualmente pelo próprio pai: Há quatro meses o pai vem abusando sexualmente da filha na ausência da mãe. Vive a criança sendo ameaçada de espancamento, bem como há ameaças de morte à sua mãe. A menor procurou espontaneamente a delegacia de menores, durante a noite, após a última tentativa. Pernoitou na delegacia, sendo encaminhada ao CRAMI no dia seguinte. Submetida a exame de corpo de delito, observou-se rotura himenal tardia e recente. A mãe reconhece o fato. (CRAMI, 11/08/1986).

M.M.S., de 9 anos de idade, atendida no posto de saúde municipal com queimaduras na perna provocadas pelo pai, J.E.S., com um pedaço de lenha em brasa: A aparente razão da agressão foi a briga entre os irmãos, impedindo-o de dormir, pois se encontrava cansado após brincar a segunda-feira de carnaval até a madrugada. Como antecedentes J.E.S. queimara, há tempos, atrás, o lábio de outra filha, R.M.S. com cigarro. A mãe deu queixa no distrito policial e a criança foi submetida a exame no IML. (CRAMI, 04/03/1987).

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Curso de Capacitação

Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes na Modalidade Violência Física

O que você sentiu ao ler os casos citados: raiva, dor, indiferença?

Spurgeon, chamado o príncipe dos pregadores, costumava dizer que trazemos nossos piores inimigos dentro de nós. O profissional que trabalha no enfrentamento da violência doméstica deve buscar realizar um auto-exame, a fim de perceber se está ou não liberto de reticências psicológicas. Segundo CUNHA, 2003: Se o profissional possui uma história marcada pela dor e humilhação em sua infância, e não encontrou ainda cura para suas feridas interiores, com certeza terá muitas dificuldades para lidar com a dor e a humilhação de outras pessoas. A essa fragilidade, de enfrentar fatos envolvendo cenas de sofrimento, chamamos reticências psicológicas. É preciso ter muito cuidado com sentimentos dessa natureza, pois eles podem condicionar, de forma extremamente prejudicial, nosso comportamento quando nos achamos diante da violência intrafamiliar. Muitas pessoas se aproximam, para atuar nessa área, motivadas pelas próprias experiências vivenciadas durante a infância. Entretanto, | 74


REVENDO A PRÓPRIA HISTÓRIA

LIÇÃO 5

para fazer o combate desse fenômeno, se faz necessário uma boa estrutura emocional. Ou seja, o técnico só terá condições de socorrer eficazmente as crianças que chegam às suas mãos, se gozar de boa saúde emocional. Caso ele tenha um histórico de maustratos, é necessário antes aprender a lidar com sua dor interior. É ilusório o entendimento de que, ao interagir com a dor do outro, pode-se alcançar alívio para própria dor. Quando isso acontece, a tendência, quase sempre, é o agravamento do quadro, chegando em alguns casos, principalmente nos de abuso sexual, o profissional entrar em um processo de depressão profunda. O que definirá se nos tornaremos bons ou maus profissionais dentro dessa área será, além da nossa capacidade técnica, termos a humildade e coragem de sondar nossa própria história de vida e buscar, caso seja necessário, ajuda para curar nossa criança interior. Muitas vezes estamos feridos e escondemos esse fato bem no íntimo do nosso coração.

“Gosto de comparar aquele que sofre calado seus traumas e lembranças, a uma pessoa acometida de um grande tumor na perna. Esse indivíduo padecerá de febre e de dores por todo seu corpo. Tocar no tumor irá doer terrivelmente, mas, se ele quiser ficar curado, terá que espremer o mesmo com toda firmeza a fim de que todo pus e demais impurezas venham para fora. Essa analogia pode ser aplicada a qualquer um de nós. As vezes não queremos tocar nem confrontar nossos tumores existenciais e prosseguimos a caminhada doentes e febris psicologicamente. É necessário refletir sobre isto, a fim de tomarmos a atitude de expulsar de nossas vidas os males que nos consomem. Mas como fazer isso? Em primeiro lugar, admitindo, se for o caso caso, que temos dificuldades e questões mal resolvidas. E em segundo lugar, buscando ajuda. Essa ajuda pode ser através de um desabafo feito a um amigo, um aconselhamento pastoral ou um tratamento psicológico. O essencial é que você não continue guardando dentro de si mágoas de um passado que há muito tempo já se foi e que só você ainda não percebeu, nem se libertou.” CUNHA, 2003

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Curso de Capacitação

Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes na Modalidade Violência Física

Dito isso, convidamos você a dar um passo de coragem, colocando por escrito sua história vivenciada na infância. Com certeza existiram momentos felizes e momentos tristes. Pedimos, entretanto, que relate: A forma como foi disciplinado(a) por seus pais. Qual o tipo de família que você veio: controle severo, permissiva ou equilibrada. Qual a cena que mais marcou você negativamente durante a infância. Qual a cena que mais gosta de lembrar positivamente em sua infância. TESTEMUNHO PESSOAL

ATENÇÃO: Gostaríamos de receber, se possível, seu testemunho. Você poderá se identificar ou, caso prefira manter o anonimato, enviar o mesmo sem colocar seu nome.

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MOD ALID ADES DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA INFÂNCIA MODALID ALIDADES Maus T ratos Físicos Tratos

Palmadas

Abuso Sexual

Exibicionismo

Puxar cabelo Puxar orelha

Abuso PPsicológico sicológico

Rejeitar Voyeurismo

Colocar de joelho Beliscões Bater no rosto/boca Tapas

Atos libidinosos (beijos, bolinagem com os dedos, sexo oral, etc)

Isolar

Pornografia

Bater de chicote Bater de cipó Socos/pontapés Espancamento com corda, fio ou cinto

Exploração Sexual Comercial Relações sexuais (vaginal)

Espancamento com pau ou barra ferro

Relações sexuais (anal)

Queimaduras a ferro cigarro ou água

Tentativa de Relações Sexuais

TOTAL

Aterrorizar

Palavrões

QUESTIONÁRIO SONDAGEM

1. Quando criança, você sofreu alguma(s) das formas de violências abaixo citadas:

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Curso de Capacitação

Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes na Modalidade Violência Física

2. Você já praticou em relação a seus filhos: FORMAS DE VIOLÊNCIA APLICAD AS NAS CRIANCAS APLICADAS Maus T ratos Físicos Tratos

Palmadas

Abuso Sexual

Abuso PPsicológico sicológico

Exibicionismo

Puxar cabelo

Rejeitar

Puxar orelha

Voyeurismo

Colocar de joelho Beliscões Bater no rosto/boca Tapas

Atos libidinosos (beijos, bolinagem com os dedos, sexo oral, etc)

Isolar

Pornografia

Bater de chicote Bater de cipó

Exploração Sexual Comercial

Socos/pontapés Espancamento com corda, fio ou cinto

Relações sexuais (vaginal)

Espancamento com pau ou barra ferro

Aterrorizar

Relações sexuais (anal ) Palavrões

Queimaduras a ferro cigarro ou água

Tentativa de Relações Sexuais

Expresse sua opinião Sou contrário a qualquer forma de disciplina física, inclusive a palmada pedagógica

Sim

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Não

Defendo a disciplina severa em crianças e adolescentes

Sim

Não

Defendo a disciplina física moderada, ou seja, o uso da palmada pedagógica

Sim

Não


REVENDO A PRÓPRIA HISTÓRIA

LIÇÃO 5

PERFIL PESSO AL D AS CRENÇAS E CUL TURA PESSOAL DAS CULTURA RELIGIÃO

INSTRUÇÃO

Católica

1º grau incompleto

Espírita

1o grau completo

Evangélica

2º grau incompleto

Sem religião

2º grau completo

Outros

3º grau incompleto 3º grau completo ESPECIFICAÇÕES - OCUP AÇÃO X REND A OCUPAÇÃO RENDA 0 salário

Renda FFamiliar amiliar

De 1 a 2 salários de 3 a 4 salários de 5 a + salários Professor Assistente social Enfermeiro Médico Advogado

Ocupação

Universitário Funcionário público Estudante secundarista Conselheiro tutelar Conselheiro de direitos Dentista Policial Do lar Desempregado Outra ocupação TOT AL TOTAL

Após o preenchimento do questionário sondagem, pedimos aos nossos alunos que façam uma cópia e enviem para o CECOVI. A identificação é opcional. 79 |


EXERCÍCIOS DE APRENDIZAGEM

Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes na Modalidade Violência Física

foto: budgetstockphoto.com


EXERCÍCIOS DE APRENDIZAGEM

Marque [V] para as alternativas corretas e [F] para as falsas: 1. A violência doméstica contra crianças e adolescentes é um fenômeno marcado por mitos e preconceitos: [

] a) A família é sem mácula, perfeita e harmoniosa, devendo sua privacidade ser respeitada acima de tudo.

[

] b) O amor materno e paterno são sentimentos que já nascem naturalmente no coração daqueles que se tornam pais.

[

] c) A violência doméstica contra crianças e adolescentes perpassa todas as camadas sociais, sendo um fenômeno cíclico e inter geracional.

[

] d) A ausência de denúncias e a subseqüente precariedade de dados levam a população a crer que a violência dentro do lar, direcionada a crianças e adolescentes, não existe, ou se existe, esta é muito pequena e de leves proporções, não chegando a ser um problema social.

2. Sobre as principais características da violência doméstica contra crianças e adolescentes: [ ] a) Os pais biológicos são os agressores mais comuns. [

] b) O fenômeno possui natureza repetitiva. 50% a 60% dos casos se repetem quando não existe uma intervenção e acompanhamento.

[

] c) Geralmente não existe nenhuma predileção dos pais por um determinado filho como alvo dos maus-tratos.

[

] d) os pais que maltratam seus filhos são em sua grande maioria pessoas perigosas e que sofrem problemas psiquiátricos.

3. Sobre a melhor forma de se educar uma criança: [ ] A punição física de crianças e adolescentes é uma prática cultural e jamais poderá ser modificada. [

] A grande maioria dos pais jamais se descontrola ao bater em seus filhos.

[

] A falta de limites, por parte dos pais, gera filhos mais seguros e independentes.

[

] Os pais que pretendem criar seus filhos dentro de uma pedagogia não violenta necessitam buscar: informação, diálogo, ser exemplo, estabelecer regras claras e justas, ter coerência e constância nas formas de disciplinar e acordo entre os pais.

[

] A punição física é a única alternativa eficaz para se educar uma criança ou adolescente.

4. Sobre o profissional possuidor de reticências psicológicas: [ ] Achará muito difícil ter contato direto com a dor e humilhação de outras pessoas. [

] Não terá nenhuma resistência para lidar com a dor e humilhações de outras pessoas.

[

] Lidará muito bem com a dor e humilhação de outras pessoas, pois sabe o que elas estão passando.

[

] Não saberá atender o caso como convêm, pois se encontra fragilizado interiormente.

5. O profissional competente: [ ] Faz seus atendimentos com coragem e equilíbrio, não se deixando influenciar pela pessoa do agressor. [

] Trás dentro de si uma sede de vingança e justiça.

[

] Confia somente em sua experiência prática, rejeitando o conhecimento técnico-científico.

[

] Trabalha sozinho, pois pensa com sabedoria: “ antes só do que mal acompanhado”.

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Modalidade Violência Física

O Fundo das Nações Unidas para a Infância - Unicef em parceria com o Centro de Combate à Violência Infantil - CECOVI, desenvolveu uma metodologia de aprendizagem à distância cujo objetivo é capacitar profissionais que fazem parte do Sistema de Garantia de Direitos para o enfrentamento da violência doméstica contra crianças e adolescentes. O programa aborda o fenômeno da violência intrafamiliar na infância e adolescência através de seminários sensibilizadores, módulos e vídeo conferências. O presente curso consiste num projeto piloto realizado no estado do Rio Grande do Norte e que conta com a implantação e monitoramento do Centro de Combate à Violência Infantil CECOVI e a articulação e mobilização da Secretaria da Ação Social do Estado do RN, através da Fundação Estadual da Criança e do Adolescente (FUNDAC). O modelo aqui exposto poderá ser replicado através de parcerias com governos, iniciativa privada e sociedade civil, desde que conte com autorização expressa do Unicef.

A autora, Maria Leolina Couto Cunha é advogada, com especialização em Direito Penal pela Universidade de Mogi das Cruzes e em Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes pela Universidade de São Paulo Instituto de Psicologia (USP/LACRI). Atualmente exerce o cargo de presidente do Centro de Combate à Violência Infantil (CECOVI).


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