A evolução da aplicação da energia elétrica e suas consequências para a sociedade
Volume 1 Volume 2
carta ao leitor
por Gildo Magalhães
Caro leitor, Neste segundo volume da coleção Energia, apresentamos aos leitores um pouco do que foi a história das empresas que forneciam eletricidade aos consumidores, maravilhados com as novidades trazidas por uma iluminação mais cômoda. Grandes corporações estrangeiras aqui se instalaram a partir da década de 1890 nos principais centros brasileiros, como a Light e Amforp, enquanto uma multidão de pequenas empresas cuidava, muitas vezes de forma precária, do abastecimento das cidades menores. Para entender a presença estrangeira em terras brasileiras, é preciso lembrar que, durante a segunda metade do século XIX, uma aliança estratégica se firmou entre indústria, universidade e grandes bancos. Esse tipo de associação foi uma inovação que surgiu na Alemanha, em que nomes de inventores como Siemens e outros logo se associaram a grandes conglomerados, e em outros países o mesmo perfil empresarial logo se fez notar, não raro em meio a acusações de formação de trustes. A formação de capital permitiu que tecnicamente os motores e geradores fossem se aperfeiçoando, surgindo modelos que ainda hoje estão no mercado. As indústrias e mesmo pequenas oficinas também estavam ansiosas por trocar o vapor pela força motora elétrica, mais flexível e compacta. Logo a eletricidade chegaria ao personagem da vida moderna que estava empreendendo uma emancipação sem precedentes, embora ainda em um papel considerado subalterno: a mulher, que ia à luta pelo direito de votar, estudar e trabalhar. Os eletrodomésticos mudariam a vida cotidiana feminina e de todos de uma forma irrevogável, criando novos hábitos de consumo e lazer. No final do século XIX, o motor elétrico fez sua estreia para tracionar os veículos sobre trilhos que aqui chamamos de “bondes”, quando uma empresa inglesa no Rio de janeiro primeiro explorou o serviço, ainda com tração animal. Da palavra “bond” ou “título” impresso na passagem, criamos o neologismo que marcou gerações, antes que decisões precipitadas trocassem um meio de transporte muito eficaz inteiramente pelos ônibus, até que hoje em dia ele ressurge dentro do conceito de VLT (ou veículo leve sobre trilhos). Uma dificuldade prática logo verificada num país de dimensões continentais como o nosso foi que a disparidade de fornecedores, em função das diferenças nacionais entre os exportadores de materiais e equipamentos elétricos, criava barreiras que impediam a integração das redes elétricas num plano geográfico maior. Corrente contínua ou alternada? Linhas monofásicas, bifásicas ou trifásicas? Qual a tensão para o consumidor? E a frequência? Seria possível uma mesma regulamentação para estados vizinhos da nossa federação? E entre o Brasil e seus vizinhos? Com a República começou ainda outro debate em nosso país: a quem pertenciam as águas dos rios que estavam já sendo destinados para gerar eletricidade, em função dos seus desníveis? A discussão do Código de Águas se estendeu por muitos anos e só foi decidida no primeiro Governo Vargas. Seguiu-se um período em que as companhias estrangeiras e nacionais aqui instaladas não se interessaram em fazer investimentos, resultando em muitos apagões e racionamentos, até que o governo começou a agir, tanto no nível federal, com a criação da Chesf, Eletrobrás, Furnas, quanto no nível dos Estados, com as grandes empresas como Cesp, Cemig e outras que acabaram encampando as empresas privadas, com poucas exceções. A regulamentação do setor se tornou realidade, até que a crise econômica a partir dos anos 1970 e 1980 ensejou a desregulamentação e privatização nos moldes que vivenciamos hoje. Os leitores poderão, com esse número da coleção, formar uma ideia desse processo histórico que se insere em pouco mais de um século da eletrificação no Brasil e ainda saborear algumas histórias pitorescas. Desejamos uma boa leitura – e se não for à luz do dia, que seja com uma ótima iluminação elétrica! Gildo Magalhães Professor livre-docente em História da Ciência na Universidade de São Paulo 2
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Desenvolvimento e tecnologia 10 As estrangeiras iniciaram o processo de eletrificação nas cidades brasileiras. A Light and Power teve papel fundamental nesse sentido, levando infraestruturas como transporte elétrico e iluminação, além da própria geração de energia elétrica, alterando para sempre a vida da população.
Era da eletricidade
A eletricidade aplicada na realização de força e movimento substituiu o papel então desempenhado pelas máquinas a vapor. Sua chegada foi providencial, tendo em vista a demanda do período por mais equipamentos, mais velocidade de produção e mais produtos disponíveis para consumo.
Cidade em movimento 26 Os bondes elétricos deram início ao transporte de massa no Brasil e levaram progresso e modernidade às regiões por onde passavam, sendo responsáveis pelo desenvolvimento de muitas cidades brasileiras.
Regulamentação
36
O funcionamento do setor elétrico brasileiro, a princípio, deu-se de forma anárquica. A intervenção do governo e a regulamentação apenas começaram a surgir 50 anos depois do início de suas atividades.
Distribuição
46
Com a expansão do sistema elétrico brasileiro, o gerenciamento e o controle dessa estrutura tornaram-se um problema estratégico para as empresas privadas investidoras e para o poder público, que tiveram de se organizar para dar certo.
Sob um olhar Atitude Editorial Ltda. Rua Piracuama, 280 cj. 72 / Pompéia CEP 05017-040 / São Paulo - SP Fone/Fax - (11) 3872-4404 www.atitudeeditorial.com.br atitude@atitudeeditorial.com.br
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A história e o legado de Hans Christian Oersted para a engenharia elétrica mundial contada pelo engenheiro eletricista e professor José Roberto Cardoso. 3
desenvolvimento e tecnologia
Por Lívia Cunha
A eletrificação das cidades brasileiras foi acentuada pela chegada de empresas estrangeiras, como a Light, que alterou para sempre o cotidiano das pessoas. O desenvolvimento do transporte e da iluminação pública foram alguns dos legados para as cidades por onde passou a companhia
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Fundação Energia e Saneamento
A CHEGADA DA ELETRIFICAÇÃO
Pouco mais de 100 anos atrás, quando os
Mas alterações significativas na vida da população
transportes coletivos eram movidos à tração animal – os
brasileira começaram a ser sentidas principalmente a
chamados carris urbanos – e a iluminação pública era
partir de 1900. Isso porque uma das companhias mais
feita a partir da queima de gás ou acendendo lampiões e
marcantes que se instalou no país, a canadense Light,
velas, a eletricidade era uma grande novidade. Talvez a
chegou ao Brasil, mais especificamente aos dois maiores
grande novidade do fim do século XIX e início do XX.
e mais importantes mercados brasileiros: Rio de Janeiro
e São Paulo.
Com a aplicação da ciência a processos industriais,
o mundo assistiu a um grande desenvolvimento
tecnológico, que permitiu o domínio e a aplicação
Light and Power Company Limited, em Toronto. No
comercial da eletricidade, especialmente a partir da
ano seguinte, já teve o nome alterado para The São
segunda metade do século XIX. Nesse período, com
Paulo Tramway, Light and Power Company Limited, e
todas as invenções e os novos processos desenvolvidos,
começou suas atividades na capital paulista. Ela seria
a eletricidade passou a ser associada ao progresso e
responsável por explorar serviços elétricos na cidade
considerada o grande símbolo da modernidade.
que mais crescia economicamente no país, estimulada
A chegada da Light
Em 1899, foi fundada a The São Paulo Railway,
pela grande produção cafeeira do Estado, que marcou o ciclo do café. São Paulo crescia em tamanho, em urbanização, em indústrias. E, para acompanhar esse
As primeiras empresas fornecedoras de energia
desenvolvimento, era necessário que as empresas
elétrica começaram a operar no Brasil entre as décadas
contassem com grande aporte financeiro para investir
de 1880 e 1890. Eram companhias privadas de
na infraestrutura básica do setor.
capital nacional que tinham uma pequena geração de
eletricidade e destino certo: elas alimentavam indústrias
companhia que exploraria, a partir do ano seguinte,
e iluminavam alguns espaços públicos, como estradas
os serviços elétricos na então capital federal, ainda
de ferro e ruas de cidades. Era o que fazia a Companhia
a principal cidade brasileira: a The Rio de Janeiro
Água e Luz do Estado de São Paulo, que tinha a
Tramway, Light and Power Company Limited. As
concessão para explorar o serviço de iluminação pública
pequenas empresas brasileiras fornecedoras de energia
e particular, e o fazia já empregando a eletricidade.
que existiam na época da chegava do grupo Light
ao Brasil foram aos poucos sendo absorvidas pelo
A eletrificação do país só foi intensificada com
Em 1904, foi criada pelo mesmo grupo a
a chegada de grandes empresas estrangeiras, que
grupo canadense, que tinha como objetivo alcançar o
vislumbravam no Brasil um grande mercado potencial
monopólio de serviços oferecidos nos municípios em
para investir seus recursos. Esse processo havia sido
que tinham concessões.
iniciado com essas pequenas companhias nacionais.
Para se ter ideia, a cidade de São Paulo já tinha, em
os principais serviços do início do século: iluminação,
1901, 1.048 consumidores de energia elétrica, em uma
eletrificação, transporte e telefonia. Essas atividades,
cidade de 240 mil habitantes, fornecida por pequenas
oferecidas em sistema de monopólio, permitiram
concessionárias como a Companhia de Água e Luz,
que a empresa alcançasse grande poder econômico e
que depois foi incorporada pela Light de São Paulo.
político, especialmente durante a primeira república
“Entre seus clientes, além dos de São Paulo, estavam
brasileira, conhecida como República Velha, que vai da
também a Câmara Municipal de Casa Branca, no
proclamação, em 1889, até 1930, com a Revolução de
interior paulista, e a Câmara Municipal de Curitiba”,
1930, que instaura o Estado Novo.
relata o historiador Alexandre Ricardi, pesquisador da
Companhia Água e Luz.
da república Campos Sales, autorizava a prestação de
Assim, nas duas cidades, as empresas exploraram
A concessão paulista, assinada pelo presidente
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desenvolvimento e tecnologia
serviços de “linhas de bondes por eletricidade na cidade
Mundial, na década de 1920”, explica o sociólogo e
de São Paulo e subúrbios; produção e distribuição de
doutor em história econômica, Alexandre Saes, que
eletricidade para a iluminação e outros misteres da
desenvolveu uma pesquisa sobre a influência política da
indústria e comércio; assentamento de postes e fios
Light na República Velha. No seu auge, no ano de 1938,
de transmissão de energia elétrica das cachoeiras do
a Light possuía 980 bondes e chegava a transportar um
rio Tietê”. A concessão carioca era ainda mais ampla,
milhão de passageiros por dia.
incluindo a exploração de telefonia. O serviço telefônico da Light do Rio, que utilizava as antigas estações
Iluminando caminhos
manuais, chegou a ser considerado o maior em linha
O escritor e poeta brasileiro Oswald de Andrade escreveu uma série de poemas sobre a modernização da vida na cidade. A reunião deles é conhecida como “Postes da Light”.
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reta do mundo, em que trabalhavam 78 telefonistas.
força motriz de máquinas e equipamentos também era
Mas a exploração do transporte público foi, durante
Investir em energia elétrica para iluminação e em
muitos anos, o principal negócio da Light, porque era o
bom negócio para a Light. Isso porque as empresas
que dava maior lucro. Em 1900, foram inauguradas as
existentes anteriormente ofereciam o serviço ainda de
primeiras linhas de bondes elétricos da cidade de São
maneira incipiente. Como eram companhias pequenas
Paulo, no mesmo ano em que foi assinado o contrato
que geravam eletricidade, também havia pequena
de transporte de passageiros em bondes elétricos por
capacidade de investimento. Assim, com pouco capital,
um prazo de 40 anos de concessão para a companhia
gerava-se pouca energia, que era distribuída para “uma
canadense. Passado o período acordado em contrato,
indústria aqui, para duas ou três pessoas ali, iluminava
no ano de 1947, todo o sistema de transporte coletivo
algumas coisas no centro, mas não conseguia fazer
urbano passou a ser controlado pelo município. Para
muito mais do que isso”, exemplifica Saes.
realizar a gestão dessa área, foi criada a Companhia
Municipal de Transportes Coletivos (CMTC).
pouco mais de 50 anos depois, em 1958, a abrangência
da empresa tinha aumentado mais de 800 vezes. O
Entretanto, até a concessão de transportes passar
Com a chegada da Light, o cenário intensificou-se e
para o controle do governo, a Light, tanto no Rio
braço paulista da Light oferecia energia para 854.926
quanto em São Paulo, dominou o mercado em tudo
consumidores, divulgado, inclusive, em propaganda
relacionado à eletricidade. Apesar de o primeiro bonde
publicitária da época.
elétrico do país e da América Latina ter sido inaugurado,
no Rio de Janeiro, anos antes da criação da Light, foi
iluminação tanto pública quanto privada estava, em
com ela que o transporte fez maior sucesso e ganhou
geral, circunscrito a regiões pontuais no centro do Rio
popularidade. Quando começou a operar, em 1892,
de Janeiro e em São Paulo e a maioria da população
pela Companhia Ferro-Carril do Jardim Botânico,
não tinha acesso aos serviços. Por isso, a Light começou
posteriormente incorporada pela Light carioca, o bonde
a oferecer eletricidade à população, que realmente
elétrico só contava com uma linha e era visto com
se enxergou como parte do processo, assistindo às
receio pela população. Nessa época, ainda dominava o
alterações provocadas pela chegada da empresa, como
transporte movido a tração animal.
relatou o escritor Oswald de Andrade, em seu livro de
memórias: “um mistério esse negócio de eletricidade.
Em 7 de maio de 1900, a recém instalada Light and
Antes da Light, o oferecimento do serviço de
Power inaugurou sua primeira linha de bondes em São
Ninguém sabia como era, caso é que funcionava. Para
Paulo, que fazia o percurso do Largo de São Bento até
isso as ruas da pequena São Paulo de 1900 enchiam-se
a Barra Funda. Também no Rio de Janeiro os bondes
de fios e de postes”.
elétricos foram as prioridades da companhia desde sua
instalação. Tanto é que, a partir de 1905, a empresa
entre as empresas nacionais que antecederam a Light,
começou a substituir os carris urbanos por bondes
era que a companhia canadense possuía conhecimento
elétricos.
e experiência na utilização de fonte hídrica para
geração de eletricidade. E, principalmente, dispunha de
“Quando a Light chegou ao Brasil, o principal
Mas a grande diferença, em termos de iluminação,
negócio dela era o bonde e a principal receita vinha
recursos para fazê-lo em larga escala. Apesar de já terem
dele. A receita da Light só começou a ficar mais
existido empresas que utilizavam quedas d’água para
relevante para energia elétrica depois da Primeira Guerra
gerar energia no Brasil, até o momento, era comum a
Light S.A.
A Usina de Fontes começou a ser construída em 1905, no Rio de Janeiro, e foi inaugurada três anos depois. Com a potência instalada de 24 MW, era a maior usina hidrelétrica do Brasil na época.
Carta
patente da rainha da Inglaterra
O Canadá é uma federação que tem como forma de governo uma monarquia
constitucional e como sistema político uma monarquia parlamentar. O chefe de Estado é a rainha do Reino Unido, hoje a rainha Elizabeth II, enquanto também tem um primeiro-ministro que governa o país, que atualmente é o Stephen Harper.
Na época em que o grupo Light and Power foi criado e depois veio se instalar no
Brasil, o Canadá já era um país independente, desde 1867, mas ainda conservava, por tradição, a figura da rainha da Inglaterra como sua monarca. Por isso, para que a Light pudesse se formar, após definidos os objetivos da empresa e o capital necessário para ser empregado, foi necessário que a rainha Vitória, então monarca inglesa, assinasse uma carta patente de incorporação.
Nela constava detalhadamente os objetivos e as possibilidades de expansão
e atuação da companhia, que estava sendo formada, com base na produção e na distribuição de luz, de calor e energia em todos os ramos relacionados à geração e a utilização da eletricidade.
A produção poderia ser feita por qualquer forma e a distribuição poderia ser
para todos os fins. A carta incluía ainda a possibilidade de atuar e realizar tudo que pudesse ser necessário para concluir seu objetivo, podendo também promover o reconhecimento da companhia em qualquer país estrangeiro.
A Fundação Energia e Saneamento conserva uma cópia da carta patente em seu acervo
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Acervo Fundação Energia e Saneamento
desenvolvimento e tecnologia
Avenida Rangel Pestana em direção ao bairro. Foto de 1911.
“Um mistério esse negócio de eletricidade. Ninguém sabia como era, caso é que funcionava. Para isso as ruas da pequena São Paulo de 1900 enchiam-se de fios e de postes.” Oswald de Andrade, em Um homem sem profissão Sob as ordens de mamãe.
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Funcionários
da
Light
Em 1931, os trabalhadores brasileiros representavam pouco mais do que 50% dos funcionários
totais da São Paulo Light. Os quase 50% restantes era composto por trabalhadores de 36 outras nacionalidades que ocupavam cargos não especializados, identificados como trabalhadores braçais. No início do século XX, em 1901, existiam cerca de 50 mil operários no estado de São Paulo, sendo que os brasileiros representavam menos de 10% do total. A presença de estrangeiros também é tão forte na Light, mesmo em menor proporção, que a companhia publicava anúncios e comunicados em outras línguas para que seus funcionários pudessem compreender.
A grande variedade na composição dos funcionários da companhia, no período, para a historiadora
Ana Elisa Viviani é explicado como reflexo de imigração natural para trabalhar em lavouras de café, em seu estudo “Prontuários dos trabalhadores da São Paulo Light”, realizado para a exposição “Mãos anônimas na construção da metrópole” e publicado no livro Memória Energia. Com a crise da café, na década de 1930, a consequente redução na produção e o reflexo da urbanização e industrialização que a própria inserção da eletricidade possibilitou, esses imigrantes procuraram novos empregos em outros segmentos. Ela relata também que muitos brasileiros que eram funcionários da Light tinham ainda ascendência de outros países. Os poucos empregados especializados, como engenheiros, eram imigrantes “encomendados” para trabalhar especificamente na companhia canadense.
Os dados apresentados por Viviani foram coletados do Relatório do Departamento Pessoal de 1931
e revelam que, logo após os brasileiros, que eram maioria, vinham os portugueses (25,89%) e italianos (10,73%). O restante era dividido em 34 outras nacionalidades. Segundo o relatório, a vertente paulista da Light contava com 3.162 brasileiros. Entre os trabalhadores do período, constavam ainda “grande número de mulheres e crianças operárias”, de acordo com a pesquisadora.
Trabalhadores
da
São Paulo Light (1931)
Nacionalidade
Número
%
Nacionalidade
Número
%
Brasileiros
3162
50,14
Armênios
4
0,06
Portugueses
1633
25,89
Suíços
4
0,06
Italianos
677
10,73
Australianos
3
0,05
Espanhóis
332
5,26
Estonianos
3
0,05
Lituanos
127
2,01
Finlandeses
2
0,03
Alemães
66
1,05
Belgas
2
0,03
Poloneses
46
0,73
Chilenos
2
0,03
Ingleses
38
0,60
Dinamarqueses
2
0,03
Húngaros
36
0,57
Egípcios
2
0,03
Russos
32
0,51
Suecos
2
0,03
Austríacos
30
0,48
Búlgaro
1
0,02
Romenos
24
0,38
Checoslovaco
1
0,02
Americanos
17
0,27
Holandês
1
0,02
Argentinos
11
0,17
Irlandês
1
0,02
Franceses
10
0,16
Japonês
1
0,02
Iugoslavos
9
0,14
Paraguaio
1
0,02
Sírios
8
0,13
Tailandês
1
0,02
Canadenses
7
0,11
Uruguaio
1
0,02
Letões
5
0,08
TOTAL
6306
100
9
desenvolvimento e tecnologia
Revista
Publicada entre os anos 1928 e
1940, a “Revista Light”, periódico mensal da The Rio de Janeiro Tramway, Light and Power Company Limited contou um pouco a evolução urbana que a cidade do Rio sofreu desde a instalação da companhia, em 1905. Passaram pelas páginas da revista ilustrações e histórias sobre a história dos bondes, dos ônibus, da iluminação pública, da geração e distribuição de energia elétrica etc. A publicação teve colaboração de grandes nomes da arte moderna, como o artista plástico Di Cavalcanti, o compositor Sinhô, o ilustrador J. Carlos e o
Light S.A.
jornalista Assis Chateaubriand.
A capa da revista da Light de 1940 ironiza os problemas que o marcador e o entregador das contas de consumo de energia elétrica da Light tinham com os cachorros que tomavam conta das casas.
utilização de carvão mineral em usinas termoelétricas
& Foreign Power (Amforp). Formada pela Electric Bond
para abastecer o centro de consumo. Essa fonte,
& Share, uma subsidiária da General Electric, em 1923,
contudo, tinha alguns pontos negativos se comparada
a Amforp tinha grande afluxo de capital para investir
à hídrica, que foi posteriormente adotada e se mantém
e incorporar empresas brasileiras. Foi o que aconteceu,
até hoje como a principal fonte da matriz energética
por exemplo, com a CPFL, que a empresa americana
brasileira.
adquiriu posteriormente o controle de seus serviços.
Como as usinas térmicas possuíam melhor
Rio - São Paulo, a Amforp optou por comprar empresas
elas dependiam de uma matéria-prima que o Brasil
em outras importantes cidades, como: Recife (PE), Porto
não tinha em abundância. Por isso, o carvão utilizado
Alegre e Pelotas (RS), Salvador (BA), Belo Horizonte
na queima era importado (a grande exportadora de
(MG), Niterói (RJ), Curitiba (PR), Maceió (AL), Natal (RN)
carvão da época era a Inglaterra) e estava sujeito à
e Vitória (ES) e contribuiu para inserção de eletricidade e
disponibilidade internacional e à variação de preço.
de transporte público a tração elétrica nessas regiões.
O custo de geração e, consequentemente, o valor que chegava ao consumidor era mais alto do que o gerado
“Polvo canadense”
pela usina hídrica.
Os canadenses da Light, porém, já tinham grande
Apesar de ter sido fundamental na estruturação
experiência com instalação de hidroelétricas no seu país
das bases da urbanização e industrialização brasileira,
de origem e vieram aplicá-las no Brasil. Tanto que, em
a relação Light com seus clientes era conturbada. A
1905, a empresa começou a construir a maior e mais
intenção da companhia ao vir para o Brasil era assumir
moderna usina hidroelétrica do país até o momento.
um mercado que ela pudesse controlar, por meio de
Era a Usina de Fontes, em Piraí, no Estado do Rio de
monopólio. Para isso, a empresa usou de influência
Janeiro. Três anos depois, quando ela foi inaugurada, a
financeira, que posteriormente também se converteu
Usina de Fontes superava a necessidade de consumo do
em política, para eliminar possíveis concorrentes.
Rio de Janeiro da época, sendo capaz de gerar 24 MW.
As companhias existentes anteriormente à chegada
Hoje, essa capacidade instalada seria capaz de abastecer
da Light ao Rio de Janeiro e a São Paulo foram, aos
somente o bairro do Leme, na capital carioca.
poucos, sendo compradas pela canadense, o que gerava
descontentamento na população, que questionava as
Apesar de a Light ter absorvido diversas empresas
nas duas principais cidades em que atuou, existiram
intenções da companhia. De fato, não foi o interesse
muitas outras companhias que contribuíram para
nacional que imperou durante os anos que o capital
a eletrificação de outras cidades e regiões do país.
estrangeiro controlou o setor elétrico brasileiro.
A Light tinha foco nos grandes mercados e, assim,
deixava diversas regiões em aberto. Daí, pequenas
possíveis concorrentes do mercado, para dominar
empresas locais continuavam a se formar, nas primeiras
sozinha, e por passar a controlar, em pouco tempo, os
décadas do século XX, e outras grandes estrangeiras
principais serviços na cidade do Rio de Janeiro e em São
continuavam a chegar para a exploração desses
Paulo, a Light ficou conhecida pejorativamente como
serviços. Foi o caso da Companhia Paulista de Força e
o “polvo canadense”. Juntas, a população e a imprensa
Luz (CPFL), surgida em 1912 da fusão de quatro outras
da época diziam que, com seus tentáculos, a Light iria
companhias elétricas do interior de São Paulo, foi
dominar todo o espaço urbano brasileiro.
responsável pela introdução de eletricidade no interior
do Estado.
seus clientes não era das melhores. Aderindo as
concessões de outras fornecedoras de energia elétrica,
Outra empresa importante na história da
eletrificação brasileira foi a norte-americana American 10
Como a Light tinha a concessão de serviço do eixo
rendimento com carvão mineral do que com vegetal,
Por ter tido uma política monopolista, de retirar
Além disso, a popularidade da empresa entre
a Light se tornou a única companhia nas cidades do
Lá no morro, quando a luz da Light pifa A gente apela pra vela Que alumeia também, quando tem Se não tem, não faz mal
A gente samba no escuro que é muito mais legal É ao natural Música “Luz da Light”, de Adoniran Barbosa Rio e em São Paulo a oferecer esse tipo de serviço.
concessão da cidade. Dessa maneira, o marco da Light
Contudo, a população não esteve satisfeita com os
no Brasil ficou restrito às cidades do Rio de Janeiro e de
serviços prestados pela Light e começou a questionar
São Paulo, em que a empresa monopolizou os serviços e
o monopólio da concessionária e os valores das tarifas
encampou as outras concorrentes.
cobrados. Surgiram descontentamentos e manifestações
contra a empresa no Rio de Janeiro, em São Paulo e em
seus primeiros anos de atuação no Brasil estavam a
Salvador, onde a empresa controlou por poucos anos
Companhia Viação Paulista, que oferecia serviços de
parte dos serviços elétricos da capital.
bondes a tração animal; a Companhia Água e Luz,
Fizeram parte dos protestos alguns conflitos
fornecedora de eletricidade para iluminação, gerada a
entre usuários dos serviços e a companhia. “Em 1909,
partir de termoelétricas, em São Paulo; a Companhia
estudantes das faculdades de Direito e Engenharia saíram
Carris de São Paulo a Santo Amaro, que tinha serviço
às ruas dizendo que as tarifas da Light eram muito altas,
de trem a vapor; a Gaffré e Guile, que transmitia e
que ela não deixava outra empresa servir para a cidade
distribuía energia elétrica para São Paulo; a Société
e que estava criando um monopólio. Que a Light, a
Anonyme du Gaz de Rio de Janeiro, que oferecia
partir desse monopólio, dominava e explorava o povo
iluminação a gás; a Companhia Ferro-Carris do
brasileiro. Então eles saíram às ruas e quebraram bondes”,
Jardim Botânico, de transporte urbano; e a Companhia
relata Alexandre Saes, que teve como tese de doutorado
Telefônica Brasileira (CTB), que fornecia serviço de
o trabalho “Conflitos do capital: Light versus CBEE na
telefonia para o Rio de Janeiro.
formação do capitalismo brasileiro (1898-1927)”.
com concorrentes distintos. Com a Companhia Viação
Além desse, talvez a principal dificuldade
Entre as empresas incorporadas pela Light durante
“A Light and Power adotou diferentes estratégias
enfrentada pela Light no Brasil tenha sido o conflito
Paulista, detentora da concessão de transporte público
que culminou na perda da concessão de parte da cidade
a tração animal, a ‘canadense’ precisou apenas esperar
de Salvador. Nacionalistas, em especial estudantes
que a empresa entrasse em colapso financeiro, já que
universitários, organizaram manifestações questionando
seus bondes movidos a tração elétrica se popularizaram
a qualidade dos serviços oferecidos. A Light também
rapidamente”, explica o historiador Alexandre Ricardi.
sofria com pressões de outras empresas que queriam
operar nas áreas de concessão da canadense. Um
descontentamentos da população, as empresas do
acontecimento na capital baiana, em que um
grupo Light foram responsáveis pela inserção massiva
motorneiro atropelou e matou um cego, em 1909, foi
da eletricidade na vida dos brasileiros. A ideia de que
o estopim para as discussões de que o braço da Light
a eletricidade era uma tecnologia que chegava para
em Salvador, que era operado pela The Bahia Tramway
acrescentar conforto à vida cotidiana se espalhou
Light and Power, não estava conseguindo oferecer
rapidamente e, em pouco tempo, em decorrência
serviços elétricos satisfatórios para a população.
da evolução da técnica, da urbanização e das novas
necessidades da vida moderna, chegamos ao estágio
Sobre o caso, Alexandre Saes comenta que entre
O fato é que, apesar das crises e dos
1909 e 1912 os conflitos entre a Light, a população e
atual em que é quase impossível viver sem energia
as empresas concorrentes fizeram o município tomar
elétrica. Impensável tanto para quem mora em cidades
uma atitude surpreendente: “o conflito foi tão grande
ou no interior do país.
que a Light finalmente perde a concessão de Salvador.
Pequisa
O município tomou uma atitude que foi até um pouco
• Memória energia Fundação Patrimônio Histórico da Energia de São Paulo. • The Rio de Janeiro Tramway Light and Power Co. Ltd. História institucional. • A Cidade da Light 1899-1930. Eletropaulo.
radical e que não aconteceu em quase nenhum outro lugar”. Assim, nessa cidade, a exploração dos serviços elétricos passou para a Companhia Brasileira de Energia Elétrica (CBEE) que dividia com a empresa canadense a
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era da eletricidade
Por Bruno D’Angelo
SOCIEDADE DINAMIZADA Fundação Energia e Saneamento
Como a eletricidade empregada na realização de força, movimento e outras funções intensificou as transformações socioeconômicas que já vinham sendo modificadas pelo uso das máquinas a vapor
Vista interna do prédio principal da subestação Paula Souza, destacando quatro grupos de geradores da General Electric. Janeiro de 1915.
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Ao sedentarizar-se, o homem passou a
Imaginemos da mesma forma, qual não foi a
depender de sua atividade laboral, afinal de
excitação com que foi recebido um equipamento
contas, quando sua vida tornou-se mais estática,
como o motor elétrico capaz de superar
quando permanecer em um só local e formar
consideravelmente a eficiência mostrada pela
uma corrente de dependentes passou a ser o seu
tecnologia precedente: a máquina a vapor.
objetivo, percorrer grandes distâncias e enfrentar
grandes perigos para caçar não fazia mais
percebe-se que o advento das primeiras máquinas,
sentido. Outros valores davam as diretrizes, outros
tais como moinhos hidráulicos, de vento e o próprio
interesses estavam em jogo. Era preciso poupar
tear mecânico, permitiu ao homem desprender-se
energia e guardar alimentos, o que foi possível por
um pouco de sua limitação física, não só porque elas
meio da agricultura em um primeiro instante e,
podiam fazer com mais eficiência o trabalho dele,
posteriormente, por outras atividades.
mas também porque possibilitou ao próprio homem
operar vários instrumentos ao mesmo tempo e, dessa
Bem mais tarde, com a complexificação dessas
Ao traçar uma linha evolutiva da força motriz,
sociedades agrícolas e o surgimento das sociedades
maneira, maximizar sua produção.
mercantilistas, baseada nas grandes navegações, na
compra e venda de mercadorias e, posteriormente,
características foram radicalmente ampliadas.
com o advento das sociedades capitalistas, a
Conforme mostra o sociólogo Antonio Carlos Bôa
finalidade passou a ser outra. Era necessário
Nova no livro Energia e Classes Sociais no Brasil,
não apenas plantar alimentos para subsistir,
esta nova ferramenta permitiu que o homem tivesse à
mas acumular ganhos, acumular bens. Em uma
disposição, fora do corpo, uma força motriz passível
sociedade de grande competitividade, aquele que
de ser ampliada a níveis fantásticos. Isto porque,
guardasse mais riqueza saía na frente.
ao contrário dos moinhos que movimentavam as
máquinas a distância, as máquinas a vapor possuíam
Foi assim durante o mercantilismo, período
Com a máquina alimentada a vapor, estas
no qual os grandes impérios eram aqueles que
acopladas junto a elas a força que a movimentava, o
conseguiam reunir riquezas e assim permaneceu,
vapor produzido do carvão vegetal.
intensificando-se, aliás, com o início da revolução
industrial. Inserido nessa atmosfera, o dono da
magnetismo, a eletricidade e a descoberta das leis
fábrica e da tecnologia seguia o raciocínio de
da eletrodinâmica, o homem encontrou a fórmula
competitividade e sua meta era não somente
ideal para “turbinar” a força que movimentaria
produzir para se sustentar, mas produzir para obter
suas máquinas. A eletricidade apresentava grandes
lucro e destacar-se econômica e socialmente.
vantagens em relação às energias anteriores porque
podia ser dividida muitas vezes, sendo assim, era
Era, portanto, crucial e estratégica a invenção
Quando se estabeleceu a conexão entre o
de novas máquinas que dinamizassem a produção
possível utilizá-la em quantidades variáveis que
das fábricas. Mais equipamentos, mais velocidade de
podiam ser moduladas de acordo com a necessidade.
produção, maior quantidade de produtos colocados
à disposição de um mercado consumidor que crescia
elétrica em conjunto com sua regularidade do fluxo
na mesma proporção e, logo, mais capital para
fez esta se tornar uma forma energética de enorme
ser investido e mais dinheiro para ser usufruído
eficiência não só para a produção de trabalho
pelo proprietário industrial. Da mesma maneira,
mecânico, mas também para outros usos, como
a sociedade, de modo geral, começava a ser
produção de calor e iluminação.
bombardeada com produtos e pela propaganda do consumo.
A eletricidade apresentava grandes vantagens em relação às energias anteriores porque podia ser dividida muitas vezes, sendo assim, era possível utilizá-la em quantidades variáveis que podiam ser moduladas de acordo com a necessidade.
Segundo Bôa Nova, a flexibilidade da energia
Origens
Desenhado o cenário, imaginemos a pressão
imposta para que uma nova tecnologia capaz de
acelerar o processo de produção fabril surgisse.
a Inglaterra e sua ex-colônia, os Estado Unidos,
No período em que o motor elétrico surgiu,
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era da eletricidade
já estavam fortemente inseridos no processo de
com a descoberta da ligação entre eletricidade e
industrialização. Outros países da Europa, como
magnetismo no início do século XIX. Até então,
França, Alemanha e os países escandinavos também
segundo o engenheiro eletricista e professor da
apresentavam características, em menor grau, que os
Escola Politécnica da Universidade de São Paulo
credenciavam a participar de tal revolução.
(Poli-USP), Ivan Eduardo Chabu, os dois fenômenos
da natureza, conhecidos há muito, eram estudados
O cenário apresentava-se desse modo porque
tais países, ao contrário do resto do mundo, haviam
como ciências independentes e aparentemente sem
conseguido, pelo processo anterior mercantilista, reunir
relação.
condições intelectuais e materiais suficientes para
modificar a antiga estrutura política vigente liderada por
o cientista dinamarquês Hans Christian Oersted
uma oligarquia temerosa em perder seus privilégios.
verificou, experimentalmente, que a corrente elétrica
circulando por um fio produzia força sobre a agulha
A burguesia urbana que surge e se fortalece
A situação mudou de figura, em 1820, quando
nestes países, devido ao sucesso das transações
magnetizada de uma bússola e, dessa forma, era
comerciais do sistema anterior, consegue reordenar
capaz de deslocá-la de sua posição original. Pouco
a sociedade, tornando-se a classe dirigente da
depois, em 1821, o filósofo, matemático e físico
estrutura que ela mesma ajudou a construir; uma
francês André-Marie Ampère demonstrou que
estrutura calcada na produção industrializada
dois fios paralelos, conduzindo corrente, exerciam
dependente de inovações tecnológicas, objetivando
forças mútuas entre si. “Estava evidenciada, assim,
o aumento dessa capacidade produtiva.
a estreita ligação entre correntes elétricas e campos
magnéticos”, emenda Chabu.
Não é por acaso, então, que as descobertas
científicas que culminaram na invenção do motor
elétrico tenham sido realizadas por cientistas
que eletricidade e magnetismo possuíam estreita
originários destas nações enriquecidas e dirigidas
ligação: um interferia fortemente no outro. Contudo,
por uma sociedade com interesses econômicos.
essas descobertas apenas não bastavam para que o
motor elétrico pudesse surgir anos mais tarde. Era
A invenção do motor elétrico, por exemplo, em
Até aquele momento, havia a comprovação de
seu modelo mais bem acabado até aquele momento,
necessário que os fenômenos fossem dominados, era
foi obra de um alemão, o engenheiro Werner Von
preciso que se soubesse utilizar o magnetismo para
Siemens. Quando em 1867, Siemens inventou
gerar eletricidade.
o dínamo elétrico auto-excitável, a Alemanha
respirava os ares da industrialização há tempos e
físico e químico britânico Michael Faraday, que
toda uma cultura científica de descobertas na área
desenvolveu uma teoria mostrando a possibilidade
elétrica já estava consolidada.
de induzir tensão elétrica em terminais ao
Breve histórico
Tal realização veio dez anos depois com o
movimentar um condutor elétrico em um campo magnético. O cientista inglês comprovou sua hipótese ao conseguir gerar eletricidade girando um
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De fato, experiências com eletricidade datavam
disco de cobre com um diâmetro de 30 cm em um
de séculos antes, até de milênios, mas o passo
campo magnético formado entre os polos de um imã
inicial para o surgimento do motor elétrico surgiu
em forma de ferradura.
Quando se estabeleceu a conexão entre o magnetismo, a eletricidade e a descoberta das leis da eletrodinâmica, o homem encontrou a fórmula ideal para “turbinar” a força que movimentaria suas máquinas.
Dessa forma, Faraday anunciou os princípios
desuso e os motores mais modernos já colocam
que baseariam toda a eletrotécnica a partir de então.
em prática os conhecimentos do eletromagnetismo
O que o cientista inglês comprovou não foi só que
desenvolvidos até aquele momento; as novas
era possível gerar eletricidade pelo movimento
máquinas utilizam a corrente elétrica circulando
de um condutor e sim que era possível produzir
em condutores em um rotor para interagir com o
movimento por meio da eletricidade gerada por
campo magnético produzido por imãs ou eletroímãs
esse condutor. Segundo Chabu, na verdade, não
estacionários no estator.
existe diferença conceitual nem construtiva entre
um gerador e um motor elétrico; “a mesma máquina
desenvolvidos pelo cientista inglês Charles
pode operar nos dois modos, indistintamente,
Weathstone e pelo inventor belga, Zenobe Gramme.
dependendo, a princípio, apenas da interface nos
A máquina deste teve grande importância na época
seus terminais elétricos e da interface mecânica em
porque conseguia gerar bastante corrente elétrica e
seu eixo”, esclarece.
manter um fluxo suficientemente estável, o que lhe
permitia ser empregada para iluminar fábricas com
Tendo este conjunto de informações e
Nesta fase, pode-se destacar os motores
conhecimentos ao seu dispor, vários cientistas
lâmpadas de arco de carvão.
se lançaram à tarefa de construir um dispositivo
que produzisse força e movimento a partir da
de alimentação externa para funcionar. O “pulo
eletricidade e que desse, consequentemente, ainda
do gato”, como conta o engenheiro eletricista
mais praticidade à vida do homem moderno. Como
Alexander Gromow, foi dado então pelo alemão
os motores a vapor eram o que havia de mais
Siemens ao conceber um dínamo elétrico que se
avançado na época em termos de força motriz, não
auto-excitava. “A grande jogada foi o uso de um
é de causar espanto que as primeiras máquinas
coletor que permitia a passagem de corrente entre
produzidas tenham sido inspiradas neles.
a parte estática da máquina e a rotativa, no caso
o rotor do dínamo”, explica. Pronto, o problema
Seguindo o modelo das máquinas a vapor,
Contudo, o motor de Gramme ainda necessitava
os primitivos motores acionados a energia
que atormentava a todos os inventores da época
elétrica compunham-se basicamente de grandes
estava definitivamente solucionado; o motor elétrico
eletromagnetos que, quando alimentados com
deixava de ser apenas um privilégio de um círculo
corrente, acionavam alavancas vinculadas a
de inventores para ganhar o mundo.
volantes de inércia e convertiam seu movimento
alternativo em movimento de rotação. Conforme
sido produzidas, em grande parte, por cientistas
conta Chabu, a maneira como os mecanismos eram
originários de países com uma industrialização
ativados para que se produzisse o movimento da
consolidada, não parece ser pura coincidência e sim
máquina era muito semelhante ao que ocorria com
resultado necessário de um processo. Isto porque
as válvulas de comando dos pistões nos motores a
havia nestes lugares um crescente enriquecimento
vapor.
econômico e intelectual que estimulava, mesmo
indiretamente, os seus cientistas a se lançarem na
Nas máquinas que começam a surgir nas
O fato de as inovações na área elétrica terem
décadas finais do século XIX, o princípio de
empreitada de descobrir novas maneiras de ajudar o
eletromagnetos movimentando alavancas cai em
homem nas suas atividades diárias.
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era da eletricidade
O primeiro automĂłvel tambĂŠm se beneficiou do motor elĂŠtrico, pois era, no momento, uma tecnologia mais madura e segura. Mas como sua autonomia era limitada pelas baterias que existiam na ĂŠpoca, sempre foi considerado um recurso paliativo.
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A existência de condições favoráveis para
que isso ocorresse. Os equipamentos eram mais
o aparecimento do motor elétrico nos países
compactos e seu abastecimento energético era
mais ricos da Europa naquela ocasião, não
mais prático, por meio de fios elétricos. Todas essas
sugere, contudo, que seu surgimento tenha sido
características, segundo Chabu, possibilitaram que as
resultado de uma demanda específica da sociedade
novas máquinas fossem acionadas individualmente,
industrial, e sim, como dito, uma decorrência dos
tornando o sistema muito mais versátil, econômico e
desenvolvimentos tecnológicos do período. Como
seguro.
explica o engenheiro Ivan Chabu, a observação de
certos fenômenos inicialmente inexplicáveis e o
seguras, nem por isso ficaram menos precárias. De
posterior desenvolvimento da teoria eletromagnética
fato, elas simplesmente seguiram o rumo traçado
conduziram os estudiosos a investigar a
pela industrialização baseada nas máquinas a
possibilidade de manifestação de forças e
vapor. Aliás, se o objetivo era, por meio de novas
movimento utilizando a eletricidade. “Daí a intuírem
tecnologias, liberar o homem do trabalho maquinal,
uma aplicação potencial para tais fenômenos foi um
ele não foi alcançado, pois as jornadas de trabalho
caminho natural”, diz.
oscilavam entre 14 e 18 horas diárias e eram
realizadas não apenas por homens, mas também por
A demanda, como afirma Gromow, antes de
Se as condições dentro da fábrica ficaram mais
ser uma causa, um motivador que pressionasse os
mulheres e crianças.
inventores a construírem novas máquinas, foi um
efeito do aparecimento dessas novas máquinas e de
industrializados, consequentemente, a crescente
sua entrada efetiva no estágio industrial. Até porque
oferta de trabalho e a crescente procura por emprego
a eficiência do equipamento que surgia era maior
faziam com que as pessoas não se rebelassem
em relação às máquinas a vapor. Por conseguinte,
em um primeiro momento contra condições tão
a fabricação de produtos também aumentava,
desumanas; havia um imenso “exército de reservas”
tornando premente a ampliação dos mercados
que pressionava aqueles que estavam empregados
consumidores.
a se contentarem com o que tinham sob pena de
Implicações
No entanto, a crescente demanda por produtos
perderem suas posições.
Outra consequência dessa sobra de
trabalhadores era os baixos salários. O fato de haver
No período de domínio das máquinas vapor,
excesso de requerentes possibilitava aos donos dos
o fato de elas serem de elevado custo e de grande
meios de produção balizar o salário de acordo com
tamanho acabou por restringir a sua utilização;
seus interesses. Caso houvesse alta demanda por
cada unidade fabril possuía somente um ou poucos
produtos e, assim, acúmulo de capital por parte dos
aparelhos que ficavam fora dos galpões e cuja
empresários, o salário do operário aumentava, caso
potência era transmitida por um eixo único que
contrário, havia redução. É importante salientar que
se estendia ao longo de todo o galpão industrial.
a máquina, neste caso, o motor elétrico, funcionava
Cada máquina a ser operada conectava-se a outra
como um garantidor da situação desejada pelo
por meio de correias e engates apropriados, o
industrial, isto porque ela desempenhava o papel de
que acabava por limitar muito as condições de
poupar atividade humana nas fábricas, evitando que
acionamento, sem contar o risco para os operadores.
a demanda por força de trabalho aumentasse demais
e pressionasse os salários para cima.
Com a chegada do motor elétrico às fábricas,
a produção industrial se modificou de maneira
acentuada. O fato de ele poder ser acoplado
os operários, as cidades não paravam de receber
Mesmo com a situação nada agradável para
diretamente a cada carga individual – cada máquina
pessoas vindas do campo em busca de emprego.
tinha o seu motor – influiu diretamente para
Para se ter ideia, em 1880, as cidades de Paris e
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era da eletricidade
Londres já contavam com uma população de três e
eram máquinas grandes com partes expostas que
quatro milhões de habitantes, respectivamente. As
chegavam a pesar 100 Kg e apresentavam um
condições de vida não eram das melhores; as ruas
volume próximo a 200 litros. A partir da evolução
nas imediações das moradias dos operários eram
do conhecimento sobre as máquinas elétricas, que
sujas, desniveladas, cheias de lixo e com esgoto
permitiu um refino na tecnologia e do avanço
aparente; as habitações eram de péssima qualidade,
dos materiais, tornou-se possível uma redução de
viviam superlotadas e quase não tinham circulação
dimensões do motor para uma mesma potência.
de ar; a alimentação também não era das melhores,
Atualmente, um motor pode pesar menos de 10 Kg e
o que acarretava a morte de muitas pessoas por
apresentar um volume inferior a cinco litros.
desnutrição.
e início do século XX, foi o pequeno motor elétrico
De uma maneira catastrófica, o crescimento
Voltando alguns anos, no final do século XIX
urbano acelerado e sem controle acabou
inventado pelo engenheiro servo-croata Nikola Tesla
levantando sérias questões de ordem estrutural
– e aperfeiçoado pelo cientista russo Michael Von
como abastecimento de água, canalização de
Dolivo-Dobrowolsky que reduziu o tamanho e peso
esgotos, criação e fornecimento de mercadorias,
do motor – que possibilitou a entrada da engenhoca
modernização de estradas, fornecimento de
nas residências, por meio dos eletrodomésticos.
iluminação, fundação de escolas e construção de
habitações, o que acabou, em longo prazo, trazendo
parte significativa das benesses proporcionadas pelo
melhorias para a população em geral.
motor elétrico. Isto porque o que exigia um grande
esforço físico por parte da dona-de-casa, como
Obviamente, as mudanças não apareceram
Os aparelhos elétricos de uso caseiro ocupam
sem pressão por parte daqueles que se sentiam
utilizar uma máquina de lavar roupa acionada por
prejudicados. Salários baixos, longas jornadas de
manivelas, tornou-se uma tarefa banal quando o
trabalho, desemprego e, consequentemente, um
motor elétrico passou a fazer parte da composição
padrão de vida precário, fizeram greves e revoltas
da lavadora.
acontecerem e sindicatos serem organizados para
defender os interesses dos trabalhadores. Isso surtiu
das enceradeiras, uma evolução dos escovões
efeito já que direitos foram conquistados por eles,
passivos para máquinas ativas com escovas
como a diminuição da carga horária e melhores
circulares acionadas por motor elétrico. Sem falar do
condições de assistência e segurança social.
surgimento de outros utensílios domésticos, como o
O motor elétrico fora da fábrica
Na mesma linha, pode-se citar o surgimento
aspirador de pó, o liquidificador, a batedeira elétrica, a torradeira elétrica e o espremedor; máquinas que melhoraram sensivelmente a vida das mulheres,
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Concomitantemente às mazelas sociais
liberando-as para a realização de outras atividades,
intensificadas pelo emprego do motor elétrico nas
como o trabalho fora de casa, por exemplo.
atividades industriais, houve, paradoxalmente, uma
melhora naquilo que tangia ao conforto das pessoas.
transformações impulsionadas pelo surgimento do
Com a evolução tecnológica, o motor, que ainda
motor elétrico e o seu subsequente aprimoramento.
hoje tem o mesmo princípio de funcionamento,
Em 1879, logo após a invenção de seu dínamo,
teve seu tamanho e volume drasticamente reduzido,
Werner Von Siemens apresentou a sociedade
permitindo que ele fosse utilizado em outros lugares
berlinense, o protótipo de um trem elétrico, que
além da fábrica e em outras atividades que a
viria a substituir, totalmente, algumas décadas mais
industrial.
tarde, o trem a vapor. Este já havia revolucionado a
Como informa o engenheiro Alexander
Europa do século XIX, por dinamizar o transporte
Gromow, em seu primórdio, os motores elétricos
de cargas, mas não resistiu à energia mais limpa e
Os transportes também sofreram grandes
O motor elétrico faz parte de quase todos os utensílios que fazem a nossa sociedade funcionar e que por isso eficiente trazida pelo motor elétrico.
Nas cidades, pode-se destacar o surgimento
do bonde elétrico, que transformou o convívio das pessoas. Como explica o engenheiro eletrônico, historiador e professor da USP, Gildo Magalhães, com o bonde elétrico já uma democratização do meio de transporte. “O que traz também problemas, como dividir um espaço com pessoas desconhecidas” diz.
O primeiro automóvel também se beneficiou do
motor elétrico. O uso do petróleo como combustível já estava sendo desenvolvido na época e os engenheiros mecânicos lutavam para desenvolver motores a explosão confiáveis e com um tamanho compatível ao veículo. Enquanto a solução não vinha, porém, o motor elétrico foi a saída encontrada, pois era, no momento, uma tecnologia mais madura e confiável. Mas como sua autonomia era limitada pelas baterias que existiam na época, sempre foi considerado um recurso paliativo. Atualmente, devido a crescente escassez de reservas de petróleo e as pressões ambientais, o carro elétrico voltou a ser uma opção.
Desde a sua invenção, o motor elétrico não
deixou mais a humanidade e esta se beneficiou e se beneficia ainda de sua atuação em diversas áreas. O próprio computador, responsável por outra revolução tecnológica, em meados do século XX, apresenta o motor elétrico em sua composição. O automóvel, também, mesmo sendo movimentado por motor de combustão, não passa sem seus componentes movidos a energia elétrica, assim como o avião, que apresenta servo motores.
A realidade é que se pode encontrar o motor
elétrico em quase tudo que se utiliza hoje em dia: numa escada rolante, num caixa eletrônico, numa caixa registradora, numa bomba de combustível, num ventilador, num ar-condicionado, em ferramentas de dentistas e em equipamentos de médicos, em máquinas de fotógrafos e cinegrafistas. Ou seja, o motor elétrico faz parte de quase todos os utensílios que fazem a nossa sociedade funcionar e que por isso condicionam nosso estilo de vida.
Eletricidade para outros fins
Não só de motor vive a eletricidade. Uma de suas
condicionam nosso estilo de vida
mais bem sucedidas aplicações, a iluminação, não tem liame direto com a força motriz. Está certo que para a luz chegar às residências, industriais e outros estabelecimentos é preciso que ela seja gerada, primeiro, em uma usina hidrelétrica, termoelétrica ou nuclear, e estas, necessariamente, vão apresentar geradores elétricos em sua composição. No entanto, como dito, seu uso específico, pontual prescinde do gerador.
A invenção da lâmpada elétrica data de 1879
quando seu inventor, o cientista norte-americano Thomas Alva Edison, conseguiu pelo aquecimento de um fio de algodão carbonizado produzir uma luz intensa. Antes, já havia lâmpadas sendo testadas, mas nenhuma delas apresentava intensidade e duração suficientes e, por isso, não receberam a atenção dispensa ao invento de Edison.
Quando as lâmpadas passaram a ser
comercializadas em larga escala, um ano depois, mais transformações aconteceram na sociedade. Nas fábricas, a luz elétrica aumentou o período de horas de trabalho, porque permitiu ao operário realizar suas atividades mesmo com a chegada da noite. Se, por um lado, com isso, há uma acentuação da exploração do trabalho, por outro, segurança na fábrica também aumenta, tendo em vista que a iluminação permite mais visibilidade das máquinas.
A iluminação pública, por sua vez, tornou
mais seguro o trânsito dos cidadãos à noite, possibilitando outro tipo de convívio; aumentou as horas úteis do indivíduo e também criou novos tipos de hábitos, como a utilização de praças, avenidas e praias no período noturno. Obviamente, a vida boêmia também foi intensificada pelo emprego dos postes de iluminação elétrica. As cidades tornaramse tão aprazíveis à noite quanto de dia.
Pesquisa • Energia e classes sociais no Brasil Antonio Carlos Bôa Nova • O motor elétrico: uma história de energia, inteligência e trabalho Publicação da fabricante Weg • O processo civilizatório Darcy Ribeiro
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cidade em movimento
Por Flávia Lima
Por onde passaram, os bondes elétricos abriram caminhos, interligaram bairros e fizeram história. Tiveram também sua parcela de responsabilidade sobre os rumos que tomaram as cidades, levando progresso aos cantos mais periféricos. Deixaram sua marca não apenas no chão, riscado pelo trilho, mas em todos aqueles que os utilizaram, deixando uma saudosa recordação.
Inauguração da linha de bondes do Bom Retiro. 12 de maio de 1900
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Acervo Fundação Energia e Saneamento
SAUDOSO BONDE
De todas as aplicações da eletricidade, esta é
foi bem aceita pela população e só no ano de 1852
certamente uma das mais evoluídas e revolucionárias,
é que a opinião pública voltou-se favoravelmente à
considerando a sua intervenção no cotidiano das
novidade. Na Inglaterra, a primeira linha de bondes
pessoas. Desde que se descobriu como transformar
foi inaugurada extra-oficialmente em 1860, na estrada
energia elétrica em mecânica e como empregar
de Birkenhead, mas foi apenas em 1868 que uma lei
a técnica para se fazer locomover carros e outras
do Parlamento autorizava a construção de uma “linha
máquinas, o mundo não é mais o mesmo e a cada
de bondes de tração animada”, ou seja, puxada a
década mais passos na direção do desenvolvimento do
muares (ou mulas). A Alemanha teve a sua primeira
transporte movido à eletricidade são dados.
linha de bondes inaugurada em 1863, entre Berlim e
Charlottenbourg.
As novas formas de energia passam a representar
a modernidade, principalmente a partir do redesenho
que tomam os conceitos de circulação e de espaço
o estabelecimento de linhas de bondes data de 12 de
público. A eletricidade aplicada no transporte permite a
março de 1856, quando o decreto 1.733 do Império
multiplicação da capacidade de circulação das pessoas
autorizava a construção da linha que partia do Largo da
e possibilita o transporte de massa. As formas mais
Mãe do Bispo em direção a Boa Vista, no caminho que
representativas dessa inovação foram os bondes e trens
conduz à Gávea, no Rio de Janeiro. A linha em questão
elétricos e, na Europa, os metrôs. Os bondes são objeto
foi oficialmente inaugurada em março de 1859.
desta reportagem, que busca contar a história deste
transporte no Brasil, as implicações da sua implantação
bondes, inaugurando a novidade três anos depois.
e as suas contribuições para a formação das cidades
No encalço, outros municípios também levaram a
brasileiras.
revolução para os seus cidadãos, como Porto Alegre,
Salvador, Recife e Fortaleza. São Paulo foi a décima
É sabido que o fim do século XVIII, mais
Santos foi a segunda cidade a contar com os
primeira cidade do Brasil a usufruir do benefício.
Industrial, é um marco para o início do
desenvolvimento do transporte no mundo. A máquina
João Theodoro Xavier, observou a necessidade de
a vapor – grande símbolo da revolução – impulsionou
meios de locomoção na cidade e resolveu contrariar
não apenas a indústria têxtil, mas teve notável
a opinião pública, que dizia não haver grandes
participação também no transporte, tracionando as
distâncias a percorrer na capital, sendo os carros
locomotivas do início do século XIX.
meramente objetos de luxo. Mesmo assim, foi firmada
a Lei Provincial nº 11, em 9 de março de 1871, que
O presidente da então província de São Paulo,
e passa a ser empregada amplamente nos meios
definiu: “Fica o Governo da Província autorizado
de locomoção. Primeiro, nos ferroviários e, quase
a conceder privilégio exclusivo, por 50 anos, ao
paralelamente, em carros utilitários e coletivos. É o
engenheiro Nicolau dos Santos França Leite ou a quem
caso dos bondes elétricos, que foram muito utilizados
melhores vantagens oferecer para estabelecer uma
no fim do século XIX e início do século XX em países
linha de diligências tiradas por animais sobre trilhos
da Europa, nos Estados Unidos e também no Brasil.
de ferro, que partindo do centro desta cidade se dirija
às estações do Caminho de Ferro.” Assim, o meio de
Antes, porém, da ‘invasão’ da eletricidade, carroças
Bonde com superlotação no início do século XX
No Brasil, curiosamente, a primeira concessão para
precisamente o período que abarca a Revolução
Alguns anos depois, a eletricidade ganha território
Arquivo / Museu SPTrans
“O bond criou moda: motorneiro que se prezasse tinha quase a obrigação de deixar crescer um senhor bigode para combinar com o uniforme escuro; e o bonito era o rapaz pular do bonde andando, na ladeira da Augusta” O Cruzeiro, 27 de março de 1968
e bondes já existiam e se locomoviam graças à tração
transporte passou a figurar também em São Paulo.
animal. O historiador e pesquisador Waldemar Corrêa
Stiel conta que a primeira linha experimental de
Unidos, vieram para mudar completamente
bondes puxados por animais surgiu na cidade de Nova
a atmosfera brasileira, tornando-se um fator
York, em 1831. Esta primeira aparição, entretanto, não
determinante no progresso das cidades. No começo,
Os carros, todos importados dos Estados
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cidade em movimento
os bondes dispunham de nove lugares e eram puxados por um burro ou mula. Logo depois, o carro cresce em tamanho e capacidade – agora para 15 lugares, sendo arrastado por dois animais. “Paulistano sempre gostou mesmo de trabalhar e a facilidade de ir e vir do centro da cidade aos pontos de referência, como as estações ferroviárias, ativou a mentalidade empreendedora daquela gente provinciana, mas pretensiosa. Tanto que os carros exclusivos para cargas passaram a se multiplicar também”, conta Fernando Portela em seu livro Bonde, saudoso paulistano.
Mas essa associação animal-máquina não
era das mais adequadas: os bichos, especialmente os cavalos, custavam caro e adquiriam doenças graves que poderiam contaminar a tripulação e os passageiros. Outra preocupação era os excrementos espalhados pela cidade e o mau cheiro que impregnava as ruas e os carros.
Não por isso, mas bastante providenciais, foram
os novos bondes que surgiram no final do século XIX, que dispensavam os animais e se moviam, como que por um milagre, graças à invisível força da eletricidade. A novidade primeiro apareceu nos Estados Unidos e em alguns países europeus.
Com a chegada da eletricidade, os bondes
de tração animal estavam com os dias contados. Conviveram pacificamente por algum tempo, mas progressivamente os modernos bondes elétricos substituíam os tracionados por animais. O Rio de Janeiro foi pioneiro no Brasil e na América Latina na utilização da tração elétrica, tendo o serviço inaugurado no ano de 1892.
Por que “bonde”? A palavra tem origem no bilhete que se comprava para viajar nesses carros. Os bilhetes eram impressos nos Estados Unidos, por isso havia quem os chamasse de bond (bônus, apólice). O nome pegou.
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Em 1897, a Companhia Veículos Econômicos
inaugurou a primeira linha de bondes elétricos em Salvador, fazendo o percurso Comércio – Itapagipe, na parte baixa da cidade. Logo depois, a Companhia Linha Circular de Carris da Bahia passou a fornecer o serviço na cidade alta. Ainda no século XIX, em 1899, Manaus também teve inaugurado o seu primeiro serviço de bondes elétricos pela empresa Manaus Railway Company. Em São Paulo, o novo transporte chegou em 1900.
Pioneirismo
No Brasil, a tração elétrica primeiro chegou às ruas
da cidade do Rio de Janeiro. Inaugurado no ano de 1892 pela Companhia Ferro Carril do Jardim Botânico, o primeiro trecho eletrificado foi o trajeto do Centro ao Flamengo. A partir de então, o serviço expandiu-se, mas vale lembrar que, na cidade do Rio de Janeiro, até 1928, houve bondes puxados a burro da “Linha Circular Suburbana de Tramways”. Esta linha foi comprada posteriormente pela canadense The Rio de Janeiro Tramway, Light and Power Company Limited, que substituiu os carros animados pelos elétricos.
Mas como a eletricidade chegou ao Rio de Janeiro?
No final do século XIX, o país passava por profundas modificações: abolição da escravatura, proclamação da república, advento da indústria, entre outras. A Companhia Ferro Carril do Jardim Botânico, detentora do serviço, enfrentava sérios problemas operacionais, como altos gastos com alimentação importada para os animais, altos encargos, tarifas elevadas e ainda a proximidade do encerramento da sua concessão. O então prefeito, Félix da Cunha, resolveu estender o prazo de concessão, levando a companhia a procurar uma nova forma de tração para os seus carros, substituindo então os animais pela eletricidade. O processo de substituição começou em 1890 e terminou em 1892 com a sua efetiva implantação. A eletricidade era gerada por uma central termelétrica e o sistema utilizado era chamado Thomson-Huston, fornecido pela General Electric. A viagem inaugural ocorreu no dia 8 de outubro de 1892, partindo das imediações do Teatro Lírico, no Largo do Carioca, até a rua Dois de Dezembro. Este foi o primeiro bonde elétrico do Brasil e também de toda a América Latina.
Não demorou muito para que os bondes elétricos
ocupassem toda a cidade. Outras empresas do negócio também modernizaram seus carros, aderindo ao novo sistema de tração. Em 1904, a canadense Light chega ao Rio de Janeiro com o objetivo de introduzir na cidade a geração de eletricidade por força hidráulica. Após construir a Usina Hidrelétrica Fontes, a Light acabou por atuar também no sistema de transportes
Relato do jornal Correio Paulistano acerca da inauguração da linha de
Santo Amaro, até então, um município de São Paulo (08/07/1913).
“A nosso ver, ir a Santo Amaro, de hoje em diante, constituirá, sem dúvida, o melhor, o mais agradável passeio de São Paulo,
Flávia Lima
bondes de
ao menos para aqueles que vivem enfarados da buliçosa vida da cidade e necessitam de ver coisas novas, outras paisagens, panoramas diferentes.
Construindo a nova linha de bondes, ligando esta capital a Santo Amaro, veio a Light demonstrar mais uma vez o quanto se interessa por tudo quanto diz respeito ao nosso progresso.
Inúmeros são os benefícios prestados pela importante companhia canadense a
São Paulo, onde a ela
é devido não pequena parte de seus melhoramentos.
A data de ontem será sempre cara para nós, pois não hesitamos em afirmar que, em breve, Santo Amaro se tornará numa lindíssima, numa importante cidade. O impulso que agora vão tomar as suas indústrias, o seu comércio, a sua lavoura transforma-la-á numa pujante cidade.
(...) ”
Bonde a tração animal circulou até meados dos anos de 1920 no Brasil. Em subidas, os passageiros tinham de descer e ajudar a empurrar o carro. O bonde está em exposição no Museu da SPTrans, em São Paulo (SP).
23
cidade em movimento
coletivos, adquirindo companhias que
elétricos chegaram no mesmo ano.
ainda utilizavam a tração animal para
eletrificá-las, unificá-las e ampliar suas
de 56.315 metros e os carros foram fornecidos pela
linhas. Trouxe veículos mais modernos
Companhia Brill, dos Estados Unidos. Cada carro era
que conquistaram a população.
acionado por dois motores GE de 58 e 35 cavalos. Em
Doutor em história econômica pela
outubro de 1899, Stiel conta que foram iniciadas as
Unicamp, Alexandre Saes, que estudou A partir de 1908, os bondes começaram a circular com propagandas. As farmacêuticas eram as principais anunciantes.
As linhas projetadas tinham uma extensão total
obras para distribuição de força e luz, com a construção
as relações políticas e econômicas da Light no período
da primeira das três câmaras onde se instalariam os
de sua instalação no Brasil, conta que, em 1920, a Light
aparelhos transformadores de corrente de alto potencial,
apresenta uma proposta para a construção de uma linha
fornecida pela cachoeira de Parnaíba, em corrente de
subterrânea de Botafogo à Tijuca, no Rio de Janeiro. No
baixo potencial, empregada na distribuição.
projeto, estava previsto o mergulho dos bondes no centro
da cidade para descongestioná-lo. A proposta acabou não
maio de 1900 e foi um frisson na cidade. Os hotéis
sendo aceita porque a Light pretendia repassar para as
localizados no centro chegaram a preparar cardápios
passagens de bonde o gasto para financiar a obra.
especiais para o grande dia. Estiveram presentes na
Bondes paulistanos
A inauguração dos bondes aconteceu no dia 7 de
solenidade o presidente Rodrigues Alves e o vicepresidente Domingos de Morais, além de senadores, deputados, diretores de empresas, a imprensa e
Houve várias tentativas para a implantação do
milhares de populares.
sistema elétrico nos transportes coletivos em São Paulo,
mas nada se positivou até 1900. Segundo Stiel, a própria
repercussão no dia seguinte:
O jornal O Estado de S. Paulo dera a seguinte
Companhia Carris de Ferro, concessionária da primeira companhia de bondes de São Paulo, havia estudado essa
“Por todo o trajeto aglomerava-se enorme multidão
possibilidade, mas acabou desistindo. A ideia começou
nas esquinas, portas e janelas, aclamando a espaços a
a ser concretizada quando o comendador Antonio
empresa com vivas e palmas, à passagem dos veículos
Augusto de Souza pensou em formar uma companhia
apinhados de passageiros. Durante todo o resto do
para introduzir o sistema de transportes urbanos por
dia e parte da noite, os bondes foram franqueados ao
eletricidade, já muito usado em todas as grandes cidades
público, que acorreu em massa, conservando sempre
do mundo. O comentador Antonio Augusto de Souza
cheios os carros da Light and Power”.
era sogro do advogado Carlos de Campos e, em 1895,
24
seu irmão, Américo de Campos, foi ao Canadá em
missão oficial do Governo do Estado onde se encontrou
Por conta do consumo de eletricidade de 550 V, em
com o capitão da marinha italiana, Francisco Antonio
corrente contínua, a Light resolveu investir na geração
Gualco, que lá residia. O resultado foi a Lei 304, de 8
de energia e construiu a primeira termelétrica da
de julho de 1897, que autorizava a concessão para o
cidade. Logo depois, projetou e construiu a Usina
lançamento de bondes elétricos.
Hidrelétrica do Tietê, em Santana do Parnaíba. Foi
então que linhas de transmissão, subestações e projetos
O próximo passo seria então levantar o capital
A partir daí, esse transporte cresceria intensamente.
necessário para tal empreendimento. Os interessados
de novas usinas começaram a surgir. No final do ano
voltaram para o Canadá e lá a proposta interessou a
de 1900, São Paulo possuía 25 carros elétricos. Dois
sete grandes capitalistas. Fundaram então a The São
anos mais tarde, 85 carros e 85 quilômetros de linhas.
Paulo Railway Light and Power Co, que logo depois
mudaria a palavra “railway” (linha de ferro) por
seus próprios bondes. Em 1909, fez seu primeiro carro
“tramway” (linha de bonde). Os primeiros 15 bondes
fechado para carregar operários com tarifas mais
Assim, em 1904, a Light começou a construir
“O que mais me impressionou foi o gesto do motorneiro. Os olhos do homem passavam por cima da gente que ia no seu bonde, com um grande ar de superioridade. Sentia-se nele a convicção de que inventara, não só o bonde elétrico, mas a própria eletricidade”. Acervo Fundação Energia e Saneamento
Machado de Assis
Bonde para transporte de operários com tarifa diferenciada. Note o uso de bonde reboque nesta composição. Foto tirada na avenida Rangel Pestana, no cruzamento da rua Piratininga. Julho de 1916.
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cidade em movimento Troca de ideias Dois homens conversando: “Barata: Tu sabes, Zé? Vais ter electricidade por toda a parte ... O Lauro quer dar o privilégio da força ao Gaffrée, e tu vais ver o que é progresso. Zé Operário: Muito bem! E quando me darão casas decentes e salubres para eu morar? Barata: É fácil; vai morar dentro dos novos bonds electricos ... Zé Operário: Boa idéa ... para morrer à fresca!” O Malho, v. VI, n. 125, 4 de fevereiro de 1905
baixas e, em 1916, construiu o primeiro bonde com
“Uma febre de curiosidade tomou as famílias, as casas,
“truck-duplo”, ou seja, carro maior com oito rodas; os
os grupos. Como seriam os novos bondes que andavam
primeiros possuíam apenas quatro.
magicamente, sem impulso exterior? Eu tinha notícia
Um fato curioso foi a importação de um
pelo pretinho Lázaro, filho da cozinheira de minha tia,
luxuoso bonde, em 1906, pela Light. O conforto e
vindo do Rio, que era muito perigoso esse negócio de
o acabamento de alto padrão fizeram o bonde não
eletricidade. Quem pusesse os pés nos trilhos ficava
rodar nas ruas, a princípio. Em vez disso, o executivo,
ali grudado e seria esmagado facilmente pelo bonde.
batizado de “Ypiranga” pelo Cardeal Arcoverde, foi
Precisava pular”.
alugado durante anos para casamentos, batizados e outros eventos especiais.
Esse sentimento acometeu grande parcela da
população nos primeiros anos do bonde elétrico
A novidade
nas cidades. Manifestações de desagrado por parte da população marcaram o período. Resistente à
“O bonde ia agora atravessando os Arcos. Sob a luz de um dia brumoso, encoberto,
tecnologia, o poeta Machado de Assis também registrou sua oposição:
um dia pardo, a cidade se estendia irregular e triste. Bondes, carros e transeuntes passavam por debaixo da
“Não tendo assistido à inauguração dos bondes
arcaria secular”
elétricos deixei de falar neles. Nem sequer entrei em
Lima Barreto
algum, mais tarde, para receber as impressões da nova tração e contá-la. Ontem, porém, indo pela praia da
Pelas cidades em que figurou, o bonde
Lapa em bonde comum encontrei um dos elétricos que
elétrico foi recebido com reações diversas: alegria,
descia. Era o primeiro que estes olhos viam andar.
preocupação, medo, dúvida e até repulsa. Ao mesmo
Admirei a marcha serena do bonde, deslizando como o
tempo em que eram atraídas pela novidade, as
barco dos poetas ao sopro da brisa invisível e amiga.
pessoas sentiam-se temerosas, principalmente com
Mas como íamos em sentido contrário não tardou que
relação à eletricidade, o que para muitos ainda era
nos perdêssemos de vista, dobrando ele para o Largo
algo completamente desconhecido. Era comum,
da Lapa e Rua do Passeio e eu entrando na Rua do
por exemplo, as pessoas preferirem tomar o bonde
Catete. Nem por isso o perdi da memória. A gente do
a tração animal do que o elétrico. Para tentar
meu bonde ia saindo aqui e ali, outra gente entrava a
amenizar o receio das pessoas, a Companhia Ferro
diante, eu pensava no bonde elétrico”.
Carril do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, passou
26
a imprimir nos encostos dos bancos dos veículos a
frase: “A corrente elétrica nenhum perigo oferece
tinham sua razão. Os acidentes com bondes eram muito
aos passageiros”.
comuns, considerando especialmente a alta velocidade
em que trafegavam – comparando-se aos bondes
O engenheiro civil e administrador do Museu da
Os receosos em aceitar o novo meio de transporte
SPTrans, Henrique Di Santoro Júnior, conta que num
animados – e ao emaranhado que se formavam nas
primeiro momento a expectativa e a curiosidade eram
ruas, com gente, carros de passeio, carroças, animais e
grandes, mas também havia muita dúvida. “As pessoas
bondes. “Havia na época uma grande preocupação com
achavam que havia eletricidade nos trilhos, no próprio
as consequências dos acidentes e não com os acidentes
carro e nos balaústres e que por isso poderiam tomar
em si, já que eles eram considerados inevitáveis”, explica
choque ao se apoiar ou encostar no bonde”. Para se ter
Henrique Di Santoro. Os bondes, inclusive, vinham
ideia desse julgamento, o escritor Oswald de Andrade
com a seguinte inscrição em seus bancos: “Prevenir
escreveu na época:
acidentes é dever de todos”. Nesse sentido, foi criado um
Acervo Fundação Energia e Saneamento
mecanismo que, em caso de atropelamento, a pessoa ao cair embaixo do bonde, automaticamente escorava em uma espécie de trava que desarmava uma esteira, que teria a importante função de resgatar a pessoa, ficando esta, sã e salva, sobre a esteira até a parada total do bonde. “Muitas pessoas foram salvas graças a esse sistema, um dispositivo simples, mas muito funcional”, completa Di Santoro.
Passado este tempo de adaptação por parte da
população, o bonde passou a compor a paisagem urbana e a ser símbolo de modernidade. Em pouco tempo, os bondes elétricos circulavam pelas cidades em grande número e outras companhias foram substituindo seus carros comuns também pelos elétricos.
Apesar do perigo ainda representado para a
sociedade da época por conta da eletricidade, aos poucos, as campanhas publicitárias das empresas começaram a esclarecer a opinião pública, que suavizavam os riscos e enalteciam as vantagens e as qualidades do novo transporte e da eletricidade. Os bondes, aliás, eram um importante instrumento de comunicação das empresas na época. As propagandas tomavam conta dos carros, pois se constituíam na forma mais eficaz de divulgação, já que percorriam toda a cidade.
Outro aspecto importante dos bondes é que eles
se adaptavam ao tipo de serviço prestado e atividade executada. Havia carros destinados a enterros, a casamentos, ao transporte de doentes, entre outros. Em Salvador, por exemplo, foi inaugurado em 1911 o denominado bonde-salão, utilizado em festas, como casamentos e batizados ou em solenidades diversas.
A inovação trazida pelos bondes elétricos
representou de fato uma grande transformação comparada aos meios de transportes anteriores, tendo em vista a disponibilidade do serviço, o conforto e a rapidez nos percursos. Além disso, o bonde foi o primeiro coletivo a reunir os mais diversos e variados tipos de pessoas, tornando-se rápida e progressivamente palco privilegiado para as vivências do cotidiano, transformando-se no cenário preferido para as anedotas, crônicas, romances, canções, propagandas, etc.
Vista do entroncamento da rua São Bento. 24 de fevereiro de 1902.
27
cidade em movimento
“Pode-se imaginar a explosão de criatividade a
depois loteá-los e vendê-los. Ela fazia isso por meio de
partir do mirante de um bonde. Além da visão geral,
outra empresa criada por ela, a imobiliária City”.
o bonde oferecia uma interpretação democrática da
vida, já que todas as camadas sociais e etnias podiam
período de concessão da Light para operar os bondes
ser observadas nas suas interdependências. As janelas
em São Paulo – a empresa não estar mais interessada
de um bonde abriam-se para o palco do cotidiano, da
em continuar com o transporte deve-se também à
vida na pauliceia“, escreveu Fernando Portela.
falta de regiões para expandir, logo, não havendo mais
previsão de lucrar com o negócio imobiliário.
Não poderíamos deixar de mencionar os
Segundo Branco, o fato de em 1941 – término do
“pingentes”. A população brasileira crescia
exponencialmente, não sendo suficiente o transporte
Ipanema ocorria nos mesmos moldes. A partir de 1890,
disponibilizado. Assim, dezenas de pessoas se
a Companhia Jardim Botânico promoveu a expansão
dependuravam nos bondes, impedindo, inclusive,
de seus serviços em direção àquela área, chegando a
a visão do motorneiro (‘motorista’ do bonde),
oferecer condução gratuita como forma de estimular a
dificultando o trabalho do condutor (o cobrador) e
ocupação e as vendas de terrenos na região. Em 1901,
facilitando a ocorrência de acidentes.
a mesma empresa estenderia seus trilhos até Ipanema,
onde já se vinha promovendo a instalação de serviços de
Os pingentes desapareceriam apenas a partir
de 1927, com o lançamento do bonde fechado, que pintado nas cores vermelho e laranja, foi apelidado de camarão. Implantado pela Light, este bonde se tornou
No Rio de Janeiro, a ocupação de Copacabana e de
infraestrutura, como esgoto e iluminação pública elétrica.
Trólebus
um ícone paulistano. “Onde chega o bonde, chega o progresso”
Brasil durante as três primeiras décadas do século
Os bondes foram os grandes impulsionadores da
XX, mas a partir de 1940, começa o seu período de
expansão das cidades. Implantados inicialmente
decadência. Os carros, já não tão novos, passam a
sempre nos centros, os bondes estendiam seus trilhos para as áreas periféricas, levando desenvolvimento por onde passavam.
apresentar problemas e a grande população de cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, não é mais atendida a contento pelos bondes elétricos.
Arquivo / Museu
SPTrans
Trólebus fabricado pela Atlas Grassi viajou de São Paulo ao Rio de Janeiro, com a ajuda de um gerador, para apresentação ao presidente da República Juscelino Kubitschek. 3 de maio de 1958.
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A eletricidade nos bondes teve muito êxito no
Assim como as estradas de ferro, os bondes
Em São Paulo, no ano de 1925 já começam a
aparecer os primeiros ônibus de maneira anárquica. O
permitiram que as cidades crescessem em todas
engenheiro Adriano Branco conta que qualquer pessoa
as direções. A princípio, as companhias de bondes
interessada poderia comprar um ônibus (a diesel) e ir
procuravam regiões em que o mercado já existia,
para as ruas trabalhar. Foi somente no ano de 1936
mas conforme iam alcançando novos locais,
que a prefeitura resolveu regulamentar o transporte.
automaticamente, induziam a ocupação e a exploração
Estabeleceu que, para ser empresário, era necessária a
dessas áreas. A Companhia Vila Isabel, no Rio de
propriedade de pelo menos quatro veículos.
Janeiro, não se limitou a explorar um mercado
preexistente para suas linhas, criando o seu próprio
auto-ônibus e a falta de investimentos no serviço
mercado mediante articulação com o capital imobiliário,
de bondes acabou por decretar seu fim. A partir da
promovendo a abertura de loteamentos e novas áreas de
década de 1960, o bonde já era retirado pouco a pouco
habitação projetadas de forma a atrair as classes médias.
de circulação. A última viagem do bonde em São
Paulo foi comemorada e registrada com uma placa,
O engenheiro eletricista Adriano Murgel Branco, ex-
A concorrência com os novos ônibus, com os
Secretário de Transportes do Estado de São Paulo e ex-
descerrada solenemente no Largo 13 de Maio, em
diretor da CMTC, explica que a Light de São Paulo fez
Santo Amaro: “Aqui fez ponto final o último bonde
o mesmo. “À medida que a Light penetrava as cidades
de São Paulo, sendo prefeito José Vicente de Faria
com seus trilhos, ela comprava os terrenos ao redor para
Lima. 27 de Março de 1968”. Os bondes existiram em
B ondes 72 cidades brasileiras. Depois da sua extinção em São
Paulo, apenas a cidade de Santos continuou com o
comissão, a pedido do prefeito Prestes Maia, estava
serviço, que também foi extinto mais tarde.
incumbida de elaborar um estudo completo sobre
a situação do transporte. O estudo, concluído em
Nessa época, os trólebus já estavam nas ruas.
Adriano Branco conta que desde 1939 uma
Sua origem, entretanto, parece ter sido quase
1943, manifestou-se favoravelmente aos ônibus
contemporânea ao bonde elétrico, quando, no ano de
elétricos, tendo em vista o conforto, o silêncio
1882, o Dr. Finney, de Pittsburgh, propôs a operação
devido à ausência do atrito das rodas sobre os
de ônibus elétricos com corrente transmitida por fios
trilhos e a facilidade de locomoção a partir dos
aéreos e recebida por intermédio de um pequeno
dois cabos que mantêm contato com os fios
‘trolley’ (alavanca de captação de corrente elétrica)
transmissores de corrente elétrica.
ligado ao veículo por um cabo flexível.
Em São Paulo, no ano de 1914, já havia uma
melhores (por conta da guerra que se agravara) e
empresa que anunciava a grande novidade. Waldemar
a Light continuou com o serviço de bondes – por
Stiel cita uma publicação intitulada “A Cigarra”, que,
ordem do governo federal, a Light foi obrigada a
na época, divulgou o seguinte anúncio:
continuar com os bondes, mesmo não tendo mais
O projeto, todavia, ficou aguardando dias
interesse no negócio e tendo vencido o seu período “Bondes elétricos sem trilhos Para transporte de passageiros e mercadorias entre as cidades do interior servidas por iluminação elétrica. Informação e fotografias, Rua Direita, nº 8 A, sala 5”
de concessão; a prefeitura não tinha condições de assumir o negócio.
O caso é que dez anos depois, conforme conta
Waldemar Stiel, São Paulo viu o seu primeiro trólebus correr, servindo na linha Aclimação. Esses primeiros
Oito anos depois, foi aprovada a Lei 2.506, de
trólebus pertenciam a uma leva de 30 carros, que
30 de junho de 1922, que autorizava a concessão de
a Companhia Municipal de Transportes Coletivos
licenças a Ascario Cerquera e a Edgard de Azevedo
(CMTC), criada em 1947, havia comprado. Os carros
Soares para o estabelecimento de bondes elétricos sem
foram importados dos Estados Unidos e da Inglaterra.
trilhos, sistema “Electrobus”, ligando o alto de Santana
às divisas do Juqueri, Lapa, Freguesia do Ó e a Penha
gestões públicas. “Foi na gestão de Olavo Setúbal
às divisas de Guarulhos.
que se resolveu fazer um projeto de implantação
de corredores para os trólebus, mas conforme
Apesar dessas menções ao trólebus, entretanto,
Os trólebus cresceram e caíram, conforme as
nenhuma vingou. Parece que houve um protesto
as prefeituras iam mudando, as pessoas iam
de uma grande companhia que levou à cassação
investindo ou não. Só o corredor da avenida Santo
da concessão. A ideia só voltou a aparecer em
Amaro foi feito três vezes”, indigna-se Branco.
1938 quando foi realizada na sede do Instituto de
Engenharia de São Paulo uma demonstração sobre
foram instalados em 11 cidades brasileiras.
o funcionamento dos eletrobus (ou trólebus). O novo
Atualmente, apenas a cidade paulista ainda conta
carro foi considerado o meio mais moderno, prático e
com esse tipo de transporte.
seguro de coletivo urbano. No ano seguinte, o jornal O Estado de S. Paulo publicou: “A administração municipal pretende adquirir dez ônibus elétricos ou ‘Trolley-Coaches’, a fim de experimentá-los nesta capital, com o objetivo de procurar uma solução para o problema dos transportes coletivos em virtude de expirar em 1941 o contrato que a cidade mantém com a Light and Power”.
modernos
A tecnologia dos bondes elétricos acabou morrendo no Brasil - com algumas exceções, como o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) de Campinas (SP) e a tentativa do fura-fila, na capital paulista. Mas no mundo, ela evoluiu e gerou carros modernos, confortáveis e com avançado sistema de eletrônica embutido. Esses novos bondes lembram os veículos fechados que circulavam no país no início do século XX, melhorados com automação eletrônica que controla semáforos, mudança de via, as portas, a comunicação, conta com mecanismo de localização por GPS, entre outras características. Em diversas cidades europeias, o trólebus (veículo elétrico sobre pneus) e o bonde (também chamado de veículo leve sobre trilhos - VLT) facilitam o dia-a-dia das pessoas. A eletricidade usada no transporte, segundo o engenheiro Adriano Murgel Branco, traz inúmeras vantagens, entre elas, não poluir, não emitir gases, rendimento três vezes maior do que o do ônibus a combustão, dupla aceleração sem danificar o motor e redundância, pois há dois eixos com motor, o que confere mais segurança aos usuários.
Os trólebus, tendo São Paulo como pioneira,
Pesquisa • A vida cotidiana no Brasil moderno Memória da Eletricidade • A vida cotidiana no Brasil nacional Memória da Eletricidade • Julio Verne, o bonde, o burro e outros escritos Olavo Bilac • Bonde – Saudoso paulistano Fernando Portela • História dos transportes coletivos em São Paulo Waldemar Corrêa Stiel
Genebra
Lyon
29
regulamentação
Por Lívia Cunha
Stockxpert.com
AS REGRAS DO JOGO
30
A regulamentação do setor elétrico brasileiro começou a ganhar forma cerca de 50 anos após o início de suas atividades no Brasil. Além de organizar as empresas, as regras foram importantes para garantir a própria expansão do segmento
A história das concessões de empresas de energia elétrica começa pouco depois da proclamação da república, quando se
A técnica, apesar de nova, já era conhecida.
e gestão do setor. No início da instalação das primeiras
A utilização crescia cada dia mais. Mas as regras
companhias geradoras de eletricidade, o país passava
de funcionamento ainda não estavam claras. Foi
por significativas mudanças políticas, com a abolição
necessário quase meio século para que o setor de
da escravidão, em 1888, o fim da monarquia com a
energia fosse regulamentado no Brasil. No início,
proclamação da república, em 1889, e a publicação
quando as primeiras empresas exploradoras de
da segunda constituição brasileira, em 1891. Essas
eletricidade começaram a surgir, imperava a auto-
alterações refletiam diretamente no modo de como o
organização.
setor energético era formado.
Como antes dos anos 1930 os serviços de energia
elétrica não possuíam legislação própria, o setor foi
acentuou o número de empresas fornecedoras de serviços elétricos.
Antecedentes
regido pelos interesses das concessionárias desde o início de suas atividades nos anos 1880. Nessa
época, eram firmados contratos, geralmente pelos
país liberal e federativo, princípios que se baseiam na
municípios, com privilégios de exclusividade para
autonomia econômica das empresas e na autonomia
as concessionárias prestarem algum serviço público
política dos estados e municípios, delimitando
ligado à eletricidade. A utilização da energia elétrica
campos de ação específicos para cada um. Com isso,
no país era ainda uma novidade e, na época, o Estado
a elite brasileira, que tomava as decisões políticas e
não tinha tecnologia e recursos financeiros suficientes
econômicas, composta por fazendeiros, comerciantes e
para investir nesse ramo sozinho.
industriais, queria certa autonomia política em relação
ao governo federal. Por influência do poder exercido
No entanto, a eletricidade, desde o domínio de
A nova constituição definia o Brasil como um
sua utilização, sempre foi associada ao progresso e à
por eles é que, no período que é chamado de República
modernidade, o que transformava o setor elétrico em
Velha, de 1889, com a proclamação, até a Revolução
um segmento estratégico para o país que quisesse se
de 1930, os interesses econômicos e de grupos locais
desenvolver para industrialização e urbanização. Se a
imperaram sobre os nacionais.
exploração de serviços estratégicos não era definida
conforme o interesse público ou com a coordenação da
de energia elétrica começava a se formar. As primeiras
União, a modernização do país poderia até acontecer,
empresas de eletricidade que apareceram no Brasil
mas não conforme os interesses nacionais. Acontece
foram criadas para atender necessidades específicas
que para o Brasil monárquico e, posteriormente, recém
dessa classe dominante, que detinha também os
republicano, o setor elétrico ainda era um campo de
recursos financeiros necessários para investimento
atuação novo e os governantes não sabiam como gerir.
na infraestrutura. Essas primeiras eram companhias
pequenas, que tinham pouca potência, mas eram
O sociólogo e doutor em história econômica,
E é exatamente nesse período que o setor brasileiro
que desenvolveu como tese de doutorado um estudo
compostas por capital nacional e forneciam energia
sobre o setor elétrico brasileiro na República Velha,
gerada a partir de usinas termelétricas e hidroelétricas.
Alexandre Saes, explica que era exatamente pelo fato
A primeira usina de geração por hidroeletricidade
de o setor elétrico ser uma área muito recente que o
brasileira, chamada de Ribeirão do Inferno, começou a
governo “não tinha muita clareza de como fazer um
operar em 1883, na cidade de Diamantina, em Minas
processo de regulação, de como criar as leis, de como
Gerais, aproveitando a água de um afluente do rio
organizar”.
Jequitinhonha.
Outros fatores externos contribuíram para esse
retardamento na definição de regras de funcionamento
Mas os primeiros registros de utilização de
eletricidade no país datam de anos antes. Em 1876,
31
regulamentação Linha
geradores de energia elétrica no Brasil. Mercado empresas privadas nacionais. Muitos projetos de lei que tramitam na esfera federal dizem respeito
1900-1910
XIX
composto, principalmente, por pequenas
Final
Poucas regras para os empreendimentos
do século
do tempo Principais aspectos da evolução das regras para o setor elétrico brasileiro em mais de um século de história
Chegada das primeiras concessionárias estrangeiras. A regulação, nesse período, visa aos interesses do capital estrangeiro. Primeiros movimentos de regulamentação com a lei nº 1.145, 31 de dezembro de 1903, e o decreto nº 5.704, de 10 de dezembro de 1904. Regulamentam, em termos gerais, a concessão de serviços de eletricidade destinados ao fornecimento público
à isenção de imposto de importação para
federal e representam o início da regulamentação do setor elétrico nacional.
iluminação pública, como os projetos nº 205 e nº
Apresentam pouca eficiência porque os contratos eram firmados e regulamentos
53, de 1891 e 1892, respectivamente.
pelos Estados e municípios. Em 1907 surge a primeira versão do Código de Águas que vai tramitar sem sucesso por muitos anos.
Dom Pedro II, imperador brasileiro, em visita à
de empresas fornecedoras de serviços elétricos. O
Exposição da Filadélfia, conheceu a luz elétrica e,
historiador Alexandre Ricardi, que desenvolve estudos
encantado com ela, tinha intenção de implantá-la
sobre companhias de energia elétrica no estado de São
no Brasil. Assim, três anos depois, em 1879, Dom
Paulo na República Velha, conta que, por influência
Pedro II concedeu a Thomas Edison a permissão para
do federalismo, as concessões “eram cedidas pelo
introduzir no país aparelhos e processos destinados
município, mais exatamente a partir da constituição de
à utilização da luz elétrica. Já no mesmo ano, foi
1891. Sendo assim, mais de uma empresa podia obter
inaugurado o primeiro serviço de iluminação elétrica
concessões, explorando o serviço de fornecimento de
de caráter permanente no país. Era a iluminação da
eletricidade em determinadas áreas e concorrendo com
Estação Central da Estrada de Ferro Dom Pedro II, hoje
outras empresas.”
chamada de Central do Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, a então capital federal.
32
Arrumando a casa
Poucos anos depois, em 1883, foi inaugurado o
primeiro serviço de iluminação pública, alimentado por
uma termelétrica, na cidade de Campos, estado do Rio
século XIX, o mundo assistia à Segunda Revolução
de Janeiro. A energia era fornecida por uma máquina
Industrial, quando foram introduzidas novas fontes
a vapor de 70 cv, correspondente a 52 kW de potência,
de energia, como a eletricidade e o petróleo e seus
que acionava três dínamos para acender 39 lâmpadas.
derivados, que fizeram surgir uma série de novas
Esse parece ter sido o primeiro serviço de iluminação
indústrias. Por consequência dessa evolução técnica,
elétrica não só do Brasil como em toda América do
grandes empresas foram formadas nos países mais
Sul. A primeira usina para abastecimento público e de
desenvolvidos, como Estados Unidos, Inglaterra e
origem hídrica, considerada por muitos estudiosos o
Alemanha, para explorarem esses novos mecanismos
marco inicial da geração elétrica brasileira, construída
em países periféricos, como Brasil, México e Cuba.
em 1889, foi a usina hidrelétrica de Marmelos (ou
Assim, na virada dos dois séculos, grandes companhias
Marmelos-Zero), abastecida pelo rio Paraibuna, em
internacionais aportaram no Brasil para explorarem os
Juiz de Fora, também no Estado de Minas Gerais.
serviços de força motriz e iluminação a eletricidade.
Mais tarde, usinas locais para abastecimentos de
Nesse período, entre meados e o final do
Na chegada de empresas como a do grupo Light,
pequenas indústrias, em especial dos ramos de tecidos
de origem canadense, e da Amforp, dos Estados
e mineração, além de iluminação pública e transporte
Unidos, a latente necessidade de organização do
elétrico, começaram a surgir. Apesar de ainda ser de
setor com regras e normas tornou-se cada vez mais
forma incipiente, o país já se iluminava e, aos poucos,
clara com o passar dos anos, mas ainda sem sair
começava a se modernizar.
efetivamente do papel. Durante a primeira república,
o governo federal criou regras superficiais para o
A história das concessões de empresas de energia
elétrica começou poucos anos depois da proclamação
controle do novo setor.
da república, quando se acentuou também o número
Nesse período, as empresas que começaram a
as concessionárias definissem os valores das tarifas e as determinassem em ouro, ao invés de seguir a moeda local. Com isso, havia uma correção monetária embutida.
Em 1920 é criada a Comissão de Estudos de Forças
1920-1930
1910-1920
Em vigor a liberdade tarifária, que permitia que
Hidráulicas, vinculada ao Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil, órgão do então Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Vigora ainda a liberdade tarifária das concessionárias.
trabalhar com o fornecimento de energia elétrica para o Brasil possuíam poucas regras de funcionamento. Os
A
vida antes das regras
a lei nº 1.145, de 31 de dezembro de 1903, e o decreto
No início do século XX, pequenas usinas geradoras de energia elétrica
nº 5.704, de 10 de dezembro de 1904.
surgiam por todo país para alimentar a iluminação de cidades, de pequenas
Essas leis definiam que o prazo máximo da
indústrias, de casas. Foi nessa época, em 1937, que o eletrotécnico Douglas
concessão era de 90 anos, mediante contrato, e que,
Guzzo nasceu. Em um núcleo residencial da Companhia Força e Luz de Jaú,
após o término da concessão, os bens utilizados
que tinha 14 famílias, Guzzo viveu seus primeiros anos.
seriam revertidos para a União, sem indenização. A
fiscalização dos contratos, por essas normas, deveria
trabalho do pai, que era chefe na usina de Gavião Peixoto, localizada
ser feita pelo governo federal. Contudo, nesse período,
entre os municípios de Araraquara e Boa Esperança do Sul, interior de
quem detinha o poder político eram os municípios, em
São Paulo. Nascendo e vivendo no núcleo da usina, ele assistiu de perto à
especial as Câmaras de Vereadores, e nesses espaços as
evolução da utilização da eletricidade no Brasil.
normas eram ditadas.
interligação entre as usinas, na época em que o pai chefiava a usina, como
primeiros movimentos de regulamentação surgiram na primeira década do século XX, quando são publicados
Em 1907 surgiu a primeira versão do Código de
Desde pequeno, Douglas teve contato com eletricidade, devido ao
Conta que, no interior, antes da regulamentação do setor e da
Águas, que, anos mais tarde, foi a primeira legislação
não tinha telefone ou rádio, a comunicação era feita “de uma forma muito
efetiva do setor elétrico, referente à exploração de
simplista: você abria a linha de transmissão uma vez e fechava. Abria
hidroeletricidade. O projeto foi elaborado pelo jurista
uma segunda vez e fechava. Era um toque para que o meu pai, a uma
Alfredo Valadão e apresentado ao Congresso no dia
distância de 30 quilômetros, retornasse à sua origem”. Eram dois ou três
26 de novembro do mesmo ano. O texto, contudo,
pequenos apagões que funcionavam como um sinal de comunicação entre os
tramitou por muitos anos sem sucesso.
funcionários da empresa.
O Código de Águas só foi transformado em
Alguns anos depois, quando ele mesmo já trabalhava na Companhia
norma 27 anos depois, com a publicação do decreto
Paulista de Força e Luz (CPFL), que adquiriu a empresa de Jaú, Guzzo
nº 26.234, de 10 de julho de 1934, no governo de
relata que o centro de operação do sistema, chamado de despacho de
Getúlio Vargas. O decreto definia a regulamentação
carga, “tinham pessoas que estavam treinadas para receber informações
da indústria hidroelétrica no Brasil e dava outras
e dar comandos operativos”. Ele era usado para comunicação com as
providências. Além disso, a constituição federal recém
outras usinas e de controle de tensão. “Já nessa época existiam rádios
publicada, de 1934, dizia que “compete privativamente
de comunicação, com freqüências diferenciadas”, explica, e era por meio
à União legislar sobre energia elétrica”.
do despacho de carga que a companhia controlava suas usinas antes das
concessionárias serem interligadas.
Um pouco antes, Getúlio Vargas determinou, em
1931, a retirada da competência dos municípios para autorizar a exploração da energia hidráulica, passando o controle para o governo federal, e dois anos depois, em 1933, acabou com a tarifa ouro.
33
regulamentação Linha
Pelo decreto nº 20.395, de 15 de setembro de 1931, o governo passa a controlar a regulamentação de exploração de energia hidráulica. Acaba a cláusula ouro, com o decreto nº 23.501, de 27 de novembro de 1933. Promulgação do Código de Águas (Decreto nº 24.643), de 10 de julho de 1934, primeiro grande instrumento regulatório do setor. A União passa a deter a competência de legislar e outorgar concessões de
1940-1950
1930-1940
do tempo Principais aspectos da evolução das regras para o setor elétrico brasileiro em mais de um século de história
Início de investimentos estatais no setor pelo governo federal a partir de 1945. Os Estados de Minas Gerais e Rio Grande do Sul criam usinas e órgãos estaduais de regulamentação. Em 1946, o governo federal apresenta o Plano Nacional de Eletrificação, que propõe
serviços públicos de energia elétrica. Surge, ainda, o Conselho Nacional
a concentração dos investimentos em usinas
de Águas e Energia Elétrica (CNAEE), com o decreto-lei nº 1.285, de
de pequeno e médio porte com o Estado como
18 de maio de 1939.
coordenador.
Até essa data, valia a liberdade tarifária que tinha
O fato de a regulação ter começado com Getúlio
seus valores definidos em ouro. Com isso, o valor
Vargas, que assumiu o governo após a Revolução
da tarifa era fixado a partir do custo do metal e isso
de 1930, deveu-se, entre outros fatores, às ações
incorria em várias alterações nos valores cobrados dos
modernizadoras que ele propôs para o Estado
consumidores, que trabalhavam com a moeda local.
brasileiro. “Vargas achava que o setor elétrico era um
Nesse ano foi então publicado o decreto nº 23.501, de
setor estratégico”, conta Saes, “e achava que o Estado
27 de novembro, que colocou fim aos pagamentos em
precisava ter um controle sobre o setor”. Por isso, criou
tarifa ouro e proibia que estes fossem feitos em outra
uma série de normas e ações para garantir ao país certo
moeda que não a nacional. O Código de Águas, no ano
controle sobre como a eletricidade era explorada.
seguinte, determinou o processo de fixação de tarifa a
partir de um custo fixo.
ganhava com o passar dos anos, no final da República
Velha, em 1930, o Brasil já contava com 891 usinas
Foram nas três primeiras décadas do século
Para se ter ideia da dimensão que o setor elétrico
XX que a energia hidroelétrica começou a ser
geradoras de eletricidade, sendo 541 hidráulicas e
explorada em grande escala no Brasil, até pela
337 térmicas. Contava ainda com algumas grandes
condição privilegiada do país que contava com
empresas, como a Light e a Amforp, que controlavam
muitas bacias hidrografias e rios com vazão suficiente
grandes e importantes mercados brasileiros.
para a instalação de usinas. Como era a forma
economicamente mais viável para o Brasil, a utilização
e desenvolvimento do setor elétrico no Brasil”, de José
crescia e o governo determinou suas regras iniciais de
Luiz Lima, a capacidade instalada de energia elétrica
utilização.
no país cresceu 61.709,52%, de 1890 a 1930. Por isso,
regulamentar este setor era tão importante.
Mas as primeiras fontes de energia a serem usadas
foram o gás e o carvão mineral, importados de países ocidentais, com grande destaque para a Inglaterra,
De acordo com a dissertação de mestrado “Estado
Organizar para crescer
que, como vinham de fora, estavam sujeitos a
34
variações cambiais e à disponibilidade externa. Mesmo
com a dependência estrangeira, algumas empresas
para tentar acompanhar o crescimento que o país
O governo federal começou a organizar o setor
mantinham usinas alimentadas por esses combustíveis
sofria. Cada vez mais empresas surgiam, novas ligações
fósseis. Por isso, a legislação brasileira incluiu, ainda
elétricas eram feitas e os transportes elétricos, nas
que superficialmente, um texto referente às usinas
maiores cidades, ainda eram importantes meios de
termelétricas. No Código de Águas, acrescentado
transporte para a população.
pelo decreto-lei nº 3.763, de 25 de outubro de 1941,
constava que os termos da norma “estendem-se
governo criou o Conselho Nacional de Águas e Energia
igualmente à energia termoelétrica e às empresas
Elétrica (CNAEE), em 1939, para acompanhar o setor.
respectivas, no que lhes forem aplicáveis”.
Uma das primeiras ações determinadas pelo CNAEE
Logo após a promulgação do Código de Águas, o
Rio de Janeiro e de São Paulo continua aumentando e, em 1957, é criada a empresa federal Central Elétrica de Furnas para ajudar no abastecimento.
1960-1970
1950-1960
Demanda de energia dos Estados de
Surge o Ministério de Minas e Energia (MME) pela Lei n° 3.782, de 22 de julho de 1960. Criada a Eletrobrás, em 1962, com as atribuições de planejar e coordenar o setor. Em 1963, a usina de Furnas começa a operar. No ano de 1965, a Divisão de Águas e Energia do Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM) é transformada no Departamento Nacional de Águas e Energia (DNAE), que, dois anos mais tarde, com a extinção do CNAEE, teve sua denominação alterada para Departamento de Águas e Energia Elétrica (DNAEE). Ainda em 1967 são fixadas
Fundação Energia e Saneamento
alíquotas mais elevadas para o Imposto Único sobre Energia Elétrica.
Subestação da Augusta, responsável por parte da distribuição da energia gerada pela The São Paulo Tramway Light and Power, em 1915. Nessa época, uma mesma concessionária gerava, transmitia e distribuía a energia. Oitenta anos depois, começou a processo de desverticalização do setor elétrico brasileiro.
35
regulamentação Linha
MME estabelece os princípios técnicos que dão origem ao Grupo Coordenador para Operação Interligada (GCOI), órgão especializado na operação otimizada do parque gerador. Começa a expansão do setor influenciada pelo II Plano Nacional de Desenvolvimento. Em 1971, é criada a Reserva Global de Reversão (RGR) – para permitir a retomada das concessionárias não-estatais ao final do período de concessão – e o governo aperfeiçoa a legislação tarifária, com a lei nº 5.655, de 20 de maio. Em 1973, pela lei nº 5.899, é
1980-1990
1970-1980
do tempo Principais aspectos da evolução das regras para o setor elétrico brasileiro em mais de um século de história
Redução dos investimentos do Estado, graças às crises do petróleo, faz o setor elétrico perder gradativamente a eficiência. Discordâncias entre concessionárias estaduais,
criada a Usina de Itaipu. A equalização tarifária entre as concessionárias de todo o país
Eletrobrás e área econômica do
vem em 1974, com o decreto-lei nº 1.383. Setor passa a gerar recursos para autofinanciar
governo federal, responsável pelo
sua expansão. Primeiro (1973) e segundo (1979) choque do petróleo.
controle orçamentário.
foi a revisão dos contratos e das concessões vigentes.
concentração dos investimentos em usinas de pequeno
Dessa forma, o governo federal começou a entrar em
e médio porte com o Estado como coordenador. Pouco
conflito com as empresas privadas, especialmente as
depois, estimulada pela política de industrialização
estrangeiras, que detinham o monopólio de grandes e
de Juscelino Kubitschek, foi criada a empresa federal
rentáveis regiões.
Central Elétrica de Furnas. Iniciada em 1958, entrou
É em consequência dessas ações que o setor
em operação em 1963 para atender aos três principais
elétrico brasileiro sofre sua primeira crise na década
centros consumidores do país, as cidades de São Paulo,
de 1940. O Estado encontrava dificuldades em
Rio de Janeiro e Belo Horizonte.
regulamentar o setor pela forte presença de capital
estrangeiro no controle. As regras que começavam a
elaborou um projeto de desenvolvimento do setor
surgir não privilegiavam tanto as companhias como
elétrico, o que propiciou a criação de parte das
a fraca legislação da República Velha e aí surgiu o
empresas estaduais fornecedoras de energia elétrica. É
conflito.
nesse período também que a população urbana começa
a superar a rural, as indústrias se multiplicaram e a
As empresas, entretanto, brigavam por melhores
Juscelino, que governou o país de 1956 a 1961,
tarifas que, com o início da regulamentação, passaram
energia elétrica tornava-se imprescindível para a vida
a ser estipuladas pelo governo. Elas não enxergavam
moderna.
campo propício para aumento no investimento no setor, graças ao clima de incertezas políticas e devido à
Com regras e com padrões
ascensão de grupos nacionalistas.
36
As empresas se retraíram, reduzindo investimentos,
As regras para organização do setor elétrico
e o governo não tinha técnica e recursos financeiros
não dizem respeito somente a interesses privados
para tocar sozinho o setor. Muitos contratos de
ou nacionais e a questões políticas. Era necessário
concessão estavam para vencer, então as companhias
regulamentar o setor para que ele mesmo ampliasse
pararam de investir em novas usinas, “quando começa
sua abrangência e crescesse.
a se ter constantes faltas de energia no período de
Segunda Guerra”, comenta Alexandre Saes. Em
e estados, importante para o próprio crescimento da
seguida, o fim da guerra fez as empresas estrangeiras
indústria elétrica no Brasil, mostrou-se condicionante
realocarem seus investimentos para seus países de
para a definição de padrões de trabalho. Isso porque,
origem.
no início da instalação das concessionárias, não
havia definições de qual frequência e tensão elétrica
Essa situação fez o Estado tomar mais ações
A interligação das usinas geradoras, entre cidades
regulatórias a fim de impedir o engessamento do
as concessionárias deveriam seguir. Enquanto a
setor. Assim, a União ampliou suas atribuições e
industrialização era pequena, isso não representava
passou a investir diretamente na geração elétrica. Foi
tanto problema para as fornecedoras e para os
nesse período, em 1946, que o governo apresentou
consumidores.
o “Plano Nacional de Eletrificação”, que propôs a
“Inicialmente foram adotadas duas frequências,
1990-2000
Crise no setor. A possibilidade de falta de energia passa a ser uma realidade. Privatizações se apresentam como alternativas. Início da reforma do setor elétrico brasileiro, com as leis nº 8.631, de 1993, que extingue a equalização tarifária vigente e cria os contratos de suprimento entre geradores e distribuidores, e nº 9.074, de 1995, que cria o produtor independente de energia e o conceito de consumidor livre. Pela Lei nº 9.427, de 26 de dezembro de 1996, é instituída a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Em 1996 é implantado o projeto de reestruturação do setor elétrico brasileiro (Projeto RE-SEB), coordenado pelo MME. Em 1997, a lei nº 9.433, de janeiro de 1997, institui a Política Nacional de Recursos Hídricos e cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Ainda em 1997, o decreto nº 2.335, de 6 de outubro, aprova a estrutura regimental da Aneel. A lei nº 9.648, de 27 de maio de 1998, cria o Mercado Atacadista de Energia (MAE) e o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).
cuja escolha dependia dos geradores comprados para
“que temos o início da interligação dos sistemas, por
as usinas geradoras. Para o cidadão comum, que usava
meio de linhas de transmissão de energia a longas
a eletricidade para iluminação residencial ou pública,
distâncias, que hoje atinge quase todo o país”, relata o
tanto fazia já que as lâmpadas acendiam com qualquer
advogado e engenheiro eletricista Moacir Fischmann.
frequência, mas esta tinha importância para os motores e pouca gente os usava”, explica o engenheiro
Aumentando as distâncias
eletricista, ex-diretor de Potência do Instituto de Energia e Eletrotécnica, da Universidade de São Paulo
(IEE/USP), Duílio Moreira Leite.
elétrica, não só nos Estados Unidos, com Edison, como
também as primeiras realizadas no Brasil, eram feitas
Os dois principais centros econômicos brasileiros
As experiências iniciais de geração de energia
utilizavam padrões de frequência diferentes. As
com corrente contínua (CC), na segunda metade do
usinas montadas pela Light de São Paulo tiveram
século XIX. Mas a corrente nessa forma trazia algumas
geradores comprados dos Estados Unidos e, por isso,
limitações em termos de transmissão de energia porque
elas funcionavam em 60 Hz, enquanto as usinas da
ela gerava grandes perdas elétricas a longas distâncias.
Light do Rio de Janeiro tinham equipamentos vindos
Por isso, um dos principais problemas da eletricidade
da Europa, que geravam energia na frequência de
nesse período era aumentar seu alcance e ampliar sua
50 Hz. “Até então, a frequência das empresas era
utilização.
individualizada pela própria área de concessão. Ela
não era interligada”, explica o ex-chefe de seção do
alternada, entre o fim da década de 1880 e o início
departamento de operação da Companhia Paulista de
de 1890, por Nikola Tesla, foi possível se transmitir
Força e Luz (CPFL), Douglas Guzzo.
energia elétrica a longa distância sem grandes perdas.
O engenheiro e historiador Gildo Magalhães, em
Quando a industrialização se acentuou, as cidades
Só com o desenvolvimento comercial da corrente
cresceram e a interligação dos sistemas elétricos se
seu livro “Força e luz: eletricidade e modernidade
tornou cada vez mais necessária; foi preciso definir
na República Velha”, apelida essa capacidade de
um padrão. A escolha foi feita pelo padrão do estado
“transmissibilidade”. Isso significa que a corrente
que tinha maior quantidade de indústrias, no caso
alterada é transmissível e transportável a grandes
São Paulo, para tentar minimizar os possíveis custos
distâncias com baixas perdas. Aponta ainda essa
de alteração. Os equipamentos industriais, se não
característica como um dos fatores determinantes para
trabalhassem na frequência correta, funcionavam mal
a aceleração da difusão dos usos da eletricidade.
e apresentavam problemas, mais do que poderiam
apresentar aparelhos eletrodomésticos, que ainda
aumenta-se a tensão elétrica para valores muito
eram pouco usados e tinham custo menor do que os
elevados, a fim de reduzir as perdas no transporte,
industriais.
e depois a reduz novamente para distribuir para os
consumidores. Isso permitiu que o campo de uso da
É com o surgimento da Eletrobrás, em 1962, e a
entrada em operação da Usina de Furnas, em 1963,
Na transmissão de energia a longas distâncias,
eletricidade fosse ampliado e que usinas maiores,
37
regulamentação Linha
2000-2010
do tempo Principais aspectos da evolução das regras para o setor elétrico brasileiro em mais de um século de história
Resolução da Aneel nº 456, de 29 de novembro de 2000, estabelece as condições gerais de fornecimento de energia elétrica. Em maio de 2001, governo adota medidas emergências para tentar reduzir risco de colapso de oferta de energia e cria a Câmara de Gestão da Crise de Energia (CGCE). O racionamento energético, no mesmo ano, reforça a necessidade de reorganização do setor. A reestruturação começa com as leis nº 10.847, que autoriza a criação da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e nº 10.848, que dispõe sobre a comercialização de energia elétrica. Ambas as leis são de 15 de março de 2004. O decreto nº 5.175, de 9 de agosto de 2004, cria o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) e, dois dias depois, o decreto nº 5.177 dispõe sobre a organização, as atribuições e o funcionamento da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). O decreto nº 5.184, de 16 de agosto de 2004, cria efetivamente a EPE, responsável pelo planejamento do setor. Fontes: Fascículo “Direito em Energia Elétrica”, de Marcelo Gastaldo, publicado na revista O Setor Elétrico; livro “Força e luz: eletricidade e modernização na República Velha”, de Gildo Magalhães, e a apresentação “Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro: Desafios e Perspectivas”, de Amilcar Guerreiro.
afastadas das cidades, fossem construídas. A elevação
a ser uma realidade. Então, ficou clara a necessidade de
da tensão contribui ainda para a redução dos custos
a área energética brasileira ser renovada.
de distribuição, sendo, no final da cadeia, repassado
aos consumidores tanto residenciais quanto comerciais
privatizações que começaram na era Thatcher-Reagan,
e industriais. Se a corrente contínua fosse utilizada,
também alcançando o Brasil. Começou então um
o custo final para o consumidor poderia ser maior,
processo de desestatização e reestruturação do setor,
devido ao custo mais elevado para transmiti-la.
separando as atividades de geração, transmissão,
distribuição e comercialização de energia elétrica.
Para as tensões também foram definidos padrões.
O mundo, de modo geral, vivia uma onda de
Para baixa tensão, no Brasil podem ser encontradas
tensões monofásicas nas faixas de 110-127 V e de
A lei nº 8.631, de 4 de março de 1993, extinguiu a
220-240 V. Duílio Moreira Leite, relata ainda que “a
equalização tarifária e criou contratos de suprimento
Eletrobrás, na década de 1970, decidiu nomear uma
entre geradores e distribuidores. A lei nº 9.074, de
comissão para escolher um padrão para o Brasil e se
1995, criou o produtor independente de energia e o
chegou à solução mais econômica: 220 / 380 V, que
consumidor livre e, em 1996, foi implantado o Projeto
era adotada na Europa e que foi adotada em muitos
de Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro, o Projeto
estados. Mas não se podia de uma hora para outra
RE-SEB, que, sob coordenação do Ministério de Minas
trocar a tensão em que havia um número muito maior
e Energia, reforçou a necessidade de programar a
de consumidores, em São Paulo, principalmente”.
desverticalização das empresas de energia elétrica.
Desverticalização do setor
Em 1993 houve o primeiro passo nesse caminho.
Outra mudança significativa para o setor aconteceu
em 2004 quando foi promulgada a lei nº 10.848, que é o marco legal que dispõe sobre a comercialização
As primeiras empresas de eletricidade geravam,
de energia elétrica. O novo modelo define ainda a
transmitiam e distribuíam a energia para os
convivência de empresas estatais e privadas, que passam
consumidores. Por conta das crises do petróleo,
a ser divididas por atividade (geração, transmissão,
em 1973 e 1979, e de outros fatores, como o alto
distribuição, comercialização, importação e exportação).
serviço da dívida externa (juros) atribuído às grandes
Acentuam-se ainda os ambientes livre e regulado de
hidrelétricas – especialmente Itaipu – e a proibição
comercialização de energia elétrica.
de empréstimos visando ao setor elétrico imposta pelo Banco Mundial , o governo brasileiro perdeu capacidade de mobilizar recursos para investir no setor elétrico exatamente depois de centralizar todo o comando nele. Com isso, o setor começou a apresentar sérias dificuldades financeiras, durante as décadas de 1980 e 1990. Como não havia recursos para investir no setor, a possibilidade de faltar energia no país começou
38
Pesquisa: • Direito da eletricidade: teoria geral e parte prática Walter T. Alvares, Casa do Estudante do Brasil. • Direito em Energia Elétrica Marcelo Machado Gastaldo, Revista O Setor Elétrico. • Força e luz: eletricidade e modernização na República Velha Gildo Magalhães, Editora Unesp.
Da
normalização para a regulamentação
Para garantir a organização e a integração das concessionárias, além
de permitir a expansão do setor elétrico brasileiro, foi necessário definir regras de funcionamento para as empresas, que estabelecessem padrões de funcionamento e atuação. Mas essas ações poderiam encontrar entraves se os produtos do setor elétrico não fossem normalizados, adotando padrões de tamanho, material, resistência, entre outros. Isso porque, sem um padrão construtivo, eles estariam sujeitos a variações de fabricação, podendo gerar problemas na instalação, utilização e comercialização. Sem uma norma de elaboração, eles poderiam deixar sua utilização restrita e, sem um padrão, poderiam não ser fabricados em linha de produção em massa. Isso tornaria os equipamentos mais caros para o consumidor no fim da escala produtiva.
Assim, desde cedo, no início da produção industrial em larga escala,
os próprios fabricantes começaram a se mobilizar para criar modelos para seus produtos, que fossem adotados por toda uma categoria e região. Esse processo de normalização foi iniciado, na virada do século XIX para o XX, na Grã-Bretanha, primeiro país a entrar na Revolução Industrial e a sentir necessidade de serem criadas normas nacionais. Foi criado, em 1901, o Engineering Standards Committee, para definir os padrões nacionais para engenharia e, três anos depois, nascia a Comissão Eletrotécnica Nacional, a IEC, definido normas e padrões para os equipamentos elétricos.
Para o mercado brasileiro poder acompanhar os acontecimentos da
Europa, foi criado, ainda em 1908, o Comitê Brasileiro de Eletricidade, Eletrônica, Iluminação e Telecomunicações (Cobei), que tem como objetivo incentivar e promover o desenvolvimento e difusão da normalização técnica no Brasil. Entre 1938 e 1939, a ideia de criar uma entidade nacional de normalização ganhou força no país e acabou dando origem, em 1940, à Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
Em 1944, a Organização das Nações Unidas (ONU) criou o Comitê
de Coordenação de Normalização e, dois anos depois, representantes de 25 países se reuniram para criação de uma organização internacional que facilitasse a coordenação e a harmonização de normas industriais entre os diversos países. Como conclusão da discussão, foi criada a Organização Internacional de Normalização, a ISO.
Entretanto, a primeira iniciativa do governo brasileiro nesse
campo só veio 70 anos depois do início da criação das entidades de normalização. Pela lei nº 5.966, de 11 de dezembro de 1973, foi criado o Sistema Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Sinmetro), que é composto por diversas organizações, dentre elas o Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro). Com o passar dos anos, o setor foi ganhando cada vez mais órgãos para auxiliar na definição de normas e o setor elétrico conserva até hoje o posto de um dos segmentos mais organizados e normalizados do ramo industrial.
39
distribuição
Por Bruno D’Angelo
ELETRICIDADE E
A história do desenvolvimento do sistema elétrico brasileiro: das iniciativas privadas esparsas a uma complexa organização e controle automatizado com forte intervenção do governo federal
Quando a eletricidade
deixou de ser algo restrito à alimentação de máquinas, transportes coletivos e à iluminação de pequenas praças públicas e começou a ganhar o mundo, alimentando residências, estabelecimentos comerciais e indústrias, sua implantação, gerenciamento e controle tornou-se um problema estratégico para as empresas privadas investidoras e para o poder público: como fazer para produzir energia elétrica em grande quantidade? E, mais ainda, como fazer para transportar essa energia a muitos lugares e a distâncias não imaginadas até então?
Energia elétrica tornou-se sinônimo de progresso
da humanidade. Em curto espaço de tempo e até os dias atuais, todas as atividades do homem, direta ou indiretamente, dependem dela a ponto de ser impensável ver-se destituído da eletricidade e de seus benefícios.
40
PROGRESSO
Dessa maneira, ao se descobrir o real alcance
primeira usina geradora de eletricidade do mundo.
da energia elétrica no final do século XIX e começo
Concomitantemente, com o intuito de solver a
do século XX, fizeram-se prementes rápidas
questão do transporte de energia elétrica germânico,
transformações para que mais pessoas recebessem as
é construída na Alemanha a primeira linha de
melhorias propiciadas por ela. Essas transformações
transmissão de corrente contínua a longa distância. O
foram desde desenvolvimentos tecnológicos, na
entrave se deu justamente no que concernia ao tipo
tentativa de conceber uma geração e distribuição
de corrente em que era transmitida a eletricidade,
de eletricidade mais eficiente, com menos perda
isto porque a corrente contínua, dominante, até
e dissipação de calor, até a concepção de normas,
aquele momento, demonstrou-se, na prática, não
órgãos governamentais e leis que regulamentassem a
muito adequada, apresentando tensão e rendimento
novidade que surgia.
insuficientes.
A dificuldade era então reunir todos os atores
A questão envolvendo corrente contínua e
a fim de colocar a eletricidade em prática no Brasil,
corrente alternada já preocupava os cientistas desde o
um país com características peculiares: território de
surgimento dos primeiros motores elétricos. Buscando
tamanho continental e hidrografia privilegiada para a
resolver a questão do comutador que tornava o
geração de energia elétrica. Junte a isso o fato de, no
equipamento complicado, além de tentar deixá-lo
início dos anos 1900, o país ser um arremedo europeu,
mais barato e eficiente, diversos inventores, dos
com uma quase não existente industrialização,
quais se pode destacar o italiano Galileu Ferraris, o
comandado por uma elite paulistana enriquecida pela
servo-croata Nicolau Tesla e o russo Michael Von
agricultura cafeeira.
Dolivo-Dobrowolsky, começaram a trabalhar não
somente no aperfeiçoamento dos motores de corrente
Como visto, as coisas não eram assim tão fáceis de
arrumar e foi preciso, no início, maciça ajuda externa
contínua como em motores funcionando com sistema
e investimentos na área de formação e capacitação
de corrente alternada.
de engenheiros para que o Brasil entrasse de vez na
era da eletricidade, da luz elétrica. Antes de entrar
apresentar uma saída relevante foi o italiano Ferraris.
nos pormenores dessa “epopeia”, contudo, é preciso
Ele construiu um motor de duas fases com um cilindro
fazer um pequeno recuo e mostrar como os inventores
de cobre como rotor, mas logo descobriu que sua
estrangeiros resolveram, primeiro, os seus problemas
invenção apresentava um sério problema: seu motor
com a transmissão da eletricidade.
de campo girante não podia fornecer uma potência
A solução alternativa
mecânica maior do que 50% em relação à potência elétrica consumida.
Com o sucesso do motor elétrico desenvolvido
No tocante à corrente alternada, o primeiro deles a
Assim como o inventor italiano, Tesla se debruçou
sobre a causa da corrente alternada. Sua pesquisa
pelo cientista alemão Werner Von Siemens e com
a respeito de um sistema de transmissão de energia
os crescentes aprimoramentos da nova máquina, o
elétrica que prescindisse dos complicados comutadores
processo de industrialização baseado no motor elétrico
resultou em um motor de indução de duas fases que
se espalhou rapidamente, o que gerou um novo desafio
não apresentou bom rendimento assim como o motor
ao empresariado da época: como transmitir energia
de Ferraris, mostrando-se também inviável do ponto
elétrica para regiões cada vez mais distantes que
de vista econômico.
começavam a se industrializar?
parecia estar com os dias contados, mas graças a
Para suprir a demanda crescente, Thomas Alva
Edison constrói, em 1882, nos Estados Unidos, a
A alternativa do motor de corrente contínua
Dobrowolsky ela ganhou novo fôlego para ressurgir de
41
distribuição
uma vez por todas. Trabalhando em cima do sistema de Tesla, o engenheiro russo desenvolveu um motor trifásico com potência contínua em torno de 80 watts e rendimento de, aproximadamente, 80%. Impulsionado pelo sucesso de sua invenção, Dobrowolsky pôde sustentar que economicamente os sistemas de corrente alternada trifásica eram os mais viáveis.
Como explica o engenheiro eletricista e professor
emérito da Escola Politécnica da USP, Ernesto João Robba, o emprego de corrente alternada, em substituição à corrente contínua, e a invenção do transformador, em 1882, que permitiu elevar ou reduzir o valor eficaz da tensão elétrica, foram os dois inventos que abriram novas perspectivas para o transporte de energia.
No início, a superioridade da corrente alternada
diante da corrente contínua não era tão evidente assim, como se vê pelo sistema elétrico usado pelas principais cidades do mundo, no final do século XIX. Berlim, Paris e Nova York, estimuladas pela peculiaridade da corrente contínua, que permitia o armazenamento em baterias e garantia, assim, o abastecimento de energia no caso de distúrbios no gerador, já haviam decidido pelo sistema de corrente contínua.
Contudo, as deficiências da corrente contínua,
o fato de não poder ser transformada em corrente alternada para transmissão ainda fazia uma dúvida pairar sobre as cabeças de seus adeptos. A cidade de Frankfurt, na Alemanha, por exemplo, discutia fortemente qual sistema era o melhor, ponderando os prós e os contras de cada um. A luz na discussão surgiu em 1891, em uma feira internacional de materiais elétricos realizada na cidade, quando foi apresentada com grande sucesso uma linha de transmissão em corrente alternada que ligava as cidades de Lauffen e Frankfurt. Com 175 Km de extensão, ela tinha um rendimento aproximado de 75%.
O sistema exposto na feira alemã funcionava
da seguinte forma: um gerador alimentado por uma turbina hidráulica com potência de 200 kVA produzia energia elétrica para Lauffen. Quando passada para a linha de transmissão, um transformador aumentava a tensão do gerador elétrico para 25 mil volts. Em Frankfurt, outro transformador reduzia novamente a tensão para 65 volts. A energia fazia funcionar
42
um motor de 100 kW, desenvolvido pelo russo Dobrowolsky; este acionava uma bomba de água que alimentava uma cachoeira artificial construída no pátio da feira de materiais elétricos.
Diante dessa demonstração bem-sucedida, a
empolgação foi grande, mas se engana quem acreditou que a escolha pela corrente alternada havia sido feita. A discussão a respeito do melhor sistema de energia elétrica de Frankfurt ainda duraria mais dois anos, até que a Câmara de Vereadores da cidade decidiu por uma margem pequena de votos pela utilização da corrente alternada. Após isso, foi uma questão de tempo até que outras cidades, não só alemãs, mas como do restante da Europa, se rendessem ao sistema de corrente alternada.
Houve, entretanto, certa resistência em modificar a
corrente contínua por corrente alternada. Na Suíça, por exemplo, no final do século XIX, apesar de já haver uma superioridade do novo sistema, as coisas não funcionavam como se esperava. Para se ter uma ideia, das 80 usinas elétricas construídas até aquele momento na Suíça, a maioria, 36, era para funcionar em sistema de corrente alternada, mas monofásicas ou bifásicas. As usinas de corrente alternada trifásica eram apenas 23, diante de um número quase igual de usinas de corrente contínua: 21.
Um dos principais países da Revolução Industrial,
os Estados Unidos, também ficou reticente no começo sobre qual sistema elétrico escolher. A grande dúvida era em relação ao número de fases que devia ser adotado. Mas depois da ampliação da usina hidrelétrica de Niágara, ficou mais fácil se render a eficiência do sistema de corrente alternada trifásica. Não obstante a desconfiança, a corrente alternada acabou vencendo a batalha. Após o desfecho da Primeira Guerra Mundial, dois terços de energia consumidas pelos países industrializados – Inglaterra, Alemanha, França e Estados Unidos – já era por meio do sistema de corrente alternada.
Dom Pedro II e burguesia cafeeira
Enquanto nos países europeus mais ricos e nos
Estados Unidos, uma indústria da eletricidade já se consolidava, no Brasil, as mudanças nesta área caminhavam a passos lentos conforme as iniciativas
esporádicas do monarca Dom Pedro II. Isto porque,
seu potencial hídrico sem medo de perdas elétricas.
ele desejava provar à sociedade brasileira, já
Entretanto, longe do que se vê hoje, as primeiras
descontente com o regime, que podia cumprir um
usinas hidrelétricas apresentavam potências reduzidas,
duplo papel simultâneo: ser o baluarte da tradição e
o suficiente para suprir áreas específicas, particulares,
um incentivador de avanços científicos. Imbuído desta
na sua maioria, para uso comercial.
certeza, o imperador brasileiro trouxe para o Brasil
algumas novidades que circulavam na Europa, entre
hidrelétrica brasileira foi a Usina de Ribeirão dos
elas, a luz elétrica.
Infernos, em Diamantina, Minas Gerais. Ela era
composta de uma caixa de força com dois geradores
As pioneiras ações de Dom Pedro II no que
De acordo com Penteado Jr. e Dias Jr., a primeira
concernia à iluminação por meio da eletricidade
de 6 kW. “Sendo significativo o fato de que eles eram
se restringiram a áreas específicas e de pequenas
acionados por uma turbina hidráulica de madeira”,
dimensões. Em 1879, por exemplo, ele inaugurou um
afirmam. Uma linha de transmissão de apenas 2
sistema de iluminação pública na antiga Estação da
km levava eletricidade para acionar duas bombas
Corte da Estrada de Ferro Central do Brasil, no Rio
de desmonte a jato em um terreno de extração de
de Janeiro, em que trocou 46 bicos de gás por seis
diamantes.
lâmpadas de arco voltaico. Dois anos mais tarde, o
Campo de Santana, também no Rio de Janeiro, recebeu
já predominava sobre a termelétrica, foi quando
mais 16 lâmpadas de arco voltaico e, no mesmo
começaram a surgir as primeiras empresas de
período, uma exposição industrial foi iluminada com
eletricidade do Brasil. Em um primeiro momento,
60 lâmpadas da companhia Edison Electric.
iniciativa de pequenos grupos de homens
com dinheiro. Em São Paulo, por exemplo, os
Em pouco tempo, os projetos foram aumentando
Na virada do século XIX, a energia hidrelétrica
de tamanho e, em 1883, Campos, no Rio de Janeiro,
empreendimentos elétricos tiveram início com uma
tornou-se a primeira cidade da América do Sul a
burguesia cafeeira, que estimulada por viagens a
receber iluminação pública por vias elétricas. Logo
Europa, decide trazer para o Brasil a luz elétrica;
depois, em 1884, foi a vez da cidade de Rio Claro, em
símbolo de progresso.
São Paulo, receber 10 lâmpadas de arco voltaico para
iluminação pública. Cabe destacar aqui, que todos
euforia a nova invenção, há relatos de que, em 1907,
estes primeiros empreendimentos elétricos brasileiros,
na festa de inauguração da iluminação pública de
de caráter limitado, foram alimentados por energia
Botucatu, cidade interiorana de São Paulo, foram
termelétrica; tecnologia dominante na ocasião.
armados dois coretos na praça principal da cidade
onde tocaram a Banda da Força Pública e a banda
Conforme o engenheiro eletricista Aderbal
Para se ter uma ideia de como era recebida com
A primeira hidrelétrica
Penteado Jr. e o historiador José Augusto Dias Jr.,
local. Houve queima de fogos de artifício e a curiosa
no livro História da Técnica do e da Tecnologia no
montagem de uma réplica de cerca de 10 metros da
brasileira foi a
Brasil, a opção pela termelétrica pode ser explicada
Torre Eiffel, fato que pode ser explicado: no ano de
também pela dificuldade tecnológica de transmissão
1900, a estrutura ganhou uma portentosa iluminação
a grandes distâncias. O País enfrentava praticamente
elétrica, acontecimento que se tornou mundialmente
os mesmos problemas dos estrangeiros: o sistema de
famoso.
Usina de Ribeirão dos Infernos, em Diamantina (MG),
corrente contínua impossibilitava alterações de níveis de tensão e aumentava as perdas durante o processo.
A chegada das estrangeiras
Dessa forma, havia uma limitação quanto ao alcance da área de influência da usina geradora de energia.
Estas precisavam ficar perto dos centros de consumo,
eram regionais. Em outras palavras, não havia
ou seja, longe de aproveitamentos hidrelétricos.
uma organização e nem um controle por parte do
incipiente governo da república. Os empreendimentos
Com o surgimento de geradores de corrente
As empresas elétricas do início do século XX
alternada e outros aprimoramentos que tornaram estas
se faziam por acordos contratuais entre as prefeituras
máquinas mais eficientes, o Brasil conseguiu utilizar
e as empresas. Os equipamentos para a efetuação
composta de uma caixa de força com dois geradores de
6 kW. 43
distribuição
O Grupo Light pode ser considerado um
Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL), localizada
naquela época, até simples lâmpadas necessitavam de
no interior de São Paulo.
importação. A situação do sistema elétrico brasileiro
começou a encorpar com a chegada, em 1899, na
à estruturação e à organização de seu sistema elétrico,
cidade de São Paulo, da companhia canadense The São
progredindo também tecnologicamente. Controlando
Paulo Tramway, Light & Power Co.
as pequenas empresas brasileiras, a Amforp unificou
sistemas que apresentavam grandes diferenças no que
Conforme o professor Robba, a empresa
E graças a elas, o Brasil deu um grande passo rumo
estrangeira, por meio de seus investimentos em
se referia a tensão e frequência utilizadas, contribuindo,
usinas hidrelétricas, conseguiu fazer o que até
dessa forma, para a normatização e padronização
aquele momento os empresários brasileiros não
técnica e administrativa do setor elétrico brasileiro, que
haviam sido capazes de fazer: implantar um serviço
saía de um agregado de pequenas companhias, para
completo de energia elétrica na cidade de São Paulo;
uma rede integrada sob a tutela da CAEEB.
não, apenas, em iluminação pública, mas também
na movimentação de bondes e eletrificação de
de frequências diferentes no Brasil também ocorreu
residências e indústrias.
entre a Light e a Amforp, no Estado do Rio de
Janeiro, em 1930. A interligação tinha como
Os primeiros investimentos maciços em serviços de
A primeira interligação com sistemas elétricos
geração, transmissão e distribuição de energia elétrica
objetivo transmitir energia da Ilha dos Pombos,
foram responsabilidade da Light. Como a demanda por
região alimentada pelo sistema Rio Light em 50 Hz
energia em São Paulo crescia de forma acelerada, no
para Niterói Petrópolis e outras cidades fluminenses,
início do século XX, foi necessário que a companhia
que funcionavam no sistema de 60 Hz da Amforp.
canadense construísse uma série de hidrelétricas e
Para tanto, foi construída a subestação conversora
redes de distribuição e transmissão. Destaque para
de Rio da Cidade, em Petrópolis, que possuía
usina de Paranaíba, o primeiro investimento da Light
duas unidades conversoras de 3 MW e tinha suas
na cidade. Inaugurada em 1901, no rio Tietê, a usina
transferências de energia controladas a distância por
possuía duas unidades geradoras de 1,0 MW. De
meio de sinais enviados por linha telefônica.
acordo com Robba, estas eram as maiores potências
unitárias do mundo na época.
causa da revolução de 1930 que conduziu Getúlio
Vargas ao poder, a subestação foi inaugurada para
Não demoraria muito, apenas quatro anos, de fato,
A curiosidade da interligação é que, por
dos responsáveis
e a Light aportaria na cidade do Rio de Janeiro, onde
funcionar no sentido diferente do previsto. A Ilha
inauguraria, em 1908, a usina hidrelétrica de Fontes,
de Pombos havia sido dominada pelos revoltos e
pelo grande
com extraordinária potência instalada de 24 MW. De
sua energia parcialmente cortada, dessa forma, a
acordo com o professor da Poli, o Grupo Light pode
subestação foi posta para funcionar e converter
ser considerado um dos responsáveis pelo grande
energia da Amforp para o atendimento da Rio Light.
desenvolvimento populacional e industrial do eixo
Outras interligações entre sistemas elétricos foram
Rio - São Paulo, já que foi a empresa canadense quem
efetuadas, nos últimos anos da República Velha,
industrial do eixo
estruturou o sistema elétrico das duas cidades.
mas sempre de caráter emergencial, não resultando,
Rio – São Paulo,
necessariamente, no estabelecimento de uma
os serviços elétricos com outras inúmeras empresas
desenvolvimento populacional e
já que foi ela quem estruturou o sistema elétrico das duas cidades.
44
do trabalho eram todos adquiridos no exterior;
Até o final da década de 1920, a Light dividia
de capital nacional, mas era a única companhia estrangeira no País. O quadro mudou com a chegada,
operação coordenada entre empresas.
Intervenção do governo
em 1927, da empresas norte-americana, American and Foreign Power Co. (Amforp), que, por meio
da Companhia Auxiliar de Empresas Elétricas
elétrico brasileiro, ou melhor, fizeram-no existir.
As companhias estrangeiras ajeitaram o setor
Brasileiras (CAEEB), assumiu o controle de empresas
Aterrissaram no Brasil, com o intuito de expandir
de eletricidade regionais, tais como a Companhia
seus mercados consumidores e em busca de lucros e
Energética da Bahia (Coelba), em Salvador e a
fizeram o governo brasileiro perceber a relevância da
eletricidade para economia do País e resolvesse ele
a década de 1950 o Brasil ter serviços de geração,
mesmo colocar a mão na massa e começar a organizar
transmissão e distribuição organizados sob a forma de
o setor, gerindo sua normatização e controle.
sistemas isolados e independentes.
Quem se encontrava no comando máximo
Por sua vez, o controle cada vez mais rígido
do País, na época, início da década de 1930, era
do Governo Federal, em específico, a questão do
Getúlio Vargas, líder gaúcho de uma revolução que
custo histórico prevista pelo Código de Águas,
desmontara a estrutura viciada na qual paulistas
que limitava os lucros das empresas, fez as
e mineiros se alternavam no cargo da presidência
concessionárias estrangeiras resistirem a construir
da República. Vargas assumiu o poder e instaurou
novos empreendimentos. Juntando-se a isso, as
posteriormente a primeira ditadura brasileira; seu
dificuldades da administração federal em aparelhar-
governo se destacou por ser fortemente nacionalista e
se de maneira apropriada para exercer sua atividade
centralizador, características que foram aplicadas ao
fiscalizadora, a aplicação do código ficou muito
segmento de energia elétrica.
tempo em suspenso e atrapalhou o processo de
expansão do sistema elétrico do País.
Não que, anteriormente, o governo não houvesse
feito nada nessa área, mas suas ações se limitaram
à criação de órgãos governamentais para estudos e
abastecimento em 1939, o que obrigou Getúlio Vargas
levantamentos de aproveitamentos hidrelétricos sem
a abrir mão das rígidas exigências legais impostas
força normativa. Já existiam, por exemplo, nesse
às concessionárias estrangeiras, que impediam
período, a Comissão de Forças Hidráulicas do Serviço
a expansão do parque gerador e a interligação
Geológico e Mineralógico do Ministério da Agricultura,
de sistemas elétricos. Com esse afrouxamento
estruturada em 1920, e o Serviço de Águas da Diretoria
normativo, várias interligações foram autorizadas e
de Produção Mineral do Ministério da Agricultura, que
implementadas durante a Segunda Guerra Mundial,
surgiu em 1924.
sob a coordenação do Conselho Nacional de Águas
e Energia Elétrica (Cnaee). Mesmo assim, a crise de
A questão é que somente em 1934 já durante o
Tal situação fez o Brasil passar por uma crise de
Governo varguista, uma ação relevante foi tomada
suprimento de energia em alguns pontos do país
visando a legitimar o poder governamental no
tornou-se cada vez mais preocupante.
que se referia a eletricidade: o Código de Águas,
o primeiro instrumento jurídico que permitiu ao
de maior porte. Foram criados, então, entre outras
governo central intervir no planejamento e no
empresas de energia elétrica: a Companhia Hidrelétrica
controle do setor elétrico.
do São Francisco, (Chesf), em 1945, que foi responsável
pela construção da Usina de Paulo Afonso, no rio São
No início da década de 1940, a regulação e
Era preciso, dessa forma, realizar investimentos
normatização de empreendimentos elétricos brasileiros
Francisco, e pela construção do sistema de transmissão
já se encontravam, em sua maioria, nas mãos
para o suprimento de toda a região nordeste do Brasil;
governamentais, ficando a atuação estrangeira restrita
a Centrais Elétricas de Minas Gerais, (Cemig), em 1952,
a investimentos financeiros.
que foi responsável pela construção da usina de Três
Crise, expansão e interligação
Marias. Além da exploração do Rio Grande, por Furnas, e da construção das usinas do conjunto Jupiá-Ilha Solteira, pela Centrais Elétricas de São Paulo (Cesp).
O duplo pilar em que se baseava o setor elétrico
Como explica o professor da Poli, Ernesto Robba,
brasileiro em meados do século XX, regulação por
o surgimento de grandes usinas hidrelétricas e o
parte do governo nacional e capital oriundo do
esgotamento das reservas hídricas, próximas aos
exterior, fez o sistema elétrico do País se apresentar
centros de consumo, e a consequente exploração
de maneira peculiar e com que, a longo prazo, alguns
de fontes mais afastadas, impunham que o sistema
problemas relativos à geração de energia ocorressem.
de transmissão contasse com reforços no sentido de
No caso dos investimentos estrangeiros, a preferência
permitir sua operação interligada. Contudo, antes, era
por abastecer somente os centros urbanos fez até
preciso superar um obstáculo: as diferentes frequências
45
distribuição
empregadas nas regiões brasileiras. “Havia lugares em
importância para integração do sistema Sul/Sudeste, a
que a frequência era 50 Hz e outros em que era 60 Hz”,
usina hidrelétrica de Tucuruí, situada no rio Tocantins,
comenta. Para solucionar o problema, foi iniciado o
no Estado do Pará, foi deveras importante para a
programa de padronização da frequência, que optou
interligação Norte/Nordeste e, mais tarde, também
por 60 Hz.
para a conexão com o restante do Brasil. A usina
começou a ser construída em 1975 e a primeira turbina
Dos investimentos para conseguir interligar o
sistema elétrico brasileiro, destaca-se o aproveitamento
do empreendimento começou a funcionar nove anos
do potencial hidrelétrico de Furnas (1963) e a
depois, contudo, curiosamente, como era grande
construção de Itaipu, dez anos depois. O projeto
a urgência, em 1981, antes mesmo de iniciadas as
de Furnas incluiu a instalação de 1200 MW e a
atividades de Tucuruí, um circuito de transmissão em
implantação de linhas de transmissão, com 345 kV,
500 kV permitiu a ligação imediata entre as cidades de
ligando Belo Horizonte à capital paulista, passando
Belém (PA), São Luis (MA) e o sistema da Chesf.
pelo Rio de Janeiro. Havia uma crise energética
na região sudeste e Furnas impediu o colapso no
da Eletrobrás, Sebastião da Silva, que participou de
fornecimento de São Paulo e Rio, os dois maiores
todo o processo de construção da usina de Tucuruí,
centros urbanos e industriais do País, na época.
o empreendimento foi importante também para o
Para que a transmissão de Furnas funcionasse
desenvolvimento econômico da região em que foi
perfeitamente, ela passou a contar com um moderno
instalado. “Antes de Tucuruí, não havia nada na região,
sistema de comunicação por microondas, interligando
agora há aeroportos e muito mais infra-estrutura”,
suas usinas e principais subestações.
afirma. Silva comenta também que a indústria de
alumínio da região foi beneficiada porque se utilizou
Já Itaipu, com capacidade de 12.600 MW, o que
Conforme o assistente da diretoria engenharia
representava 70% do parque gerador do país em
da energia elétrica gerada por Tucuruí para processar
1973, época em que foi inaugurada, impôs novos
a bauxita. A propósito, os primeiros contratos de
rumos ao planejamento de expansão dos sistemas do
fornecimento da energia de Tucuruí foram concluídos
Sudeste e do Sul. Por causa dela, foi instituída, pela
com empresas produtoras de alumínio: a Alcoa, do
Lei Itaipu, os Grupos Coordenadores para Operação
Maranhão e Albrás, no Pará.
Interligada (GCOI) das regiões Sudeste e Sul, que vieram substituir os antigos Comitê Coordenador da
Os comandos dos sistemas
Operação Interligada (CCOI), que compreendia ou
46
somente a região Sudeste ou a região Sul. Estes grupos
posteriormente foram substituídos pelo Operador
houve uma mudança muito grande no âmbito
Nacional do Sistema (ONS).
administrativo do setor. Em um primeiro momento,
nos idos dos anos 1880, a eletricidade ainda incipiente,
Por isso, Furnas e a Lei de Itaipu são consideradas
Desde o início das atividades elétricas no Brasil,
marcos fundamentais da história da operação dos
não se pode dizer que havia uma estrutura organizada.
sistemas elétricos interligados no País. Furnas, por
Eram iniciativas esparsas de burgueses enriquecidos.
exemplo, foi definida por Juscelino Kubitschek como
Logo, chegaram as empresas estrangeiras, Light e
o centro de gravidade do programa de expansão
Amforp, que ajudaram o Brasil a dar os primeiros
dos sistemas elétricos do Sudeste e elemento-chave
passos rumo a um sistema elétrico mais desenvolvido.
da interligação desses sistemas em um conjunto
integrado. Ambas propiciaram um avanço importante
da República, com seu governo centralizador,
nas conexões e na operação coordenada, entre 1963 e
as companhias do exterior ficaram restritas
1973, época na qual o crescimento do parque gerador
somente ao aporte de capital para a construção de
brasileiro foi significativo, passando de 6.355 MW para
empreendimentos, passando a organização do setor
16.698 MW, sendo que 12.577 MW desse montante já
elétrico para as mãos do governo nacional. Surgem,
pertenciam aos sistemas elétricos interligados do País.
neste momento, os primeiros órgãos normativos,
legislativos e administrativos do segmento elétrico.
Se Furnas e Itaipu são tidas como de grande
Com a chegada de Getúlio Vargas à presidência
Pode-se dizer, no entanto, que a entrada definitiva
necessária a criação de um órgão com mais condições
do País na profissionalização administrativa do
de operar em suma sistema que agora integrava,
setor aconteceu em 1961 com a criação da holding
praticamente, o Brasil inteiro, o chamado Sistema
estatal Centrais Elétricas Brasileiras S.A (Eletrobrás),
Interligado Nacional (SIN).
que nasceu com a função principal de executar a
política do governo do Brasil nos setores de produção,
características peculiares do sistema elétrico brasileiro
transmissão e distribuição da energia elétrica,
e a experiência acumulada pelos anteriores grupos
coordenando e financiando projetos, em todo o país.
e comitês regionais nas atividades de coordenação,
planejamento, programação e supervisão da operação
De acordo com Robba, quando do surgimento
A criação do ONS respeitou, sem dúvida, as
da Eletrobrás, os sistemas elétricos de potência
dos sistemas interligados, tornando mais evidente
brasileiros estavam estruturados como monopólios
ainda o reconhecimento da necessidade de otimização
estatais e federais. Todos eles sob responsabilidade
rigorosa e centralizada da operação hidrotérmica.
da nova holding, que, por sua vez, era diretamente
ligada ao Ministério de Minas e Energia. Neste
território brasileiro, para aprimorar a segurança do SIN,
momento, a Eletrobrás contava com subsidiárias,
o ONS elaborou um relatório estabelecendo um Plano
responsáveis basicamente pela área de geração e de
de Ação que observou a identificação e a melhoria
transmissão, ficando o setor de distribuição a cargo de
das instalações vitais do sistema, a reavaliação dos
concessionárias estaduais.
procedimentos de recomposição e a implantação
dos chamados Esquemas de Controle de Segurança
O quadro se modificou a partir da década de 1990,
Após o blecaute de 1999, que atingiu 70% do
quando houve um boom das privatizações no País. O
(ECS), que tinham o intuito de minimizar os efeitos de
setor elétrico não passou incólume. As subsidiárias da
eventos que eram muito difíceis de ocorrer, mas que se
Eletrobrás, assim como ela própria e as concessionárias
ocorressem teriam grave impacto sobre o fornecimento
de distribuição foram privatizadas, sendo criada para
de energia.
regular o novo sistema que se estruturava a Agência
Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Esta assumia a
de Energia Elétrica (Cepel) foram concebidos novos
posição do Departamento Nacional de Águas e Energia
corredores de recomposição do SIN e revisados os
Elétrica (Dnaee).
procedimentos de recomposição já existentes nas áreas
geoelétricas, como também os processos operativos de
Conforme Robba, a mudança se fez necessária. O
Com ajuda da Eletrobrás e do Centro de Pesquisas
O Estado estava sobrecarregado e o custo da energia para os consumidores
Estado estava sobrecarregado e segundo ele, o custo
tempo real. Já a transferência para o ONS dos centros
da energia para os consumidores finais estava muito
de operação das empresas subsidiárias da Eletrobrás
finais estava muito
elevado. Dessa forma, o antigo monopólio estatal pelo
deu ao operador os recursos de infra-estrutura
qual se caracterizava o setor elétrico foi transformado
imprescindíveis para a realização das funções de
elevado.
em uma grande indústria, com diversos participantes,
coordenação e supervisão da operação em tempo real.
cujo produto é a energia elétrica. Nesta levada, foram
separados também os serviços de geração, transmissão
de Gerenciamento de Energia (Sage), programa de
e distribuição de energia elétrica.
supervisão e controle, que foi desenvolvido pelo Cepel,
em 1999, e possibilitou o ONS receber grandezas
No que concerne ao controle dos sistemas
Junte-se a todo esse complexo, o Sistema Aberto
integrados, a reestruturação do setor também levou a
telemedidas e telessinalizações a intervalos de 10
criação do ONS, que veio substituir os antigos comitês
segundos. Dessa forma, o SIN passou a ter, por parte
coordenadores regionais. Estes tiveram relevante
de seu operador, uma maior qualidade da operação
importância a partir dos anos 1960, em uma época
em tempo real, assim como um suprimento de energia
na qual a integração elétrica do Brasil ainda se
mais seguro e confiável. O ponto é que com essas
limitava a um número restrito de territórios. Com o
novas tecnologias e a bagagem adquirida dos comitês
crescimento do parque gerador brasileiro, que começou
e grupos de coordenação regionais, o ONS pôde
a apresentar usinas com cada vez mais capacidade e os
controlar bem sucedidamente, pelo menos até agora, o
crescentes investimentos em linhas de transmissão, foi
sistema interligado brasileiro.
O antigo
monopólio estatal pelo qual se caracterizava o setor elétrico foi transformado em uma grande indústria, com diversos participantes, cujo produto é a energia elétrica.
47
sob um olhar
José Roberto Cardoso
OERSTED E O SUCESSO PROFISSIONAL
48
Comecei a escrever este texto no dia 14
divergiu: enquanto Anders tornava-se juiz de
de agosto. Embora poucos saibam, esta é uma
direito, chegando até a ocupar, ocasionalmente,
data marcante para a Engenharia Elétrica. Neste
o posto de primeiro-ministro, Hans, por sua vez,
dia do ano de 1777, nascia em Rudkøbing, na
resolveu ser cientista.
Dinamarca, Hans Christian Oersted.
de Immanuel Kant (1724-1804), para o qual
A vida de Hans Christian Oersted foi,
Oersted era fascinado pela filosofia germânica
no mínimo, curiosa. Filho mais velho de um
somente a razão não é suficiente para se chegar
farmacêutico, teve sua educação fortemente
a um completo conhecimento da natureza, como
influenciada pelos seus vizinhos, que tomavam
era preconizado. Afirmava que é necessário um
conta dele e de seu irmão mais novo, Anders
tratamento cuidadoso das pesquisas para se
Sandoe, enquanto seus pais ganhavam a vida.
atingir o objetivo e Oersted seguia à risca este
princípio em seus trabalhos.
O casal que se ocupava da guarda dos
meninos era um alemão, fabricante de perucas,
e sua esposa dinamarquesa, que ensinaram aos
experimentou uma breve atividade profissional
garotos a língua alemã, a religião e também a
em sua área de formação como gerente da “Lion
aritmética. Outro amigo do casal e um padre
Apothecary”, um excelente estabelecimento
os instruíram na multiplicação e na divisão. O
farmacêutico de Copenhagen, ao mesmo tempo
grego e o latim foram ensinados por um gravador
em que exercia um trabalho não remunerado,
em madeiras e o desenho por um padeiro. Esta
ministrando algumas aulas na universidade.
educação não convencional induziu nos garotos
uma sede por conhecimento, como bem descreve
de um conhecido e talentoso filósofo para um
W. A. Atherton no seu livro From Compass to
cientista consagrado, aconteceu quando recebeu
Computer, A History of Electrical and Electronics
uma bolsa de estudos de três anos para viajar e
Engineering.
tomar contato com as personalidades do mundo
intelectual dos países europeus. Ele estava em
Por conta de tudo isso, Hans e Anders eram
Terminado seu curso de graduação, Hans
A virada na vida de Oersted, que passou
inseparáveis, não só nos estudos como também
viagem pela França e Alemanha em 1801 quando
na vida cotidiana que perdurou até a época da
ainda grassava o frenesi científico devido à
universidade. Por influência de seu pai, Hans
descoberta da bateria por Alexandre Volta em
seguiu a carreira de farmacêutico e Anders
1800. Foi neste momento que ele decidiu construir
a carreira do direito, ambos na Universidade
sua própria bateria.
de Copenhagen. Concluídos seus cursos
universitários, o caminho deles, no entanto,
eletroquímica, de modo que permitiu a Oersted
A descoberta de Volta criou também a
Oersted demonstrou que uma corrente elétrica variável (ligando e desligando a bateria) produz um efeito chamado campo magnético, que vai defletir a agulha imantada. Anos mais tarde, começou-se a perguntar se o inverso não seria verdade, isto é, se variandose um campo magnético não seria produzido um efeito de campo elétrico, chamado corrente, o que coube a Faraday demonstrar. Michael Faraday
observar a eletricidade se associando fortemente
daria perante uma plateia.
à Química, deixando de ser uma ciência isolada
e compartimentada. Sua dedução foi ainda
ser fino e ter alta resistência, pois imaginava
mais consolidada ao verificar que um fio fino
que, para conseguir produzir o efeito procurado,
percorrido por corrente elétrica se aquece e
ele deveria estar aquecido. Estava errado! Pois,
pode produzir a luz, levando-o a concluir que a
mesmo com uma pequena corrente fluindo pelo
eletricidade e a luz são resultados das mesmas
fio, um fraco campo magnético foi produzido
forças da natureza.
ao seu redor com intensidade suficiente para a
agulha magnética se mover.
Com todo este embasamento, Oersted começou
Na sua concepção, o fio do circuito deveria
a observar as similaridades entre a eletricidade e
o magnetismo: ambas exibem forças de atração
que mesmo Oersted não ficou totalmente
e repulsão, leu relatos de que após a queda de
convencido de seu resultado. Novos experimentos
um raio, agulhas foram magnetizadas e Franklin
foram então realizados em julho de 1820 com
havia demonstrado a natureza elétrica do raio.
uma bateria mais potente. Mesmo assim foi difícil
Assim, ele não tinha dúvidas de que a eletricidade
para ele acreditar no resultado que observava e
e o magnetismo deveriam também ser produzidos
que daria a ele um lugar especial na história da
pelas mesmas forças da natureza, apesar de, em
ciência. Sua conclusão foi a de que a corrente
1780, Charles Coulomb provar conclusivamente
elétrica produz o magnetismo.
(ele não sabia o quanto estava errado!) que a
eletricidade e o magnetismo eram duas ciências
a eletricidade e o magnetismo, criando a mais
totalmente distintas apesar das similaridades
sofisticada ciência do nosso tempo, denominada
apresentadas.
Eletromagnetismo. O trabalho de Oersted se reflete
em nossos dias, pois foi graças a ele que Ampère
Convicto de suas conclusões, Oersted partiu
O efeito não foi muito dramático, de modo
Este acontecimento foi o marco da união entre
em busca de uma prova de suas intuições. No
descobriu que um condutor percorrido por
inverno de 1819-1820, ele ministrava uma série
corrente elétrica, imerso em um campo magnético,
de aulas a um pequeno grupo de estudantes
está sujeito a uma força, de modo que este efeito
das séries mais avançadas. A experiência que
explorado adequadamente permitiu a invenção
ele desejava realizar era o efeito de um circuito
dos geradores e dos motores elétricos.
fechado sobre a agulha magnética de uma
bússola.
que o sucesso está ao alcance das mãos de
qualquer um, bastando que estejam abertos
A experiência com o circuito aberto havia sido
Gosto de contar esta história para mostrar
realizada exaustivamente, porém sem sucesso.
para o novo, sem preconceitos e juízo de
Não tendo tempo para realizar o experimento
valor. Deem valor à experimentação como
antes de uma palestra, na qual pretendia mostrar
garantia de uma boa conclusão, busquem uma
os resultados obtidos, ele resolveu postergá-lo.
experiência internacional e, por fim, acreditem
No entanto, enquanto ministrava sua palestra
na sua intuição. Esses fatores, aliados a um
sobre outro assunto, ele mudou de ideia e resolveu
comportamento ético irredutível, não há como
realizá-la para a audiência. Pela primeira vez na
não levar ao encontro do tão sonhado sucesso
história da ciência, uma descoberta científica se
profissional.
José Roberto Cardoso é engenheiro eletricista, mestre e doutor em engenharia elétrica. Realizou um pós-doutorado no Labaoratorie d’Electrotechnique de Grenoble, na França e atualmente é professor titular da Escola Politécnica da USP (EPUSP), coordenador do Laboratório de Eletromagnetismo Aplicado e vice-diretor da EPUSP. Foi fundador e presidente da Sociedade Brasileira de Eletromagnetismo por duas gestões e é pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
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