Energia ed 01

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A evolução da aplicação da energia elétrica e suas consequências para a sociedade

Volume 1

Volume 1



apresentação atitude editorial Caro leitor, Apresento-lhe o primeiro volume da Coleção Energia. Fruto de pesquisas e de consultas a fontes experientes do setor elétrico, esta edição é constituída de informações apuradas e selecionadas de modo a trazer mais do que datas e fatos históricos. As páginas dos quatro volumes que formarão a Coleção ENERGIA reviverão as principais mudanças da sociedade como um todo, que observou e participou das verdadeiras revoluções pelas quais passaram as esferas do trabalho, da saúde, do lazer e do conforto a partir da evolução do uso da energia elétrica ao longo do último século. A proposta deste projeto é estruturada na observação da realidade e da sua mutação diante do desenvolvimento da geração e da distribuição de eletricidade, do progresso da indústria por conta do avanço das técnicas de uso da eletricidade e do incentivo ao crescente consumo de equipamentos e produtos que demandam energia elétrica. Compromissada com os leitores que já acompanham a revista O SETOR ELÉTRICO, a Atitude Editorial ratifica sua posição enquanto fomentadora do constante e permanente aprendizado com o qual todos os profissionais do setor devem estar alinhados. Dessa maneira, a Coleção Energia tem a pretensão de oferecer a este público – habituado a trabalhar cotidianamente com informações técnicas – dados culturais, históricos e antropológicos sobre um passado que assume total responsabilidade pelo nosso presente, mas que nem sempre recebe o devido olhar. É importante mencionar que a elaboração da pauta contou com um Conselho Editorial formado pelos engenheiros Cyro Bernardes Barbosa (ex-presidente da Celpa, Cyro Boccuzzi (Andrade & Canellas), Sérgio Bogomoltz (consultor técnico), as historiadoras Isabel Félix e Márcia Pazin (ambas da Fundação Energia e Saneamento) e pelo engenheiro e historiador Gildo Magalhães dos Santos. Aproveito o espaço para agradecer a todas as pessoas que contribuíram para a produção deste trabalho, sejam como fontes ou como colaboradoras; à Fundação Energia e Saneamento, como apoiadora e incentivadora deste trabalho; e aos patrocinadores – Eletrobrás, 3M, Afap, Ápice / Emerson, Cemig, Governo de Minas Gerais, Nambei, Isolet, Novemp e SEL –, sem os quais a realização desta coleção não teria passado de uma ideia. A todos, o nosso muito obrigado e a certeza de que trabalhamos para que o melhor fosse feito. Caminhamos, então, na esteira das descobertas e na trilha das dificuldades em lidar com a eletricidade até se alcançar o domínio das técnicas de geração, transmissão e distribuição de energia. Com essa rota, a Coleção Energia nasce com o desafio de desvendar os “comos” e os “porquês” das profundas mudanças que sofremos a partir desses inventos e do desenvolvimento da técnica e do uso da energia elétrica. Em suma, este trabalho começa, a partir deste volume, a esquadrinhar algumas ricas e desconhecidas histórias que contribuíram para a formação do mundo de hoje, fundamentalmente movido a energia elétrica. A todos, uma boa leitura. Adolfo Vaiser Diretor


prefácio

por Gildo Magalhães

A energia na História: um desafio permanente O que é energia? Apesar de muitos séculos de aperfeiçoamento da ciência, temos uma noção ainda muito pouco exata do que é a energia. Certamente, sabemos como ela nos afeta e sentimos no bolso o que ela nos custa, em uma bomba de combustível ou quando pagamos a conta mensal da eletricidade em casa. Um passo importantíssimo para a história conceitual da energia foi quando se percebeu que a energia podia se apresentar de duas formas, a cinética, quando há movimento, e a potencial, quando há uma capacidade “estocada” para realizar movimento. Em termos de energia mecânica, isto pode ser ilustrado pelo exemplo máximo de nossa geração energética brasileira, que é o da formação de represas artificiais de água, em que a altura do espelho d’água reflete a energia potencial. Aquela água é dirigida por efeito da gravidade para uma saída, conseguindo acionar as pás de uma turbina, transformando-se em energia cinética. Esta, por sua vez, faz girar uma bobina de fios metálicos dentro de um campo magnético, dando-nos a energia elétrica. Foi apenas por volta de 1850 que os cientistas formularam uma descoberta fundamental: todas as formas de energia conhecida se equivaliam e podiam, em princípio, experimentar uma forma de equivalência, apesar de suas aparências distintas: mecânica, térmica, eletromagnética, química – vindo mais tarde se juntar à energia nuclear. Foi preciso, porém, ainda mais tempo para se perceber que o uso de fontes energéticas é histórico. Por exemplo, o petróleo era conhecido desde a antiguidade, não passando de um líquido mal cheiroso e sujo, no máximo adequado para se acender tochas. Apenas com o desenvolvimento da termodinâmica e dos motores a explosão é que veio a se converter no “ouro negro”. E, ao longo da História, as crises energéticas têm impulsionado o homem a desbravar horizontes, fazendo novo uso de materiais antigos ou não e transformandoos em recursos energéticos. Em especial, a eletricidade revelou-se uma forma de energia muito conveniente para a humanidade, pela sua facilidade de transmissão e conversão em outras formas de energia. Não é por outro motivo que vivemos em um mundo elétrico, do computador ao lazer, da iluminação ao uso em transportes, da geladeira ao equipamento hospitalar. Recuperar algo dessa historicidade é o propósito da Coleção Energia. Em outras palavras, apresentar alguns fatos menos conhecidos até dos especialistas em energia, contar um pouco dos personagens que foram pioneiros nessa imensa saga, que por certo não termina aqui, pois novos desafios e oportunidades fazem parte do nosso cotidiano e as atuais crises têm representado uma oportunidade talvez ímpar no caminho de nossa conscientização coletiva da importância da energia. Está aí a energia nuclear a exigir respostas firmes e ousadas, ainda mais quando se vislumbra a viabilização tecnológica e comercial da fusão nuclear, fonte praticamente inesgotável e segura do futuro. Demos uma atenção especial para a história e problemática da energia no Brasil, pois temos a convicção de que conhecer nossa história é essencial para nos valorizarmos e, sem querer abusar da metáfora, transformar essa vasta energia potencial de um país rico em energia cinética dos seus cidadãos, contribuindo para sua educação e cultura, a maior e mais energética das conquistas que nos cabe fazer.

Gildo Magalhães Engenheiro eletricista e historiador Professor Livre-docente em História da Ciência da Universidade de São Paulo

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expediente índice Diretores Adolfo Vaiser José Guilherme Leibel Aranha

Futuro 10 Como será o mundo no fim do século 21? A energia elétrica será escassa ou

Gerência operacional Simone Vaiser simone@atitudeeditorial.com.br

abundante? O professor e especialista em energia José Goldemberg analisa o

Coordenação de circulação Emerson Cardoso emerson@atitudeeditorial.com.br

como pano de fundo.

Assistente de pesquisa Marina Marques marina@atitudeeditorial.com.br

cenário atual e arrisca algumas previsões para o futuro, tendo o setor elétrico

Desenvolvimento e tecnologia 12 Uma das primeiras aplicações da eletricidade nas sociedades ocidentais foi no ramo

Administração Paulo Martins Oliveira Sobrinho adm@atitudeeditorial.com.br

da medicina. No século XVIII, cientistas fizeram experiências em cobaias vivas com o

Jornalista responsável Flávia Lima MTB 40.703 flavia@atitudeeditorial.com.br

Era da eletricidade 20

Projeto Grafico e direção de arte Leonardo Piva atitude@leonardopiva.com.br

Da força animal à motriz. Como a máquina a vapor substituiu os moinhos e a força

Conselho editorial Cyro Bernardes, Cyro Boccuzzi, Hilton Moreno, Isabel Félix, Gildo Magalhães dos Santos, Márcia Pazin e Sérgio Bogomoltz

implicações dessa transformação nas sociedades da época e futuras.

Colaboradores Bruno D’Angelo e Lívia Cunha Revisão Gisele Folha Mós Publicidade Diretor comercial Adolfo Vaiser adolfo@atitudeeditorial.com.br Contatos Publicitários Ana Maria Rancoleta anamaria@atitudeeditorial.com.br César Dallava cesar@atitudeeditorial.com.br Mozart Ramos mozart@atitudeeditorial.com.br Capa Kanji Design Ilustrações internas Poeira Estúdios

intuito de tratar enfermidades e estudar os estímulos elétricos.

de homens e animais, que exerceram por muitos séculos a função de motor, e as

Cidade em movimento 28 As estradas de ferro abriram caminhos para as relações mercantis e para a indústria. Mais tarde, as locomotivas movidas à tração elétrica conferiram mais agilidade e rapidez ao novo meio de transporte, levando fascinação, temor e progresso para as cidades por onde passam.

Comportamento 36 A eletricidade invade as casas e o cotidiano das pessoas. Criam-se novas necessidades e os aparelhos elétricos e eletrodomésticos passam a ser elementos indispensáveis às residências modernas. Veja como tudo começou.

Nacionalismo 44 O projeto nuclear brasileiro tomou corpo durante a ditadura militar e conseguiu, a

Impressão Gráfica Ipsis

duras penas, dominar o ciclo de produção do urânio enriquecido, quebrando o ciclo

Distribuição Correios

Sob um olhar 50

clássico de dependência.

O engenheiro eletricista Claudio Gillet Soares conta a sua experiência na área de distribuição Atitude Editorial Ltda. Rua Piracuama, 280 cj. 72 / Pompéia CEP 05017-040 / São Paulo - SP Fone/Fax - (11) 3872-4404 www.atitudeeditorial.com.br atitude@atitudeeditorial.com.br

de energia. Em seu relato, o experiente engenheiro nos mostra como o trabalho e a busca pela técnica contribuíram para o início da eletrificação subterrânea no país.

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futuro

por José Goldemberg

Energia:

o que o futuro nos reserva?

Prever o futuro é uma tarefa arriscada que

é uma projeção do passado e não conseguem inserir

raramente é feita com sucesso, sobretudo quando

nele ideias e criações inesperadas que ocorrem o

feita por cientistas que, de modo geral, não tem a

tempo todo. Quem poderia prever há 50 anos que

imaginação necessária.

quase metade dos seres humanos teria hoje telefones

celulares que permitem comunicação imediata

Quem tem mais acertado são visionários como Julio

Verne ou Arthur Clarke. Quem não se emocionou com as

(auditiva e visual) com o mundo todo? No caso da

aventuras descritas por estes escritores, que não tinham uma

energia, em particular energia elétrica, é possível

grande bagagem científica, mas grande talento criativo?

imaginar como será o mundo no fim do século 21?

A razão pela qual cientistas erram ao prever o

futuro é muito simples: eles julgam que este futuro

Energia é essencial para todas as atividades

humanas e a civilização que tem hoje é baseada no uso de combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás). É com eles que grande parte da eletricidade que usamos é produzida.

O que tem ocorrido desde o inicio do século 20

é que estamos usando cada vez mais eletricidade, que representa quase metade da energia que consumimos, sob as mais diversas formas: acionando motores, produzindo iluminação e calor para cozinhar alimentos e sob a forma de ondas eletromagnéticas que alimentam rádios, televisões e todos os sistemas de comunicação.

A nosso ver, o que vai ocorrer até o fim do século

em que vivemos é provavelmente o seguinte: • a importância de energia elétrica (incluindo ondas eletromagnéticas) vai aumentar; • os combustíveis fósseis (petróleo e gás) vão se esgotar; o carvão continuará a ser usado, mas vai se revelar problemático devido a problemas ambientais que vão desde o aumento da poluição local até o aquecimento global; • o transporte, que hoje depende quase inteiramente de derivados de petróleo e gás, vai se eletrificar totalmente (exceto aviação); • a automatização e a informática vão dominar todas as atividades humanas.

O problema será produzir a eletricidade

necessária sem usar combustíveis fósseis, mas ele está sendo resolvido captando energia solar em células fotovoltaicas, que a convertem diretamente em eletricidade.

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Hoje, este método de produzir eletricidade

residências é possível instalar células fotovoltaicas

contribui com menos de um por cento do total. Energia

em quantidade suficiente para suprir todas as

hidroelétrica e energia nuclear contribuem com 35% e

necessidades de eletricidade da residência. Quando

o resto vem da queima de combustíveis fósseis. Ambas

esta eletricidade não estiver sendo usada será

ainda podem crescer, mas os problemas ambientais

lançada na rede. Com isso haverá milhões de

gerados por elas vão impedir uma grande expansão.

unidades geradoras de eletricidade no sistema.

Em contraste, energia fotovoltaica só precisa de sol e

de espaço disponível; desertos são regiões ideais onde

recursos que computadores nos fornecem hoje será

isto pode ocorrer.

possível automatizar completamente as atividades

domésticas, que poderão ser comandadas a distancia,

O primeiro grande projeto deste tipo já está

Com eletricidade abundante e com os enormes

começando a se concretizar no Saara, no norte

bem como boa parte das atividades industriais.

da África. Se cobrirmos um quadrado com cinco

quilômetros de lado (25 milhões de metros quadrados)

mundo como este?

com células fotovoltaicas, pode-se produzir um

gigawatt (um milhão de kilowatts) de eletricidade que

de empregos nas indústrias vai diminuir, mas

é a quantidade gerada em um reator nuclear de grande

irá aumentar o número de empregos na área da

porte como o de Angra dos Reis II.

informática (como já acontece hoje), na área de

serviços e, sobretudo, lazer. O que as pessoas irão fazer

A eletricidade gerada no Saara terá que

Como será a vida dos seres humanos em um Em primeiro lugar, parece claro que o número

ser levada até os países da Europa onde será

com o tempo livre adicional?

consumida, mas este não é um problema técnico

complicado. É claro que a Europa precisará pelo

parte da população – a aristocracia – não trabalhava,

menos 1.000 vezes mais eletricidade, mas não falta

mas a maioria – inicialmente escravos, depois

espaço para tal no norte da África.

operários – não tinha nenhum lazer.

Algo semelhante poderá ocorrer no resto do

Desde o inicio da civilização apenas uma pequena

Com a automatização da sociedade, que se

mundo usando o deserto de Nevada (nos Estados

espera que ocorra até o fim do século, haverá

Unidos), da Patagônia (na Argentina), do deserto de

abundância de energia – renovável e não poluente

Gobi (na Ásia) e das áreas do nordeste (no Brasil).

– e as atividades de lazer, como o turismo, deverão

ganhar grande importância. Será um mundo

Com eletricidade abundante, e

presumivelmente barata, já que haverá ganhos

diferente do atual em que a luta pela sobrevivência

de produtividade ao longo dos anos, pode-se

nas camadas mais pobres da população e as lutas

pensar em substituir os derivados de petróleo

sociais se tornarão coisa do passado.

por eletricidade em automóveis e caminhões

e até construir “estradas inteligentes”, em que

interplanetárias deverão se tornar mais acessíveis e

comandos eletromagnéticos farão o papel do piloto

o espírito criador do homem provavelmente dará a

automático dos aviões, conduzindo os automóveis

elas grande importância, como uma forma de ampliar

e caminhões de forma absolutamente segura.

nossos horizontes, da mesma forma que conquistar

o Everest se tornou símbolo de sucesso no século 20.

Automóveis elétricos são o sonho dos

Em uma sociedade deste tipo, viagens

engenheiros desde que a indústria automobilística

Até hoje mais de dois mil alpinistas já chegaram ao

se iniciou no começo do século 20. Naquela época

pico mais elevado do mundo.

havia mais carros movidos com baterias elétricas do

que com etanol ou gasolina.

e seres humanos tem se mostrado muito

O grande problema dos automóveis elétricos são

incompetentes para fazer as previsões corretas.

as baterias, que precisam armazenar carga suficiente

Mesmo quando o fazem, como fez Cassandra, a

para longos percursos e que devem ser carregada (e

sacerdotisa da Grécia antiga da cidade de Tróia

descarregadas) milhares de vezes. Este é ainda um

(que previu corretamente que os soldados de

problema tecnológico não resolvido, mas que está

Atenas estavam dentro do “cavalo de Tróia” e que

em vias de solução. Quando isto ocorrer as pessoas

destruíram a cidade), acabam sendo vítimas dele.

poderão recarregar as baterias do seu automóvel

Como se sabe, os troianos não acreditaram nas

durante a noite nas suas próprias casas.

previsões de Cassandra, levaram o Cavalo de Tróia

para dentro das muralhas da cidade, permitindo,

Além de gerar eletricidade em grandes

Tudo isso cai na categoria de “futurologia”;

blocos, haverá uma grande expansão de geração

com isso, que os atenienses violentassem e

descentralizada porque nos telhados das

escravizassem a própria Cassandra.

José Goldemberg é doutor em Ciências Físicas pela Universidade de São Paulo, da qual foi Reitor de 1986 a 1990. Foi presidente da Companhia Energética de São Paulo (CESP); presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência; Secretário de Ciência e Tecnologia; Secretário do Meio Ambiente da Presidência da República; Ministro da Educação do Governo Federal e Secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. É atualmente professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia da Universidade de São Paulo (IEE/USP)

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desenvolvimento e tecnologia

Por Lívia Cunha

A ENERGIA DA VIDA

Uma das primeiras aplicações da energia elétrica na história das sociedades ocidentais foi no campo da medicina para tratar doenças e enfermidades. Os primeiros cientistas ao utilizarem tais técnicas se revezavam nas funções de médico e físico, duas profissões, até então, intimamente ligadas.

Duchenne fazia apliações de choques elétricos em pessoas vivas para ver como músculos e nervos reagiam aos estímulos.

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Quando Victor Frankenstein decidiu criar

outro patamar, mais prático e dissociado da filosofia

uma criatura e lhe dar vida, animando tecidos

– área que até então era fortemente ligada.

mortos de um cadáver, na famosa obra literária

de Mary Shelley, o criador fez experimentos com

seguiam as linhas de pesquisas da primeira

eletricidade buscando reações vitais no corpo

revolução científica, iniciada nesse período. Os

inato. A história, que se passa no século XVIII, foi

físicos e médicos desses séculos dedicavam suas

escrita entre 1816 e 1817 e apresenta como pano de

investigações às interações da eletricidade e da

fundo alguns pensamentos correntes na sociedade

fisiologia, buscavam estabelecer correlações para

europeia do período. Pesquisadores, médicos e

fazerem novas descobertas, para entender melhor

físicos, entusiasmados com as recentes descobertas

os seres vivos e buscar novas curas e tratamentos

científicas e com a possibilidade de encontrar a

para enfermidades. O médico neurologista e doutor

solução para todos os problemas da humanidade,

em história da ciência, Afonso Neves, comenta que

realizavam diversos experimentos com eletricidade

os principais estímulos para pesquisa dos cientistas

no corpo humano, na busca por tratamentos e pela

dessa época eram a busca por conhecimento e por

cura de doenças.

cura. Apesar de, eventualmente, fatores econômicos

e políticos poderem ter sido também determinantes

Uma das primeiras aplicações da eletricidade

nas sociedades ocidentais foi no ramo da medicina, com experimentos como esse do Dr. Frankenstein,

Os estudiosos dos séculos XVIII e XIX

no desenvolvimento desses trabalhos.

antes mesmo dessa fonte de energia ser utilizada

Galvanismo

na iluminação ou nos transportes. Ideias sobre as

primeiras técnicas eletromédicas começavam a ser

eletricidade na medicina desenvolvidas, e que

difundidas no continente europeu no século XIX.

ainda temos registros, foram influenciadas pelos

Mas, antes disso, no século anterior, precursores

estudos do médico e físico italiano Luigi Galvani,

já começavam a aplicar tais técnicas em busca de

contemporâneo dos médicos de Genebra. Nas

resultados positivos.

décadas de 1770 e 1780, Galvani realizou uma

Estudos arquivados no museu virtual do

série de experimentos submetendo animais mortos

Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos

a correntes elétricas, utilizando como ferramentas

(IEEE) mostram que já na década de 1740, anos

geradores de eletricidade estática e Garrafas

após a invenção da Garrafa de Leiden – uma

de Leiden. Descobriu que tecidos nervosos e

espécie de capacitor capaz de armazenar energia

músculos são eletricamente excitáveis. Percebeu

elétrica – médicos de Genebra, na Suíça, realizavam

isso quando viu que músculos se movimentavam,

experimentos aplicando choques elétricos em

contraindo-se, quando submetidos a esses

pacientes na esperança de tratar enfermidades como

estímulos elétricos. Seu estudo mais famoso nesse

paralisia e dores de cabeça. Esses primeiros médicos

sentido foi estimulando músculos da perna de

acreditavam que se choques elétricos fossem

rãs mortas. Galvani chamou esse fenômeno de

aplicados repetidas vezes, eles seriam capazes de

eletricidade animal.

curar algumas doenças.

Cientificismo

Grande parte das pesquisas de aplicação da

Com a descoberta, o médico italiano foi o

primeiro a associar eletricidade à vida. Só que ele não pensava na eletricidade como um fenômeno natural, presente em diversas situações e ambientes,

O período histórico era influenciado pela

dissociada da biologia. De qualquer maneira, suas

revolução científica do século XVII. Nessa época, a

descobertas foram muito importantes para as

ciência passou a assumir um caráter mais prático e

pesquisas da área, tanto que o fenômeno descoberto

experimentalista, por conta das pesquisas de Galileu,

por ele, de reação muscular por estímulos elétricos,

Newton e outros nomes, que colocaram a ciência em

ficou conhecido como galvanismo.

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desenvolvimento e tecnologia

A pilha de Volta

Grandes progressos no campo científico

foram possíveis a partir da invenção de outro físico italiano. Em 1800, o italiano Alessandro Volta, estimulado pelas pesquisas de Galvani e descontente com as conclusões do médico, conseguiu provar que a eletricidade não é um fenômeno ligado somente à fisiologia. Volta pensava que a reação gerada pela eletricidade nas pernas das rãs, nos estudos de Galvani, não era provocada por uma eletricidade animal, mas por uma ação misteriosa entre os metais utilizados para dar os choques e os líquidos existentes nas pernas do animal. As pesquisas acabaram por concluir que a corrente elétrica era gerada por dois metais diferentes separados por um meio líquido condutor, como uma solução salina.

Com essa conclusão, ele trabalhou no

desenvolvimento de uma pilha capaz de realizar a mesma ação de geração de corrente. Esta pilha, chamada de pilha voltaica, é a precursora da bateria elétrica, capaz de gerar corrente elétrica e armazenála. Formada pelo empilhamento de uma série de discos metálicos envolvidos em uma solução condutora, esse dispositivo foi muito importante na história da estimulação elétrica. Volta e Galvani foram dois cientistas importantes para a base de pesquisas com eletricidade que aconteceram no período seguinte.

Parte da sociedade europeia do século XIX

respirava as descobertas científicas realizadas no

Físicos e médicos desses

período. E foi nesse contexto que Mary Shelley

séculos dedicavam suas

escreveu seu famoso romance, Frankenstein ou

investigações às interações

inclusive, teria sido derivado do nome Franklin, de

da eletricidade e da fisiologia,

Benjamin Franklin, talvez o mais conhecido dos

buscando estabelecer

pesquisadores da eletricidade no século XVIII, graças

correlações para fazerem novas descobertas, para entender melhor os seres vivos e buscar novas curas.

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O Moderno Prometeu. O nome do personagem,

à invenção do para-raio. Na opinião do engenheiro e historiador Gildo Santos, isso representou uma grande mudança, pois, diferentemente dos espetáculos de curiosidades e entretenimento que os experimentadores faziam com eletricidade, o

para-raios passou a ser algo de interesse prático e social, com a função de proteger igrejas, escolas, navios, etc. Nesse tempo, a eletricidade era vista como curiosidade e o magnetismo com mais seriedade, pela sua aplicação nas bússolas. “Foi por demonstrar a natureza elétrica do raio que Benjamin Franklin foi aclamado como o “Prometeu moderno”, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos”, completa. A partir então da década de 1820 que se foi comprovada a ligação entre os dois fenômenos, nascendo o eletromagnetismo.

O fato é que, no início do século XIX, os

intelectuais e a elite europeia estavam divididos em dois grupos em relação às suas visões de ciência. Havia o grupo daqueles que eram entusiasmados pela potencialidade que ela gerava, de curar todos os males, e acreditavam que por meio da ciência todas as respostas da humanidade poderiam ser encontradas.

Em contraponto, existia ainda o grupo dos

desconfiados, receosos do caminho que essa ciência poderia tomar e levar toda a sociedade. Influenciada por esses dois grupos, Shelley escreveu sua ficção científica, na qual a eletricidade é capaz de gerar vida, mas a um alto preço, resultando na morte do criador. A obra representa, assim, as discussões dos dois grupos sobre a ciência.

Além das descobertas, que estimulavam ainda

mais pesquisas, com eletricidade e medicina, o interessante é que, como a elite intelectual europeia era restrita nesse período, “toda essa questão era colocada ali, em um meio de pessoas que ficavam discutindo o que a ciência da época via como científico”, conta Afonso Neves.

Pai da eletroterapia

Na década de 1830, o médico francês Guillaume

Duchenne, também influenciado pelas pesquisas de Galvani com eletricidade e fisiologia, começou a fazer uma série de experimentos com choques elétricos em seres humanos a fim de ver as reações musculares que eles geravam. Em 1835 ele passa a empregar uma técnica recém inventada pelo


“Foi numa noite chuvosa de novembro. Com uma ansiedade que beirava a agonia, acionei os instrumentos que acenderiam a faísca de vida na coisa inanimada que eu acabara de modelar, costurar, suturar e encher de sangue e oxigênio. Com os raios e trovões cortando o céu, a natureza providenciou a eletricidade. Era uma da manhã. A chuva castigava as navalhas quase se apagando. Foi quando vi, pela luz da chama a ponto de extinguir-se, o olho mortiço e amarelo da criatura se abrir. Em seguida, respirou forte e seus membros sacudiram-se como numa convulsão. Estava viva!” Frankenstein, de Mary Shelley. Ed. Cia. das Letras.

O “pai da eletroterapia” fez registros fotográficos dos seus testes com eletricidade para estudar a expressão humana.

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desenvolvimento e tecnologia

também médico Jean-Baptiste Sarlandière. Nela,

da eletroterapia”. O médico Herbert Tibbits, autor do

choques elétricos eram aplicados abaixo da pele

livro The Handbook of Medical Electricity, de 1873,

com eletrodos em forma de agulhas para estimular

relata que Duchenne pode ainda ser denominado

os músculos, uma espécie de acupuntura elétrica.

como o responsável pelo nascimento da eletricidade

médica como uma forma de terapia. Seus estudos

Continuando seus estudos, na década de 1840,

Duchenne desenvolveu uma técnica de estímulo

estimularam uma série de outros médicos a

do músculo com choques na superfície da pele

continuar com pesquisas na área.

chamada eletrização localizada. A partir desse

método, ele desenvolveu outros trabalhos com

até mesmo no famoso naturalista inglês Charles

choques elétricos nos músculos para estudar as

Darwin. Após a publicação de A origem das

reações. Começou, assim, uma série de estudos sobre

espécies, em 1859, Darwin começou a estudar a

a expressão humana. Duchenne estudou não só a

expressão humana e animal a partir de fotografias

reação dos músculos, mas também a dos nervos.

das reações musculares provocadas pelas técnicas

de eletrochoque de Duchenne. Utilizando diversas

Durante os experimentos com choques elétricos,

A influência de Duchenne pode ser percebida

o médico francês retirou fotografias dos seus

fotografias das reações dos pacientes de Duchenne

pacientes como forma de comparar e fazer o estudo

aos choques elétricos, Charles publicou o livro

sobre a expressão humana. Viu que diferentes

The Expression of the Emotions in Man and

músculos reagiam de maneiras distintas dependendo

Animals em 1872.

do lugar em que o choque era aplicado. A partir disso, Duchenne começou a desenvolver uma visão

Cérebro

sobre o funcionamento do músculo e do nervo por

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meio da eletricidade.

enfermidades começaram a ser criados durante

O médico neurologista Afonso Neves, da Escola

Novos tratamentos para o combate de

Paulista de Medicina, explica que “nessa época, eles

todo o século XIX, com maior consolidação e

ainda não conheciam bem o transporte de íons pelo

desenvolvimento no século XX. Diversos estudos

nervo. Não sabiam que o funcionamento do nervo

começaram a ser desenvolvidos com eletricidade

é eletroiônico, mas percebiam que tinha alguma

no cérebro humano. Em 1875 houve a primeira

propriedade elétrica. Essa constatação fez com que

detecção de correntes elétricas do cérebro, mas

Duchenne, aos poucos, elaborasse uma teoria de

antes disso, muitos fisiologistas já tinham feito

reflexos neurológicos”.

experimentos. Giovanni Aldini, sobrinho de Galvani,

empenhou-se em estudos de eletricidade médica,

Em 1831, quando Duchenne se formou em

medicina em Paris, ainda não existia a cátedra de

com aplicação de choques elétricos no cérebro

neurologia nas universidades. Foi então, devido

de pessoas mortas e, ainda em 1802, fez diversas

às pesquisas na área da eletroterapia e por ter sido

apresentações públicas de seus experimentos.

professor do médico que é considerado o pai da

neurologia, o francês Jean-Martin Charcot, que

neurofisiologia do comportamento Renato

Duchenne também é reconhecido como um médico

Sabbatini, na revista médica Cérebro & Mente,

neurologista, mesmo o termo tendo surgido depois

Aldini “objetivava mostrar como as cabeças de

dele.

pessoas recém-mortas piscavam e arregalavam os

olhos, mexiam a língua, faziam contrações e esgares

Apesar de vários precursores nas pesquisas

Segundo relatou o pós-doutor em

das reações de tratamentos com eletricidade no

faciais, etc.”. Aldini queria provar, conta Sabbatini,

corpo humano e em animais, foi Duchenne o

que ao estimular o cérebro, ele poderia reagir de

responsável por uma evolução no desenvolvimento

alguma forma, mesmo que externamente.

de experimentos e na forma de pensar a corrente

elétrica no corpo. Por isso, ele é chamado de o “pai

comumente apresentada ao público como algo

Até o final do século XIX, a eletricidade era


A ciência

como profissão

O desenvolvimento da ciência está intimamente relacionado à

criação das universidades e da ampliação do acesso ao conhecimento. Quando as primeiras pesquisas que temos conhecimento começaram a ser elaboradas na área da eletricidade e da medicina, as sociedades ocidentais eram rigorosamente hierarquizadas e o saber estava restrito à nobreza, a elite econômica e intelectual da época. Então, as pesquisas não estavam relacionadas de maneira direta às necessidades da população. Estudos e experimentos eram realizados mais por curiosidade científica e interesses econômicos e políticos, do que necessidades latentes da sociedade. Esses, contudo, foram menos ressaltados na construção da história do que os próprios feitos. O resultado é que parte desse quebra-cabeça da história se perde com o passar dos anos.

Sabemos, entretanto, que a figura do cientista enquanto profissional

só aparece entre os séculos XVIII e o início do século XIX. Nas décadas de 1800 e 1810, há um grande florescimento da ciência, em especial por conta das universidades e das sociedades científicas. Nesse momento, os poderes constituídos passam a enxergar o conhecimento como algo muito importante para eles, período em que o pesquisador deixa de ser uma figura isolada e passa a ser integrado a um grupo de discussão científica. São criadas, no cerne dos poderes políticos, as sociedades e academias reais de ciência. E o vínculo do poder com a ciência passa a estimular ainda mais as pesquisas.

O estímulo às experimentações científicas surge das correntes

otimistas da sociedade, que viam o saber científico e racional como capazes de salvar a humanidade. O médico neurologista e doutor em história da ciência Afonso Neves explica que isso tem a ver com o iluminismo, que pensava que a razão, assim como o saber científico, seria capaz de resolver todos os problemas. A crença, que era vista como uma corrente de pensamento atrasada, era posta em oposição à razão e à ciência.

Nessa época os estudiosos começam a assumir o título de

cientistas como profissão e não tanto como uma ação isolada ou um hobbie. Mas é importante lembrar que, até meados do século XIX, o cientista ainda estava ligado à elite e, portanto, não trabalhava para viver. E são essas pessoas que começam a fazer as primeiras

Com a criação das sociedades de pesquisa pelos poderes constituídos, o cientista passa a ser reconhecido como profissional.

descobertas. A partir deles, no século XX, com a consolidação do capitalismo enquanto sistema econômico, com o término de grande parte das monarquias – e com ela, das nobrezas – e com a consolidação da república e da democracia, o acesso ao conhecimento e à ciência vão se aproximando cada vez mais do povo.

13


desenvolvimento e tecnologia

As pesquisas de Duchenne influenciaram Charles Darwin, que, quando foi estudar a expressão humana e animal, utilizou as fotografias do médico francês.

mágico, em forma de espetáculo, a exemplo das

há alguns séculos. Nos últimos anos, contudo, as

apresentações de Giovanni Aldini. A partir do

técnicas têm se aprimorado cada vez mais em várias

desenvolvimento tecnológico e do aprimoramento

especialidades.

dos conhecimentos sobre o fenômeno e as técnicas médicas, a aplicação da eletricidade foi mais

Raios-X

amplamente entendida. Os cientistas passaram a ter

14

maior domínio sobre o fenômeno e ele passou a ser

sinal de progresso. Mas para que isso acontecesse,

com o uso da eletricidade é a técnica de raios-X.

diversos cientistas tiveram que experimentar o que a

Para o engenheiro eletricista Jorge Rufca, cujo

eletricidade poderia ou não fazer no corpo humano.

mestrado foi sobre a implantação de departamentos

Após Aldini, por exemplo, outros fisiologistas fizeram

de engenharia clínica em instituições de saúde e

experimentos com eletricidade em cérebros expostos,

equipamentos eletromédicos, “a mais importante

sem o osso. Com a descoberta do eletromagnetismo,

inovação para a medicina clínica foi a descoberta

as técnicas de tratamentos cerebrais com eletricidade

dos raios-X”. Isso porque esse processo, de radiação

se desenvolveram ainda mais.

eletromagnética, descoberto em 1895 pelo físico

alemão Wilhelm Röntgen, possibilitou enxergar o

Nas primeiras décadas do século XX, o

Uma das aplicações médicas mais conhecidas

médico alemão Hans Berger descobriu que era

interior dos corpos sem ser necessários abri-los. Até

possível registrar pequenas correntes elétricas no

o momento, isso só era possível na mesa de cirurgia.

cérebro, sem ser preciso abrir o crânio. A partir

da captação de atividade elétrica cerebral na

faziam experiências com raios catódicos. Assim como

superfície do crânio, Berger desenvolveu o exame de

outros cientistas da época, Röntgen estava estudando

eletroencefalograma, em que a atividade do cérebro

a ação desses raios nos tubos catódicos, descobertos

fica registrada em um papel na forma de ondas.

pelo físico William Crookes. Nesse tubo, uma carga

Berger descobriu ainda as ondas alfa, oscilações

elétrica negativa era capaz de atravessar o vácuo de

eletromagnéticas nas frequências entre 8 Hz e 12

um pólo até o outro. Quando essa carga realizava

Hz, que mostram a atividade elétrica no cérebro

o percurso, uma radiação aparecia na forma de um

humano.

feixe de partículas negativas, chamada catodo, em

direção ao pólo positivo, chamado de anodo. Cientistas

O médico Afonso Neves explica que “com a

Desde a metade do século XIX, pesquisadores já

experiência adquirida, foi possível elaborar todo um

descobriram que esses raios catódicos poderiam ser

conhecimento a respeito de ondas elétricas cerebrais,

usados para esboçar sombras utilizando imãs.

de importante uso em casos de epilepsia, alterações

cognitivas, encefalopatias das mais diversas causas,

Röntgen um dia percebeu que uma luminescência

etc.”. Os exames elétricos evoluíram para outras

era emitida de uma placa de platinocianeto de

áreas e aplicações no tratamento e mapeamento do

bário em uma chapa fotográfica quando o tubo

sistema nervoso e da atividade cerebral. A relação

catódico era ligado. Quando ele era desligado,

entre eletricidade e medicina é estreita e vasta

contudo, a luz desaparecia. Intrigado, o físico fez

Durante suas pesquisas com os tubos catódicos,


Doença

de Duchenne

Durante as pesquisas de Guillaume Duchenne sobre reações de músculos e nervos a efeitos elétricos, o médico tomou conhecimento de uma doença que afetava meninos e que já

A primeira radiografia utilizando raio-X da história foi tirada em 1895 por Röntgen da mão de sua esposa

tinha sido estudada por alguns outros médicos anteriormente. Acreditando que a enfermidade era causada por alterações no sistema nervoso, em 1858, Duchenne começou a estudar a patologia. No mesmo ano, documentou o caso de um menino de

algumas experiências com o tubo e o material de

nove anos que perdeu a capacidade motora devido a uma doença

bário. Colocou uma série de materiais entre o tudo,

muscular. Dez anos depois, publicou 13 casos semelhantes e fez

esperando que a radiação pudesse ser bloqueada.

observações sobre os sinais e sintomas da distrofia. Concluiu

Mas não aconteceu. Fez um teste com a mão de sua

que era uma doença hereditária que afetava majoritariamente

esposa e conseguiu ver os ossos projetados na chapa fotográfica, realizando, assim, o primeiro raio-X da história. Como ele não sabia que tipo de radiação era aquela que permitia ver o interior do corpo, ele chamou o raio de X, a letra usada para representar o desconhecido.

“Inicialmente, os raios-X eram usados para

diagnóstico de fraturas de ossos e deslocamentos. Mas por volta de 1930 foi possível a visualização também de todos os órgãos do corpo por meio dos raios-X por causa da radiopacidade inerente do corpo, do uso de sal de bário e de uma grande variedade de materiais radiopacos”, explica Jorge Rufca.

meninos.

A doença passou a ser conhecida como “distrofia pseudohipertrófica” ou “distrofia muscular de Duchenne”, podendo ser encontrada também com o nome de “distrofia muscular progressiva”, ou DMP. Distrofia muscular é um termo genérico dado a um grupo de doenças genéticas que afetam o músculo e dão fraqueza ao indivíduo. Existem mais de 30 tipos de outras distrofias que podem afetar tanto crianças quanto adultos de ambos os sexos. A de Duchenne, contudo, é o tipo mais comum e se apresenta a uma média de um caso a cada três mil meninos. No diagnóstico, percebe-se um retardo no desenvolvimento e perda das atividades motoras em relação às outras crianças.

A tecnologia radiológica, assim como a

de outros aparelhos eletromédicos, evoluiu significativamente no decorrer do século XX, aumentando a precisão, a segurança e o alcance das técnicas.

Pequisa • Essentials of medical electricity (Disponível como E-Book na internet) Elkin Percy Cumberbatch e Edward Reginald Morton, Ed. Henry Kimpton. • Handbook of medical electricity (Disponível como E-Book na internet) Herbert Tibbits, Ed. Lindsay & Blakiston.

15


era da eletricidade

Por Bruno D’Angelo

O MUNDO E O MOVIMENTO Homens, animais, carroças, moinhos e máquinas a vapor: todos tiveram seus papéis nas mudanças que levaram à industrialização e, consequentemente, às transformações sociais que com ela vieram

16


Toda revolução tecnológica é, na verdade, um

professor da Universidade São Paulo (USP), Gildo

conjunto de transformações prodigiosas na ação

Magalhães dos Santos Filho, denomina como as

humana sobre a natureza com correspondência

duas primeiras grandes revoluções técnicas da

em alterações qualitativas em todo modo de ser

nossa civilização: a primeira teria ocorrido com o

das sociedades. É como define o antropólogo

surgimento dos moinhos hidráulicos e movidos a

Darcy Ribeiro, que conclui ainda que ao

vento e a segunda com a invenção das máquinas a

desencadeamento de cada revolução tecnológica

vapor.

vê-se emergir novas formas socioculturais.

Essas modificações culturais e sociais, apesar de

profundamente a estes dois grandes movimentos

constantes, são ainda mais perceptíveis quando há

tecnológicos, faz-se necessário mostrar como os

o confronto com novas máquinas e técnicas. É o

homens, em épocas bem remotas a estas invenções,

que veremos nesta reportagem, que pretende tratar

faziam para levar a cabo as atividades mecânicas

justamente sobre a relação entre as novas técnicas

que proveriam o sustento deles. Cabe aqui uma

e os costumes da sociedade: o impacto causado

pequena contextualização histórica para, dessa

pelas modificações das ferramentas utilizadas pelo

forma, evidenciar como o desenvolvimento

homem, seja para o trabalho, seja para a guerra,

destas máquinas foi de suma importância para o

seja para qualquer atividade desempenhada.

progresso econômico e social da humanidade.

Não nos interessa aqui apenas mudanças nas

atividades diretamente relacionadas com estas

Todavia, antes de nos atermos mais

Escravos, animais e engrenagens

ferramentas; e sim as reverberações ocasionadas por elas em diversos âmbitos de ação destas

pessoas. Nesse sentido, uma mudança em um

povos que o habitam desde milênios sempre

dispositivo empregado em atividades de labor pode,

apresentaram grandes diferenças culturais, a

por exemplo, otimizar o tempo do trabalhador,

tarefa de mapear as variadas técnicas que foram

deixando-o mais livre para realizar outras tarefas.

utilizadas por eles, em extensos períodos da

Como ele se organizaria neste novo cenário?

história, torna-se praticamente impossível. Por

isso, o escopo será bem delimitado, mas suficiente

É impressionante pensar que o advento

Como o mundo é demasiado extenso e os

de um simples aparato técnico, às vezes nem

para apontar de forma abrangente como foram se

muito sofisticado tem o poder de transformar

modificando e progredindo as diversas tecnologias

radicalmente uma civilização. Uma invenção é

de geração de movimento através dos tempos.

capaz de produzir uma cadeia de reações não

imaginadas: pessoas migram do campo, surgem

braçal humano foi a principal força motriz

aglomerações urbanas, novas classes econômicas

utilizada pelas civilizações incipientes. Quando

aparecem, pessoas enriquecem, outras não, as

os homens ainda não apresentavam poder

primeiras se afastam, vão morar em residências

intelectual suficiente para desenvolver aparelhos

luxuosas, as segundas se aglomeram em locais com

que o substituíssem era preciso que eles mesmos

condições insalubres. Altos níveis de tensão são

colocassem “as mãos na massa”. E assim foi

gerados, outros conflitos aparecem e mais e mais

durante muito tempo. Claro que tal limitação

mudanças.

restringia muito o deslocamento e a produção de

materiais dos homens da época.

Obviamente, não se pretende ir tão longe

Primeiro, é preciso afirmar que o trabalho

aqui e a atenção se voltará, principalmente, para

o que o engenheiro eletrônico, historiador e

primitivos eram a caça, a pesca e também a coleta

As atividades de subsistência destes homens

17


era da eletricidade

de alimentos. A grosso modo, com a descoberta do

um ciclo mais acelerado de desenvolvimento e

fogo e a evolução de instrumentos, estas atividades

inovações técnicas. Foi este período que permitiu,

tornaram-se mais e mais intensas, espalhando-se

na Idade Média, mais especificamente, no século

sobre toda a superfície da Terra. Posteriormente,

X, a difusão em grande escala dos moinhos

as atividades de coleta e a reunião de pequenos

hidráulicos.

grupos de homens possibilitaram o processo de sedentarização humana, que culminou no

A água e o vento: os moinhos

surgimento das atividades agrícolas e pecuárias.

18

A atividade agrária foi realizada durante muito

Os moinhos já existiam bem antes da Idade

tempo somente com a força humana. Mesmo com

Média. Eles foram já empregados na Roma e China

o auxílio de ferramentas – carro com duas rodas,

antigas, mas só alcançaram sua grande expansão

técnicas de irrigação, torno do porteiro, arado

na Europa Ocidental com a proliferação dos

e tear – não se podia fugir do tripé: condição

moinhos de farinha no século X, acarretando em

climática (incidência do sol e chuvas), condição

um grande crescimento da produção de alimentos.

geográfica (terra fértil e proximidade de rios) e o

No entanto, o moinho não ficou restrito à função

homem, organizado, disciplinado e em grupos.

alimentar e, em pouco tempo, tornou-se o motor

daquilo que o historiador francês Jean Gimpel

Mas isso não impediu que inovações técnicas

ocorressem. No Antigo Egito, por exemplo,

denominou como Revolução Industrial na Idade

começaram as primeiras inserções de animais

Média.

como bois e mulas nas tarefas de tração e

transporte, respectivamente. Na Grécia Antiga,

motriz produzida pela técnica humana e sua

dentro do período helenístico, a utilização do

expansão na época feudal causou profundas

parafuso, da polia, das rodas dentadas e das

transformações a ponto de ele ser tido como o

engrenagens trouxeram à técnica mecânica um

símbolo das mudanças técnicas que ocorreram

número significativo de novidades e prestaram um

nesse período. Entretanto, primeiro, os moinhos

importante serviço na construção de máquinas de

hidráulicos se restringiram a assegurar o

guerra ou de aparelhos de elevação de carga nos

fornecimento de farinha à propriedade feudal

portos e nas minas.

onde dividiam espaço com os moinhos a braços

domésticos.

O certo é que o advento da agropecuária,

O moinho d’água foi a primeira grande força

ajudado pelas diversas técnicas insurgentes,

permitiu que os homens atingissem um grau de

a dominar a Europa Ocidental, passando de

Paulatinamente, os moinhos começaram

desenvolvimento não imaginado nos tempos da

centenas no século X a dezenas de milhares só no

vida fundamentada pela caça e coleta. O fato de

reino da França cem anos depois. Isto se deveu

o homem não precisar se desgastar na procura de

a dois motivos principais: social, concernente à

alimentos mais do que o necessário, justamente,

demografia e à estrutura feudais; e geográfico,

por criar reservas de energias, permitiu que a

devido à rede hidrográfica europeia. O certo é que

espécie crescesse em número e multiplicasse suas

os moinhos se proliferaram e sua alta eficiência

necessidades. Consequentemente, entrávamos em

energética, quando comparada à força humana –


A escassez de fonte energética, as dificuldades de transporte do mineral e da lenha para o local em que a energia hidráulica estava disponível e também a limitação das máquinas de força motriz existentes ante a demanda de energia crescente pressionaram os produtores da época a investirem em novas fontes.

apenas um deles podia fazer o trabalho de dez a vinte homens – também foi responsável por esse avanço.

Contudo, como os moinhos funcionavam

hidraulicamente, instalou-se uma forte discussão na época para saber a quem pertencia o recurso hídrico. A corda estourou para o lado mais fraco e os senhores feudais ficaram responsáveis pelo meio de produção, até porque o investimento para a construção dos moinhos era alto. Definida a política de propriedade dos moinhos, os servos se viram pressionados pelas altas taxas cobradas, o que gerou certo descontentamento.

Tal obstáculo, além da escassez de

recursos hídricos, forçou a invenção de outros equipamentos. Surgiram então os moinhos a vento. A explicação era simples: as águas eram propriedades do senhor feudal, mas o ar e o vento não possuíam dono. O moinho de vento tornou-se, dessa forma, o “moinho plebeu”.

Mais barato para construir do que os moinhos

de água, os equipamentos eólicos tiveram sua produção impulsionada. Como os sítios hidráulicos urbanos já estavam saturados e os moinhos de água já tinham sido desviados de sua função original – não moíam mais grãos –, os moinhos a vento foram instalados em grande parte nas cidades com o objetivo de suprir então a demanda de produção de farinha, já que as antigas moendas não eram mais responsáveis pela função.

Mais tarde, os moinhos hidráulicos começaram

a ser utilizados também nas forjas de metais, fazendo aumentar de forma sensível a produção metalúrgica e também a demanda por mais energia. O auxílio do moinho permitiu a feitura de mais ferro e, portanto, de rodas mais sólidas e de maior capacidade que, por sua vez, fez ampliar a capacidade de fabricação de metais. As forjas,

Surgido entre os gregos e romanos antigos, o moinho d’água alcançou o auge de sua utilização na Europa Ocidental durante a Idade Média. Empregado na produção de movimento para auxiliar os homens nas atividades agrárias, o moinho foi o precursor das máquinas a vapor e elétrica.

19


era da eletricidade As

maquinarias do pensar As transformações tecnológicas, obviamente,

não brotam do nada. Surgidas de uma centelha genial de algum indivíduo, elas precisam, forçosamente, de um solo correto e bem cultivado para florescerem. O que equivale dizer que há sempre uma efervescência intelectual da época na qual elas ocorrem que permite seus aparecimentos. Efervescência essa que impulsiona e que é impulsionada por novas tecnologias.

No caso da máquina a vapor, a situação

não foi diferente, como explica o mestre em Economia pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), Carlos Eduardo Suprinyak. Segundo ele, durante a segunda metade do século XVIII, quando as inovações técnicas associadas à Revolução Industrial finalmente começavam a ser difundidas mais rapidamente e suas aplicações tornadas economicamente viáveis, a Europa já havia passado por um profundo processo de reformulação de suas bases intelectuais e científicas.

O início deste caminho remonta, segundo

Suprinyak, às primeiras décadas do século XVII, e continua em ritmo acelerado durante a segunda metade do mesmo período, culminando no que é chamado pelos historiadores como Revolução Científica. Trata-se de um momento marcado por cientistas como Galileu Galilei, Robert Boyle e, principalmente, Isaac Newton, que substituem o racionalismo cartesiano pelo experimentalismo newtoniano.

Conforme diz o economista, a antiga escola científica baseava-se em raciocínio apriorístico, abstrato e

dedutivo e recorria à suposta existência de propriedades inerentes às entidades físicas como forma de explicar os fenômenos naturais. Logo, sua superação – mesmo que fosse concomitante por um tempo – por uma nova forma de analisar o mundo, por meio de raciocínios indutivos, experimentos e tentativas de manipulação da natureza, foi imprescindível aos resultados científico-tecnológicos que se seguiram.

Deve-se salientar também que, se este cenário propiciou a invenção de novos equipamentos, ele também não

poderia se realizar sem um ambiente favorável para tal: as “academias” científicas que começavam a surgir por toda a Europa. Foram elas que permitiram, segundo Suprinyak, que intelectuais como Boyle e inventores mais preocupados com os aspectos pragmáticos da pesquisa científica, se aproximassem.

A conexão entre a ciência “teórica” e a prática se tornou efetiva. Embora as grandes inovações teóricas do

século XVII não tenham afetado o estado do conhecimento tecnológico da época de forma direta e imediata, elas viabilizaram uma aproximação entre a ciência como filosofia natural (a modalidade tradicional) e a ciência como tentativa direta de interferir com o funcionamento da natureza (uma vertente mais contemporânea).

O efeito de tal mudança já pôde ser sentido no século posterior, conforme mostra o economista. “Vários dos

grandes nomes associados às inovações técnicas da Revolução Industrial, tais como Thomas Savery, Thomas Newcomen e James Watt, possuíam vínculos estreitos com as sociedades científicas da época”.

20


O moinho d’água foi a primeira grande força motriz produzida pela técnica humana e conseguiu grande expansão no período feudal. Mas, primeiro, os moinhos hidráulicos se restringiram a assegurar o fornecimento de farinha à propriedade feudal onde dividiam espaço com os moinhos a braços domésticos.

no entanto, necessitavam também de lenha para

surgimento das máquinas a vapor, que conforme

funcionarem, ou seja, quanto maior a produção

o professor da USP, Gildo Magalhães, representa a

de metal das forjas mais lenha era necessária, o

segunda grande inovação técnica da força motriz.

que acarretou a destruição de imensas florestas na Europa na Idade Média e a consequente falta de

Proto-industrialização e o vapor

matéria-prima para geração de força.

A escassez de fonte energética, as dificuldades

“já que a água goza da propriedade de que uma

de transporte do mineral e da lenha para o local

pequena quantidade dela transformada em vapor

em que a energia hidráulica estava disponível e

por meio do calor tem uma força elástica similar

também a limitação das máquinas de força motriz

à do ar, e de que por meio do frio se transforma

existentes ante a demanda de energia crescente

de novo em água, de maneira que não sobra nem

pressionaram os produtores da época a investirem

rastro daquela força elástica, cheguei à conclusão

em novas fontes e em novos meios de produção de

de que é possível construir máquinas que no seu

movimento. A Inglaterra, que desde o século XIII,

interior, por meio de um calor não muito intenso,

sofria com a carência de madeira para produzir

se pode produzir um vazio perfeito, que de maneira

lenha, foi o primeiro país a apelar, no século XIV,

nenhuma poderia se conseguido através da

para o carvão mineral. Este combustível já era

pólvora.”

conhecido, mas pouco usado e apreciado devido ao

Dênis Papin, físico francês, 1690.

odor desagradável que desprendia ao queimar-se.

Esta mutação anterior à Revolução Industrial

Quando a máquina a vapor nasceu nos idos do

constituiu uma revolução energética sem

século XVIII, já existia uma massa de trabalhadores

precedentes, pois marcou a passagem da utilização

acostumada ao labor fabril, isto em decorrência

de fontes de energia renováveis ao emprego

dos avanços propiciados pelo moinho hidráulico

de recursos fósseis, abrindo caminho para o

desde a Idade Média. É preciso enfatizar que foi a

21


era da eletricidade As máquinas a vapor criaram outra dinâmica na sociedade que delas usufrui.

Isto porque estimularam o processo de industrialização, principalmente na área têxtil.

Este desenvolvimento industrial mexeu tanto com a estrutura campestre quanto com a estrutura urbana.

22

força hidráulica, principalmente, e não a máquina

constantemente por uma equipe armada com

a vapor, que levou a indústria têxtil a produzir

porretes.

volumes nunca antes imaginados.

quase que em sua totalidade trabalhavam com

Aliás, antes mesmo do uso intensivo de

Enquanto as incipientes fábricas de tecido

máquinas movidas a calor, um movimento de

a força hidráulica e de animais, as indústrias de

industrialização já se estabelecia na Europa calcado

ferro e de minas, cujos progressos caminharam

na força motriz hidráulica e eólica, além da força

juntos aos da indústria têxtil, funcionavam com

dos animais e dos homens. Eram, na realidade,

máquinas a vapor. Contudo, no início, por não

simples oficinas, com uma dúzia de trabalhadores

terem muito conhecimento sobre o funcionamento

e uma ou duas máquinas de fiar movimentadas por

dos aparelhos, principalmente, no que tangia ao

burros e também por homens e mulheres.

transporte da matéria-prima, na época, o carvão

mineral, sua propagação foi prejudicada. De fato,

Essas primeiras fábricas já se baseavam no

controle da energia humana, com o objetivo de

as primeiras incursões na área só deram certo

otimizar a força de trabalho e evitar assim as

porque as máquinas eram utilizadas diretamente

perdas de tempo e os gastos com transporte ligados

nas minas de carvão e, dessa forma, alimentadas

ao sistema doméstico. É também neste período que

com mais praticidade.

surgem os contramestres vigilantes, figuras que

permitem aos empregadores assegurar o trabalho-

com a máquina a vapor se deu nas fiandeiras

contínuo dos operários.

do industrial inglês Arkwright. Sua produção

era realizada somente com força hidráulica,

Em 1717, na Inglaterra, surge então a primeira

No setor têxtil inglês, a primeira experiência

indústria moderna com características que

mas, conforme o aumento da demanda, o uso

antecipavam as fábricas capitalistas do século

dessa tecnologia ficou cada vez mais difícil; era

XIX que a Revolução Industrial massificaria. Era

impossível aumentar indefinidamente sua potência

uma indústria de seda movida à força hidráulica

em função das necessidades e era impraticável

centralizada e que já possuía alto investimento,

suprir as baixas vazões dos rios provocadas pela

mais de trezentos trabalhadores, entre eles,

seca ou pelo congelamento. Foi aí que Arkwright

mulheres, crianças, trabalhadores e artesões não

recorreu ao inventor James Watt, que em 1779

preparados para o serviço todos eles vigiados

construiu uma bomba a vapor, cuja função era


somente auxiliar o moinho hidráulico, aquecendo

usufruiu. Isto porque estimularam o processo de

a temperatura da água e fazendo o equipamento

industrialização, principalmente na área têxtil.

funcionar com mais velocidade.

Este desenvolvimento industrial mexeu tanto com

a estrutura campestre quanto com a estrutura

No começo, as máquinas a vapor foram

empregadas dessa forma porque não se sabia ainda

urbana da Europa. No campo, desterrados pela

como transformar o movimento linear gerado por

nova produção de lã que dominou áreas rurais em

ela em movimento circular, dinâmico. Isto aliado

detrimento da agricultura de subsistência, milhares

ao baixo rendimento das primeiras máquinas e à

de camponeses migraram para as cidades onde

dificuldade de transportar o carvão para longas

engrossaram o coro de pretendentes a um emprego

distâncias fizeram com que as máquinas a vapor

nas fábricas.

ficassem restritas, em um primeiro momento, às

minas de carvão e às metalúrgicas ribeirinhas e

conseguiam posto, muitos não, o que aumentava

fossem também um fenômeno regional, utilizadas

o número de pessoas desempregadas. Esta farta

somente na Inglaterra.

oferta de reserva possibilitou que os donos dos

meios de produção tivessem os operários nas mãos.

A primeira máquina a vapor usada diretamente

Chegando nas áreas urbanas, alguns

para movimentar os equipamentos industriais

Assim, eles se sujeitavam a baixíssimos salários.

surgiu em 1775 nas forjas de Wilkinson para

Por exemplo, na cidade industrial de Bolton, na

acionar um martelo de 60 quilos, de 150 golpes por

Inglaterra, no ano de 1842, um tecelão manual

minuto. Em relação ao melhor proveito energético

não conseguia ganhar mais do que três xelins;

do equipamento, a situação mudou quando Watt

a questão era que para se manter uma família

modificou a máquina, tornando-a mais econômica.

de cinco pessoas um pouco acima do limite da

De acordo com o filósofo alemão Karl Marx,

miséria, na mesma época, eram necessários pelo

deve-se a Watt o fato de a máquina a vapor ser

menos 20 xelins semanais.

considerada agente geral da grande indústria.

de trabalho era bem extensa: aproximadamente 14

Outro fator, o transporte da matéria-prima,

Se o salário era baixo, a carga horária diária

foi preponderante para que, no início do século

horas extenuantes de trabalho. E os operários não

XIX, o sistema industrial baseado na máquina

possuíam trégua, já que havia um rigoroso controle

a vapor ficasse restrito à Inglaterra. Como nem

em relação ao horário de trabalho e à permanência

todos os países tinham tecnologia para explorar o

dos trabalhadores junto às máquinas. O trabalho

uso do carvão mineral, a lenha foi o combustível

tornava-se ainda mais insuportável por conta das

preferido dos outros países. Além disso, ela

condições laborais insalubres: sujeira, escuridão e

podia ser transportada por via marítima, fato

falta de proteção nas máquinas deixavam a fábrica

que não acontecia com o carvão. Somente com o

perigosa, sendo comum a ocorrência de acidentes.

desenvolvimento do transporte ferroviário e de seu

barateamento é que o carvão desbancou a lenha

operários viviam em moradias precárias. Moravam

como combustível térmico.

longe de sua família, a qual tinham deixado no

campo, em úmidos quartos de porão, em sua

Mesmo assim, outros países encontravam

Por ganharem salários tão miseráveis, os

certa dificuldade para instalar em seus solos uma

grande parte, sem luz, água e esgotos. Ambientes

indústria de porte semelhante ao inglês. Assim,

propícios para o desenvolvimento de doenças como

muitos deles permaneceram estagnados. Tanto que

cólera e tuberculose, que deixavam rastros de

antes de se deflagrar a Primeira Guerra Mundial,

morte por toda Europa industrializada.

apenas a Alemanha e os Estados Unidos se equivaliam em força industrial com a Inglaterra.

O fato é que, nos países em que foram

bastante utilizadas, as máquinas a vapor criaram outra dinâmica na sociedade que delas

Pesquisa • O Processo Civilizatório Darcy Ribeiro, Ed. Companhia das Letras • Uma História da Energia Daniel Hémery, Ed. Universidade de Brasília

23


cidade em movimento

Por Flávia Lima

A ELETRICIDADE ABRINDO CAMINHOS

Fotos extraídas de A era do trem – Imagens da saga da ferrovia na formação do Estado de São Paulo

A vapor ou a tração elétrica, os trens provocaram verdadeiras revoluções no transporte. Encurtando as distâncias, eles estimularam o comércio, impulsionaram as indústrias, resolveram posteriores problemas de tráfego e deixaram suas marcas na sociedade e nas cidades

24


A curiosidade despertada no século XVIII

por novas técnicas, mas podemos considerar o fim

no tocante à ciência e a técnica, efetivamente,

do século XVIII, mais precisamente a Revolução

ganha forma e evidência no centenário seguinte.

Industrial, como um marco para o desenvolvimento

Especialmente as esferas da saúde, do trabalho e a

do transporte no mundo. Sobre isso, Karl Marx

área de infraestrutura como um todo deram saltos

teria afirmado que “os meios de transporte e de

estratosféricos, com a invenção de máquinas e sistemas

comunicação legados pelo período manufatureiro logo

nunca antes imaginados. A população mundial cresce

se tornaram obstáculos insuportáveis para a indústria

e, com ela, os grandes gênios. As relações comerciais

moderna, com sua velocidade febril de produção

aumentam e a ciência torna-se mais próxima das

em grande escala, seu contínuo deslocamento de

necessidades do mundo real. As pessoas precisam se

massas de capital e de trabalhadores de um ramo de

comunicar com mais agilidade e as distâncias precisam

produção para outro e com as novas conexões que

ser vencidas. A eletricidade aplicada é então descoberta

criou no mercado mundial”. A revolução industrial

e rapidamente mais e mais benefícios são extraídos

contribuiu também para uma revolução nos meios de

dessa força invisível que passa a dominar pequenas e

comunicação e transporte.

grandes coisas com o único objetivo de facilitar a vida

do homem.

a partir da evolução da indústria do ferro e da mina,

que obtiveram sucesso paralelamente à indústria têxtil.

Antes que a energia elétrica passasse a fazer

Símbolo da revolução, a máquina a vapor nasceu

parte do cotidiano das pessoas, a força de homens e

Na Inglaterra, a máquina de fiar, inventada por John

de animais foi por muito tempo a única maneira de

Wyatt, em 1735, era movida por burros ou por cavalos

se transportar aglomerados de objetos. Entretanto,

comandados por pessoas. Mais tarde, a força hidráulica

o aumento das relações de trocas exigiu a criação

substituiu a animal e veio para resolver também o

de novos mecanismos que desempenhassem esta

problema da falta de fiandeiras devido ao crescimento

função de forma mais rápida e eficiente. Foi então

da demanda. Em 1779, James Watt desenvolve uma

que algumas formas de energia, além da força animal,

bomba a vapor destinada a elevar a água para acionar

passaram a ser também empregadas, por exemplo,

as rodas do moinho.

a queima de combustíveis como madeira e carvão

para alimentar navios, recurso que exerceu grande

e também o transporte. Embora já existissem vagões

influência sobre as atividades comerciais, as quais, pela

puxados a tração animal, este meio de transporte

sua própria natureza, movimentam os produtos que

ganhou mais evidência com o surgimento, no início

precisam chegar a distâncias cada vez maiores.

do século XIX, das locomotivas impulsionadas por

motores a vapor.

Estudos revelam que há boas razões para acreditar

Logo, a máquina a vapor ganhou as indústrias

que as maiores quantidades de gêneros pesados foram

transportados por veículos típicos de curta distância,

primeira locomotiva a vapor fez seu primeiro percurso

tendo bois, cavalos ou mulas executando a função de

em 1804, mas muitos anos teriam que passar para que

motor. Antes da Revolução Industrial é o navio a vela

ela se tornasse um transporte viável e economicamente

que permite o transporte de grandes cargas a largas

rentável. A ferrovia alcança um rápido sucesso depois

distâncias. O filósofo Adam Smith compara os meios

de 1830, quando ainda contava com algumas dezenas

de transportes da Idade Média e conclui que, graças

de quilômetros em todo o mundo. Duas décadas

ao transporte aquaviário, seis a oito homens poderiam

depois, esse número chegaria a 37 mil quilômetros de

transportar a mesma quantidade de mercadorias que

linhas, dos quais grande parte estava localizada nos

cinquenta carroções de rodas grandes, conduzidos por

países da Europa.

cem homens e quatrocentos cavalos.

para o avanço do transporte, o progresso do sistema

As técnicas são, ao longo do tempo, substituídas

A primeira ferrovia é inaugurada no Brasil em 10 de abril de 1854 por iniciativa do banqueiro Irineu Evangelista de Souza, mais tarde agraciado com o título de Visconde de Mauá. A ferrovia tinha apenas 14,5 quilômetros de extensão e ligava o Porto de Mauá à Serra de Petrópolis.

Construída pelo inglês Richard Trevithick, a

Da mesma forma que a indústria teria contribuído

25


cidade em movimento

ferroviário exerceu grande influência sobre o

carros, alcançando a velocidade máxima de 13 km

desenvolvimento da indústria. O sociólogo Antonio

por hora. Durante quatro meses, o trem transportou

Carlos Bôa Nova comenta que a existência de

90 mil passageiros em um percurso de 300 metros. A

mecanismos mais rápidos e baratos de transportar

eletricidade era fornecida por um dínamo estacionário.

cargas atraiu vários setores da indústria que se

A máquina, de corrente contínua, apresentava

beneficiaram do encurtamento das distâncias e do

inúmeras vantagens em relação à máquina a vapor,

consequente alargamento das fronteiras do seu

à roda d’água e à força animal, mas ainda possuía

mercado.

alto custo de fabricação e era vulnerável por conta

do comutador. Pesquisadores então continuaram

No mesmo período, a navegação a vapor se

desenvolve, mas não com tanto êxito. Em 1840, os

preocupados em conseguir um motor elétrico mais

navios a vapor ainda não representam mais do que um

eficiente e com melhor custo/benefício.

sexto da capacidade total de carga da frota mercante,

ao contrário da ferrovia, que foi implantada no século

desenvolveu motores de corrente alternada trifásicos

XIX em todo o continente europeu.

de alta tensão e geradores para locomotivas elétricas.

Eletricidade no transporte

Em 1894, o engenheiro húngaro Kálmán Kandó

Ele foi o primeiro a reconhecer que um sistema elétrico de trens poderia ter sucesso se a eletricidade utilizada fosse da rede pública. Embora ele tenha realizado testes

26

As primeiras iniciativas no campo da eletricidade

em Budapeste, foram os trilhos italianos os primeiros a

ocorreram depois das experiências e descoberta da

efetivamente introduzirem a tração elétrica em trechos

corrente elétrica por Georg Simon Ohm , em 1827, e do

inteiros de linhas comerciais importantes.

eletromagnetismo, difundido por Michael Faraday, a

partir de 1831. Na opinião de Bôa Nova, a eletricidade

na história do desenvolvimento do transporte

“não constitui uma fonte energética, mas uma forma

ferroviário foi a escolha entre as correntes contínua

de utilização de energia”. Segundo ele, trata-se de uma

e alternada. A primeira foi amplamente utilizada nos

forma de energia muito cômoda de ser usada, pois tem

sistemas elétricos iniciais de locomoção, enquanto a

a vantagem de poder ser fracionada praticamente ao

corrente alternada não era compreendida. Durante o

infinito. Como pode ser empregada em quantidades

período de eletrificação, foram feitos diversos testes

que podem ser moduladas, sua utilização mostrou

quanto à forma de eletricidade utilizada. Em alguns

exercer grande influência para a produção de trabalho

casos, empregava-se tensão trifásica de 3,6 kV na

mecânico, de calor, de iluminação, entre outras

frequência de 16,6 Hz; em outros, o sistema operava

utilidades.

em 1,5 kVdc ou 3 kVdc e 10 kVac em 50 Hz.

Aos poucos, ela é empregada para movimentar

Cabe aqui um parênteses. Um detalhe fundamental

As locomotivas típicas de corrente contínua

grandes máquinas e não demorou muito a ser

operavam em uma tensão relativamente baixa, de 600

largamente empregada em trens de carga e de

V a 3.000 V e não alcançavam grandes velocidades.

passageiros. Alguns estudiosos atribuem a criação da

OO engenheiro eletricista, consultor do Grupo Trends

primeira locomotiva elétrica a um escocês chamado

Tecnologia, Peter Alouche, explica que a tradição do

Robert Davidson, que teria produzido o trem, em 1837,

emprego de corrente contínua deveu-se a algumas

movido a baterias.

facilidades do motor de corrente contínua. Segundo

ele, este apresenta características de potência, frenagem

Cinquenta anos depois, o engenheiro alemão

Werner von Siemens apresentou em Berlim a primeira

e torque favoráveis à marcha dos trens.

locomotiva elétrica destinada a transportar passageiros.

O trem era acionado por um motor de 2,2 kW de

foram criados, eles tornaram-se predominantes,

potência e constituído por uma locomotiva e três

especialmente em trechos longos. Altas tensões

Quando os motores de corrente alternada


As ferrovias brasileiras, especialmente as paulistas, tiveram sua origem em

1870 e estavam diretamente ligadas à expansão cafeeira.

eram utilizadas porque permitiam o uso de baixas

operacionais e tornava o serviço mais atraente. A

correntes. Dessa forma, altas tensões poderiam

maioria dessas eletrificações ocorria, a princípio,

ser conduzidas por longas distâncias em redes

em linhas que traziam restrições à tração a vapor

mais baratas. Transformadores instalados nas

e em vias de tráfego intenso, justificando os altos

locomotivas transformavam esta energia em baixa

investimentos.

tensão e alta corrente para os motores. Alta tensão

não poderia ser empregada com locomotivas de

inicialmente se concentraram em áreas montanhosas,

corrente contínua porque não era fácil transformar

pois as locomotivas elétricas apresentavam grande

a tensão e a corrente de modo eficiente.

força de tração em linhas íngremes, o que explica o

fato de a Suíça, por exemplo, região mais montanhosa

A alimentação dos trens nas redes de metrô e de

Na Europa, os projetos de eletrificação

subúrbio era feita por meio de subestações elétricas,

da Europa, ter todas as suas linhas eletrificadas.

que até a década de 1960 usavam retificadores a

vapor de mercúrio. As unidades motoras em corrente

Transportes Ferroviários, a tração elétrica foi

contínua operavam em uma tensão relativamente

empregada pela primeira vez no Brasil pela

baixa, de 600 V a 3.000 V e não alcançavam

Companhia Ferro Carril do Jardim Botânico, na

grandes velocidades. O motor de corrente alternada

cidade do Rio de Janeiro em 1892, e pela Estrada de

só começaria a ser utilizado na tração dos trens

Ferro do Corcovado em 1910. Em 1922, iniciou-se a

metroferroviários, no final da década de 1960, graças à

eletrificação da Companhia Paulista de Estradas de

eletrônica de potência.

Ferro e, em 1937, da Central do Brasil, nas linhas de

subúrbios do Rio de Janeiro.

Houve, na verdade, diversas tentativas de

De acordo com a Associação Nacional dos

melhoria da aplicação da energia elétrica na tração

Embora estendida a várias ferrovias brasileiras,

dos trens, prevalecendo, nesse período, a corrente

a tração elétrica foi aos poucos desativada devido

contínua. No começo do século XX, centenas de

à obsolescência dos equipamentos existentes e aos

quilômetros de linhas férreas foram eletrificadas

altos custos de manutenção dos equipamentos fixos,

na Europa e em outros países do mundo, os quais

ficando restrita atualmente aos sistemas de transporte

concluíram que a tração elétrica diminuía os custos

metropolitano nas principais capitais.

27


cidade em movimento

O trem, as cidades e as artes

no início do século XIX, despertavam sensações distintas na sociedade: ora medo, ora fascinação,

“Je suis reconcilié avec les chemins de fer; c’est décidément três beau. Le premier que j’avais vu n’était qu’un ignoble chemin de fabrique. J’ai fait hier la course d’Anvers à Bruxelles et le retour. Je partais à quatre heures dix minutes et j’étais revenu à huit heures um quart, ayant dans l’intervalle passé cinq quarts d’heure à Bruxelles et fait vingt trois lieus de France. C’est um mouvement magnifique et qu’il faut avoir senti pour s’em rendre compte. La rapidité est inouie” Victor Hugo, em Le voyage en Belgique, 1837

Originalmente criados para facilitar o comércio,

considerando sua capacidade de armazenamento e rapidez de locomoção, os trens trouxeram significativas mudanças sociais para as regiões em que foram instalados. Segundo Peter Alouche, muitas cidades devem à ferrovia sua própria existência.

A estrada de ferro e, mais tarde, os trilhos

eletrificados foram para muitas regiões um importante fator de desenvolvimento. Aproximaram cidades isoladas de grandes centros e atraíram progressos econômicos. Abriram caminhos para a lavoura, para o comércio e para a indústria.

No Brasil, a ferrovia foi a primeira grande

indústria do Estado de São Paulo e significou muito mais do que uma inovação nos meios de transporte. Foi considerada por muitos o marco de uma grande mudança de processo na organização produtiva do café, na passagem do sistema mercantil-escravocrata para a organização capitalista de produção.

Para o sociólogo Cheywa Spindel, a estrada

de ferro inicia um novo processo de reordenação e reavaliação dos fatores e da natureza da acumulação de capital na economia cafeeira. Se em 1880 havia apenas 139 quilômetros no país, duas décadas depois, este número atingiria 2.329 quilômetros, demonstrando um surpreendente crescimento.

A maioria das ferrovias era de propriedade

particular nacional, sendo bastante ligadas aos próprios fazendeiros do café e significou muito para o cenário trabalhista. Na primeira década do século XX, o café empregava 24 mil trabalhadores e as ferrovias 18 mil homens.

28

As locomotivas que primeiro cortaram as cidades,

ora progresso. Na Europa e nos Estados Unidos, as primeiras viagens eram esperadas com ansiedade e foram também retratadas na literatura e nas artes plásticas.

O jornalista e historiador Pedro Nastri conta que

na ocasião da viagem inaugural da via férrea que ligava a cidade de Santos até as estações do Brás e da Luz, na capital, o povo se reunia ao meio dia de 6 de setembro de 1865 para ver o lançamento do mais novo meio de transporte. “Os minutos iam passando e nem sinal do trem chegar. Na composição, viajavam personalidades da política paulistana, como o presidente da Província, conselheiro João da Silva Carrão e seu secretariado. O tempo foi passando e a demora começou a preocupar os diretores da nova empresa férrea quando alguém avistou um rapaz que, ofegante, chega à plataforma avisando, quase aos gritos, que o trem havia descarrilado próximo ao bairro do Pari, pois o mesmo se achava em alta velocidade, por volta de 30 quilômetros por hora, e que no local havia um grande número de feridos. O fato foi notícia a semana toda, por se tratar do primeiro acidente de trem em terras paulistas (claro, antes desse acidente nem trem existia)”.

Com o progresso, também vinham os problemas, a

começar com as desapropriações nos bairros por onde passariam os trilhos. E mais acidentes aconteceram. Segundo Pedro Nastri, graves acidentes ocorreram na passagem de nível dos trens ao cortar a avenida Rangel Pestana e mais transtornos foram criados ao construir, em 1865, a conhecida Porteira do Brás, situada entre as ruas Domingos Paiva e Coronel Francisco Amaro, em São Paulo.

Cortando as cidades e transformando a sua

geografia, os trens também levaram benefícios. Alavancaram o turismo, o comércio e a indústria. Modificando as estruturas da sociedade, o trem a vapor ou já movido a tração elétrica, não passaria despercebido na literatura. a primeira metade do século XIX, o francês Victor Hugo teria se impressionado com um acidente de trem ocorrido no dia 8 de maio de 1842, uma semana depois da triunfal inauguração das linhas Paris-Orléans e Paris-Rouen. Um descarrilamento provocou a morte de 55 pessoas em Meudon-Bellevue, queimadas vivas nos trens


Grande parte da locomoção elétrica foi caracterizada pelo aumento dos túneis, especialmente em áreas urbanas. Isso porque a fumaça das locomotivas a vapor era considerada tóxica e os governos municipais estavam inclinados a proibir seu uso dentro de suas fronteiras, então, a solução foi a criação de túneis. Levitação

magnética

Embora as primeiras pesquisas sobre levitação

uma linha experimental para um

magnética em trens sejam de 1922, a tecnologia ainda

trem de levitação magnética, o

é pouco explorada, mas considerada por muitos como

Maglev. Essa linha opera em teste

o transporte do futuro.

e atingiu em 2003 a velocidade

recorde de 581 km por hora.

Basicamente, um trem com levitação magnética é,

como define Peter Alouche, um veículo que emprega

um motor linear cujo princípio se baseia na interação

uma aplicação comercial na China

própria do campo magnético, utilizando os fenômenos

e opera em uma ligação curta de

de atração e repulsão entre pólos magnéticos opostos

40 km, ligando a cidade de Xangai

para a propulsão do veículo e sua levitação acima dos

ao Aeroporto de Pudong. Os trens

trilhos. Isso acontece porque a levitação magnética

circulam com velocidade máxima

suprime o atrito do contato roda-trilho, permitindo

de 430 km por hora e percorre em

grandes velocidades, redução de consumo de energia

sete minutos um trecho que levaria uma hora de carro.

elétrica e menos ruído

entraves à adoção de trens com levitação magnética:

O Japão começou a pesquisar a tecnologia em

Já o Transrapid encontrou

O engenheiro Peter Alouche enumera alguns

1962 e conseguiu recordes de velocidade em testes.

• São incompatíveis com a rede ferroviária instalada;

Uma década depois, a Alemanha retoma seus estudos

• Apresentam dificuldade técnica na instalação de

e lança em 1979 o Transrapid, projeto da Siemens

aparelhos de mudança de via, não permitindo a

que, em 1983, circulava em uma linha comercial de

ultrapassagem de um trem;

1,6 km. Esta linha, no entanto, foi fechada em 1992.

• Sua tecnologia ainda não é completamente dominada;

O Transrapid continuou em testes, mas seu fim foi

• O custo de construção e manutenção de uma

oficialmente decretado quando, em setembro de 2006,

via para levitação magnética é muito elevado,

circulava em uma via experimental, com 30 pessoas a

principalmente por conta da instalação do “estator” ao

bordo e colidiu a 200 km por hora com um veículo de

longo da via;

manutenção, causando a morte de 25 pessoas.

• A levitação magnética só permite trens com

capacidade de transporte reduzida.

O Japão também desenvolveu suas técnicas e criou

29


cidade em movimento

Train dans la campagne (1870 – 1871), Claude Monet

fechados a cadeado por razões de segurança. Tinha

vapor, ora evidencia a “invasão” do trem nas cidades,

então decidido a não utilizar o novo transporte, até

entre as casas.

que resolveu tomar o trem, pela primeira vez, para ir

de Bruxelas à cidade de Anvers, viagem que mudaria

que retrataram a ferrovia em sua literatura, a exemplo

seu conceito quanto à nova máquina. O rápido

de Manuel Bandeira que, em 1937, dedica ao trem um

movimento do trem transformou a visão de mundo

de seus poemas (veja poesia “Trem de ferro” ao lado).

de Victor Hugo, que conferiu à máquina uma estética mais romântica do que industrial: “Eu me reconcilio com as estradas de ferro; elas são, decididamente, muito belas. A primeira que eu vi não era mais do que um simples caminho de fábrica. Ontem eu fiz o percurso de ida e volta de Anvers a Bruxelas. Parti às quatro horas e dez minutos e voltei às oito horas e quinze minutos, tendo, neste intervalo, passado cinco quartos de hora em Bruxelas e por vinte e três lugares na França. É um movimento magnífico, que se faz necessário ter sentido por conta própria e então contar para os outros. A rapidez é incrível” (tradução livre) La Bête Humaine, do romancista francês Émile Zola, escrita no ano de 1890, também faz alusão ao trem, mostra a força das máquinas e os dramas humanos que se desenrolam nos vagões, nas próprias locomotivas e nas estradas de ferro. Na opinião de Peter Alouche, para Zola, “a besta humana” é, na realidade, a própria locomotiva.

Artistas como Monet e Kandinsky também

ilustram no impressionismo, a presença do trem em suas obras e pintam uma paisagem modificada, ora com a manifestação sutil da fumaça da locomotiva a

30

No Brasil, também tivemos exemplos de escritores

A origem dos trens metropolitanos

Os trens metropolitanos nasceram em 1863, com

uma linha subterrânea, utilizando locomotivas a vapor, operada pela Metropolitan Railway, em Londres. A tração elétrica foi adotada, nessa cidade, 17 anos mais tarde, pela City South London Railway, estimulando a adoção desse trilho eletrificado por outras cidades, como Boston, Berlim, Liverpool, Nova Iorque, Filadélfia, Buenos Aires e outras.

Desde então, a tecnologia dos metrôs começou a

evoluir. Até a segunda guerra mundial, Londres, Nova Iorque, Chicago, Budapeste, Paris, Moscou, Atenas e outras cidades já tinham implantado suas redes de linhas de metrôs subterrâneos, utilizando trens de madeira ou de aço-carbono, com motores de corrente contínua, regulados a cames, sinalização ferroviária tradicional e subestações de tração com retificadores a vapor de mercúrio.

O engenheiro Peter Alouche comenta que, durante

a segunda guerra mundial, os metrôs tiveram períodos de absoluta estagnação, tornando-se famosos por servirem de abrigo subterrâneo contra as bombas inimigas. “As imagens do povo russo, dormindo nas estações de Moscou, são ainda vivas nas tristes memórias do mundo”, diz.


Trem

de ferro

Café com pão Café com pão Café com pão Virge Maria que foi isso maquinista? Agora sim Café com pão Agora sim Voa, fumaça Corre, cerca Ai seu foguista Bota fogo Na fornalha Que eu preciso Muita força Muita força Muita força (trem de ferro, trem de ferro)

Chemin de fer près de Murnau (1909), Wassily Kandinsky

Em 1950, a cidade de Estocolmo marca a geração

indução de corrente alternada é simples e de baixa

dos metrôs do pós-guerra. A partir de então, os trens

manutenção, mas sua aplicação só foi possível com o

tornam-se mais modernos e mais rápidos (atingindo

desenvolvimento da eletrônica e da informática.

até 90 km por hora), as estações ficam maiores e

mais bonitas e a sinalização se adapta ao metrô;

precisem cada vez menos de transporte, graças à

as subestações empregam agora a tecnologia de

telemática que permitiria às pessoas trabalharem

semicondutores.

em casa. Entretanto, na opinião de Peter Alouche,

acontecerá o contrário. “Com a elevação da qualidade

Nos anos de 1970, as cidades de São Paulo e São

Há previsões de que, no futuro, as cidades

Francisco (Estados Unidos) marcam o surgimento dos

de vida das populações, a necessidade de transporte

metrôs modernos pesados, com maior capacidade

cresce, o que indica que os metrôs continuarão

de passageiros. “A eletrônica de potência permite a

crescendo, mantendo-se tecnologicamente jovens e

adoção do “chopper” para a regulação dos motores.

dinâmicos”.

A operação dos trens é automática e a supervisão da

circulação dos trens, a partir do Centro de Controele,

mundiais, o transporte metropolitano foi fundamental

é feita por computador. A velocidade aumenta para

para facilitar o tráfego. Atualmente, os trens de

100 km por hora e o intervalo entre composições

alta velocidade já são empregados em quantidade

diminui para 90 segundos”, explica Alouche.

significativa em grandes capitais. Na opinião do

Importante ressaltar que São Paulo apresentou o

engenheiro, investir nessa tecnologia é uma “opção

primeiro metrô novo do mundo a entrar em operação

obrigatória” para o país crescer. “Não há uma grande

com a tecnologia do chopper. Por conta de problemas

potência hoje sem trens de alta velocidade, a China

técnicos, a inauguração do metrô de São Francisco foi

descobriu isso e fez em quatro anos 400 quilômetros

adiada, deixando a primazia para os paulistas. Com

de linha de metrô em Xangai. O Brasil precisa

isso, operadores de outros metrôs do mundo quiseram

interligar as grandes cidades com trens e metrôs de

conhecer a tecnologia dos metrôs de São Paulo, por

grande velocidade”, analisa.

isso, foi organizado um Congresso pelo engenheiro Peter Alouche, responsável pela implantação do sistema elétrico do Metrô de São Paulo. O Seminário reuniu especialistas de Bruxelas, Lyon, Nova York, Caracas e Paris. “Foi um marco no transporte metropolitano de todo o mundo”, avalia o engenheiro.

Nos últimos anos, a corrente alternada passou

a ser adotada pelos trens metroviários. O motor de

No caso de São Paulo e das grandes metrópoles

Pesquisa • Artigo “A tecnologia dos metrôs do mundo”, de Peter Alouche • Artigo “Máquinas e humanos: um estudo sobre máquinas de beneficiamento e sociedade (1880-1910)”, de Victor Garcia Miranda • Uma história da energia Daniel Hémery, Ed. Universidade de Brasília • Energia e classes sociais no Brasil Antonio Carlos Boa Nova, Edições Loyola

Oô... Foge, bicho Foge, povo Passa ponte Passa poste Passa pasto Passa boi Passa boiada Passa galho Da ingazeira Debruçada No riacho Que vontade De cantar! Oô... (café com pão é muito bom) Quando me prendero No canaviá Cada pé de cana Era um oficiá Oô... Menina bonita Do vestido verde Me dá tua boca Pra matar minha sede Oô... Vou mimbora vou mimbora Não gosto daqui Nasci no sertão Sou de Ouricuri Oô... Vou depressa Vou correndo Vou na toda Que só levo Pouca gente Pouca gente Pouca gente... (trem de ferro, trem de ferro) (Manuel Bandeira em “Estrela da Manhã” 1936)

31


comportamento

Por Lívia Cunha

DOMESTICANDO

stock.xchng

Do fogão a lenha ao aparelho microondas se passou aproximadamente um século. Nesse período, a energia elétrica foi domesticada e tomou as casas, alterando hábitos de consumo e de vida

32


A ELETRICIDADE A domesticação da eletricidade, e a sua aplicação

era um “compartimento imundo com chão lamacento,

em grande escala, iniciada no fim do século XIX

desnivelado”. Relatou ainda que, como a madeira verde

sempre foi um processo associado ao progresso e à

era o principal combustível dos fogões da época, o

evolução da sociedade. Ter energia elétrica era como

lugar de preparo da comida ficava “cheio de fumaça,

sair das trevas e, enfim, ver a luz. Dar um passo no

que, por falta de chaminé, atravessa as portas e se

domínio sobre a natureza, como relatou o jornal O

espalha pelos outros compartimentos, deixando tudo

Estado de S. Paulo em sua primeira edição do ano de

enegrecido de fumaça pela fuligem. Lamento informar

1900: “outrora, mal se escondia o sol poente, retraía-

que as cozinhas das pessoas abastadas em nada

se logo a atividade do homem. Hoje o homem pode

diferem destas”.

exercê-la, sem interrupção de um minuto.”

era facilmente explicado. Somente com o início de

Mas não só as atividades econômicas, como

Por isso, o afastamento desse cômodo dos demais

o trabalho fora de casa e o movimento da cidade,

redes de abastecimento de água, primeiro no Rio

estavam beneficiadas com essa, então, nova fonte de

de Janeiro, em 1876, e depois em São Paulo, em

energia. A vida privada – o ambiente doméstico –

1878, a cocção se tornou mais asseada e a cozinha

também sofreu significativas mudanças com o advento

se aproximou da casa. Um dos primeiros usos da

do gás e da eletricidade. E, nos lares brasileiros, um dos

eletricidade no Brasil foi para bombear água em

cômodos que melhor representa as mudanças desse

zonas rurais, utilizando pequenos geradores de

século é a cozinha, em que toda sua conformação

hidroeletricidade.

foi alterada. Da cozinha fora de casa, suja e mal

cheirosa, ao ambiente limpo e higienizado; da brasa,

pouco depois, ainda no fim do século XIX, de maneira

em um fogão improvisado, passando pelo fogão a

insipiente, em poucas indústrias e na iluminação

lenha até chegar ao aparelho microondas se passaram

pública. Essas fontes de energia só começaram a ser

alguns séculos e os hábitos de consumo da população

usadas em domicílios em maior escala nas décadas de

brasileira se alteraram de maneira significativa.

1910 e 1920 para a iluminação e em alguns aparelhos

domésticos que começavam a chegar. Mas a população

Antes de praticamente todas as residências

A eletricidade e o gás chegaram às cidades um

brasileiras terem fogão a gás, geladeira elétrica e outros

do começo do século passado ainda tinha certa

diversos equipamentos, como liquidificador, aparelho

resistência a essas mudanças.

microondas e sanduicheira, a cozinha nem sequer

ficava dentro de casa. Há dois séculos, quando o Brasil

fascínio, afinal, era o novo, o moderno, mas também

era um país essencialmente rural, as casas ficavam

o desconhecido. Quando essa energia começou a ser

isoladas em fazendas, sítios, roças. Nesses ambientes,

utilizada, na virada dos dois séculos, os hábitos de

onde nem sempre havia água corrente, as cozinhas

consumo ainda estavam profundamente arraigados

ficavam afastadas dos outros cômodos, até por uma

no uso do carvão e da lenha, o que levaria alguns

questão de higiene. Preparar comida na brasa gerava

anos para ser alterado. Isso porque, como comenta

fuligem e muita fumaça, a conservação dos alimentos

a antropóloga do consumo Patrícia Pavesi, “hábitos

também não era muito agradável ao ambiente,

são fruto de treinamento cultural” e a cultura de uma

causando mau cheiro ao recinto.

sociedade não é algo que possa ser alterado da noite

para o dia.

O mineralogista inglês John Mawe, em visita ao

NYPL Digital Gallery

Antiga cozinha de fazenda, onde ainda não existia eletricidade ou gás. Essas fontes de energia só começaram a ser usadas em domicílios em maior escala nas décadas de 1910 e 1920 para a iluminação e em alguns aparelhos domésticos que começaram chegar ao Brasil.

A eletricidade era vista em um misto de medo e de

Brasil no início do século XIX, registrou no seu livro

Viagens ao Interior do Brasil, que a cozinha, que

nos arredores das casas no interior – e mesmo ao

A madeira para queimar era facilmente encontrada

deveria ser a parte mais limpa e asseada da habitação,

redor das cidades. Quando a urbanização começou

33


comportamento

“Temos a honra de participar ao respeitável público que o nosso estoque de aparelhos elétricos é o mais apropriado para presentes de natal e de fim de ano. Nenhum presente igualará um ferro de engomar, fogão elétrico, fogareiro, grelha, acendedor de cigarros, etc. ou um belo abajur com pingentes, um elegante ferro ordenador de cabelos, um vibrador para massagens ou um ventilador elétrico. Deveis escolher um presente a altura do progresso do século, a eletricidade é a última palavra.”

Anúncio da Casa Byington, que vendia artigos elétricos, no jornal O Comércio de São Paulo em 23 de dezembro de 1914*. (*) Em Cozinha modelo: O impacto do Gás e da Eletricidade na Casa Paulistana (1870-1930), de João Luiz Máximo da Silva.

a crescer, mas ainda sem ser predominante no país,

energia para ser consumida para a casa das pessoas.

a oferta por lenha diminuiu, tanto pela dificuldade

de aquisição da matéria-prima quanto pela redução

pesquisador do Instituto de Eletrotécnica e Energia

da procura da população. Nesse mesmo período, nas

da Universidade de São Paulo (IEE-USP), Alessandro

primeiras décadas do século XX, o gás já começava a

Barghini, explica que a razão para isso é simples:

ser ofertado para iluminação e no aquecimento para

“não adianta fornecer energia elétrica se esta não tem

fogões. Este, porém, não eliminou o outro. Os dois

uso”. Por isso, depois de investir na infraestrutura de

produtos conviveram por muitos anos, sendo possível

rede, as empresas forneciam produtos, ou seja, meios

ainda hoje encontrar residências, em especial no

para que essa energia fosse empregada. “Quanto mais

interior do Brasil, com fogões a lenha.

energia for consumida, mais rápido será o retorno do

Nasce ou cria-se uma necessidade?

O consultor em planejamento energético e

investimento”, avalia.

E assim começaram a criar no Brasil um novo

mercado consumidor para esses produtos elétricos. É

34

Diferentemente do que inicialmente podemos

importante lembrar que nenhum acontecimento se

imaginar, não foi, por exemplo, a necessidade de

dá de maneira isolada. Enquanto essas mudanças de

conservação de alimentos que levou as empresas a

matriz energética aconteciam, a própria sociedade

oferecerem geladeiras elétricas à população. A partir

também se alterava, assim como ocorriam com a

do momento em que as primeiras empresas passaram

economia e com a política. A base da economia

a explorar o mercado da iluminação elétrica e a

brasileira, essencialmente agrária, era cafeeira desde

oferecer energia, elas mesmas começaram a vender

todo o século XIX até as primeiras décadas do século

produtos elétricos para que fosse possível consumir

XX, quando começa então o declínio do ciclo. A forma

essa energia, criando uma necessidade e, assim,

de governo também se modificava. Depois de décadas

faturar. Da mesma forma aconteceu com a lâmpada

de monarquia, a república era uma estrutura nova

elétrica. A famosa invenção de Thomas Edison só se

para a sociedade – apesar de alterações significativas

tornou útil e indispensável para a sociedade a partir do

apenas serem percebidas a partir da década de 1930.

momento em que as demais pessoas puderam utilizar

o seu invento, com o desenvolvimento de uma central

privada contribuíam diretamente com as mudanças

elétrica e de um sistema de distribuição que enviava a

que os lares brasileiros sofriam. Alterar os padrões de

Nesse processo, todos os fatores externos à vida


consumo da população e conduzir a uma mudança de produtos utilizados nas residências brasileiras não era tarefa simples. Principalmente porque a entrada de nova tecnologia entrava em confronto com antigas práticas. O livro Cozinha Modelo, de stock .xchn g

João Luiz Máximo da Silva, conta que a entrada desses equipamentos sofreu um processo de pequenas adaptações e resistências na sociedade.

Para tentar contornar essa situação, as empresas

fornecedoras de energia elétrica e de gás, que vendiam os primeiros eletrodomésticos importados da Europa e dos Estados Unidos, iniciaram um processo de fortes investimentos em publicidade e propaganda, a fim de divulgar seus produtos e reeducar a população para o novo padrão desejado.

A publicidade foi fundamental para o sucesso

desses equipamentos no Brasil, principalmente porque os novos produtos eletrodomésticos no país concorriam ainda com os mais rudimentares e tradicionais. Convencer a população a mudar

Da brasa à eletricidade: a evolução tecnológica do ferro de passar roupas.

exigiria uma mudança de mentalidade. Havia alguns problemas que dificultavam a entrada desses equipamentos nos lares brasileiros. Um deles era a questão econômica, já que a renda sempre foi um elemento seletor no país. Os aparelhos elétricos

“Eletrodomésticos ˆ Origens, História e Design no Brasil”

residenciais traziam novas tecnologias para a época, logo, eram equipamentos caros e o acesso da maioria da população a eles não era tão fácil.

O lançamento e a invenção de produtos não estão

diretamente relacionados à sua utilização em larga escala, em geral, influenciados pela questão financeira. Para se ter ideia, a batedeira elétrica foi inventada nos Estados Unidos em 1916, mas só chegou ao Brasil

da receita preparada ao modo tradicional eram alguns

Frutos do desenvolvimento da indústria eletrotécnica, os eletrodomésticos tornaramse sinônimo de modernidade, provocaram uma verdadeira revolução no cenário da casa,

dos medos das protagonistas da cozinha da época na

contribuindo para a progressiva massificação

cerca de 20 anos depois.

Além da questão econômica, havia ainda outro

fator de resistência a esses novos equipamentos por parte das cozinheiras, empregadas e donas-de-casa: o medo. Receio de choques elétricos, de incêndios e de que a comida não tivesse o gosto tão bom quanto o

alteração dos hábitos.

A publicidade buscava apresentar como os

produtos elétricos eram melhores e mais bonitos do que os não-elétricos, mas não era suficiente. Então, as empresas que vendiam esses aparelhos e as próprias fabricantes passaram a oferecer cursos de culinária e preparo de comidas empregando os novos produtos.

do ambiente.

O primeiro eletrodoméstico a

entrar na casa brasileira foi o ferro de passar logo após o início do fornecimento de energia elétrica para as residências.

Revistas femininas e de culinária foram nascendo e tiveram grande fração de importância no processo de

35


“Eletrodomésticos ˆ Origens, História e Design no Brasil”

comportamento

Antigas máquinas de lavar roupas manuais.

convencimento das mulheres a de fato empregarem

os eletrodomésticos na sua rotina. As publicações

brasileira foi o ferro de passar logo após o início do

traziam matérias sobre os novos produtos, como usar,

fornecimento de energia elétrica para as residências.

como preparar alimentos, além de receitas culinárias.

Antes dele só a iluminação. Mas, nesse período, nas

A indústria brasileira de eletrodomésticos, que se

duas primeiras décadas do século XX, a utilização

desenvolve com mais expressão na década de 1960,

desses equipamentos era restrita e limitada a algumas

emprega ainda mais esse mecanismo de divulgação.

famílias, alternando-se ainda com os equipamentos a

gás e a querosene.

Por esses fatores, dinheiro e resistência, alguns

O primeiro eletrodoméstico a entrar na casa

equipamentos de padrões tecnológicos distintos,

como o fogão a lenha, o fogão elétrico e o fogão gás

e importados e mesmo as distribuidoras de energia

conviveram por muitos anos. Isso aconteceu porque

ainda descobriam formas e processos para ampliar sua

“todo hábito é estabelecido no interior de algum

rede e produção. O pesquisador Alessandro Barghini

padrão; temos muitos padrões convivendo entre si e

conta que, nesse período, quando a energia elétrica

estes não são definitivos, alteram-se de tempos em

era praticamente limitada à iluminação e os medidores

tempos”, aponta Pavesi.

elétricos eram grandes e caros, o faturamento era

Diversidade, status e desenvolvimento

Os novos produtos elétricos ainda eram caros

realizado a uma tarifa fixa, pré-determinada, a partir do número de lâmpadas que a residência tinha. “Quando o domicílio possuía também ferro de passar,

36

No início do século XX, a popularização

era cobrada uma taxa adicional”, conta.

da eletricidade mudou radicalmente o ambiente

residencial, passando a ser este um lugar de

cozinha brasileira. A geladeira elétrica, que chegou ao

Enquanto isso, o fogão a gás já ganhava espaço na

referência quanto à classe social, conferindo status

país no final da década de 1920, demorou a se firmar

à comunidade. A cozinha, assim como todos os

como essencial nos lares por ser um equipamento caro,

cômodos, ganhou novo significado e função para as

apesar de mais eficiente do que a movida a querosene.

famílias. A sala ganhou gramofones, rádios e, depois,

Antes da geladeira a querosene, esses equipamentos

televisores. A casa ganhou ferros de passar elétricos

eram simples armários de madeira forrados com ardósia

e máquinas de lavar, juntamente com ventiladores

ou cortiça em que eram colocados blocos de gelo

de teto, refrigeradores de ar e chuveiros elétricos.

fabricados industrialmente para conservar os alimentos.

Frutos do desenvolvimento da indústria eletrotécnica,

os eletrodomésticos tornaram-se sinônimo de

Lemos, conta que, inicialmente, no século XIX, esse

modernidade, provocaram uma verdadeira revolução

gelo era importado dos Estados Unidos. Só no final

no cenário da casa, contribuindo para a progressiva

do século que o gelo começou a ser desenvolvido

mecanização do ambiente.

artificialmente no Brasil, sem precisar de água ou

O arquiteto e autor do livro Cozinhas etc., Carlos


stock.xchng

Ganhando

o céu

Ele não é um eletrodoméstico, mas alterou como

aparelhos começaram a ser aplicados em maior escala.

poucos as residências atuais. O elevador elétrico

inaugurou o prédio moderno, com dezenas de andares

A maioria dos registros aponta o ano de 1918 como a

e inúmeros apartamentos. Quando o processo de

data de início de fabricação de elevadores no país, mas

urbanização se acentuou e as pessoas começaram a se

estes primeiros equipamentos de transporte ainda não

concentrar em torno das cidades, o espaço se tornou

eram elétricos. Manuais, eles funcionavam à manivela,

um bem valioso. Reunir centenas de pessoas, dezenas

girada por um cabineiro, que controlava a subida e a

de famílias, em áreas em que se concentrariam poucas

descida. Com o desenvolvimento dos equipamentos e

casas foi a solução de dimensionamento urbano. Assim,

da distribuição de energia, anos mais tarde, elevadores

o elevador trouxe a possibilidade de desenvolvimento

elétricos começaram a ser utilizados no Brasil. Até os

vertical.

anos 1930 eram empregados em pequena quantidade,

geralmente, em edifícios públicos. Após esse período,

Desde a antiguidade, elevadores rudimentares já eram

No Brasil eles chegaram no início do século XX.

utilizados para transportar equipamentos e pessoas para

foram empregados em prédios comerciais e residenciais.

níveis acima do chão. Os primeiros registros são do Egito

antigo. Na época, eram equipamentos simples baseados

tecnológico, juntamente com o crescimento das cidades e

em alavancas, rodas e cordas, em geral, operados por

a construção de prédios cada vez mais altos, permitiram

pessoas ou animais. Os elevadores, mais próximos de

que esses equipamentos se tornassem mais modernos

como conhecemos hoje, surgiram na segunda metade do

e eficientes, até conseguirmos chegar aos famosos

século XIX.

“arranha-céus”, prédios tão altos onde elevadores são

indispensáveis. Com inúmeros apartamentos concentrados

Entre 1852 e 1854, o americano Elisha Graves Otis

A evolução da economia e o desenvolvimento

inventou um dispositivo de segurança que impedia a

em um só lugar, a residência mudou de configuração. Os

queda do elevador caso os cabos se rompessem. Em 1880,

eletrodomésticos e móveis se tornaram compactos e mais

o primeiro elevador elétrico foi desenvolvido pelo alemão

práticos para caberem nos novos espaços de moradias e

Ernst Werner von Siemens. Mas só anos mais tarde, esses

acompanharem o dinamismo da vida moderna.

37


comportamento

refrigeração. Ele era produzido com trocadores

de calor a querosene, usando óleos, um processo

elétricos entraram na casa dos brasileiros, se tornando

já bem entendido na metade do século XIX. Mas

produtos de massas, o país experimentou um

essas geladeiras rudimentares foram rapidamente

crescimento significativo no consumo residencial

substituídas por outras mais modernas.

dessa energia. Para se ter uma idéia, em 1970, quando

o Brasil tinha 90 milhões de habitantes, o consumo

Em seguida, uma série de outros equipamentos

A partir do momento que os equipamentos

começou a aparecer, como máquina de lavar,

domiciliar era de 8.365 GWh, de acordo com dados

liquidificador, gramofone, rádio, batedeira, etc. O

da Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Pouco mais

chuveiro elétrico, por exemplo, foi um dos produtos

de 30 anos depois, a utilização da energia aumentou

lançados no período. Apesar de existirem registros de

mais de dez vezes. Em 2007, o consumo era de 90.881

duchas de água rudimentares ainda na Grécia e Roma

GWh no país que já tinha mais de 180 milhões de

antigas, esses equipamentos só começaram a utilizar

habitantes.

eletricidade e a parecer mais com o que temos hoje em dia em casa há menos de 100 anos. O chuveiro elétrico

Cozinha elétrica

foi inventado no Brasil ainda nas primeiras décadas do

38

século passado e se difundiu no país a partir da década

de 1940.

de 1980, no Brasil, com o forno microondas.

O equipamento, muito ligado ao congelador,

Na primeira metade do século XX, diversos

A cozinha elétrica só se consolidou na década

equipamentos eletrodomésticos desembarcaram no

revolucionou a forma de cozinhar e a relação que

Brasil, importados ou em uma pequena produção

o indivíduo estabelece com a cozinha. Criado em

local, mas o consumo de massa, em grande escala,

1946, nos Estados Unidos, os aparelhos microondas

desses produtos só se deu após o fim da Segunda

chegaram ao Brasil, poucos anos depois, muito

Guerra Mundial (1939-1945) e, mais fortemente,

caros e inacessíveis à realidade da população. Além

nos anos de 1950, com o enriquecimento da

da redução do preço, para que ele se consolidasse,

população, o fortalecimento da urbanização e,

dois outros fatores foram determinantes: o

enfim, a industrialização brasileira, com a política

desenvolvimento de uma indústria de alimentos

desenvolvimentista do governo de Juscelino

congelados e de aparelhos refrigeradores, não só

Kubitschek, entre os anos 1956 e 1961.

para as casas, mas também para o varejo.

Entre as décadas de 1930 e de 1960, profundas

Barghini conta que a primeira tentativa de

mudanças foram sentidas nas casas brasileiras, que

estabelecimento da indústria de congelados no

refletiam as mudanças que a sociedade passava.

Brasil, de olho no mercado de usuários de forno

Quando o capitalismo industrial aportou no Brasil

microondas, aconteceu no começo da década de

em definitivo, a população experimentou algo

1970, que faliu menos de dez anos depois. Isso

inimaginável séculos, até mesmo décadas, antes:

se deu porque, segundo ele, para economizar,

a possibilidade de mobilidade social. A hierarquia

os supermercados desligavam à noite os

social sempre foi afirmada pela posse de bens e,

aparelhos consumidores de energia, inclusive os

nesse momento, a mudança de classe social passa

congeladores. Com isso, os produtos que deveria

a ser representada também pelo poder de consumo.

ser mantidos congelados estragavam, ficando,

Por isso, Patrícia Pavesi diz que “a mobilidade

portanto, inapropriados para consumo. Houve

social é também atestada pela troca do carro,

uma nova tentativa na década seguinte, mas essa

compra de equipamentos domésticos de última

indústria só se estabeleceu nos anos 1990, com a

geração, etc.”.

melhora da rede de frios.


Nesse período, no final do século passado, o

preço dos fornos microondas já tinha reduzido, a classe média estava crescendo e os produtos .xchn

g

congelados ganharam espaço, contribuindo para a

stock

difusão dos congeladores. A popularização do aparelho microondas, e de

uma série de outros componentes que permitem uma vida doméstica mais prática, também está relacionada à nova forma de organização familiar. Na década de 1970, a população urbana Fogão de ferro movido a lenha

ultrapassou a rural, a mulher se inseriu cada vez mais no mercado de trabalho, os novos produtos tinham que oferecer as ideias de independência e praticidade para atingir esse novo mercado que começa a se formar: de pessoas, em especial mulheres, sem tanto tempo para preparar complexas refeições para a família, para limpar a casa, para lavar as roupas, etc. Nessa época acontece o boom da indústria de eletrodomésticos.

Aparelhos eletrodomésticos passaram a

fazer parte do dia-a-dia de praticamente todas as pessoas, independentemente de classe social, para ajudar nos afazeres domésticos, para entretenimento, decoração, beleza, conforto, etc. Em maior ou menor medida, a eletricidade está em praticamente todos os aparelhos com que nos relacionamos diariamente no lar. Com a inserção da eletrônica nesses equipamentos, eles passaram a ter cada vez mais valor agregado e a apresentar novas funções além das tradicionais. Hoje, vivendo em uma época de obsolescência programada dos equipamentos, os hábitos de consumo se acentuaram em busca do mais moderno e mais novo, mesmo sem necessariamente precisar ser renovado.

Fogões

brasileiros

Nesses mais de cinco séculos de história do Brasil, os fogões brasileiros talvez

tenham sido os equipamentos que mais representaram as alterações sofridas na sociedade, nos seus hábitos e costumes. O historiador João Luiz Máximo da Silva enumerou uma lista de fogões (ou precursores) que fizeram ou ainda fazem parte da vida dos brasileiros. Muitos deles, entretanto, já eram considerados ultrapassados no começo do século XX.

Antes de chegarmos ao fogão elétrico, os primeiros, que tinham influência nos

hábitos indígenas, não passavam de três pedras colocadas no chão, com o fogo aceso no meio, sobre o qual se apoiava uma cunha ou caldeirão onde se preparava a comida. Essas três pedras eram chamadas de trempe. A evolução desse mecanismo deu origem ao primeiro fogão da lista de João Luiz, o fogão de trempe, “tripé de ferro que serve como suporte para panelas sobre fogo aceso no chão”.

Depois, fogões fixos, feitos de barro, pedra ou tijolo começaram a ser

construídos. Neles existia uma cavidade funda na horizontal para a fornalha, movida à lenha. As bocas, sobre as quais iam as panelas, ficavam na parte superior. O livro relata ainda a existência da “lata de querosene (fogão improvisado, usado em cortiços); o fogão de alvenaria revestido de azulejos e com uso de lenha; o fogão “econômico” (feito de ferro fundido, com uso de lenha, carvão vegetal ou coque); o fogão de ferro com uso de querosene; o fogão de ferro a gás; os hotplates (pequenos fogões, em geral com um ou dois queimadores, a gás ou eletricidade); e o fogareiro a álcool, querosene ou gasolina, em geral com um ou dois queimadores”.

Nos países mais desenvolvidos, entretanto, ao contrário do Brasil, o modelo

Pesquisa

que venceu como padrão de consumo residencial foi o do fogão elétrico, que torna a

• Cozinha modelo: o impacto do gás e da eletricidade na casa paulistana (1870-1930) João Luiz Máximo da Silva, Ed. Edusp. • Cozinhas etc. Carlos Lemos, Ed. Perspectiva. • Eletrodomésticos: origens, história e design no Brasil Claudio Lammas de Farias, Eduardo Ayrosa, Gabriel Carvalho, José Abramovitz e Silvia Fraiha, Ed. Fraiha.

atividade de cozinhar mais limpa e prática, porque não precisa comprar ou trocar botija, comum ainda em muitas residências brasileiras. O engenheiro e historiador Gildo Santos conta que “a oferta abundante de eletricidade nesses países torna o preço de compra e de uso do fogão elétrico suficientemente barato para mais essa comodidade. Enquanto nós, no Brasil, nem fazemos essa discussão”.

39


nacionalismo

Por Bruno D’Angelo

A LUTA PELO URÂNIO Na tentativa de desenvolver a energia nuclear, o Brasil quis dominar o ciclo de produção do urânio enriquecido. Finalmente conseguiu, mas, para que isso ocorresse, muitos obstáculos tiverem de ser superados

A energia eletronuclear é um assunto

controverso. Na atualidade, sua utilização como fonte energética alternativa é vista com reserva por quase todos os países do mundo, mesmo aqueles que já a empregaram em demasia, como França, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos. Isto se deve, em grande parte, por acidentes ocorridos, no passado, em usinas nucleares, como o ocorrido em Chernobyl, na Ucrânia. Tais fatos, em conjunto com as pressões ambientais, suscitam as perguntas: para onde vão os dejetos nucleares? E como evitar que novos acidentes aconteçam?

Não obstante as discussões a respeito do

assunto – de modo geral, governantes se colocam a favor, ambientalistas se posicionam contra e especialistas dividem suas opiniões –, a energia eletronuclear, comparativamente a outras fontes energéticas, possui desempenhos técnicos mais significativos. Por exemplo: uma usina nuclear precisa de menos materiais por KWh para ser construída do que usinas de energia solar e eólica. Ao contrário de combustíveis fósseis, como carvão, petróleo e gás, ela produz pequena quantidade de

Fotos: Valter Campanato/Abr

rejeitos e não CO2. Além disso, não precisa, como as hidrelétricas, de extensos reservatórios, o que, teoricamente, diminuiria a pressão ambiental sobre os empreendimentos.

Todos esses fatores, aparentemente favoráveis,

fazem da energia nuclear uma fonte atrativa para o país e, por isso, novos investimentos por parte do Governo Federal foram feitos: Angra III, parada há mais de 20 anos, deve ser finalizada e mais algumas usinas devem ser implantadas nessa retomada. Entretanto, nem sempre se pensou desse jeito e a rejeição ainda é grande, principalmente no tocante aos dejetos radioativos.

Maquete do recipiente onde será instalado o reator nuclear que a Marinha Brasileira pretende desenvolver com o intuito de produzir combustível a ser utilizado na produção de energia elétrica e no funcionamento dos submarinos.

Com grandes reservas do minério urânio,

matéria-prima necessária para a produção de energia nuclear, o Brasil percebeu, desde cedo, o grande potencial desse tipo de fonte energética e passou a investir nele. A primeira iniciativa veio logo após o término da Segunda Guerra Mundial

40


com o Almirante Álvaro Alberto da Motta Silva,

muita coisa e que o país não tinha avançado um

que fez de tudo para incentivar os investimentos

passo sequer rumo ao domínio da tecnologia de

em energia nuclear no país. Contudo, diversos

enriquecimento de urânio.

fatores, principalmente, a resistência estrangeira e

o divulgado perigo da radioatividade fizeram com

volta de 1979, partisse para o plano b, o chamado

que a produção do enriquecimento de urânio não

Programa Paralelo, que consistia em desenvolver

progredisse no país e com que o projeto nuclear

por si próprio a tecnologia que antes era

brasileiro praticamente desaparecesse.

importada. Por isso, sob o comando da Marinha

O enriquecimento do urânio

Tal fracasso fez com que o Governo, por

brasileira, iniciou-se o Programa Nuclear da

Com grandes reservas do minério urânio, matéria-prima necessária para a produção de energia nuclear, o Brasil percebeu, desde cedo, o grande potencial desse tipo de fonte energética e passou a investir nele. A primeira iniciativa veio logo após o término da Segunda Guerra Mundial.

Marinha, cuja meta era, finalmente, arrumar meios de como dominar o processo de enriquecimento

O começo do projeto nuclear brasileiro tomou

do urânio, não pelo sistema alemão jet-nozzle,

corpo durante a ditadura militar e, praticamente,

mas pelo método largamente empregado em

extinguiu-se alguns anos mais tarde na esteira

outros países e que já vinha dando resultados, a

do processo de redemocratização. Após inúmeras

ultracentrifugação.

tentativas de estabelecer no País uma forma de

produzir o enriquecimento de urânio para geração

europeu Urenco – constituído pela Alemanha,

de energia, por meio de importação de tecnologia,

Holanda e Inglaterra – para o processo de

o Brasil decidiu juntar esforços no campo

enriquecimento de urânio era bem elevado, o que

científico para desenvolver sua própria maneira de

levou o país a investir em outros meios. Com o

enriquecer o minério.

sucesso da Marinha, conseguiu-se então quebrar

o ciclo clássico de dependência, isto é, vender a

No que se refere à importação de tecnologia, o

O preço pago pelo Brasil ao consórcio

caso mais famoso e que gerou mais frustração foi

matéria-prima a baixo custo e em seguida pagar

o acordo realizado com a Alemanha, na qual esta

altos preços pelo produto trabalhado. Este foi um

venderia ao Brasil tecnologia para construção de

acontecimento raro e temido pelos países mais

uma usina nuclear e um método de enriquecimento

fortes.

do urânio chamado “jet-nozzle”, que ainda estava

em fase de desenvolvimento e era considerado de

isso, estava isento de fiscalização de agências

altíssimo nível tecnológico.

internacionais. Tal liberdade para criar deu

certo e, em 1982, o Programa já apresentava

O acordo parecia ser bom para ambas as

O projeto brasileiro era secreto e, por

partes: o Brasil teria o tão sonhado controle

resultados, com a Marinha anunciando a

da produção de urânio e a Alemanha, que não

construção da primeira ultracentrífuga capaz

tinha permissão da comunidade internacional

de efetuar a separação isotópica do urânio, ou

para realizar pesquisas nessa área, poderia usar o

seja, realizar o processo de enriquecimento.

Brasil para fazer isso. Com tal objetivo, investiu-

Dessa forma, em 1986, o projeto foi instituído

se maciçamente na instalação de laboratórios,

e, em conjunto com a Universidade de São

em solo nacional, na compra de equipamentos

Paulo (USP), a Marinha estabeleceu o Centro

e no treinamento de profissionais. Quando se

Experimental Aramar, em Iperó, no interior

descobriu, pouco tempo depois, que a tecnologia

de São Paulo. Em 1988 era então inaugurada

alemã era impraticável por ser altamente

a primeira cascata de ultracentrífugas, que

complexa e inútil para os objetivos brasileiros,

possibilitava a produção contínua de urânio

viu-se que o acordo não havia servido para

enriquecido.

41


nacionalismo

Não queremos a “bomba” Os objetivos estavam sendo cumpridos, mas os tempos de guerra ainda se refletiam no comportamento das pessoas. Assustada, a opinião pública, por meio da imprensa, buscava saber mais a respeito do programa nuclear liderado pela Marinha brasileira, atrelando-o à confecção de armas nucleares. De fato, o controle da tecnologia de enriquecimento possuía um viés militar, afinal de contas, estava sendo liderado pela Marinha, mas, segundo ela, sem o intuito de produzir bombas nucleares.

Na realidade, o projeto visava também à

construção de reatores nucleares a serem utilizados em submarinos. Esta tecnologia, embora tenha o mesmo princípio funcional, ou seja, de gerar energia, era, O Centro Experimental de Aramar foi inaugurado em 1986 e pode ser considerado o primeiro passo brasileiro rumo ao controle da produção de urânio enriquecido

estrategicamente, muito importante para a Marinha porque um submarino nuclear, ao contrário do convencional, consegue operar muito mais tempo sem precisar da atmosfera.

Além disso, como argumenta o engenheiro

civil e mestre em energia nuclear, Joaquim Carvalho, é válido que a Marinha Brasileira utilize os instrumentos mais modernos e eficientes que se conhece para controlar os mais de oito mil quilômetros de costa atlântica e o mar territorial do país. E, segundo ele, os submarinos de propulsão nuclear são os meios corretos para exercer tal controle porque apresentam raio de ação e autonomia adequadas para essa tarefa.

O certo é que, por causa da interdependência

entre o Projeto Nuclear da Marinha e o submarino, o Brasil amarrou, acidentalmente ou não, a imagem de seu programa de enriquecimento de urânio à produção de uma “bomba nuclear”. Outros fatores também contribuíram, e bastante, para que tal imagem fosse fixada no inconsciente da população e, durante o período de transição democrática, Instalações da unidade piloto Usina de Hexafluoreto de Urânio (Usexa), onde será feita a conversão em escala industrial do urânio “yellow-cake” (pó amarelo) em um gás, o hexafluoreto de urânio (UF6).

marcado pelos governos de José Sarney e Fernando Collor de Mello, as verbas destinadas ao Projeto Nuclear da Marinha foram paulatinamente cortadas e os esforços descontinuados.

42

Dessa forma, a Marinha passou a arcar


E o Brasil

descobriu a energia nuclear

Foi após o término da Segunda Guerra

americanos puderam continuar

Mundial que o Brasil passou a pensar mais

a importação de urânio e tório

seriamente em utilizar energia nuclear para

brasileiros. Tanto puderam que,

geração de eletricidade. Segundo o engenheiro

em 1952, eles já importavam de

eletrônico, historiador e professor da Universidade

uma só vez todo o tório que havia

São Paulo (USP), Gildo Magalhães, já havia aqui

sido estipulado em dois anos de

um solo preparado para que isso acontecesse desde

contrato. Mas por que o Brasil

a década de 1930, quando professores vindos

cedeu aos Estados Unidos com

da Europa implantaram um núcleo que formou

tanta facilidade? Por pressão.

a Seção de Física da Faculdade de Filosofia,

Eles queriam que a força militar

Ciências e Letras (FFCL) da Universidade de São

brasileira enviasse homens para

Paulo (USP). Esta seção, mais tarde, daria origem

a Guerra da Coréia e a forma

ao atual Instituto de Física da USP. Há também

encontrada pelo governo para

estudos realizados em 1944 que já esboçavam as

evitar isso foi liberar a exportação

primeiras teorias das forças nucleares.

de minério novamente aos norte-

americanos.

A iniciativa pós-guerra foi liderada pelo

Almirante Álvaro Alberto da Motta Silva, cujo

maior mérito foi a tentativa de impedir que

desfavorável, Álvaro Alberto,

os Estados Unidos conseguissem o controle de

preocupado em fortalecer seu

propriedade das reservas mundiais de tório e

país, partiu a caça de novos

urânio, bem como o monopólio sobre a tecnologia

parceiros. Fez contatos com França

e os materiais nucleares no mundo ocidental.

e Alemanha onde até conseguiu

Ao invés de um plano liderado pelos Estados

realizar alguns acordos para a

Unidos, que propunha a criação de uma agência

importação de equipamentos de

internacional para controle das atividades

centrifugação para enriquecimento

relacionadas à energia nuclear, o almirante

de urânio. Na Alemanha,

brasileiro sugeriu, em 1946, um acordo entre

contudo, os equipamentos foram

países desenvolvidos e subdesenvolvidos, no qual

interceptados por militares no

estes entrariam com a matéria-prima e aqueles

momento do embarque para o

com a tecnologia, que, prioritariamente, deveria ser

Brasil. Os motivos foram políticos

aplicada no território fornecedor da matéria.

e tiveram a influência dos Estados

Unidos.

O acordo, porém, não deu tão certo quanto o

Diante dessa situação

almirante esperava, devido a irregularidades na

transação, já que os Estados Unidos importavam

logo depois, diante da insistência

mais matéria-prima do que a listada pelo

brasileira, efetuar uma contra-

Brasil. Mesmo assim, as exportações de minério

oferta que lhes fosse favorável. O

continuaram até 1951, quando o almirante

almirante, mais uma vez, pediu como

Álvaro Alberto, agora presidente do recém criado

pagamento pela matéria-prima usinas

Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), propôs

de enriquecimento, uma fábrica de

uma lei que proibisse a exportação. Foi uma

produção de hexafluoreto de urânio

medida nacionalista, cujo intuito era salvaguardar

e reatores de pesquisa. Sua proposta

as reservas brasileiras de tório e urânio contra a

foi rechaçada e, em 1955, ele foi

espoliação estrangeira. Poderia haver transações

exonerado de seu cargo no CNPq.

com os Estados Unidos desde que fossem termos

justos para cada um dos participantes.

em troca pelo minério urânio enriquecido e permitia que suas reservas de urânio fossem

pesquisadas e avaliadas. Nada, como se viu, parecido com o que desejava o Almirante Álvaro

O resultado dessa queda de braço foi

Os norte-americanos tentaram,

O Brasil ainda realizou acordos com os Estados Unidos, por meio dos quais recebia

previsível. O CNPq e o almirante perderam seu

Alberto. Dessa maneira, terminou o início da aventura brasileira com a energia nuclear:

poder sobre as transações dos minérios e os norte-

explorado, mas com o sonho ainda bem vivo.

43


nacionalismo

praticamente sozinha com os custos do projeto,

parte da AIEA. Isso se apresentava como um problema

recebendo reduzida verba de outras áreas do

porque o Tratado de Não-Proliferação previa vistorias

Governo Federal. Diante do novo cenário, como

sem aviso prévio.

ela mesma informa, viu-se obrigada a deixar seu

programa nuclear, nos últimos anos, em “estado

proibindo qualquer tipo de inspeção que pretendesse

vegetativo”, objetivando, com tal atitude, não

ser realizado pela agência fiscalizadora, levantando,

perder as conquistas tecnológicas obtidas até

desse modo, suspeitas a respeito de qual seria o

aquele momento, sobretudo, no que dizia respeito à

verdadeiro objetivo da fábrica de urânio enriquecido

capacitação técnica dos profissionais adquirida por

brasileiro, ou seja, de que ela iria produzir combustível

meio de intensivos treinamentos.

para armas nucleares e não para fins pacíficos. O

Governo brasileiro, obviamente, negou o ocorrido,

Mesmo com baixo aporte de verbas, a Marinha,

Foi noticiado, também, que, de fato, o Brasil estava

em conjunto com a Universidade de São Paulo

assegurando que cumpria o acordo firmado e que era

(USP), por meio do Centro Experimental de Aramar,

um absurdo pensar que ele pudesse desrespeitá-lo.

conseguiu desenvolver ainda mais a tecnologia de

ultracentrifugação e vendeu alguns equipamentos para

referente aos termos da vistoria a ser cumprida pela

as Indústrias Nucleares do Brasil (INB) do Governo

AIEA. Esta exigia acesso irrestrito às instalações

Federal, com o objetivo desta passar a produzir

da fábrica brasileira de enriquecimento de urânio,

urânio enriquecido em larga escala e, assim, abastecer

sofrendo resistência da INB, que não pretendia permitir

as usinas de Angra I e II independentemente de

o acesso dos inspetores às máquinas de centrifugação,

importações para isso.

principais responsáveis pela especificidade do urânio

“Top Secret”

O que de fato ocorreu foi uma divergência

enriquecido brasileiro.

Contudo, sem saber a forma, o material e as

dimensões das centrífugas, a AIEA considerava

O Brasil anunciou que estava produzindo uma tecnologia considerada pelo próprio país inovadora e com custo menor do que o tido pelos demais países que também dominam o processo de enriquecimento de urânio. A AIEA veio aqui para saber como nós, com muito menos dinheiro, conseguimos fazer uma coisa que para eles custou tanto

44

Em 2003, o Brasil anunciou que uma fábrica,

impossível afirmar a capacidade de produção da

localizada na cidade de Rezende (RJ), seria a

fábrica. A Comissão Nacional de Energia Nuclear

responsável pela produção em larga escala de urânio

(CNEN), que fiscaliza e controla as atividades

enriquecido. No entanto, para que a planta fabril

brasileiras no campo nuclear, em nome do Governo

pudesse operar, era necessária a aprovação da Agência

Federal, manteve a posição de não mostrar os

Internacional de Energia Atômica (AIEA), instrumento

equipamentos, inclusive, encobrindo a área das

fiscalizador ligado à Organização das Nações Unidas

centrífugas com painéis e evitando que câmeras da

(ONU), cujo objetivo é zelar pela paz mundial e

agência fossem colocadas no local onde estavam as

evitar que construções desse tipo incorram em armas

máquinas.

nucleares a partir de urânio enriquecido.

Até aquele momento, tudo estava dentro do

à tecnologia nacional. De fato, o Brasil anunciou que

protocolo, afinal de contas, o Brasil havia assinado,

estava produzindo uma tecnologia, considerada pelo

em 1997, o Tratado de Não-Proliferação de Armas

próprio país, inovadora e com um custo menor do que

Nucleares da ONU e seria, no mínimo, imprudente

o tido pelos demais países que também dominam o

negar a visita da agência fiscalizadora. A questão se

processo de enriquecimento de urânio. As centrífugas

tornou um pouco mais complexa do que o governo

brasileiras são dispostas em cascatas e rodam sem eixo,

brasileiro queria graças reportagens veiculada por

sustentadas por campos eletromagnéticos.

jornais norte-americanos nas quais informavam que

o Brasil não queria permitir vistorias surpresas por

e professor da Universidade São Paulo (USP), Gildo

A explicação brasileira para tal atitude foi proteção

Sobre isso, o engenheiro eletrônico, historiador


Magalhães, acredita ser este o verdadeiro motivo para que a inspeção na fábrica de Rezende levantasse tantas suspeitas. “A AIEA veio aqui para saber como nós, com muito menos dinheiro, conseguimos fazer uma coisa que para eles custou tanto”, diz. De acordo com ele, estava em jogo uma questão geopolítica. “O maior medo que eles tinham é que de fato a gente desenvolva algo que coloque em risco a supremacia deles”, complementa, referindo-se ao controle do enriquecimento de urânio.

Sejam estas as verdadeiras razões de tal visita

ou não, o correto é que o Brasil não permitiu aos inspetores a visualização das máquinas de ultracentrifugação, mas fez algumas concessões, deixando que tubos, válvulas e conexões da planta

O Brasil não permitiu aos inspetores a visualização das máquinas de ultracentrifugação, mas fez algumas concessões, deixando que tubos, válvulas e conexões da planta de

Resende fossem vistoriados.

de Resende fossem vistos em maior quantidade. A troca de favores funcionou e, após visitas no começo e no final de 2004, a indústria de Resende recebeu aprovação da AIEA para o seu funcionamento.

O desfecho feliz não apagou, entretanto,

fatos constrangedores que aconteceram nessas passagens da agência fiscalizadora pelo país, por causa dos painéis colocados pela INB para impedir a visualização das centrífugas. Em uma das visitas, um membro da AIEA tentou adivinhar quantas centrífugas havia ali a partir das tubulações que ligavam as máquinas e apareciam acima dos painéis. Em outra situação ainda, um fiscal se atirou no chão para tentar enxergar alguma coisa pelas frestas dos painéis de madeira.

Atualmente, a planta localizada em Resende já

opera com duas centrífugas e a meta é de que até 2012 a fábrica consiga produzir todo o urânio enriquecido que a usina nuclear Angra I necessite e 20% do urânio demandado por Angra II. Até lá serão dez cascatas montadas em quatro módulos para realizar o processo de ultracentrifugação necessário.

Pesquisa • Energia nuclear Jonathan Tennenbaum, Ed. Capax Dei • O fogo dos deuses Guilherme Camargo, Ed. Contraponto

Cascatas de ultracentrífugas desenvolvidas pela Marinha para o enriquecimento contínuo de urânio. As Indústrias Nucleares do Brasil (INB) adquiriram modelo semelhante, em 2005.

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sob um olhar

Por Claudio Gillet Soares

REDES SUBTERRÂNEAS NO BRASIL Muito trabalho e a constante busca pela técnica fizeram com que o Brasil estivesse alinhado ao desenvolvimento da eletrificação subterrânea no mundo.

Nos últimos 85 anos, efetivamente, muita coisa

mudou no mundo, especialmente, no tocante ao setor elétrico brasileiro. A eletricidade aplicada ganhou dimensões extraordinárias, as redes elétricas vêm alcançando rapidamente as regiões mais isoladas deste país e os sistemas de geração, distribuição e transmissão de energia evoluíram veementemente. Olhando para trás, posso orgulhosamente afirmar que dei a minha contribuição para o processo de construção e consolidação dessa infraestrutura, que é hoje essencial para milhões de brasileiros.

Ainda criança, no Estado do Pará, onde nasci,

havia uma usina geradora a vapor, que toda tarde, às 18h em ponto, tocava um apito, que ressoava pelos arredores, informando o horário. Lembro da primeira vez que me atentei a esse sonido e perguntei, todo assustado, à minha mãe o que era. Por volta dos anos 1940, a energia elétrica ainda era algo incipiente e falho, além disso, as pessoas acordavam muito cedo para aproveitar mais o dia. Havia muito ainda a ser feito.

Nesse tempo, as linhas elétricas se

sobrecarregavam e, não raramente, onde se devia ter tensão de 120 V, não se alcançavam 80 V. Velas eram rotineiramente acendidas para ajudar a iluminação elétrica porque a tensão não chegava com “força”

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suficiente para acender as lâmpadas.

área de distribuição, assim como o engenheiro Hilton

Puertas, na Light do Rio de Janeiro. Foram estes os

Aproximando-se do tempo de decidir por uma

faculdade, concluí que queria ser engenheiro para

primeiros cargos de comando no Brasil na área de

melhorar as coisas por lá. Assim, contrariei o sonho

distribuição de energia.

do meu pai que me queria médico e consegui uma

autorização para passar do segundo ano do curso

porque se envolvia com estações transformadoras

pré-médico para o segundo pré-politécnico. Passei

distribuidoras, subtransmissão e outros assuntos,

então a estudar oito horas por dia. Cheguei a fazer

participando de grupos de trabalho e de decisões

um escritório, no porão de casa, para estudar física

técnicas. Estivemos envolvidos também com o ensino

e matemática e o fazia, mesmo no escuro. Depois

e treinamento de pessoal: trabalhadores braçais,

do segundo ano da faculdade me transferi para São

feitores, técnicos e engenheiros.

Paulo para terminar o curso de engenharia elétrica e por aqui fiquei.

Nesse tempo, a distribuição era mais abrangente

Redes subterrâneas

Terminada a faculdade, já tive emprego garantido

na Light. Eu e mais 15 engenheiros fomos aceitos na

concessionária e lá fizemos um estágio de nove meses

diretamente envolvida com a implantação de sistemas

de duração. Depois disso, mesmo sem querer, fui

subterrâneos de transmissão e de distribuição de

parar na área de distribuição de energia, segmento em

energia. Durante quase três décadas, ou seja, de

que me especializei e foquei minha vida profissional.

1950 a 1970, participamos do processo de evolução

Grande parte do meu trabalho profissional esteve

Nós, os 16 engenheiros, observamos, na

época, que as funções e as atividades na Light eram desenvolvidas por praxe. Não se costumava questionar o porquê as coisas eram feitas daquele modo, simplesmente eram feitas assim. Os profissionais de então tinham experiência, mas não tinham técnica. Ainda eram poucos técnicos brasileiros atuantes.

Tornei-me o primeiro chefe de departamento da

47


sob um olhar O crescimento acelerado da demanda de energia elétrica nas cidades brasileiras requer, cada vez mais, a instalação de linhas subterrâneas de transmissão e a tecnologia desenvolvida para a fabricação de cabos a óleo representou um progresso na utilização dessas linhas subterrâneas.

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das redes subterrâneas na cidade de São Paulo.

Antônio Prado, demandava 600 kVA de energia. Este

Evidentemente que a história começou bem antes de

e todos outros prédios da época eram ligados em

termos nascido e ‘crescido’ em engenharia elétrica.

baixa tensão. Mais tarde, novos arranha-céus foram

A história do sistema subterrâneo de São

criados e, cada vez mais altos, passaram a exigir mais

Paulo começou em 1902 com a construção de três

demanda energética. Passamos a ligar alguns deles a

câmaras transformadoras alimentadas por circuitos

partir de barramentos em anel, em seguida, utilizamos

primários radiais sob tensão de 2,2 kV; em 1926

“reticulado restrito” (spot network). Ligamos algumas

havia 19 câmaras transformadoras que passaram

câmaras transformadoras no interior de alguns

a ser alimentadas sob 3,8 kV; em 1931, existiam

prédios: projeto especial, com estrutura reforçada,

41 com capacidade total de 12.300 kVA; em 1951,

tolerável a explosões e resfriamento natural.

quando o sistema evoluiu para 40 mil kVA, a tensão

Mais tarde, nasceram os shopping centers, com

passou a ser mudada gradativamente para 20 kV.

demandas elevadas (superiores a 4 MVA). Cada caso

Essa foi a tensão eleita para aproveitar os cabos

foi um caso. O primeiro construiu sua própria estação

de subtransmissão que interligavam as estações

transformadora e foi ligado a 34,5 kV, com sistema

transformadoras de distribuição Paula Souza e

seletivo por dois circuitos, um normal e outro reserva.

Helvécia.

Dessa maneira, quando dispúnhamos de sistema de

20 kV nas proximidades, dávamos preferência para

Nessa ocasião, éramos responsáveis pelo

planejamento e projeto dos sistemas subterrâneo e

essa tensão, como o caso da Avenida Paulista.

aéreo. Em seguida, mais quatro reticulados foram

instalados: um em 1960, outro em 1972 e dois

em seguida, subterrâneos ou mistos. Essas ligações,

em 1973. Convém explicar que os sistemas eram

que pareciam novidades, tornaram-se, com o tempo,

do tipo reticulado, chamados de “network”, por

absolutamente normais.

serem semelhantes aos sistemas subterrâneos das

grandes cidades americanas e europeias, designados

emergência para a carga essencial e poucos o

“Underground network distribution systems”.

possuem para a carga total. A sequência é: ligação

Seguíamos, dentro de nossas possibilidades, os

normal pelo circuito preferencial; em caso de falha,

padrões americanos. Em 1973, havia seis sistemas,

transferência para o circuito de reserva e, finalmente,

um sob 3,8 kV e cinco sob 20 kV, com capacidade

no caso raro de falhas simultâneas nos dois circuitos,

total de 270 MVA, cobrindo uma área de 3,6 km², do

há transferência para a geração de emergência do

perímetro central, com densidades de carga variando

consumidor; todas automáticas. Alguns desses casos

de 15 MVA/km² a 60 MVA/km².

já podem ir para a história, pois estão operando

assim por duas ou três décadas. É importante lembrar

Antes de descrever a evolução dos equipamentos

Os circuitos primários foram inicialmente aéreos,

Muitos prédios têm seu próprio sistema de

utilizados, é interessante comentar o progresso do

que essas ligações foram baseadas em práticas

atendimento aos grandes consumidores. No início,

internacionais, principalmente das cidades de Nova

um dos maiores prédios da cidade, o edifício do

York, Chicago, Detroit, Filadelfia e São Francisco,

Banco do Estado de São Paulo, localizado na Praça

nos Estados Unidos, Toronto (Canadá), Paris (França),


Diagrama dos sistemas elétricos de 230 kV e 345 kV

Berlim (Alemanha) e Estocolmo (Suécia).

já contavam com produção de transformadores

Vale a pena enfatizar o entrosamento que os

instalados sobre bases de concreto (pad mounted),

engenheiros das concessionárias mantinham entre si,

cabos de alumínio isolados com XLPE diretamente

juntamente com os congêneres do exterior, pois foi

enterrados, caixas de passagem metálicas enterradas,

possível participar da engenharia de instalações do

semi-enterradas ou sobre bases de concreto, plugues

Rio de Janeiro – aliás, éramos da Light (São Paulo/

especiais para conectar os cabos, enfim, uma linha

SP), da CEEE (Porto Alegre/RS), da Coelba (Salvador/

completa de equipamentos e materiais dirigida para

BA), da CEB (Brasília/DF) e da Celpe (Recife/PE).

esse tipo de sistema que existe há muitas décadas.

Dessa forma, os sistemas das cidades do Rio de

Janeiro e de São Paulo, ligeiramente diferentes em

grandes cidades exigem distribuição subterrânea, mas

concepção e operação, serviram de base para outros

aí entra outro fator importante: a densidade de carga.

que foram mais tarde instalados.

Chegamos, na época, a estudar com profundidade

o ponto neutro entre os dois sistemas – aéreo

Infelizmente, tivemos de lamentar os casos de

As cargas dos grandes edifícios e os centros das

explosões acidentais que ocorreram na rede, apesar

versus subterrâneo – em função da densidade de

de todo cuidado que tínhamos com segurança. Como

carga, mas outros fatores entraram em cena, como

alguns aconteceram durante nossa atividade, primeiro

tipo de sistema envolvido – radial, seletivo, anel –

tivemos de analisá-los para encontrar as causas e

contingências, redundâncias, etc., tudo para aumentar

evitar sua repetição.

a confiabilidade.

Uma indagação que fica, entretanto, é por que,

Também estava incluída em nossas atribuições a

afinal, não foram instalados sistemas residenciais

transmissão subterrânea. Desconhecida por muitos,

subterrâneos em São Paulo? Recebemos diversas

a linha de transmissão subterrânea ao longo do

propostas de fazê-los, mas não foi possível devido

canal do rio Pinheiros – que parte de uma estação

aos elevados investimentos necessários, o que,

de transição chamada Xavantes para a estação

certamente, oneraria todos os consumidores da Light,

transformadora Bandeirantes – é a primeira e única

concessionária atuante na cidade. O fato é que,

linha subterrânea em 345 kV no País e está em

após algumas tentativas de levar o projeto adiante,

operação há 30 anos.

nenhum deles efetivamente aconteceu porque as imobiliárias não assumiram o compromisso. Estávamos apoiados no sistema de distribuição

O início da transmissão subterrânea no Brasil

subterrânea residencial (originalmente, Underground Residential Distribution – URD), mas não poderíamos

seguir sua experiência pela impossibilidade de

elétrica aumentou consideravelmente. A cidade de

importar os materiais necessários e, de qualquer

São Paulo, por exemplo, apresentava, em 1977,

forma, não havia interesse financeiro por parte das

demanda de 4.753 MW, cerca de 150% maior do que

indústrias locais em fabricá-los.

a de 1967 e a previsão era de que alcançasse, em dez

anos, algo em torno de 11.000 MW.

Diferentemente deste quadro, os Estados Unidos

A partir dos anos 1950, a demanda de energia

49


sob um olhar

O crescimento da carga foi muito pronunciado

da concentração de edifícios de escritórios e de

uma estrada particular, pertencente à Light (a própria

apartamentos. E justamente por causa desses edifícios

concessionária de energia elétrica), paralela ao canal

é que se tornou difícil a chegada às subestações

do rio Pinheiros, em que não se prevê a interferência

centrais por meio de linhas aéreas, o que deu margem

com outros serviços públicos, a profundidade de

à instalação da transmissão subterrânea.

instalação foi reduzida para 1,0 m e a largura da vala

para 3,3 m (com espaço entre cabos de 0,3 m).

Algumas instalações subterrâneas foram

de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre e Salvador.

elétrica nas cidades brasileiras requer, cada vez mais,

A produção local de cabos subterrâneos de alta

a instalação de linhas subterrâneas de transmissão. A

tensão – linhas de até 138 kV – começou em 1959.

tecnologia desenvolvida para a fabricação de cabos

Até então, foram instaladas as linhas:

cheios de óleo representou um progresso na utilização

- São Paulo (1949) 2,5 km sob 88 kV (sistema com

de linhas subterrâneas, desde a primeira linha sob 88

óleo sob alta pressão - Pipe type cable);

kV/138 kV, ligada em 1960, até as instalações atuais

- Rio de Janeiro (1950) 4 km sob 138 kV (12 km de

sob 230 kV e 345 kV. Este progresso continuará com

cabos a óleo, baixa pressão);

as instalações de 500 kV e + 400 kV DC já em estudo.

- Porto Alegre (1954) 20 km sob 69 kV (cabos a óleo,

baixa pressão).

Assim, trabalhamos com várias equipes com o intuito

de reduzir custos de mão-de-obra e materiais para

Em seguida, todas as linhas foram instaladas com

O aspecto econômico era muito importante.

distribuição. Soma-se a isso a minha função como

- São Paulo: 73,5 km (325 km de cabos) sob 88 kV;

superintendente de Racionalização de Energia,

- Rio de Janeiro: 42 km (250 km de cabos) sob 138 kV;

com o papel de orientar consumidores residenciais,

- Belo Horizonte: 2,7 km (16,2 km de cabos) sob 138 kV;

industriais e comerciais a controlar seu consumo sem

- Salvador: 7,5 km (22,5 km de cabos) sob 69 kV.

prejuízo dos serviços prestados, isto é, ter os mesmos

resultados com menores investimentos. Nesse sentido,

O planejamento do sistema da cidade de São

de edifícios

primeira delas foi construída com barramento SF6,

tornou difícil

230 kV e Bandeirantes, projetada para operar em

a Light foi pioneira.

subestações antes de 1979: Centro e Bandeirantes. A entrou em serviço em março de 1977, operando sob

a chegada às

1979, com tensão primária de 345 kV.

subestações por

Bandeirantes (345 kV) foram a extensão da rota

meio de linhas

contínua de 1.200 MVA sob 345 kV (mesmo com um

As diretrizes básicas para a ligação Xavantes/

de 8,4 km, profundidade nominal de 1,5 m, carga

aéreas, o que

circuito desligado).

deu margem à

com resfriamento forçado ou três circuitos com

instalação da

deveriam ter uma seção de 2.000 mm² de cobre e,

Havia duas possibilidades: dois circuitos

resfriamento natural. No primeiro caso, cabos no segundo caso, 1.200 mm² de cobre, considerando ainda uma resistividade térmica de 0,90 °C m/W. Pelos custos para as duas alternativas, pôde-se concluir que a solução com resfriamento natural era melhor e ainda tinha a vantagem de ser de maior

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O crescimento acelerado da demanda de energia

cabos a óleo, baixa pressão e fabricadas no País:

A concentração

subterrânea.

Desde que a maior parte da rota foi situada em

instaladas em grandes cidades, como São Paulo, Rio

Paulo recomendou então a construção de duas

transmissão

confiabilidade porque o sistema é totalmente passivo.

no centro dessas cidades como consequência

Claudio Gillet Soares é engenheiro eletricista pela E.E. Mackenzie (1948), trabalhou na Light São Paulo por 33 anos, onde exerceu as funções de chefe do Departamento de Engenharia da Distribuição, de Superintendente de Engenharia e Planejamento da Distribuição e de Consultor da Presidência. Foi Technical Advisor da Furukawa, consultor técnico da Pirelli e da Itaú Planejamento e Engenharia. É sócio fundador da Associação Brasileira dos Engenheiros Eletricistas de São Paulo (ABEE-SP), membro remido do Instituto de Engenharia de São Paulo e Life Senior Member do IEEE. Com trabalhos técnicos publicados no Brasil e no exterior, foi também representante do Brasil no SC-21 High Voltage Cables, do Cigré, por 11 anos. Cooperou na organização dos Cedis e CedisNe – cursos especiais voltados para as áreas de distribuição nas universidades Mackenzie (SP) e UFPE (PE) –, nos quais também colaborou como docente.


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