Literatura, Resistência e Desobediência É preciso estar atento e forte Não temos tempo de temer a morte (Caetano Veloso)
Expediente Eduardo Lacerda leonardo MAthias Nathan Matos Ricardo Escudeiro
Vivemos dias de retrocesso em nosso país. O recente golpe de Estado não só criou uma instabilidade política e social, como trouxe ao poder forças conservadoras, ansiosas em retirar ainda mais direitos: sociais, trabalhistas, econômicos e culturais. Esta não é uma publicação política, nem partidária, embora Drummond já tenha antecipado que o nosso tempo é tempo de partidos, de homens partidos. É uma publicação literária, mas decidimos (mesmo correndo risco de alguma censura, já que é uma publicação com patrocínio - para os números 11 e 12 - da Secretaria de Estado da Cultura do Estado de São Paulo) marcar nossa posição: desejamos um país melhor e mais justo para todos e todas. Resistir e Desobedecer, nossos temas amplos, gerais e irrestritos em quase 100 páginas dedicadas à poesia e a alguns questionamentos sobre literatura e cultura. Aproveitamos para agradecer a todos e todas que durante o último ano nos enviarem textos e poemas (recebemos centenas de colaborações de todo o país). Desejamos ótimas leituras e, principalmente, diálogos e encontros entre aqueles que acreditam que amar e mudar as coisas ainda nos interessa mais.
ENTREVISTA
“A pesia é um time que só perde” poemas MATÉRIA
A resistência das cartoneras, poemas MATÉRIA
Territórios em disputa.
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ENTREVISTA
“A poesia é um time que só perde” Em entrevista ao Casulo, o poeta Frederico Barbosa comenta resistências, fracassos, cita o melhor goleiro do futebol mundial e lembra de poetaços como Gregório de Matos e poetastros da estirpe do presidente Temer por Edison Veiga
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“Procurar novos poetas hoje é um ato de resistência: contra a massificação, contra o aparelhamento, contra os grupinhos que se formam na literatura.” A frase vem de um dos sujeitos que mais entendem dessa decantação assimétrica do joio de tantos tipos de trigo na poesia contemporânea: Frederico Barbosa, 56 anos, que foi diretor da Casa das Rosas – Espaço Cultural Haroldo de Campos de Poesia e Literatura por quase 12 anos e, desde meados de 2016, coordena as atividades culturais do Instituto Equipe. Frederico Barbosa, 56 anos, sobretudo poeta – dos grandes, com Jabuti na estante e uma bibliografia consolidada. Seguinte: o Edu [Eduardo Lacerda, editor da Patuá e deste Casulo, dono da Patuscada, e amigo deste entrevistador] disse que o tema do jornal vai ser resistência...
Vou dizer um poema do Lau Siqueira, chamado ‘Aos Predadores da Utopia’. Sei de cor. “Dentro de mim/ morreram muitos tigres.// Os que ficaram/ no entanto/ são livres”. Este é poema. Acho o mais significativo poema dos poetas de minha geração. É muito forte. E tem muito a ver com essa questão da resistência. É do cacete. Quantos tigres não morreram dentro de mim? Quantas decepções recor-
fotografia Ninil Gonçalves
rentes em todos os sentidos – politicamente, literariamente, pessoalmente? É um poema que diz muito. Encontrar novos poetas é um ato de resistência por si só? Seguramente. Talvez pelo fato de que na literatura todo mundo perde, ninguém ganha dinheiro com poesia mesmo. Então as pessoas querem pelo menos o reconhecimento. Aí usam grupos como artifício e vem as autopromoções. Como identificar alguém que realmente faça literatura – discernindo-o daquele que apenas gosta de escrever? É difícil. Em primeiro lugar, acredito que ele tem de aceitar a ideia de discutir seus textos. Porque nenhum poeta nasce pronto. Todo mundo aprende. A primeira coisa é ver se a pessoa é capaz de discutir o texto, se consegue receber bem a crítica. Mas não tem nenhuma fórmula. Eu detesto fórmula. Tive um professor que dizia que poema bom é aquele que tem muita carga metafórica. Eu rebati que então [o músico] Wando [1945-2012] era o melhor poeta do mundo. Afinal, em sua música ‘Fogo e Paixão’ ele nos apresenta uma sucessão de metáforas sem fim, mas na verdade uma sucessão de lugares comuns.
O que é um bom poema, então? Existem vários fatores. É preciso ver como a linguagem é articulada nele, qual sua capacidade para surpreender o leitor, como ele trabalha com a sonoridade, o ritmo, enfim, existem vários critérios. Critérios um tanto subjetivos para um crivo que vem sendo perpetrado pelos grupinhos... Sem dúvida. Em 1949, quando o [filósofo] Albert Camus [1913-1960] veio ao Brasil, pediram para que o maior poeta do Brasil na época o recebesse no Rio de Janeiro e o levasse a conhecer a cidade. Naquele ano, todos os grandes modernistas, com exceção do Mario [de Andrade, morto em 1945], que morreu muito jovem, estavam vivos. Quem foi o cicerone do Camus? Um sujeito chamado Augusto Frederico Schmidt, um poeta que ninguém mais lê. Era um poeta importante na época, mas muito fraco. Por outro lado, era milionário e dono da editora Schmidt, que publicava todos os outros caras. Ou seja: tinha muita influência. De certa forma, exemplos que persistem em todas as épocas... Sem dúvida. Veja o Paulo Bomfim. É um poeta horrível, que não faz o menor sentido. A única vez em que concordei de fato com o Mário Chamie [1933-2011] foi quando eu administrava a Casa Guilherme de Almeida e tive de participar de um evento na Academia Paulista de Letras. O Guilherme de Almeida [1890-1969] também foi um poeta muito fraco, de quinta categoria; por outro lado, era um tradutor interessante. Pois o tal evento era uma homenagem a ele. Bomfim começou a falar sobre o Guilherme de Almeida. Mário se levantou no meio e soltou um “nunca ouvi tanta bobagem junta”, pegou suas coisas e foi embora. Quase que eu fui embora também. A Academia, como instituição, é a resistência desse status quo, da pose literária? No mundo das academias predomina a mediocridade. Ali, as pessoas incensam os poetas, só que
por outras razões. Não porque são grandes poetas, mas porque o cara é juiz, é importante do judiciário e tal, e por aí vai. O mundo literário está cheio de poetastros... Neste momento deve haver alguém elogiando a verve poética de nosso presidente ilegítimo [Michel Temer, do PMDB, que publicou o livro ‘Anônima Intimidade’ em 2012, quando ainda era vice-presidente]. Deve ter gente dizendo que ele é o maior
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poeta do mundo... Esse clubismo generalizado é péssimo para a literatura, as pessoas só leem os amiguinhos. O cara acha que o Paulo Bomfim é um bom poeta porque o conceito que ele tem de poesia é aquele. No meio desse contexto, como é buscar os verdadeiros poetas? Buscar gente boa me dá muita alegria. Também me dá muita alegria ajudar gente boa. Eu também tive ajuda de gente importante. Quando eu tinha 15 anos, comecei a escrever poesia e tinha em casa um grande leitor, um dos melhores que este País já teve [Frederico é filho de João Alexandre Barbosa, 1937-2006, ensaísta e crítico literário]. Hoje em dia, o advento da internet ajudou na busca de novos autores – antes, só se lia quem você conhecia ou quem já tivesse sido publicado. Quem foram seus grandes incentivadores, além do seu pai? 6
Aos 15, tinha um professor chamado Gilson Rampazzo, que até hoje faz o Laboratório de Redação do Colégio Equipe. Ele não gostava de tudo, era muito rigoroso, e tentar fazer algo que ele julgasse bom passou a ser meu parâmetro. Eu tive um círculo muito privilegiado por conta das amizades de meu pai. Outra referência era o poeta Sebastião Uchoa Leite [1935-2003]. Eu ia ao Rio e ficava na casa dele, mostrava meus poemas – e suas críticas eram sem o menor tato, ele dizia quando achava que estava uma porcaria; era bom porque eu sentia que ele me levava a sério como escritor. Já o [tradutor, escritor e ensaísta] Boris Schnaiderman [1917-2016] foi o primeiro a publicar um poema meu, em uma revista que ele editava. O [poeta] Haroldo [de Campos, 1929-2003] também leu vários poemas meus, conversava sempre comigo sobre poesia e tal. Tive o privilégio de ter essas pessoas em torno de mim. Deste caldo veio minha formação. Por isso que não nego minha opinião quando novos escritores me procuram. Mas a pessoa precisa se despir do ego, ter a maturidade para entender que eu estou falando
do texto e não dela. Infelizmente, muitos autores têm dificuldade de discernir essas coisas; há quem se ofenda, fique com raiva. A poesia é um time? Eu estava lançando um livro em 2001 e o poeta Ulisses Tavares voluntariosamente começou a espalhar convites, chamar pessoas. Quando disse a ele que não estava entendo o motivo de tamanha ajuda, ele rebateu com uma frase lapidar: “Na estreita praia da poesia, a vitória de um é a vitória de todos”. Adorei essa frase e é muito verdade. Se você levantar aqui [estávamos em um restaurante no bairro das Perdizes] e perguntar quem lê poesia, não vai ter ninguém. Mas, no meio literário, fica todo mundo brigando. Eu aprendi uma coisa com o melhor goleiro da história do futebol mundial [Marcos, que defendeu o Palmeiras ao longo de toda a sua carreira]. Na época, o Palmeiras vivia uma péssima fase, priscas eras em que ainda não éramos eneacampeões nacionais. Aí o time tinha perdido 10 jogos seguidos e um repórter perguntou a ele se o problema era que os jogadores não se davam bem. Ele respondeu que, pelo contrário, todos eram amigos, o clima era ótimo – o problema é que quando o time perde, as brigas aparecem; e não são as brigas que causam as derrotas. Isso tem a ver com a poesia: é um time que só perde, porque é algo que não tem valor para esta sociedade consumista, capitalista. Então é um time fadado ao fracasso, sempre. [por WhatsApp, dias depois, Frederico complementou: “A poesia é o Íbis da cultura. O pior time do mundo, com os jogadores mais maus-caracteres.”] Há um cerceamento dos gostos, em se tratando de literatura? Sempre gostei demais do Augusto [de Campos]. Acho que ele é o maior poeta vivo deste País e concorre com João Cabral [de Melo Neto, 1920-1999] e Gregório de Matos [1636-1696] ao posto de maior poeta que o Brasil já teve. Muitos não entendem e me criticam por esta escolha. Certamente se minha
paixão fosse um Drummond [Carlos Drummond de Andrade, 1902-1987], um poeta que eu sempre curti mas que é mais unanimidade nacional, eu não teria tanta oposição, afinal é quase impossível você encontrar alguém que não goste de Drummond. Por outro lado, eu não consigo entender como alguém gosta de Adélia Prado. Não acho nada, não consigo achar poesia no que ela escreve. Se alguém conseguir me provar que ela é uma ótima poeta, eu vou agradecer porque vai me acrescentar algo, vou ficar feliz. Mesma coisa com o Ferreira Gullar [1930-2016], que eu acho medíocre. Mas do jeito que as coisas são, o texto acaba virando só um pretexto para aparecer. Então chega um ponto em que o Frederico Schmidt é considerado melhor do que um Drummond, um João Cabral. Aí não dá... Tudo por causa das relações pessoais. Mas é preciso resistir. É preciso resistir? A questão da resistência é muito mais “resistência pelo texto” do que qualquer outra coisa. Eu já falei que hoje em dia estou numa fase em que não quero mais ajudar ninguém. Porque eu me sinto traído por várias pessoas que eu ajudei, que buscam me esconder, como se fosse demérito. Eu falar que o Sebastião me ajudou, que o Haroldo me ajudou, isso por acaso tira os meus méritos? Não consigo achar isso. As pessoas querem achar que todo mundo é self-made man. Escrever é resistir? Tem vários poetas contemporâneos hoje que acham que ser poeta é ficar no bar, beber e escrever sobre isso. Gente que quer ser o [Charles] Bukowski [1920-1994] do século 21 mas o texto acaba sendo só um pretexto. É o mesmo que o cara tomar LSD e achar que vai tocar guitarra como o Jimi Hendrix. Sob tal efeito, é capaz de ele achar mesmo, mas só ele. O Hendrix era bom pra caramba não porque tomava LSD, mas porque treinava, vivia para isso. É o mesmo com a literatura.
Qualquer um pode ser poeta? Sim. Eu não acredito em dom, eu não acredito em talento. Para mim, é trabalho, é treino. Acredito que qualquer um pode ser até Picasso, se quiser. As pessoas gostam de dizer que existe dom e talento para não sofrerem. Do ponto de vista da literatura, acho que a primeira coisa que um pretenso autor precisa se perguntar é por que ele quer escrever. Se for só uma questão de ego, melhor desistir. Se for só para mostrar ao mundo o que sente, também. Por que você escreve? Eu não escrevo por nenhuma razão boa. Minhas razões são sempre ruins. O [Ignácio de] Loyola Brandão falava que, para ele, escrever era se vingar, porque ele não era bom em esportes, não era o mais bonito da escola, não era o mais legal. A ele, sobrava a literatura. E ele precisava se vingar de algum jeito. Eu concordo.
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Peripoética (in Fábrica de Carapuças)
Nunca confie num poeta de quinta que se reputa conhecedor da poética. Se realmente conhece a matéria e ainda assim não é poeta que presta, falta-lhe caráter. Ética.
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e daquele sorriso magro
tão carregada de ausência
ou a memória de nós duas,
naquele motel em vila isabel
prum valentine’s day barato
ou a depilação meticulosamente feita
tampouco percebia a calcinha nova
e você não olhava
dizendo “olha pra mim, porra!”
apenas observar seu crescimento expansivo
sem ter que podar uma folha sequer
como desejava uma samambaia antiga
a pela cerca mas tão longe feito aquele samba em irajá
as que me traziam dúvidas, claro
e alguma poesia torta de hilda ou ana
chá preto descafeinado
e a saliva pouca de um sexo quase automático
agarrada ao vaso de jibóias, menos cobras que o nosso amor fast food
de adiamento da renovação do aluguel
aquela casa errada; e teu pedido
quando eu lentamente perdia as unhas, tentando em vão descascar lichias sem machuca-las
quando impiedosamente arrancávamos pedaços daquela parede cor de gin
eu me acuerdo de ti
Ana Beatriz Domingues
lê pouco, gosta de lichias geladas e contempla o lusco-fusco com olhos de gavião.
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HOMEM-SEQUELA Não chove não chove mais. A água agourenta já não molha as asas abertas do heroi e não há heroi algum. O espectro boêmio do dever ronda esta carcaça desde 1918 embriagado da velha história “choram as mães e as namoradas”. Choram os homens também por cima de bíblias e corpos amolecidos e cartuxos de Thompson.
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Choro às vezes em salas de cinema ao lembrar do tanque e dos homens do tanque e da obrigação de morrer. Suor, gordura queimada, pele rasgando e cedendo não pensei na minha mãe no mundo só havia eu e os homens no tanque e os outros que eram homens como eu embora chorassem em outra língua.
Fernanda Cimetta Lopes tem 19 anos e escreve com a mão direita.
Sobre pedras e sementes Coisas silenciadas Respiram como um peito De um pássaro Na véspera do voo Como o pólen disperso Na imensidão Como o milagre Escrito no fruto E no pão A semente arde Em seu estado de pedra Como uma hora que não tarda Inclino-me Às pedras dormentes Pousadas Graciosas ao longo De um rio No leito da estrada E adivinho A graça da semente Que na pedra Sonha Ser grão E arde
Sandra Fonseca
Gabriel Felipe Jacomel, SP
QUIROMANCIA SIMPLIFICADA as linhas das mãos estão mais dadas à costura. para saber do futuro com o outro: batam palmas. vai dar certo se enroscar.
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as outras já foram embora de noite sou Rei do parquinho
Domingo no parque
nasceu em São Paulo, em 1989. Publicou “Formol”, em 2014, pelo Selo DoBurro. Anda em círculos para não se perder.
mamãe mandou ficar sentado no banco da praça balão pra achar graça eu volto te buscar
André Oviedo
AUTO-RETRATO I
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Eu não sou somente este rosto jovem sou também este corpo magro estes pulmões doentes este ser descrente. Eu não sou somente estas cicatrizes na testa braço e perna sou também e principalmente a lembrança delas. Eu não sou somente este sorriso e estes olhos míopes minha gente sou também humano e tenho (como vocês) cáries nos dentes. Eu não sou somente este sexo masculino sou também os momentos de carinho e a ausência deles quando se utiliza o recurso das mãos e da mente. Eu não sou somente o que como e o que bebo sou também o que excreto no banheiro. Eu não sou somente um amontoado de órgãos sou também a função de cada um deles isoladamente.
Eu não sou somente as palavras e os atos sou também (e antes) os gestos que os/as determinaram. Eu não sou somente o caminhar e o seu contrário sou também o percurso no escuro. Eu não sou somente poeta seus estetas sou também funcionário público.
Milton Rezende 52, mineiro de Ervália, na Zona da Mata, possui nove livros publicados entre poesia e prosa.
Fenda
ignorava conselhos, Há tempo o menino ficou lá fora. Espera, espreita a barra da porta, mas já não pode passar. Todos os longos anos de preparo – escola, dentista, boxe – e a busca pelos jogos de montar, pelo seio roído da mãe que já foi. Uma vida de busca e solidão, a passagem do peito fechada: só o túmulo aberto da infância.
Clarissa Macedo doutoranda, publicou O trem vermelho que partiu das cinzas e Na pata do cavalo há sete abismos (prêmio nacional da Academia de Letras da Bahia).
DEVASSA
Virginia Finzetto é paulistana, jornalista, escritora e editora de livros. Desde 2004, tem seus poemas publicados em seu blog, nas redes sociais e no Livro da Tribo.
ignorava conselhos, aceitava qualquer bagulho dirigindo seus olhos para a complacência que seu fígado não processava, porque o perfeito e o mais que perfeito só existiam em um tempo verbal que o amor desse coração desregrado, na real, nem sempre decorava amava e sofria, sem ponto e travessão, engatava um verso em outro, e foi assim até a exaustão
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planeta dentro da barriga
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quando a barriga é um planeta de um único habitante e ele se mexe e cresce em seu universo líquido feito de tecido endométrio e de sonhos preso pelo cordão de carne o único habitante escuta os ruídos e sente o seu planeta oscilar mas não se preocupa com isso é curioso e divertido e ele gira em seu interior feito um astronauta sem gravidade o cordão umbilical preso à nave o habitante sorri de olhos cerrados não é preciso abri-los para ver o mundo ele o inventa e a vida é só sentido no planeta dentro da barriga até o nascer nascer é dor é contração e expulsão quando sou as forças e os elementos das minhas entranhas parir é ser uma estrela que explode vulcão água e sangue e mucosa e o habitante nasce de olhos fechados cortam-lhe o cordão de carne que o prendia ao seu início e ele chora como só os mamíferos choram estica o corpo frágil e enrugado depois o encolhe aninha-se para começar a viver em um mundo feito cheio de raízes amarras e defeitos
Viviane de Santana Paulo (São Paulo), poeta, tradutora e ensaísta.
Das Guerras Todo ensejo que orvalha da alma Vem metralhar quem passa. E olha... Tua fé Já não é. Eu amiúdo Versos Para que não vá Sem um doce (se quer). Gritamos. Sujo tua roupa Com leite materno Enrolo tua alma À minha, Nada por perto para se agarrar. Filho, O que sobra da coragem São pequenas ervas daninhas, Que nascem dos olhos Dos que choram demais.
Camila Passatuto 27 anos.
CASA o ovo quadrado que habito nasceu da cloaca de cálculos frios, da quantidade e peso de concreto e músculos ergueu-se a torre contra o crepúsculo estratagema de astutos a sorte a favor deles os engenheiros melhor: o sol incidindo no terreno. quanto tudo isso hoje importa? quem se lembra? No meu cubo de sombras no meu fresco casulo no ovo quadrado que habito abrem-se janelas para o infinito.
Luíza Mendes Furia é escritora e jornalista, autora de Inventário da Solidão (poemas, Giordano, 1998), do infantil O Travesseiro Mágico (Giostri, 2013) e de Vênus em Escorpião (Patuá, 2016). Mantém um site: malufuria.wordpress.com
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A DEUSA Quando deus adormeceu ela tomou conta de tudo Deusa para todo serviço lava, passa, cozinha, dá referência
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Enquanto ela ordena o mundo cuida do código camponês e traduz o chão, o mar começa a ser mar dentro dela Úmida para servir, ela fala com peixes brotam-lhe escamas Na cama vê o dia aparecer sem projeto ou esboço Para ela a vida se desenha naquilo que se chama fundo do poço
Ana Maria Lopes carioca de nascença e candanga de coração. Poeta por ofício e jornalista de profissão. Dois livros publicados – Risco e Conversa com Verso – e muita participação em jornais e blogs.
o passar inexorável do tempo sempre inútil [ou imóvel] me tirou a pressa: observo [nas linhas esculpidas pela troca de carícias entre os ventos e a pele] meu breve enternecer
Déa Paulino Nasci em Itapetininga, no interior de SP, e cresci nômade. Sou bailarina, coreografo [entre]linhas em publicações digitais há mais de dez anos e guardo em mim a visão dos corpos de baile dispostos nas estantes de inúmeras visitas a bibliotecas públicas nas quais ensaiei os primeiros elevés, que traziam os livros para o alcance das minhas mãos. Retiro das coxias os poemas que pretendo abandonar no palco, para que finalmente deixem de ser meus.
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XII Caminho pelas ruas pedindo licença por ser mulher Caminho pela casa da mãe pedindo licença por ser triste Caminho entre os amigos pedindo licença por ser criança Caminho entre os amores pedindo desculpa por ser simples E no arrebol, quando o coração em claroescuro desdobra e acelera em trottoir Coloco meu casaco ocre, busco na noite pés pra caminhar. Karine Kelly Pereira é artista e pesquisadora do corpo em dança e poesia. Publicou “Anotações sobre o azul” (Editora Patuá, 2016.).
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luz de vértice a luz da manhã renasce nos vértices como quem despe a borda da íris. dela, acalanta e oprime – a um só tempo – o itinerante que o eterno toca em notas menores. cresce rasante num rastro de sombras; num riscado de cores e corte. cresce – ciliar e submersa – feito limalha de noite.
Nathan Sousa
Acidente poético
Wagner Merije
é poeta, escritor, jornalista, curador, gestor cultural, MC, compositor e diretor artístico do músico Raul de Souza. Lançou os livros “Cidade em transe” (2015), “Viagem a Minas Gerais” (2013), “Torpedos” (2012), “Mobimento – Educação e Comunicação Mobile” (2012) – finalista do Prêmio Jabuti 2013 e “Turnê do Encantamento” (2009), dentre outras publicações. | www.merije.com.br
Tá lá o poeta estendido no chão sem carteira assinada, sem plano de saúde atropelado por um ônibus que não parou Não parou para a poesia passar voou livro para todo lado quebrou o sonho em sete partes as vísceras de seu discurso estão à mostra Já aglomeram muitos curiosos Tem gente filmando no celular Chama o Samu, 190 Parou o trânsito vira o caos Parece que o cara tá mal O poeta caído no chão ninguém chega para ajudar do seu bolso um poema novo escorre incompleto como aqueles ali olhando para ele Tá sangrando poesia para todo lado a polícia chega com a sirene a toda a turba aproveita para gritar Uma senhora começa a chorar não é a mãe mas é a única a acudir ajoelha nas páginas dos livros e abraça o poeta destroçado O poeta ali morre não morre mas a poesia era aquela mulher corajosa com um amor na mão viu que o homem ali caído podia ser um filho dela filho que ela nunca tivera mas na EJA, depois do trabalho descobriu na leitura um novo processo onde tudo que sonha é possível E os homens do Samu vinham com a maca enquanto a polícia cercava o local os celulares registravam tudo Corre aí, dá oxigênio para o poeta que ele pode sobreviver vamos levar para o Pronto-Socorro que gente assim merece viver merece viver
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guia prático de como não ser mulher em qualquer século 20
ersatzspielerin teimo em não acender a luz, encalhadas sem saber se quem – eu ou o mundo é suplente de algo primevo se o que existe é a tensão ou degrau de recursividade. o violento da memória é a retenção do vazio. penso em palavras multiportantes, como não me escapa fazer: merimnologia, ou: considerar é arder. mermeridade, ou: ansiar é condenar-se. metameridade, ou: a parte pelo todo. palavras me procuram, procuram a nós porque as salvamos de um desígnio adjunto e nos lançamos aos fins da tensão.
ter abruptas hemorragias mais conhecidas como quedas por fornicações histéricas três horas da manhã, travesseiro em chamas me vejo merócrina, exocito os pijamas também. e a elas entrego pra-quem-você-liga - escolha indolor. qual impostora estertorada lembrar certeza é faca na jugular ou o grau primeiro das coisas. talvez anel na mão esquerda dá no mesmo não dá? no ultrassom o cisto comover bem mais maíra mendes galvão do que um teste de farmácia é tradutora, revisora às pressas e poeta. mora em turnos no banheiro do bar. entre são paulo, alto paraíso e brasília. aqui nem fantasma de homem tem permissão pra chutar costelas. placentas arquitetadas nas meninas dos olhos das meninas correm risco de vez ou outra Natasha Felix dinamites sobrepostas em cima das carcaças dos amantes nasceu em 1996. Cursa o segundo ano de Letras herdados de noites passadas na Universidade de São mas nunca amor nunca. Paulo nas horas vagas.
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A das Cartoneras Por Ellen Maria Vasconcellos fotografia fabiana turci | armando carmino | lucia rosa | douglas diegues
Não é de hoje que as editoras cartoneras surpreendem o mundo. Elas reivindicam uma nova relação entre o autor, o livro e o leitor, e uma nova visão sobre a produção e distribuição dos livros. O movimento editorial cartonero não para de crescer e se multiplicar: já atingiu ao menos vinte e um países, e só na América Latina, há mais de trezentas cartoneras contabilizadas em toda sua extensão. Elas recebem esse nome por utilizar o papelão (cartón, em espanhol) para a produção das capas dos livros. E as editoras trabalham como um coletivo de pessoas que se reúne para fazer livros artesanais e de baixo custo, com o objetivo de driblar o sistema mercadológico editorial, que encarece o valor do livro e dificulta as relações entre o autor, o livro e o leitor. Com o valor gasto reduzido na produção, a democratização do texto se torna regra número um: autores menos conhecidos têm seus textos em circulação, leitores anônimos conseguem adquiri-lo. A primeira dessas editoras surgiu em 2003 e hoje elas são tantas que se tornaram até objeto de estudo nas universidades, com teses e livros que investigam como foi que este fenômeno surgiu e por que razão não tem nenhuma pretensão de acabar.
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Mas vamos por partes. A primeira cartonera foi fundada em Buenos Aires, na Argentina, em 2003: a Eloísa Cartonera. Criada por Washington Cucurto, Javier Barilaro e Fernanda Laguna, em resposta à grande crise financeira que assolou todo o país desde o “corralito”, o colapso político e econômico de 2001, hoje a Eloísa Cartonera é uma editora independente e autogerida. Mas a fundação da editora, mais que fazer livros, fez e faz política. Para que os livros pudessem chegar às mãos e aos olhos de qualquer leitor, em uma fase onde o livro era praticamente vendido como artigo de luxo, a Eloísa Cartonera passou a dialogar com carrinheiros que catam papelão do lixo e cooperativas de reciclagem do bairro de La Boca, em Buenos Aires. Pagando mais que as empresas de reciclagem pelo material coletado, a editora integrou os próprios catadores na produção editorial, para que estes não só elaborassem a capa dos livros, com papelão, tintas e colagens, mas montassem o livro inteiro, com ilustrações e páginas coloridas. O texto era fotocopiado, o que barateava ainda mais a reprodução em série, e a costura era feita ali mesmo. Cada livro se tornava um objeto exclusivo, e de baixíssimo custo. Resultado: uma ideia que deu certo. Hoje, a Eloísa já conta com mais de 250 livros publicados com autores de toda América e mantém um grupo fixo de trabalho. Aqui no Brasil, o nascimento da Dulcinéia Catadora, o primeiro coletivo cartonero do país, surgiu em 2007 com uma parceria com a própria Eloísa Cartonera, na 27ª. Bienal de São Paulo. Em uma entrevista pessoal, Lucia Rosa, fundadora da Dulcinéia Catadora junto com Peterson Emboava, ela me conta que: “Nos primeiros anos, a Dulcinéia funcionou numa sala cedida, em Pinheiros e reuniu jovens, alguns deles filhos de catadores, de famílias de baixa renda; alguns em situação de vulnerabilidade.” Hoje, este trabalho em cooperação com o Movimento Nacional dos Catadores de Reciclagem funciona em outro espaço, no centro de São Paulo, ao mesmo
tempo em que o coletivo desenvolve uma proposta de itinerância. Com o objetivo de fazer uma linha editorial artesanal sem nenhuma hierarquia, trabalhando todos juntos sempre em posição de igualdade, a Dulcinéia Catadora, além de participar de feiras e projetos com comunidades carentes, promove oficinas de confecção no Brasil e no mundo, tanto para a formação de novos núcleos cartoneros, quanto para os que já existem e estão em busca de mais pessoal instruído para este trabalho. O coletivo ganhou uma visibilidade tamanha que só a Biblioteca do Congresso em Washington, nos Estados Unidos, conta com um acervo de mais de cem livros da Dulcinéia Catadora. Também nos Estados Unidos, a Biblioteca de Wiscosin conserva uma coleção de mais de mil livros cartoneros, de centenas de coletivos de todo o mundo. Aqui no Brasil, a Biblioteca do Memorial da América Latina, em São Paulo, mantém um espaço reservado para os livros cartoneros, não só nacionais, mas de dezenas de produções literárias de nossos hermanos. Lucia Rosa confirma o que vamos aprendendo: “O importante é o acesso aos livros. Conquistar novos espaços”. Quanto ao nome das cartoneras, é bastante curioso que a maioria delas receba um nome feminino: Eloísa Cartonera, Dulcinéia Catadora, Olga Cartonera, La Sofía Cartonera, Katarina Cartonera, Severina Catadora, Juanita Cartonera; ou que ao menos o substantivo seja feminino: La Joyita cartonera, Sereia Cantadora, La Vieja Sapa, a recém criada Malha Fina Cartonera, etc... É uma reivindicação e uma mudança no sistema tradicional que vigora também no mercado de produção e distribuição dos livros. Sobre o batizado da Dulcinéia Catadora, Lucia Rosa diz: “No nosso caso, Javier, que fazia parte do Eloísa, sugeriu que escolhêssemos um nome feminino. Dulcinéia é o nome de uma catadora que trabalha na Coopamare, uma mulher que admiro. Como também nos faz lembrar de Dulcinéia, de Miguel de Cervantes, a decisão foi unânime.”
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No Nordeste do Brasil, vemos este fenômeno
ganhar ainda mais força pela falta de editoras na
região e, principalmente, pela falta de oportunidade que os artistas locais têm de serem publicados.
Como vimos, o ativismo social faz parte da essência
das cartoneras. Uma das primeiras cartoneras que
surgiram por lá, e que hoje tem bastante relevância é a Mariposa Cartonera, que em 2013 no Recife, foi
fundada por Wellington de Melo. Hoje já são tantas (Severina Catadora, Cartonera del Mar, Vento Norte
Cartonero, Comissão Cartonera, Carolina Cartonera, etc.) que foi criada, inclusive, a Liga Cartonera, um coletivo das editoras cartoneras, com o fim
de se autoajudarem e se autopromoverem na dis-
tribuição de seus trabalhos, além do contato com as cooperativas de reciclagem e de costura. O trabalho é sempre colaborativo, e é preciso que todos os envolvidos compreendam e participem dessa lógica, não só do processo de produção, mas em todo o ciclo da economia solidária e sustentável, na formação de novos leitores, na divulgação e circulação dos livros e da proposta. Passados mais de dez anos desde o surgimento da primeira cartonera, o que nos chama muito a atenção deste projeto é, justamente, a co-edição, na qual duas ou mais editoras cartoneras fazem uma parceria e publicam o mesmo livro. Assim, as editoras se fortalecem e se apoiam na divulgação de
um determinado texto e autor em regiões diferentes, ou até mesmo, em línguas diferentes. São alternativas que mantém vivos não só o próprio objeto livro, mas também a ideia do trabalho coletivo. A Malha Fina Cartonera, editora criada na faculdade de Letras da Universidade de São Paulo, por exemplo, começou justamente com um projeto de co-edição com a Mariposa Cartonera e a Yiyi Jambo. A Yiyi Jambo, uma das cartoneras mais representativas no país, e que já publicou Wilson Bueno, Josely Vianna Baptista, Manoel de Barros, Ricardo Aleixo, entre outros grandes, foi fundada em 2007, por Douglas Diegues, já bastante conhecido pelo seu trabalho literário de produção e tradução com o
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portunhol selvagem, uma língua de fronteira (e também de resistência) entre o português, espanhol, guarani, inglês e o que mais tiver graça. Em entrevista pessoal, Douglas me conta, em seu característico portunhol selvagem, que dois de seus livros saíram nesse processo de co-edição: “O livro Triple frontera dreams saiu em versión pocket por Yiyi Jambo, Katarina Kartonera y Eloisa Cartonera. Depois foi lançado o Tudo lo que você non sabe es mucho más que todo lo que você sabe por seis cartoneras de seis países diferentes: México, Chile, Peru, Argentina, Espanha e Brasil”. A Yiyi Jambo possui sede própria em Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, e disponibiliza para quem
quiser chegar um belíssimo acervo cartonero. “É uma delícia fazer um livro de poesia cartonero com las propias manos. Las capas nunca se repetem. Y los livros não tem preço: podem custar entre 10 reais y 5 mil reais. Você põe o preço. Quem quiser pagar, que lo pague. És uma arte muito livre.” – comemora Douglas Diegues. É bastante comum que os livros tenham preços flexíveis, quando falamos de cartoneras. A Dulcinéia Catadora, por exemplo, pede somente sete reais por livro. Não é nada comparado ao preço de um exemplar nas grandes lojas e livrarias do país. Hoje, há editoras cartoneras com inúmeras propostas: de ampliar o discurso ideológico em relação a questões de gênero ou de classe, por exemplo; de fortalecer o ensino de literatura e artes nas escolas, com uma proposta educativa integrada à comunidade; de trabalhar com indígenas ou algum setor específico da população, para que, dessa forma, o livro não só dê voz às pessoas que antes não eram ouvidas, mas para que a leitura alcance um público que também não tinha acesso ao material, etc. Se cada livro é único, cada leitura também é.
O controle do número de editoras cartoneras na América Latina praticamente se perdeu: O movimento coletivo ganhou muita força e não há um só país da América sem ao menos uma cartonera fazendo a diferença. Alguns nomes são: Sarita Cartonera, Yerba Mala Cartonera, LuzAzul, Patasola Cartonera, Santa Muerte Cartonera. Na Espanha (e não só por lá), existe inclusive um movimento de montar essas cartoneras dentro do sistema carcerário. A penitenciária de Zaragoza é uma delas. Ali, além do livro montado pelos internos, o texto também é escrito por eles: uma série de antologias de poemas, contos e crônicas já foram produzidas e distribuídas em todo o país. A França é um dos países da Europa que mais abraçou a ideia: há coletivos cartoneros nos país inteiro, sendo as mais conhecidas Cephisa Cartonera, La guêpe e a Babel
Cartonnière. Na Suécia, a Poesía com C surgiu surpreendente; em Moçambique, a Kutsemba Cartão é a cartonera mais conhecida, e até na China o movimento já se estabeleceu: a Mil Hojas cartonera. Sobre a proporção que as editoras cartoneras estão tomando no mundo, Douglas Diegues diz: “La editoras cartoneras podem contribuir muito ainda com la desmistificación de la literatura, de la lectura y del livro. Podem salvar la vida de muitas pessoas também. Podem trazer mais liberdade para el arte de publicar livros. La coisa está apenas começando y después del libro cartonero, los livros nunca mais serão los mesmos”. Já não há mesmo dúvidas de que os livros nunca mais serão os mesmos. As cartoneras chegaram para ficar, para fincar e resistir.
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para o personagem José Arcadio, do romance “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez
no princípio era o pêndulo arrefecendo suspeitas depois a prodigiosa ordem a trotar na assombrosa mecânica do mundo desfeitas as perfeições em nome da semelhança criou-se no tumulto a crença insepultável num deus infotografável com um cheiro de alfazemas agora diante de um pelotão de fuzilamento aprendeu: o amor não cura aflições.
Airton Souza nasceu em Marabá, no Pará. É poeta e professor e já publicou diversos livros, também coordena alguns projetos voltados à promoção do livro e leitura.
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sarau faço leituras noturnas em voz alta, bem pausadamente, para todas as cadeiras de minha casa. o silêncio nelas é como o homem nelas, em ruídos de pausa já não se arrasta no chão
Vinícius Mahier natural de Campo Belo (MG), é graduando em Letras pela UFSJ. Escreve em nopasseiointimo.blogspot.com. “Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo”.
DOMINGOS
leite branco
As vagas rebentam na praia
para zilda
alegria e náusea dos banhistas As barracas com seus cardápios de frutos do mar dão a ilusão de natureza morta Os garçons e os ambulantes irrompem distraídos nos retratos de família e ganham seu quinhão de posteridade
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A areia arquitetura da infância ergue castelos e duas mãos plenas de recomeço reconstroem os que a brisa leve desmorona O domingo é cais onde aporta a semana
quando pequeno observava a mãe na faina diária de lavar a lua bacia repleta de leite e estrelas e roupas inundadas de branco seus dedos poliam com exatidão o reflexo da orbe acalmavam impurezas de astros ressequiam o lamento das constelações no varal da noite durante um longo tempo minhas roupas abandonaram o olor da alfazema algumas partículas de big bang e cultivaram os buracos do universo assombrosamente eu me vestia de iluminado.
Moama Marques
Angel Cabeza
nascida em Pombal, sertão da PB, mora em João Pessoa e é Professora de Língua Portuguesa no RN. Por onde quer que ande, carrega na mochila um bloco de notas e um livro de poesia.
é autor de Vidro de Guardados, poemas, e Sempre Existe um Último Momento, Crônicas. Poeta, cronista, produtor editorial e gráfico, possui textos publicados em antologias, como 29 de abril, O Verso da Violência e Qasaêd Ila Falastin — Poemas Para a Palestina.
Capricho A poesia restará como pedra preciosa refém da rocha inacessível? Germinará de um delírio entre súbitas guitarras andaluzas? Brincará de se esconder entre os pelos do teu púbis? Mas o que, agora mesmo, inibirá o texto que se nega?...
Lenita Estrela de Sá recebeu o Prêmio Sousândrade de Poesia da Fundação Municipal de Cultura de São Luís (2010) – ISBN 978-85-61742-15-7
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CONFIDÊNCIA Rubens Jardim 69 anos, fez parte da Catequese Poética nos anos 60, participou da 1ª Bienal Internacional de Poesia e publicou 3 livros. No seu blog www.rubensjardim.com divulga AS MULHERES POETAS...
Incapaz de ser o capataz de mim mesmo, vivo assim desarmado. Minha alma é uma poça d’água mas reflete o mundo.
Pedro Bomba
te dou todas as conchas de meu colar quando me faço mulher e mãe quando enceno as estórias de outras e me empresto como quem doa em troca de nada e de ninguém em troca de dar em suas mãos os meus colares e badulaques as conchas que vibram meu peito caem e caminham por outras mãos para deitar nas suas linhas traçadas de destinos é quando exponho a palma da minha mão e leio seu nome e nossos apelidos secretos leio os sertões de sua sede e minhas mãos ficam suadas enchente de sudorese excessiva porque te dou todas as conchas sendo manto de proteção aos animais juntando os cristais de carbonato de cálcio porque estudo e leio suas complexidades quando chora me vendo cantar e em cada concha e canto que faço é seu nome que está escrito estampado em meu peito é seu nome na minha garganta que te devolvo em troca de nada e de ninguém.
colares e badulaques
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nasceu em 25 de novembro de 1983, é formado em jornalismo e cursa letras. É professor da área de língua portuguesa atualmente.
Anderson Antonangelo
Incontáveis decibéis atmosferam-se enquanto o inútil, quase inaudível canto do sujo galo surrado sopra fiapos de cores ao vento.
Seria seu canto desnecessário? Antifuncional e contraproducente?
O galo fita a paisagem monocromática com seu orgulho ferido e engasga. Um vultoso acúmulo de ar precede a explosão de seu canto de seu berro sua lamúria.
Cabisbaixa-se: centenas de milhares de decibéis agudos e metálicos e inflamáveis parecem oprimir o seu canto.
a fome – ave de rapina – A fuligem que se desprendia no ar floculava em alvas penas: galo surrado e proletário.
RESISTÊNCIA
O carioca Teofilo Tostes Daniel é autor de Trítonos – intervalos do delírio (Patuá, 2015) e Poemas para serem encenados (Casa no Novo Autor, 2008). Mora em São Paulo, onde vive, lê e escreve.
Teofilo Tostes Daniel
Aos poucos ergue um colosso que em tinta e papel descamba – é o sonho que aqui se avista.
Com a corda no pescoço e os dois pés na corda bamba se equilibra o utopista.
Outro dia de folia, em que um homem é arcano de seu destino profano de se fazer melodia.
Vejo a poesia espalhada pelo caminho dos ventos, pelos meus olhos atentos, pela cidade asfaltada.
(para Eduardo Lacerda)
O utopista
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nasceu na cidade de São Paulo em 1974. É doutora em Teoria Literária e publicou o livro de poemas Mergulho às avessas (Lumme Editor : 2008).
Andréa Catrópa
ainda não é o outro lado, só mais adiante onde a luz não alcança e por isso nosso medo agora sem saber se no escuro há abismo ou espelho
Da lua maia sem der ramá-la Aprendi a contemplar o náufrago De um verso que li e esqueço Das páginas que viravam sozinhas Assim ao caminho carregar A ânfora com os líquidos Entregues ao mar. Após perder-te Entrego tudo Ao que não se esconde em ficção. Calo e escuto o poço me afundo Numa voz sem silêncio Sem quem aprenda a ficar sobre as rendas Fiar invisível e minúsculo O desejo desse desejo Outra vez.
Maria Carolina De Bonis nasceu em São Paulo em dezembro de 1982. Autora do livro Passos ao redor do teu canto (Editora Patuá – ProAC). 34
circunscritos foram parar no lixo aqueles riscos em papel origami vazios -sem texto o verbo jogado ao céu da boca a consciência livre do poema não escrito/vindo: à [penas desejos dispersos ao léu teu meu amor líquido.
Sílvia Schmidt é nascida em São Paulo. Estudou Letras em Lorena, Comunicação e Semiótica na PUC/SP , Sociologia e Política/ USP, e Ontopsicologia em SC. Ministrou aulas de Literatura Brasileira por quase 20 anos mas precisou ir além: hoje, busca na carreira de escritora e editora, o mesmo resultado obtido em sala de aula: “o prazer do con_texto.” Seu foco principal é trabalhar a linguagem multimidiática e eletrônica.
A Pedra Penso a pedra, pálida Partícula de tudo Ventrículo do nada Estática, desarrumada Penso a pedra aprumada olho cego, cavas vagas com gosto de cascatas e sangue de ventos batidos. Penso-a ali presa aos ruídos do que flui Como uma hera que se dilui ao sal dos tempos.
Lázara Papandrea (Lázara Dulce Ribeiro Papandrea, graduada em História pela Universidade do Vale do Sapucaí e pós graduada em Teoria Literária pela Universidade Federal de Juiz de Fora, coautora no livro de poemas “Exercícios de Olhar” editado pela FUNALFA em 2011, participou da antologia poética “Juiz de Fora ao Luar” pela Gryphon Edições em 2015 e lançou em janeiro de 2016, pela Penalux, “Tudo é Beija-Flor”, escreve regularmente no blog: www.vestesdepalavras.blogspot.com)
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ângela não levantava da areia cobria seus pés sua boca cobria o grito depois que gritava não tinha treva nem cama nem nome nem beleza só vontade e o peito coberto de areia
Izabela Orlandi nasceu em Vitória, Espírito Santo, em 1991. É autora dos livros O que esperar de uma flor amarela? (Patuá, 2013) e Vão dos bichos (Patuá, 2015).
é palavrero e devoto do céu violado. Autor do livro Sossego Abutre (Ed. Patuá - 2015) e coeditor da Revista Saúva e da Revista Abate.
Marcus Groza
céuzinho é um reino onde meninos palestinos mergulham e esquecem pedras triangulares e os próprios ossos num fundo de poço soterrado
no game a missão nos foi dada construir uma cidade num morro condenado
você e eu chamávamos céuzinho o que hoje é pirambeira e riscos de desabamento
a brincadeira da nossa infância montar o céu estrelado agora tem versão para Android
Para a moça que lê poemas palestinos
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(Arari/MA) é coautora do livro Poesia Arariense: coletânea poética em rede. Vencedora do 4º Concurso Internacional Poesia Urbana/2014. Contatos: E-mail: samaravolpony@gmail.com Facebook: www.facebook.com/samara.volpony
Samara Volpony
e no peito dos homens dispersos: lama lodo larva
há um rio morto em meu rosto brejo sem acordes na sede que aos olhos lava
há um rio sepultado em meu peito ―pântano de açoites― de escombro e espanto este rio é feito
há um rio morto em meu rosto no meu asco no meu grito em minha boca há um rio seco
À MEMORIA DE UM RIO
educadora e aprendiz, poeta, paulista de alma mineira, acredita que poesia se faz e vive além das linhas e agradece os encontros, de páginas e caminhos.
Janaína Moitinho
mesmo sozinha
hoje? hoje aceitei figuração e me faço muitas
tem dia de vilão e mocinha
protagonista não dá pra ser todo dia na trama da própria vida a gente faz todos os papéis
acato e aguardo as próximas cenas
inútil tentar brigar com roteiro muito se desenha sozinho
deitar entre as horas na areia da íris
— cotidianamente —
contaminamos um desejo com a fala que nos escava
(sob sua solidão):
nasceu em Volta Redonda (RJ) e mora em Vitória (ES). Publicou Indícios do dia, entre outros livros. Do autor: caselontramarques.blogspost.com.br.
Casé Lontra Marques
contaminamos um espelho com a casa que nos propaga:
no casulo do calendário?
— em meio às ferragens —
quase elidem alguns órgãos alarmados
Corpos onde a cidade se repete: (depois de derramar antigas bocas sobre outra água):
Corpos onde a cidade se repete
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amêndoas do tempo a tarde mergulhou alta em você despencando no meu colo suas pestanas choradas o ar empoçado entorna devagarinho a lembrança costurada de mãos que voam alto enrolando em caracol seus cabelos lembro do teu velho dilúvio lúdico que veio num postal escrito na solidão de tuas mãos e ressoa aqui como os temporais cá na beira da estante entre um e outro postal dos nossos começos a noite cai nas horas do céu levando as amêndoas doadas de um dia lavando os segundos da nova horinha
aos olhos da madrugada as águas do dia escorrem na pia sem pingar mais chorados pois tratou dos lembrados num gole só o toalete de chão verde continuará gelado e nosso café de colher com amoras. ah, as amoras... ah, as amêndoas .. deixo pra colher em outra tarde quando os ventos respirarem breves quando os alentos repousarem leves. [a ranhura da porta não vai mais me acordar].
Joana Hime , carioca, produtora artística, letrista e poeta. Graduada em jornalismo e mestra em Letras pela PUC – Rio.
face palmilhar as entranhas da noite a cada estrela moça grávida de céu fronteira do infinito ponto a pulsar a asa da representação no germe do ínfimo poema a palavra prenhe de universo há enigma no pólen das palavras abro a caixa de viver meu espírito vem só minha consciência vaga uma língua morta fico a entretecer o tempo matéria palpável fio a fio erigir a face do engenhoso enigma trama do imprevisível nome: face esfinge face luz faz-se o verso explode das mãos uma galáxia o sentido inverso de uma lâmina só faca a carne que rasga e sangra o poema que sangra e mata
Corpo Re-encontro com as águas na maturidade diante de um corpo um tanto denso marcado pelo sofrimento um tanto fluido tatuado pelos sonhos mergulho profundo sobre mim mesma Lugar onde tudo é possível desde bater pernas a flutuar 39
Tatiana Fernandes
João Augusto é poeta e jornalista (e não o inverso) Naturalidade: Bebedouro-SP
mora em Santo André, é formada em psicologia pela UMC e pós graduada em Saúde Mental pela FMABC, participou da exposição Achados-Perdidos da Editora Alpharabio e zines: Sarau na Quebrada e Ave de Rapina.
noite turva AS CABECEIRAS DE DEUS 40
Em São Sebastião das Três Orelhas, Ouvia o zumbido dos insetos alados Fritando na lâmpada à minha cabeceira. Pequenas vidas de grandes feitos Atravessaram o vale ilesas, Ludibriaram inimigos ferozes, Sobrevoaram fogueiras nos quintais, Febris lançaram ovos, as larvas nas poças, Alimentaram-se de restos e excrementos. Enquanto eu insone testemunha dos fatos Calculo o quanto posso e temo o mal de meus iguais Servindo-se de ganância e vaidade em banquetes, Vivendo como ultimados animais perenes. Mas eis que no anoitecer dos anos chegam à luz! E as cabeceiras de Deus estão sempre acesas.
Chris Ritchie nasceu em Santos, SP em 8/11/67, pai escocês e mãe brasileira, da família de Vicente de Carvalho. Escreve desde antes de saber escrever, desde os dez anos produz poemas, contos e romances.
um casal emplumado encarou a tempestade de ferrugem com a ternura de um abraço profundo. suportaram o assombro do céu e os ataques nervosos. bateram-se contra às águas e os ventos como se o peito fosse de marfim e a coragem, uma armadura impermeável. (o baile cambiante das pernas na regência dos trovões vorazes seguia em compassos de pavor) o império turvo do céu rogava assombros em lastros de serpentes luminosas. o casal lutou na rinha feroz da noite que não oferecia extremidade ou margem para abrigo.
Demetrios Galvão Teresina/PI – poeta e historiador. Autor dos livros: Insólito e Bifurcações. É editor da revista Acrobata e do blog Janelas em Rotação.
4 CENAS DO CÃO ANDALUZ I por que um cão sangrento atravessa-nos à noite e reduz a lua com seu brilho no esgoto numa parca brancura disforme moldada ou uivo do mal agouro encarcerado/ sombra desfragmentada num osso de nossa própria (in) existência as vísceras repugnantes à mostra para consumo da matilha e suas fartas mandíbulas. II O ventre exaurido do parir eterno constante: palavras, palavras, versos desarticulados/ disformes e tão orgânicos.
LEANDRO RODRIGUES é professor de literatura e poeta em Osasco-SP, onde nasceu em 06/01/1976 e ainda hoje reside. É casado e tem um filho. Já publicou poemas em quase todos os principais sites e revistas literárias do país.
III costumeiramente rasgados no cordão arrancado com navalha fria, afiada bem trabalhada. IV no rescaldo de tudo o cão - o grito se deita - carne viva restos da pelagem moldura mórbida estática da sala de jantar imponente com seus móveis discretamente apoiados em calços vermelhos e nas sombras tortas desfocadas de todos aqueles animais mortos da família – empalhados o sangue que ainda respinga pisado.
Mara Senna é autora de Luas Novas e Antigas (edição da autora, 2009). Ensaios da Tarde, (Editora Coruja, 2012) e Eternidades na palma da mão (Editora Patuá, 2015).
Poema da meia-noite Na passagem de um dia para o outro, fiquei presa na fresta que existe entre o desejo e a festa.
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maquinaria crópole do meu mundo sem nem mais ver. eu vou organizar essa falta de porrada; esse mais um vento não vai mais me assassinar
bruxa moderna
esquema de uma única linha para a decisão, todos estão em carne viva e só de se mexer já arde
a bruxa moderna tem um gato preto entre as pernas
talvez já seja a hora de vestirmos preto e usarmos óculos escuros - estarmos de luto por nós mesmos talvez já seja a hora, talvez já passou da hora
e uma estante cheia de poções literárias das mais poderosas
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acrópole do meu mundo, te visito.
pó de beauvoir sementes de ruiz asas de líria porto
Victor Ávila Ferrasso nascido em 1996, é de São Paulo onde cursa Letras e Teatro.
e magia negra de elisa lucinda ninguém a queima em fogueira alguma
Luto
ela é o próprio fogo da revolução
Não haverá outro dezembro como aquele em que beijei meu pai pela última vez, a testa fria de um homem morto.
cozinhando versos - seus maiores feitiços em um caldeirão.
Amanda Vital nasceu em Ipatinga, Minas Gerais, no ano de 1995. Cursa Letras na Universidade Federal da Paraíba e é autora do livro “Lux” (Ed. Penalux, 2015).
Que ontem foi aquele em que, juntos, enfeitamos a árvore? O silêncio é de ouro, me dizia. Sinto em mim cada quilate
Kátia Borges
[arranhar no peito]
O BAQUE Quando chove ou quando esfria E quando a grana é apertada Lembro dela, minha Mãe, dos seus carinhos Na espera pelo fim da madrugada. Como pude, Deus do céu, cair assim Tão fundo e torto e também desajeitado No buraco fedorento que há em mim? Entre duas correrias, um esforço: Recomponho minha vida novamente. Lembro dela, minha Mãe, mulher valente Caio louco na sarjeta desgraçada.
no ósculo dos incômodos revelou-se discretamente o crepúsculo de nossas rezas e um novo formato aos gastos caminhos sagrados que levavam ao desígnio dos dias a porta aberta, talvez uma vida apenas o ribombar do som furioso em sua passagem dirá com certa destreza se em algum momento saberemos o esconderijo dos espaços menos opacos que povoam as certezas da madrugada não seria curioso saber aonde andam os pecados?
Saio em busca de uma vida que sumiu. Viro a quadra outra vez, lá vem o risco. As palavras pelo avesso, engasgadas. As feridas pelo corpo espalhadas Sou a placa que anuncia o próprio fim O maluco que me vê já sente o baque Amanhã será também um trapo assim.
Marco Aurélio de Souza é professor, doutorando em Estudos Literários pela UFPR e autor do livro de poemas E os desgarrados retornam para ti. Vive em Ponta Grossa/PR.
Arthur Bugelli é poeta viciado em prosa, que escreve como aprendeu a ler: sem entender ao certo, mas descobrindo magias.
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TERRITÓRIOS
EM DISPUTA por Edimilson de Almeida Pereira
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Relações entre cânone literário e Literatura Negra e/ou Afro-brasileira No presente artigo abordaremos uma das modalidades de criação literária através da qual autoras e autores afro-brasileiros têm inscrito sua participação na vida social e na cena literária brasileira. Ao elegermos essa vertente como tema de nossa análise queremos explicitar o fato de que outras vozes poéticas navegam no mar da poesia brasileira contemporânea e, através de outras estratégias, também se ocupam das questões relativas à presença das culturas africanas na formação da literatura brasileira. Porém, em função do recorte proposto, nos restringiremos à linha de criação que se convencionou chamar de Literatura Negra e/ou Afro-brasileira, fato que não esconde as divergências em torno do emprego dessa terminologia. É oportuno dizer que poetas e estudiosos contemporâneos definiram ou caracterizaram essa modalidade literária utili-
zando as possibilidades oferecidas pelos textos de criação (poesia e prosa) e de reflexão teórica (ensaios e entrevistas) produzidos por afrodescendentes e não-afrodescendentes. O imbricamento de aspectos ideológicos e estéticos (tais como o entendimento da literatura produzida por autores negros como uma crítica aos mecanismos de exclusão vigentes na sociedade brasileira e a crítica aos padrões eurocêntricos empregados na construção de discursos sobre os negros brasileiros, respectivamente) têm multiplicado os modos de definição propostos para essa modalidade literária. Para se ter uma idéia da complexidade dessa questão terminológica, vale considerar a crítica que o poeta e prosador Cuti [Luiz Silva] estabelece ao abordá-la no capítulo 3 (“Negro ou afro não tanto faz”) da obra Literatura negro-brasileira, São Paulo, 2010. A partir das obras que a constituem, percebe-se que na base da definição e da caracterização da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira sobressaem duas instâncias que, de certa maneira, se entrelaçam: a primeira vinculada à experiência histórica e social do autor ou autora, e a segunda, à produção do texto como lugar de reflexão acerca dessa experiência.
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Quando o autor ou autora que se exprimem pensam a si mesmos como um sujeito negro, o texto se desdobra a partir daquilo que se vivencia como um sujeito negro na história, destacando-se aí a necessidade de se atualizar uma gama de discursos que a diáspora, a escravidão e a violência impediram de germinar. Por sujeito negro entenda-se o indivíduo que, mediante a análise das condições históricas que afetaram o seu grupo e a si próprio, instaura no texto literário a coincidência do sujeito lírico com o eu-que-se-quer-negro, aspecto que evidencia o aprofundamento do olhar crítico sobre realidade. A partir dessa definição do sujeito social, que se torna ator do próprio discurso, a Literatura Negra e/ou Afro-brasileira se constitui,
simultaneamente, como elaboração artística e como convite à mobilização política dos afrodescendentes, que se organizam para reivindicar os seus direitos sociais. No que diz respeito à produção do texto como lugar de reflexão acerca da experiência do sujeito negro, essa vertente literária pode ser caracterizada como uma literatura de fundação. Sob essa perspectiva, o fazer literário é apresentado como uma resposta específica de um grupo a circunstâncias históricas marcadas pelo embate entre diferentes segmentos da sociedade. Os autores e as autoras identificados com a Literatura Negra e/ou Afro-brasileira, ao mesmo tempo em que mapeiam os mecanismos de exclusão e as situações sociais adversas vividas
pelos afrodescendentes, se empenham em estabelecer a crítica do modelo literário canônico. Por isso, como afirma o professor Eduardo de Assis Duarte, da Universidade Federal de Minas Gerais, “a conformação teórica da literatura ‘negra’, ‘afro-brasileira’ ou ‘afrodescendente’ passa, necessariamente, pelo abalo da noção de uma identidade nacional una e coesa. E, também, pela descrença na infalibilidade dos critérios de consagração crítica, presentes nos manuais que nos guiam pela história das letras aqui produzidas.” Em termos gerais, os autores e autoras que se articulam em torno da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira, além de enfrentarem os desafios próprios do fazer literário, se dão conta de que
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sua atividade se estende para o território da vida real. Ou seja, ao participarem de simpósios, oficinas, debates e outros eventos, colocam em cena suas visões sobre a realidade brasileira e, mais especificamente, sobre as relações dessa sociedade com os indivíduos afrodescendentes. Não por acaso, na crítica ao modelo literário hegemônico e ao sistema editorial esses autores e autoras ressaltam o desinteresse de tais setores por uma vertente literária que punge as feridas sociais do país. Isso significa dizer que os autores e autoras da Literatura Negra e/ou Afro-brasileira – assim como outros segmentos autorais que se sentem excluídos – estruturam formas específicas de expressão literária (num gesto de crítica ao enrijecimento das fronteiras do cânone literário
nacional) e instituem formas alternativas de divulgação de suas obras (numa atitude de repúdio a certos canais editoriais que restringem a literatura à condição de objeto de consumo). Ao alinhavarmos os argumentos que sustentam o modelo da Literatura Negra e/ou Afrobrasileira nos damos conta de uma situação paradoxal e instigante: o fato de vários autores e autoras se autodeclararem negros ou negras para articularem suas obras a partir das experiências do sujeito negro (aspecto étnico) e se engajarem na luta em defesa dos direitos desse segmento social (aspecto político) não tem sido suficiente para tornar uma unanimidade o emprego dos conceitos Literatura Negra e/ou Afro-brasileira. Apesar do conflito estabelecido entre os defen-
sores dessas terminologias e os que hesitam em aplicá-las, é justo ressaltar que tal discussão coloca em xeque os paradigmas da Literatura Brasileira, questionando-os em nome de outras realidades sociais e de outras formulações estéticas. A fissura nos muros do cânone literário nacional é salutar, pois coloca em evidência a diversidade sociocultural do país, ao mesmo tempo em que aponta para a necessidade de uma contínua negociação para que as alteridades sejam reconhecidas e respeitadas.
Edimilson de Almeida Pereira é poeta, ensaísta, professor na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora.
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