Energia ed 02

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A evolução da aplicação da energia elétrica e suas consequências para a sociedade

Volume 1 Volume 2


carta ao leitor

por Gildo Magalhães

Caro leitor, Neste segundo volume da coleção Energia, apresentamos aos leitores um pouco do que foi a história das empresas que forneciam eletricidade aos consumidores, maravilhados com as novidades trazidas por uma iluminação mais cômoda. Grandes corporações estrangeiras aqui se instalaram a partir da década de 1890 nos principais centros brasileiros, como a Light e Amforp, enquanto uma multidão de pequenas empresas cuidava, muitas vezes de forma precária, do abastecimento das cidades menores. Para entender a presença estrangeira em terras brasileiras, é preciso lembrar que, durante a segunda metade do século XIX, uma aliança estratégica se firmou entre indústria, universidade e grandes bancos. Esse tipo de associação foi uma inovação que surgiu na Alemanha, em que nomes de inventores como Siemens e outros logo se associaram a grandes conglomerados, e em outros países o mesmo perfil empresarial logo se fez notar, não raro em meio a acusações de formação de trustes. A formação de capital permitiu que tecnicamente os motores e geradores fossem se aperfeiçoando, surgindo modelos que ainda hoje estão no mercado. As indústrias e mesmo pequenas oficinas também estavam ansiosas por trocar o vapor pela força motora elétrica, mais flexível e compacta. Logo a eletricidade chegaria ao personagem da vida moderna que estava empreendendo uma emancipação sem precedentes, embora ainda em um papel considerado subalterno: a mulher, que ia à luta pelo direito de votar, estudar e trabalhar. Os eletrodomésticos mudariam a vida cotidiana feminina e de todos de uma forma irrevogável, criando novos hábitos de consumo e lazer. No final do século XIX, o motor elétrico fez sua estreia para tracionar os veículos sobre trilhos que aqui chamamos de “bondes”, quando uma empresa inglesa no Rio de janeiro primeiro explorou o serviço, ainda com tração animal. Da palavra “bond” ou “título” impresso na passagem, criamos o neologismo que marcou gerações, antes que decisões precipitadas trocassem um meio de transporte muito eficaz inteiramente pelos ônibus, até que hoje em dia ele ressurge dentro do conceito de VLT (ou veículo leve sobre trilhos). Uma dificuldade prática logo verificada num país de dimensões continentais como o nosso foi que a disparidade de fornecedores, em função das diferenças nacionais entre os exportadores de materiais e equipamentos elétricos, criava barreiras que impediam a integração das redes elétricas num plano geográfico maior. Corrente contínua ou alternada? Linhas monofásicas, bifásicas ou trifásicas? Qual a tensão para o consumidor? E a frequência? Seria possível uma mesma regulamentação para estados vizinhos da nossa federação? E entre o Brasil e seus vizinhos? Com a República começou ainda outro debate em nosso país: a quem pertenciam as águas dos rios que estavam já sendo destinados para gerar eletricidade, em função dos seus desníveis? A discussão do Código de Águas se estendeu por muitos anos e só foi decidida no primeiro Governo Vargas. Seguiu-se um período em que as companhias estrangeiras e nacionais aqui instaladas não se interessaram em fazer investimentos, resultando em muitos apagões e racionamentos, até que o governo começou a agir, tanto no nível federal, com a criação da Chesf, Eletrobrás, Furnas, quanto no nível dos Estados, com as grandes empresas como Cesp, Cemig e outras que acabaram encampando as empresas privadas, com poucas exceções. A regulamentação do setor se tornou realidade, até que a crise econômica a partir dos anos 1970 e 1980 ensejou a desregulamentação e privatização nos moldes que vivenciamos hoje. Os leitores poderão, com esse número da coleção, formar uma ideia desse processo histórico que se insere em pouco mais de um século da eletrificação no Brasil e ainda saborear algumas histórias pitorescas. Desejamos uma boa leitura – e se não for à luz do dia, que seja com uma ótima iluminação elétrica! Gildo Magalhães Professor livre-docente em História da Ciência na Universidade de São Paulo 2


expediente índice Diretores Adolfo Vaiser José Guilherme Leibel Aranha Gerência operacional Simone Vaiser simone@atitudeeditorial.com.br Coordenação de circulação Emerson Cardoso emerson@atitudeeditorial.com.br Assistente de pesquisa Marina Marques marina@atitudeeditorial.com.br Administração Paulo Martins Oliveira Sobrinho adm@atitudeeditorial.com.br Jornalista responsável Flávia Lima MTB 40.703 flavia@atitudeeditorial.com.br Projeto gráfico e direção de arte Leonardo Piva atitude@leonardopiva.com.br Conselho editorial Cyro Bernardes, Cyro Boccuzzi, Hilton Moreno, Isabel Félix, Gildo Magalhães dos Santos, Márcia Pazin e Sérgio Bogomoltz Reportagem Bruno D’Angelo e Lívia Cunha Revisão Gisele Folha Mós Publicidade Diretor comercial Adolfo Vaiser adolfo@atitudeeditorial.com.br Contatos Publicitários Ana Maria Rancoleta anamaria@atitudeeditorial.com.br César Dallava cesar@atitudeeditorial.com.br Mozart Ramos mozart@atitudeeditorial.com.br Capa e ilustrações internas Poeira Estúdios Impressão Gráfica Ipsis Distribuição Correios

Desenvolvimento e tecnologia 10 As estrangeiras iniciaram o processo de eletrificação nas cidades brasileiras. A Light and Power teve papel fundamental nesse sentido, levando infraestruturas como transporte elétrico e iluminação, além da própria geração de energia elétrica, alterando para sempre a vida da população.

Era da eletricidade

A eletricidade aplicada na realização de força e movimento substituiu o papel então desempenhado pelas máquinas a vapor. Sua chegada foi providencial, tendo em vista a demanda do período por mais equipamentos, mais velocidade de produção e mais produtos disponíveis para consumo.

Cidade em movimento 26 Os bondes elétricos deram início ao transporte de massa no Brasil e levaram progresso e modernidade às regiões por onde passavam, sendo responsáveis pelo desenvolvimento de muitas cidades brasileiras.

Regulamentação

36

O funcionamento do setor elétrico brasileiro, a princípio, deu-se de forma anárquica. A intervenção do governo e a regulamentação apenas começaram a surgir 50 anos depois do início de suas atividades.

Distribuição

46

Com a expansão do sistema elétrico brasileiro, o gerenciamento e o controle dessa estrutura tornaram-se um problema estratégico para as empresas privadas investidoras e para o poder público, que tiveram de se organizar para dar certo.

Sob um olhar Atitude Editorial Ltda. Rua Piracuama, 280 cj. 72 / Pompéia CEP 05017-040 / São Paulo - SP Fone/Fax - (11) 3872-4404 www.atitudeeditorial.com.br atitude@atitudeeditorial.com.br

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A história e o legado de Hans Christian Oersted para a engenharia elétrica mundial contada pelo engenheiro eletricista e professor José Roberto Cardoso. 3


desenvolvimento e tecnologia

Por Lívia Cunha

A eletrificação das cidades brasileiras foi acentuada pela chegada de empresas estrangeiras, como a Light, que alterou para sempre o cotidiano das pessoas. O desenvolvimento do transporte e da iluminação pública foram alguns dos legados para as cidades por onde passou a companhia

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Fundação Energia e Saneamento

A CHEGADA DA ELETRIFICAÇÃO


Pouco mais de 100 anos atrás, quando os

Mas alterações significativas na vida da população

transportes coletivos eram movidos à tração animal – os

brasileira começaram a ser sentidas principalmente a

chamados carris urbanos – e a iluminação pública era

partir de 1900. Isso porque uma das companhias mais

feita a partir da queima de gás ou acendendo lampiões e

marcantes que se instalou no país, a canadense Light,

velas, a eletricidade era uma grande novidade. Talvez a

chegou ao Brasil, mais especificamente aos dois maiores

grande novidade do fim do século XIX e início do XX.

e mais importantes mercados brasileiros: Rio de Janeiro

e São Paulo.

Com a aplicação da ciência a processos industriais,

o mundo assistiu a um grande desenvolvimento

tecnológico, que permitiu o domínio e a aplicação

Light and Power Company Limited, em Toronto. No

comercial da eletricidade, especialmente a partir da

ano seguinte, já teve o nome alterado para The São

segunda metade do século XIX. Nesse período, com

Paulo Tramway, Light and Power Company Limited, e

todas as invenções e os novos processos desenvolvidos,

começou suas atividades na capital paulista. Ela seria

a eletricidade passou a ser associada ao progresso e

responsável por explorar serviços elétricos na cidade

considerada o grande símbolo da modernidade.

que mais crescia economicamente no país, estimulada

A chegada da Light

Em 1899, foi fundada a The São Paulo Railway,

pela grande produção cafeeira do Estado, que marcou o ciclo do café. São Paulo crescia em tamanho, em urbanização, em indústrias. E, para acompanhar esse

As primeiras empresas fornecedoras de energia

desenvolvimento, era necessário que as empresas

elétrica começaram a operar no Brasil entre as décadas

contassem com grande aporte financeiro para investir

de 1880 e 1890. Eram companhias privadas de

na infraestrutura básica do setor.

capital nacional que tinham uma pequena geração de

eletricidade e destino certo: elas alimentavam indústrias

companhia que exploraria, a partir do ano seguinte,

e iluminavam alguns espaços públicos, como estradas

os serviços elétricos na então capital federal, ainda

de ferro e ruas de cidades. Era o que fazia a Companhia

a principal cidade brasileira: a The Rio de Janeiro

Água e Luz do Estado de São Paulo, que tinha a

Tramway, Light and Power Company Limited. As

concessão para explorar o serviço de iluminação pública

pequenas empresas brasileiras fornecedoras de energia

e particular, e o fazia já empregando a eletricidade.

que existiam na época da chegava do grupo Light

ao Brasil foram aos poucos sendo absorvidas pelo

A eletrificação do país só foi intensificada com

Em 1904, foi criada pelo mesmo grupo a

a chegada de grandes empresas estrangeiras, que

grupo canadense, que tinha como objetivo alcançar o

vislumbravam no Brasil um grande mercado potencial

monopólio de serviços oferecidos nos municípios em

para investir seus recursos. Esse processo havia sido

que tinham concessões.

iniciado com essas pequenas companhias nacionais.

Para se ter ideia, a cidade de São Paulo já tinha, em

os principais serviços do início do século: iluminação,

1901, 1.048 consumidores de energia elétrica, em uma

eletrificação, transporte e telefonia. Essas atividades,

cidade de 240 mil habitantes, fornecida por pequenas

oferecidas em sistema de monopólio, permitiram

concessionárias como a Companhia de Água e Luz,

que a empresa alcançasse grande poder econômico e

que depois foi incorporada pela Light de São Paulo.

político, especialmente durante a primeira república

“Entre seus clientes, além dos de São Paulo, estavam

brasileira, conhecida como República Velha, que vai da

também a Câmara Municipal de Casa Branca, no

proclamação, em 1889, até 1930, com a Revolução de

interior paulista, e a Câmara Municipal de Curitiba”,

1930, que instaura o Estado Novo.

relata o historiador Alexandre Ricardi, pesquisador da

Companhia Água e Luz.

da república Campos Sales, autorizava a prestação de

Assim, nas duas cidades, as empresas exploraram

A concessão paulista, assinada pelo presidente

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desenvolvimento e tecnologia

serviços de “linhas de bondes por eletricidade na cidade

Mundial, na década de 1920”, explica o sociólogo e

de São Paulo e subúrbios; produção e distribuição de

doutor em história econômica, Alexandre Saes, que

eletricidade para a iluminação e outros misteres da

desenvolveu uma pesquisa sobre a influência política da

indústria e comércio; assentamento de postes e fios

Light na República Velha. No seu auge, no ano de 1938,

de transmissão de energia elétrica das cachoeiras do

a Light possuía 980 bondes e chegava a transportar um

rio Tietê”. A concessão carioca era ainda mais ampla,

milhão de passageiros por dia.

incluindo a exploração de telefonia. O serviço telefônico da Light do Rio, que utilizava as antigas estações

Iluminando caminhos

manuais, chegou a ser considerado o maior em linha

O escritor e poeta brasileiro Oswald de Andrade escreveu uma série de poemas sobre a modernização da vida na cidade. A reunião deles é conhecida como “Postes da Light”.

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reta do mundo, em que trabalhavam 78 telefonistas.

força motriz de máquinas e equipamentos também era

Mas a exploração do transporte público foi, durante

Investir em energia elétrica para iluminação e em

muitos anos, o principal negócio da Light, porque era o

bom negócio para a Light. Isso porque as empresas

que dava maior lucro. Em 1900, foram inauguradas as

existentes anteriormente ofereciam o serviço ainda de

primeiras linhas de bondes elétricos da cidade de São

maneira incipiente. Como eram companhias pequenas

Paulo, no mesmo ano em que foi assinado o contrato

que geravam eletricidade, também havia pequena

de transporte de passageiros em bondes elétricos por

capacidade de investimento. Assim, com pouco capital,

um prazo de 40 anos de concessão para a companhia

gerava-se pouca energia, que era distribuída para “uma

canadense. Passado o período acordado em contrato,

indústria aqui, para duas ou três pessoas ali, iluminava

no ano de 1947, todo o sistema de transporte coletivo

algumas coisas no centro, mas não conseguia fazer

urbano passou a ser controlado pelo município. Para

muito mais do que isso”, exemplifica Saes.

realizar a gestão dessa área, foi criada a Companhia

Municipal de Transportes Coletivos (CMTC).

pouco mais de 50 anos depois, em 1958, a abrangência

da empresa tinha aumentado mais de 800 vezes. O

Entretanto, até a concessão de transportes passar

Com a chegada da Light, o cenário intensificou-se e

para o controle do governo, a Light, tanto no Rio

braço paulista da Light oferecia energia para 854.926

quanto em São Paulo, dominou o mercado em tudo

consumidores, divulgado, inclusive, em propaganda

relacionado à eletricidade. Apesar de o primeiro bonde

publicitária da época.

elétrico do país e da América Latina ter sido inaugurado,

no Rio de Janeiro, anos antes da criação da Light, foi

iluminação tanto pública quanto privada estava, em

com ela que o transporte fez maior sucesso e ganhou

geral, circunscrito a regiões pontuais no centro do Rio

popularidade. Quando começou a operar, em 1892,

de Janeiro e em São Paulo e a maioria da população

pela Companhia Ferro-Carril do Jardim Botânico,

não tinha acesso aos serviços. Por isso, a Light começou

posteriormente incorporada pela Light carioca, o bonde

a oferecer eletricidade à população, que realmente

elétrico só contava com uma linha e era visto com

se enxergou como parte do processo, assistindo às

receio pela população. Nessa época, ainda dominava o

alterações provocadas pela chegada da empresa, como

transporte movido a tração animal.

relatou o escritor Oswald de Andrade, em seu livro de

memórias: “um mistério esse negócio de eletricidade.

Em 7 de maio de 1900, a recém instalada Light and

Antes da Light, o oferecimento do serviço de

Power inaugurou sua primeira linha de bondes em São

Ninguém sabia como era, caso é que funcionava. Para

Paulo, que fazia o percurso do Largo de São Bento até

isso as ruas da pequena São Paulo de 1900 enchiam-se

a Barra Funda. Também no Rio de Janeiro os bondes

de fios e de postes”.

elétricos foram as prioridades da companhia desde sua

instalação. Tanto é que, a partir de 1905, a empresa

entre as empresas nacionais que antecederam a Light,

começou a substituir os carris urbanos por bondes

era que a companhia canadense possuía conhecimento

elétricos.

e experiência na utilização de fonte hídrica para

geração de eletricidade. E, principalmente, dispunha de

“Quando a Light chegou ao Brasil, o principal

Mas a grande diferença, em termos de iluminação,

negócio dela era o bonde e a principal receita vinha

recursos para fazê-lo em larga escala. Apesar de já terem

dele. A receita da Light só começou a ficar mais

existido empresas que utilizavam quedas d’água para

relevante para energia elétrica depois da Primeira Guerra

gerar energia no Brasil, até o momento, era comum a


Light S.A.

A Usina de Fontes começou a ser construída em 1905, no Rio de Janeiro, e foi inaugurada três anos depois. Com a potência instalada de 24 MW, era a maior usina hidrelétrica do Brasil na época.

Carta

patente da rainha da Inglaterra

O Canadá é uma federação que tem como forma de governo uma monarquia

constitucional e como sistema político uma monarquia parlamentar. O chefe de Estado é a rainha do Reino Unido, hoje a rainha Elizabeth II, enquanto também tem um primeiro-ministro que governa o país, que atualmente é o Stephen Harper.

Na época em que o grupo Light and Power foi criado e depois veio se instalar no

Brasil, o Canadá já era um país independente, desde 1867, mas ainda conservava, por tradição, a figura da rainha da Inglaterra como sua monarca. Por isso, para que a Light pudesse se formar, após definidos os objetivos da empresa e o capital necessário para ser empregado, foi necessário que a rainha Vitória, então monarca inglesa, assinasse uma carta patente de incorporação.

Nela constava detalhadamente os objetivos e as possibilidades de expansão

e atuação da companhia, que estava sendo formada, com base na produção e na distribuição de luz, de calor e energia em todos os ramos relacionados à geração e a utilização da eletricidade.

A produção poderia ser feita por qualquer forma e a distribuição poderia ser

para todos os fins. A carta incluía ainda a possibilidade de atuar e realizar tudo que pudesse ser necessário para concluir seu objetivo, podendo também promover o reconhecimento da companhia em qualquer país estrangeiro.

A Fundação Energia e Saneamento conserva uma cópia da carta patente em seu acervo

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Acervo Fundação Energia e Saneamento

desenvolvimento e tecnologia

Avenida Rangel Pestana em direção ao bairro. Foto de 1911.

“Um mistério esse negócio de eletricidade. Ninguém sabia como era, caso é que funcionava. Para isso as ruas da pequena São Paulo de 1900 enchiam-se de fios e de postes.” Oswald de Andrade, em Um homem sem profissão Sob as ordens de mamãe.

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Funcionários

da

Light

Em 1931, os trabalhadores brasileiros representavam pouco mais do que 50% dos funcionários

totais da São Paulo Light. Os quase 50% restantes era composto por trabalhadores de 36 outras nacionalidades que ocupavam cargos não especializados, identificados como trabalhadores braçais. No início do século XX, em 1901, existiam cerca de 50 mil operários no estado de São Paulo, sendo que os brasileiros representavam menos de 10% do total. A presença de estrangeiros também é tão forte na Light, mesmo em menor proporção, que a companhia publicava anúncios e comunicados em outras línguas para que seus funcionários pudessem compreender.

A grande variedade na composição dos funcionários da companhia, no período, para a historiadora

Ana Elisa Viviani é explicado como reflexo de imigração natural para trabalhar em lavouras de café, em seu estudo “Prontuários dos trabalhadores da São Paulo Light”, realizado para a exposição “Mãos anônimas na construção da metrópole” e publicado no livro Memória Energia. Com a crise da café, na década de 1930, a consequente redução na produção e o reflexo da urbanização e industrialização que a própria inserção da eletricidade possibilitou, esses imigrantes procuraram novos empregos em outros segmentos. Ela relata também que muitos brasileiros que eram funcionários da Light tinham ainda ascendência de outros países. Os poucos empregados especializados, como engenheiros, eram imigrantes “encomendados” para trabalhar especificamente na companhia canadense.

Os dados apresentados por Viviani foram coletados do Relatório do Departamento Pessoal de 1931

e revelam que, logo após os brasileiros, que eram maioria, vinham os portugueses (25,89%) e italianos (10,73%). O restante era dividido em 34 outras nacionalidades. Segundo o relatório, a vertente paulista da Light contava com 3.162 brasileiros. Entre os trabalhadores do período, constavam ainda “grande número de mulheres e crianças operárias”, de acordo com a pesquisadora.

Trabalhadores

da

São Paulo Light (1931)

Nacionalidade

Número

%

Nacionalidade

Número

%

Brasileiros

3162

50,14

Armênios

4

0,06

Portugueses

1633

25,89

Suíços

4

0,06

Italianos

677

10,73

Australianos

3

0,05

Espanhóis

332

5,26

Estonianos

3

0,05

Lituanos

127

2,01

Finlandeses

2

0,03

Alemães

66

1,05

Belgas

2

0,03

Poloneses

46

0,73

Chilenos

2

0,03

Ingleses

38

0,60

Dinamarqueses

2

0,03

Húngaros

36

0,57

Egípcios

2

0,03

Russos

32

0,51

Suecos

2

0,03

Austríacos

30

0,48

Búlgaro

1

0,02

Romenos

24

0,38

Checoslovaco

1

0,02

Americanos

17

0,27

Holandês

1

0,02

Argentinos

11

0,17

Irlandês

1

0,02

Franceses

10

0,16

Japonês

1

0,02

Iugoslavos

9

0,14

Paraguaio

1

0,02

Sírios

8

0,13

Tailandês

1

0,02

Canadenses

7

0,11

Uruguaio

1

0,02

Letões

5

0,08

TOTAL

6306

100

9


desenvolvimento e tecnologia

Revista

Publicada entre os anos 1928 e

1940, a “Revista Light”, periódico mensal da The Rio de Janeiro Tramway, Light and Power Company Limited contou um pouco a evolução urbana que a cidade do Rio sofreu desde a instalação da companhia, em 1905. Passaram pelas páginas da revista ilustrações e histórias sobre a história dos bondes, dos ônibus, da iluminação pública, da geração e distribuição de energia elétrica etc. A publicação teve colaboração de grandes nomes da arte moderna, como o artista plástico Di Cavalcanti, o compositor Sinhô, o ilustrador J. Carlos e o

Light S.A.

jornalista Assis Chateaubriand.

A capa da revista da Light de 1940 ironiza os problemas que o marcador e o entregador das contas de consumo de energia elétrica da Light tinham com os cachorros que tomavam conta das casas.

utilização de carvão mineral em usinas termoelétricas

& Foreign Power (Amforp). Formada pela Electric Bond

para abastecer o centro de consumo. Essa fonte,

& Share, uma subsidiária da General Electric, em 1923,

contudo, tinha alguns pontos negativos se comparada

a Amforp tinha grande afluxo de capital para investir

à hídrica, que foi posteriormente adotada e se mantém

e incorporar empresas brasileiras. Foi o que aconteceu,

até hoje como a principal fonte da matriz energética

por exemplo, com a CPFL, que a empresa americana

brasileira.

adquiriu posteriormente o controle de seus serviços.

Como as usinas térmicas possuíam melhor

Rio - São Paulo, a Amforp optou por comprar empresas

elas dependiam de uma matéria-prima que o Brasil

em outras importantes cidades, como: Recife (PE), Porto

não tinha em abundância. Por isso, o carvão utilizado

Alegre e Pelotas (RS), Salvador (BA), Belo Horizonte

na queima era importado (a grande exportadora de

(MG), Niterói (RJ), Curitiba (PR), Maceió (AL), Natal (RN)

carvão da época era a Inglaterra) e estava sujeito à

e Vitória (ES) e contribuiu para inserção de eletricidade e

disponibilidade internacional e à variação de preço.

de transporte público a tração elétrica nessas regiões.

O custo de geração e, consequentemente, o valor que chegava ao consumidor era mais alto do que o gerado

“Polvo canadense”

pela usina hídrica.

Os canadenses da Light, porém, já tinham grande

Apesar de ter sido fundamental na estruturação

experiência com instalação de hidroelétricas no seu país

das bases da urbanização e industrialização brasileira,

de origem e vieram aplicá-las no Brasil. Tanto que, em

a relação Light com seus clientes era conturbada. A

1905, a empresa começou a construir a maior e mais

intenção da companhia ao vir para o Brasil era assumir

moderna usina hidroelétrica do país até o momento.

um mercado que ela pudesse controlar, por meio de

Era a Usina de Fontes, em Piraí, no Estado do Rio de

monopólio. Para isso, a empresa usou de influência

Janeiro. Três anos depois, quando ela foi inaugurada, a

financeira, que posteriormente também se converteu

Usina de Fontes superava a necessidade de consumo do

em política, para eliminar possíveis concorrentes.

Rio de Janeiro da época, sendo capaz de gerar 24 MW.

As companhias existentes anteriormente à chegada

Hoje, essa capacidade instalada seria capaz de abastecer

da Light ao Rio de Janeiro e a São Paulo foram, aos

somente o bairro do Leme, na capital carioca.

poucos, sendo compradas pela canadense, o que gerava

descontentamento na população, que questionava as

Apesar de a Light ter absorvido diversas empresas

nas duas principais cidades em que atuou, existiram

intenções da companhia. De fato, não foi o interesse

muitas outras companhias que contribuíram para

nacional que imperou durante os anos que o capital

a eletrificação de outras cidades e regiões do país.

estrangeiro controlou o setor elétrico brasileiro.

A Light tinha foco nos grandes mercados e, assim,

deixava diversas regiões em aberto. Daí, pequenas

possíveis concorrentes do mercado, para dominar

empresas locais continuavam a se formar, nas primeiras

sozinha, e por passar a controlar, em pouco tempo, os

décadas do século XX, e outras grandes estrangeiras

principais serviços na cidade do Rio de Janeiro e em São

continuavam a chegar para a exploração desses

Paulo, a Light ficou conhecida pejorativamente como

serviços. Foi o caso da Companhia Paulista de Força e

o “polvo canadense”. Juntas, a população e a imprensa

Luz (CPFL), surgida em 1912 da fusão de quatro outras

da época diziam que, com seus tentáculos, a Light iria

companhias elétricas do interior de São Paulo, foi

dominar todo o espaço urbano brasileiro.

responsável pela introdução de eletricidade no interior

do Estado.

seus clientes não era das melhores. Aderindo as

concessões de outras fornecedoras de energia elétrica,

Outra empresa importante na história da

eletrificação brasileira foi a norte-americana American 10

Como a Light tinha a concessão de serviço do eixo

rendimento com carvão mineral do que com vegetal,

Por ter tido uma política monopolista, de retirar

Além disso, a popularidade da empresa entre

a Light se tornou a única companhia nas cidades do


Lá no morro, quando a luz da Light pifa A gente apela pra vela Que alumeia também, quando tem Se não tem, não faz mal

A gente samba no escuro que é muito mais legal É ao natural Música “Luz da Light”, de Adoniran Barbosa Rio e em São Paulo a oferecer esse tipo de serviço.

concessão da cidade. Dessa maneira, o marco da Light

Contudo, a população não esteve satisfeita com os

no Brasil ficou restrito às cidades do Rio de Janeiro e de

serviços prestados pela Light e começou a questionar

São Paulo, em que a empresa monopolizou os serviços e

o monopólio da concessionária e os valores das tarifas

encampou as outras concorrentes.

cobrados. Surgiram descontentamentos e manifestações

contra a empresa no Rio de Janeiro, em São Paulo e em

seus primeiros anos de atuação no Brasil estavam a

Salvador, onde a empresa controlou por poucos anos

Companhia Viação Paulista, que oferecia serviços de

parte dos serviços elétricos da capital.

bondes a tração animal; a Companhia Água e Luz,

Fizeram parte dos protestos alguns conflitos

fornecedora de eletricidade para iluminação, gerada a

entre usuários dos serviços e a companhia. “Em 1909,

partir de termoelétricas, em São Paulo; a Companhia

estudantes das faculdades de Direito e Engenharia saíram

Carris de São Paulo a Santo Amaro, que tinha serviço

às ruas dizendo que as tarifas da Light eram muito altas,

de trem a vapor; a Gaffré e Guile, que transmitia e

que ela não deixava outra empresa servir para a cidade

distribuía energia elétrica para São Paulo; a Société

e que estava criando um monopólio. Que a Light, a

Anonyme du Gaz de Rio de Janeiro, que oferecia

partir desse monopólio, dominava e explorava o povo

iluminação a gás; a Companhia Ferro-Carris do

brasileiro. Então eles saíram às ruas e quebraram bondes”,

Jardim Botânico, de transporte urbano; e a Companhia

relata Alexandre Saes, que teve como tese de doutorado

Telefônica Brasileira (CTB), que fornecia serviço de

o trabalho “Conflitos do capital: Light versus CBEE na

telefonia para o Rio de Janeiro.

formação do capitalismo brasileiro (1898-1927)”.

com concorrentes distintos. Com a Companhia Viação

Além desse, talvez a principal dificuldade

Entre as empresas incorporadas pela Light durante

“A Light and Power adotou diferentes estratégias

enfrentada pela Light no Brasil tenha sido o conflito

Paulista, detentora da concessão de transporte público

que culminou na perda da concessão de parte da cidade

a tração animal, a ‘canadense’ precisou apenas esperar

de Salvador. Nacionalistas, em especial estudantes

que a empresa entrasse em colapso financeiro, já que

universitários, organizaram manifestações questionando

seus bondes movidos a tração elétrica se popularizaram

a qualidade dos serviços oferecidos. A Light também

rapidamente”, explica o historiador Alexandre Ricardi.

sofria com pressões de outras empresas que queriam

operar nas áreas de concessão da canadense. Um

descontentamentos da população, as empresas do

acontecimento na capital baiana, em que um

grupo Light foram responsáveis pela inserção massiva

motorneiro atropelou e matou um cego, em 1909, foi

da eletricidade na vida dos brasileiros. A ideia de que

o estopim para as discussões de que o braço da Light

a eletricidade era uma tecnologia que chegava para

em Salvador, que era operado pela The Bahia Tramway

acrescentar conforto à vida cotidiana se espalhou

Light and Power, não estava conseguindo oferecer

rapidamente e, em pouco tempo, em decorrência

serviços elétricos satisfatórios para a população.

da evolução da técnica, da urbanização e das novas

necessidades da vida moderna, chegamos ao estágio

Sobre o caso, Alexandre Saes comenta que entre

O fato é que, apesar das crises e dos

1909 e 1912 os conflitos entre a Light, a população e

atual em que é quase impossível viver sem energia

as empresas concorrentes fizeram o município tomar

elétrica. Impensável tanto para quem mora em cidades

uma atitude surpreendente: “o conflito foi tão grande

ou no interior do país.

que a Light finalmente perde a concessão de Salvador.

Pequisa

O município tomou uma atitude que foi até um pouco

• Memória energia Fundação Patrimônio Histórico da Energia de São Paulo. • The Rio de Janeiro Tramway Light and Power Co. Ltd. História institucional. • A Cidade da Light 1899-1930. Eletropaulo.

radical e que não aconteceu em quase nenhum outro lugar”. Assim, nessa cidade, a exploração dos serviços elétricos passou para a Companhia Brasileira de Energia Elétrica (CBEE) que dividia com a empresa canadense a

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era da eletricidade

Por Bruno D’Angelo

SOCIEDADE DINAMIZADA Fundação Energia e Saneamento

Como a eletricidade empregada na realização de força, movimento e outras funções intensificou as transformações socioeconômicas que já vinham sendo modificadas pelo uso das máquinas a vapor

Vista interna do prédio principal da subestação Paula Souza, destacando quatro grupos de geradores da General Electric. Janeiro de 1915.

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Ao sedentarizar-se, o homem passou a

Imaginemos da mesma forma, qual não foi a

depender de sua atividade laboral, afinal de

excitação com que foi recebido um equipamento

contas, quando sua vida tornou-se mais estática,

como o motor elétrico capaz de superar

quando permanecer em um só local e formar

consideravelmente a eficiência mostrada pela

uma corrente de dependentes passou a ser o seu

tecnologia precedente: a máquina a vapor.

objetivo, percorrer grandes distâncias e enfrentar

grandes perigos para caçar não fazia mais

percebe-se que o advento das primeiras máquinas,

sentido. Outros valores davam as diretrizes, outros

tais como moinhos hidráulicos, de vento e o próprio

interesses estavam em jogo. Era preciso poupar

tear mecânico, permitiu ao homem desprender-se

energia e guardar alimentos, o que foi possível por

um pouco de sua limitação física, não só porque elas

meio da agricultura em um primeiro instante e,

podiam fazer com mais eficiência o trabalho dele,

posteriormente, por outras atividades.

mas também porque possibilitou ao próprio homem

operar vários instrumentos ao mesmo tempo e, dessa

Bem mais tarde, com a complexificação dessas

Ao traçar uma linha evolutiva da força motriz,

sociedades agrícolas e o surgimento das sociedades

maneira, maximizar sua produção.

mercantilistas, baseada nas grandes navegações, na

compra e venda de mercadorias e, posteriormente,

características foram radicalmente ampliadas.

com o advento das sociedades capitalistas, a

Conforme mostra o sociólogo Antonio Carlos Bôa

finalidade passou a ser outra. Era necessário

Nova no livro Energia e Classes Sociais no Brasil,

não apenas plantar alimentos para subsistir,

esta nova ferramenta permitiu que o homem tivesse à

mas acumular ganhos, acumular bens. Em uma

disposição, fora do corpo, uma força motriz passível

sociedade de grande competitividade, aquele que

de ser ampliada a níveis fantásticos. Isto porque,

guardasse mais riqueza saía na frente.

ao contrário dos moinhos que movimentavam as

máquinas a distância, as máquinas a vapor possuíam

Foi assim durante o mercantilismo, período

Com a máquina alimentada a vapor, estas

no qual os grandes impérios eram aqueles que

acopladas junto a elas a força que a movimentava, o

conseguiam reunir riquezas e assim permaneceu,

vapor produzido do carvão vegetal.

intensificando-se, aliás, com o início da revolução

industrial. Inserido nessa atmosfera, o dono da

magnetismo, a eletricidade e a descoberta das leis

fábrica e da tecnologia seguia o raciocínio de

da eletrodinâmica, o homem encontrou a fórmula

competitividade e sua meta era não somente

ideal para “turbinar” a força que movimentaria

produzir para se sustentar, mas produzir para obter

suas máquinas. A eletricidade apresentava grandes

lucro e destacar-se econômica e socialmente.

vantagens em relação às energias anteriores porque

podia ser dividida muitas vezes, sendo assim, era

Era, portanto, crucial e estratégica a invenção

Quando se estabeleceu a conexão entre o

de novas máquinas que dinamizassem a produção

possível utilizá-la em quantidades variáveis que

das fábricas. Mais equipamentos, mais velocidade de

podiam ser moduladas de acordo com a necessidade.

produção, maior quantidade de produtos colocados

à disposição de um mercado consumidor que crescia

elétrica em conjunto com sua regularidade do fluxo

na mesma proporção e, logo, mais capital para

fez esta se tornar uma forma energética de enorme

ser investido e mais dinheiro para ser usufruído

eficiência não só para a produção de trabalho

pelo proprietário industrial. Da mesma maneira,

mecânico, mas também para outros usos, como

a sociedade, de modo geral, começava a ser

produção de calor e iluminação.

bombardeada com produtos e pela propaganda do consumo.

A eletricidade apresentava grandes vantagens em relação às energias anteriores porque podia ser dividida muitas vezes, sendo assim, era possível utilizá-la em quantidades variáveis que podiam ser moduladas de acordo com a necessidade.

Segundo Bôa Nova, a flexibilidade da energia

Origens

Desenhado o cenário, imaginemos a pressão

imposta para que uma nova tecnologia capaz de

acelerar o processo de produção fabril surgisse.

a Inglaterra e sua ex-colônia, os Estado Unidos,

No período em que o motor elétrico surgiu,

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era da eletricidade

já estavam fortemente inseridos no processo de

com a descoberta da ligação entre eletricidade e

industrialização. Outros países da Europa, como

magnetismo no início do século XIX. Até então,

França, Alemanha e os países escandinavos também

segundo o engenheiro eletricista e professor da

apresentavam características, em menor grau, que os

Escola Politécnica da Universidade de São Paulo

credenciavam a participar de tal revolução.

(Poli-USP), Ivan Eduardo Chabu, os dois fenômenos

da natureza, conhecidos há muito, eram estudados

O cenário apresentava-se desse modo porque

tais países, ao contrário do resto do mundo, haviam

como ciências independentes e aparentemente sem

conseguido, pelo processo anterior mercantilista, reunir

relação.

condições intelectuais e materiais suficientes para

modificar a antiga estrutura política vigente liderada por

o cientista dinamarquês Hans Christian Oersted

uma oligarquia temerosa em perder seus privilégios.

verificou, experimentalmente, que a corrente elétrica

circulando por um fio produzia força sobre a agulha

A burguesia urbana que surge e se fortalece

A situação mudou de figura, em 1820, quando

nestes países, devido ao sucesso das transações

magnetizada de uma bússola e, dessa forma, era

comerciais do sistema anterior, consegue reordenar

capaz de deslocá-la de sua posição original. Pouco

a sociedade, tornando-se a classe dirigente da

depois, em 1821, o filósofo, matemático e físico

estrutura que ela mesma ajudou a construir; uma

francês André-Marie Ampère demonstrou que

estrutura calcada na produção industrializada

dois fios paralelos, conduzindo corrente, exerciam

dependente de inovações tecnológicas, objetivando

forças mútuas entre si. “Estava evidenciada, assim,

o aumento dessa capacidade produtiva.

a estreita ligação entre correntes elétricas e campos

magnéticos”, emenda Chabu.

Não é por acaso, então, que as descobertas

científicas que culminaram na invenção do motor

elétrico tenham sido realizadas por cientistas

que eletricidade e magnetismo possuíam estreita

originários destas nações enriquecidas e dirigidas

ligação: um interferia fortemente no outro. Contudo,

por uma sociedade com interesses econômicos.

essas descobertas apenas não bastavam para que o

motor elétrico pudesse surgir anos mais tarde. Era

A invenção do motor elétrico, por exemplo, em

Até aquele momento, havia a comprovação de

seu modelo mais bem acabado até aquele momento,

necessário que os fenômenos fossem dominados, era

foi obra de um alemão, o engenheiro Werner Von

preciso que se soubesse utilizar o magnetismo para

Siemens. Quando em 1867, Siemens inventou

gerar eletricidade.

o dínamo elétrico auto-excitável, a Alemanha

respirava os ares da industrialização há tempos e

físico e químico britânico Michael Faraday, que

toda uma cultura científica de descobertas na área

desenvolveu uma teoria mostrando a possibilidade

elétrica já estava consolidada.

de induzir tensão elétrica em terminais ao

Breve histórico

Tal realização veio dez anos depois com o

movimentar um condutor elétrico em um campo magnético. O cientista inglês comprovou sua hipótese ao conseguir gerar eletricidade girando um

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De fato, experiências com eletricidade datavam

disco de cobre com um diâmetro de 30 cm em um

de séculos antes, até de milênios, mas o passo

campo magnético formado entre os polos de um imã

inicial para o surgimento do motor elétrico surgiu

em forma de ferradura.


Quando se estabeleceu a conexão entre o magnetismo, a eletricidade e a descoberta das leis da eletrodinâmica, o homem encontrou a fórmula ideal para “turbinar” a força que movimentaria suas máquinas.

Dessa forma, Faraday anunciou os princípios

desuso e os motores mais modernos já colocam

que baseariam toda a eletrotécnica a partir de então.

em prática os conhecimentos do eletromagnetismo

O que o cientista inglês comprovou não foi só que

desenvolvidos até aquele momento; as novas

era possível gerar eletricidade pelo movimento

máquinas utilizam a corrente elétrica circulando

de um condutor e sim que era possível produzir

em condutores em um rotor para interagir com o

movimento por meio da eletricidade gerada por

campo magnético produzido por imãs ou eletroímãs

esse condutor. Segundo Chabu, na verdade, não

estacionários no estator.

existe diferença conceitual nem construtiva entre

um gerador e um motor elétrico; “a mesma máquina

desenvolvidos pelo cientista inglês Charles

pode operar nos dois modos, indistintamente,

Weathstone e pelo inventor belga, Zenobe Gramme.

dependendo, a princípio, apenas da interface nos

A máquina deste teve grande importância na época

seus terminais elétricos e da interface mecânica em

porque conseguia gerar bastante corrente elétrica e

seu eixo”, esclarece.

manter um fluxo suficientemente estável, o que lhe

permitia ser empregada para iluminar fábricas com

Tendo este conjunto de informações e

Nesta fase, pode-se destacar os motores

conhecimentos ao seu dispor, vários cientistas

lâmpadas de arco de carvão.

se lançaram à tarefa de construir um dispositivo

que produzisse força e movimento a partir da

de alimentação externa para funcionar. O “pulo

eletricidade e que desse, consequentemente, ainda

do gato”, como conta o engenheiro eletricista

mais praticidade à vida do homem moderno. Como

Alexander Gromow, foi dado então pelo alemão

os motores a vapor eram o que havia de mais

Siemens ao conceber um dínamo elétrico que se

avançado na época em termos de força motriz, não

auto-excitava. “A grande jogada foi o uso de um

é de causar espanto que as primeiras máquinas

coletor que permitia a passagem de corrente entre

produzidas tenham sido inspiradas neles.

a parte estática da máquina e a rotativa, no caso

o rotor do dínamo”, explica. Pronto, o problema

Seguindo o modelo das máquinas a vapor,

Contudo, o motor de Gramme ainda necessitava

os primitivos motores acionados a energia

que atormentava a todos os inventores da época

elétrica compunham-se basicamente de grandes

estava definitivamente solucionado; o motor elétrico

eletromagnetos que, quando alimentados com

deixava de ser apenas um privilégio de um círculo

corrente, acionavam alavancas vinculadas a

de inventores para ganhar o mundo.

volantes de inércia e convertiam seu movimento

alternativo em movimento de rotação. Conforme

sido produzidas, em grande parte, por cientistas

conta Chabu, a maneira como os mecanismos eram

originários de países com uma industrialização

ativados para que se produzisse o movimento da

consolidada, não parece ser pura coincidência e sim

máquina era muito semelhante ao que ocorria com

resultado necessário de um processo. Isto porque

as válvulas de comando dos pistões nos motores a

havia nestes lugares um crescente enriquecimento

vapor.

econômico e intelectual que estimulava, mesmo

indiretamente, os seus cientistas a se lançarem na

Nas máquinas que começam a surgir nas

O fato de as inovações na área elétrica terem

décadas finais do século XIX, o princípio de

empreitada de descobrir novas maneiras de ajudar o

eletromagnetos movimentando alavancas cai em

homem nas suas atividades diárias.

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era da eletricidade

O primeiro automĂłvel tambĂŠm se beneficiou do motor elĂŠtrico, pois era, no momento, uma tecnologia mais madura e segura. Mas como sua autonomia era limitada pelas baterias que existiam na ĂŠpoca, sempre foi considerado um recurso paliativo.

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A existência de condições favoráveis para

que isso ocorresse. Os equipamentos eram mais

o aparecimento do motor elétrico nos países

compactos e seu abastecimento energético era

mais ricos da Europa naquela ocasião, não

mais prático, por meio de fios elétricos. Todas essas

sugere, contudo, que seu surgimento tenha sido

características, segundo Chabu, possibilitaram que as

resultado de uma demanda específica da sociedade

novas máquinas fossem acionadas individualmente,

industrial, e sim, como dito, uma decorrência dos

tornando o sistema muito mais versátil, econômico e

desenvolvimentos tecnológicos do período. Como

seguro.

explica o engenheiro Ivan Chabu, a observação de

certos fenômenos inicialmente inexplicáveis e o

seguras, nem por isso ficaram menos precárias. De

posterior desenvolvimento da teoria eletromagnética

fato, elas simplesmente seguiram o rumo traçado

conduziram os estudiosos a investigar a

pela industrialização baseada nas máquinas a

possibilidade de manifestação de forças e

vapor. Aliás, se o objetivo era, por meio de novas

movimento utilizando a eletricidade. “Daí a intuírem

tecnologias, liberar o homem do trabalho maquinal,

uma aplicação potencial para tais fenômenos foi um

ele não foi alcançado, pois as jornadas de trabalho

caminho natural”, diz.

oscilavam entre 14 e 18 horas diárias e eram

realizadas não apenas por homens, mas também por

A demanda, como afirma Gromow, antes de

Se as condições dentro da fábrica ficaram mais

ser uma causa, um motivador que pressionasse os

mulheres e crianças.

inventores a construírem novas máquinas, foi um

efeito do aparecimento dessas novas máquinas e de

industrializados, consequentemente, a crescente

sua entrada efetiva no estágio industrial. Até porque

oferta de trabalho e a crescente procura por emprego

a eficiência do equipamento que surgia era maior

faziam com que as pessoas não se rebelassem

em relação às máquinas a vapor. Por conseguinte,

em um primeiro momento contra condições tão

a fabricação de produtos também aumentava,

desumanas; havia um imenso “exército de reservas”

tornando premente a ampliação dos mercados

que pressionava aqueles que estavam empregados

consumidores.

a se contentarem com o que tinham sob pena de

Implicações

No entanto, a crescente demanda por produtos

perderem suas posições.

Outra consequência dessa sobra de

trabalhadores era os baixos salários. O fato de haver

No período de domínio das máquinas vapor,

excesso de requerentes possibilitava aos donos dos

o fato de elas serem de elevado custo e de grande

meios de produção balizar o salário de acordo com

tamanho acabou por restringir a sua utilização;

seus interesses. Caso houvesse alta demanda por

cada unidade fabril possuía somente um ou poucos

produtos e, assim, acúmulo de capital por parte dos

aparelhos que ficavam fora dos galpões e cuja

empresários, o salário do operário aumentava, caso

potência era transmitida por um eixo único que

contrário, havia redução. É importante salientar que

se estendia ao longo de todo o galpão industrial.

a máquina, neste caso, o motor elétrico, funcionava

Cada máquina a ser operada conectava-se a outra

como um garantidor da situação desejada pelo

por meio de correias e engates apropriados, o

industrial, isto porque ela desempenhava o papel de

que acabava por limitar muito as condições de

poupar atividade humana nas fábricas, evitando que

acionamento, sem contar o risco para os operadores.

a demanda por força de trabalho aumentasse demais

e pressionasse os salários para cima.

Com a chegada do motor elétrico às fábricas,

a produção industrial se modificou de maneira

acentuada. O fato de ele poder ser acoplado

os operários, as cidades não paravam de receber

Mesmo com a situação nada agradável para

diretamente a cada carga individual – cada máquina

pessoas vindas do campo em busca de emprego.

tinha o seu motor – influiu diretamente para

Para se ter ideia, em 1880, as cidades de Paris e

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era da eletricidade

Londres já contavam com uma população de três e

eram máquinas grandes com partes expostas que

quatro milhões de habitantes, respectivamente. As

chegavam a pesar 100 Kg e apresentavam um

condições de vida não eram das melhores; as ruas

volume próximo a 200 litros. A partir da evolução

nas imediações das moradias dos operários eram

do conhecimento sobre as máquinas elétricas, que

sujas, desniveladas, cheias de lixo e com esgoto

permitiu um refino na tecnologia e do avanço

aparente; as habitações eram de péssima qualidade,

dos materiais, tornou-se possível uma redução de

viviam superlotadas e quase não tinham circulação

dimensões do motor para uma mesma potência.

de ar; a alimentação também não era das melhores,

Atualmente, um motor pode pesar menos de 10 Kg e

o que acarretava a morte de muitas pessoas por

apresentar um volume inferior a cinco litros.

desnutrição.

e início do século XX, foi o pequeno motor elétrico

De uma maneira catastrófica, o crescimento

Voltando alguns anos, no final do século XIX

urbano acelerado e sem controle acabou

inventado pelo engenheiro servo-croata Nikola Tesla

levantando sérias questões de ordem estrutural

– e aperfeiçoado pelo cientista russo Michael Von

como abastecimento de água, canalização de

Dolivo-Dobrowolsky que reduziu o tamanho e peso

esgotos, criação e fornecimento de mercadorias,

do motor – que possibilitou a entrada da engenhoca

modernização de estradas, fornecimento de

nas residências, por meio dos eletrodomésticos.

iluminação, fundação de escolas e construção de

habitações, o que acabou, em longo prazo, trazendo

parte significativa das benesses proporcionadas pelo

melhorias para a população em geral.

motor elétrico. Isto porque o que exigia um grande

esforço físico por parte da dona-de-casa, como

Obviamente, as mudanças não apareceram

Os aparelhos elétricos de uso caseiro ocupam

sem pressão por parte daqueles que se sentiam

utilizar uma máquina de lavar roupa acionada por

prejudicados. Salários baixos, longas jornadas de

manivelas, tornou-se uma tarefa banal quando o

trabalho, desemprego e, consequentemente, um

motor elétrico passou a fazer parte da composição

padrão de vida precário, fizeram greves e revoltas

da lavadora.

acontecerem e sindicatos serem organizados para

defender os interesses dos trabalhadores. Isso surtiu

das enceradeiras, uma evolução dos escovões

efeito já que direitos foram conquistados por eles,

passivos para máquinas ativas com escovas

como a diminuição da carga horária e melhores

circulares acionadas por motor elétrico. Sem falar do

condições de assistência e segurança social.

surgimento de outros utensílios domésticos, como o

O motor elétrico fora da fábrica

Na mesma linha, pode-se citar o surgimento

aspirador de pó, o liquidificador, a batedeira elétrica, a torradeira elétrica e o espremedor; máquinas que melhoraram sensivelmente a vida das mulheres,

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Concomitantemente às mazelas sociais

liberando-as para a realização de outras atividades,

intensificadas pelo emprego do motor elétrico nas

como o trabalho fora de casa, por exemplo.

atividades industriais, houve, paradoxalmente, uma

melhora naquilo que tangia ao conforto das pessoas.

transformações impulsionadas pelo surgimento do

Com a evolução tecnológica, o motor, que ainda

motor elétrico e o seu subsequente aprimoramento.

hoje tem o mesmo princípio de funcionamento,

Em 1879, logo após a invenção de seu dínamo,

teve seu tamanho e volume drasticamente reduzido,

Werner Von Siemens apresentou a sociedade

permitindo que ele fosse utilizado em outros lugares

berlinense, o protótipo de um trem elétrico, que

além da fábrica e em outras atividades que a

viria a substituir, totalmente, algumas décadas mais

industrial.

tarde, o trem a vapor. Este já havia revolucionado a

Como informa o engenheiro Alexander

Europa do século XIX, por dinamizar o transporte

Gromow, em seu primórdio, os motores elétricos

de cargas, mas não resistiu à energia mais limpa e

Os transportes também sofreram grandes


O motor elétrico faz parte de quase todos os utensílios que fazem a nossa sociedade funcionar e que por isso eficiente trazida pelo motor elétrico.

Nas cidades, pode-se destacar o surgimento

do bonde elétrico, que transformou o convívio das pessoas. Como explica o engenheiro eletrônico, historiador e professor da USP, Gildo Magalhães, com o bonde elétrico já uma democratização do meio de transporte. “O que traz também problemas, como dividir um espaço com pessoas desconhecidas” diz.

O primeiro automóvel também se beneficiou do

motor elétrico. O uso do petróleo como combustível já estava sendo desenvolvido na época e os engenheiros mecânicos lutavam para desenvolver motores a explosão confiáveis e com um tamanho compatível ao veículo. Enquanto a solução não vinha, porém, o motor elétrico foi a saída encontrada, pois era, no momento, uma tecnologia mais madura e confiável. Mas como sua autonomia era limitada pelas baterias que existiam na época, sempre foi considerado um recurso paliativo. Atualmente, devido a crescente escassez de reservas de petróleo e as pressões ambientais, o carro elétrico voltou a ser uma opção.

Desde a sua invenção, o motor elétrico não

deixou mais a humanidade e esta se beneficiou e se beneficia ainda de sua atuação em diversas áreas. O próprio computador, responsável por outra revolução tecnológica, em meados do século XX, apresenta o motor elétrico em sua composição. O automóvel, também, mesmo sendo movimentado por motor de combustão, não passa sem seus componentes movidos a energia elétrica, assim como o avião, que apresenta servo motores.

A realidade é que se pode encontrar o motor

elétrico em quase tudo que se utiliza hoje em dia: numa escada rolante, num caixa eletrônico, numa caixa registradora, numa bomba de combustível, num ventilador, num ar-condicionado, em ferramentas de dentistas e em equipamentos de médicos, em máquinas de fotógrafos e cinegrafistas. Ou seja, o motor elétrico faz parte de quase todos os utensílios que fazem a nossa sociedade funcionar e que por isso condicionam nosso estilo de vida.

Eletricidade para outros fins

Não só de motor vive a eletricidade. Uma de suas

condicionam nosso estilo de vida

mais bem sucedidas aplicações, a iluminação, não tem liame direto com a força motriz. Está certo que para a luz chegar às residências, industriais e outros estabelecimentos é preciso que ela seja gerada, primeiro, em uma usina hidrelétrica, termoelétrica ou nuclear, e estas, necessariamente, vão apresentar geradores elétricos em sua composição. No entanto, como dito, seu uso específico, pontual prescinde do gerador.

A invenção da lâmpada elétrica data de 1879

quando seu inventor, o cientista norte-americano Thomas Alva Edison, conseguiu pelo aquecimento de um fio de algodão carbonizado produzir uma luz intensa. Antes, já havia lâmpadas sendo testadas, mas nenhuma delas apresentava intensidade e duração suficientes e, por isso, não receberam a atenção dispensa ao invento de Edison.

Quando as lâmpadas passaram a ser

comercializadas em larga escala, um ano depois, mais transformações aconteceram na sociedade. Nas fábricas, a luz elétrica aumentou o período de horas de trabalho, porque permitiu ao operário realizar suas atividades mesmo com a chegada da noite. Se, por um lado, com isso, há uma acentuação da exploração do trabalho, por outro, segurança na fábrica também aumenta, tendo em vista que a iluminação permite mais visibilidade das máquinas.

A iluminação pública, por sua vez, tornou

mais seguro o trânsito dos cidadãos à noite, possibilitando outro tipo de convívio; aumentou as horas úteis do indivíduo e também criou novos tipos de hábitos, como a utilização de praças, avenidas e praias no período noturno. Obviamente, a vida boêmia também foi intensificada pelo emprego dos postes de iluminação elétrica. As cidades tornaramse tão aprazíveis à noite quanto de dia.

Pesquisa • Energia e classes sociais no Brasil Antonio Carlos Bôa Nova • O motor elétrico: uma história de energia, inteligência e trabalho Publicação da fabricante Weg • O processo civilizatório Darcy Ribeiro

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cidade em movimento

Por Flávia Lima

Por onde passaram, os bondes elétricos abriram caminhos, interligaram bairros e fizeram história. Tiveram também sua parcela de responsabilidade sobre os rumos que tomaram as cidades, levando progresso aos cantos mais periféricos. Deixaram sua marca não apenas no chão, riscado pelo trilho, mas em todos aqueles que os utilizaram, deixando uma saudosa recordação.

Inauguração da linha de bondes do Bom Retiro. 12 de maio de 1900

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Acervo Fundação Energia e Saneamento

SAUDOSO BONDE


De todas as aplicações da eletricidade, esta é

foi bem aceita pela população e só no ano de 1852

certamente uma das mais evoluídas e revolucionárias,

é que a opinião pública voltou-se favoravelmente à

considerando a sua intervenção no cotidiano das

novidade. Na Inglaterra, a primeira linha de bondes

pessoas. Desde que se descobriu como transformar

foi inaugurada extra-oficialmente em 1860, na estrada

energia elétrica em mecânica e como empregar

de Birkenhead, mas foi apenas em 1868 que uma lei

a técnica para se fazer locomover carros e outras

do Parlamento autorizava a construção de uma “linha

máquinas, o mundo não é mais o mesmo e a cada

de bondes de tração animada”, ou seja, puxada a

década mais passos na direção do desenvolvimento do

muares (ou mulas). A Alemanha teve a sua primeira

transporte movido à eletricidade são dados.

linha de bondes inaugurada em 1863, entre Berlim e

Charlottenbourg.

As novas formas de energia passam a representar

a modernidade, principalmente a partir do redesenho

que tomam os conceitos de circulação e de espaço

o estabelecimento de linhas de bondes data de 12 de

público. A eletricidade aplicada no transporte permite a

março de 1856, quando o decreto 1.733 do Império

multiplicação da capacidade de circulação das pessoas

autorizava a construção da linha que partia do Largo da

e possibilita o transporte de massa. As formas mais

Mãe do Bispo em direção a Boa Vista, no caminho que

representativas dessa inovação foram os bondes e trens

conduz à Gávea, no Rio de Janeiro. A linha em questão

elétricos e, na Europa, os metrôs. Os bondes são objeto

foi oficialmente inaugurada em março de 1859.

desta reportagem, que busca contar a história deste

transporte no Brasil, as implicações da sua implantação

bondes, inaugurando a novidade três anos depois.

e as suas contribuições para a formação das cidades

No encalço, outros municípios também levaram a

brasileiras.

revolução para os seus cidadãos, como Porto Alegre,

Salvador, Recife e Fortaleza. São Paulo foi a décima

É sabido que o fim do século XVIII, mais

Santos foi a segunda cidade a contar com os

primeira cidade do Brasil a usufruir do benefício.

Industrial, é um marco para o início do

desenvolvimento do transporte no mundo. A máquina

João Theodoro Xavier, observou a necessidade de

a vapor – grande símbolo da revolução – impulsionou

meios de locomoção na cidade e resolveu contrariar

não apenas a indústria têxtil, mas teve notável

a opinião pública, que dizia não haver grandes

participação também no transporte, tracionando as

distâncias a percorrer na capital, sendo os carros

locomotivas do início do século XIX.

meramente objetos de luxo. Mesmo assim, foi firmada

a Lei Provincial nº 11, em 9 de março de 1871, que

O presidente da então província de São Paulo,

e passa a ser empregada amplamente nos meios

definiu: “Fica o Governo da Província autorizado

de locomoção. Primeiro, nos ferroviários e, quase

a conceder privilégio exclusivo, por 50 anos, ao

paralelamente, em carros utilitários e coletivos. É o

engenheiro Nicolau dos Santos França Leite ou a quem

caso dos bondes elétricos, que foram muito utilizados

melhores vantagens oferecer para estabelecer uma

no fim do século XIX e início do século XX em países

linha de diligências tiradas por animais sobre trilhos

da Europa, nos Estados Unidos e também no Brasil.

de ferro, que partindo do centro desta cidade se dirija

às estações do Caminho de Ferro.” Assim, o meio de

Antes, porém, da ‘invasão’ da eletricidade, carroças

Bonde com superlotação no início do século XX

No Brasil, curiosamente, a primeira concessão para

precisamente o período que abarca a Revolução

Alguns anos depois, a eletricidade ganha território

Arquivo / Museu SPTrans

“O bond criou moda: motorneiro que se prezasse tinha quase a obrigação de deixar crescer um senhor bigode para combinar com o uniforme escuro; e o bonito era o rapaz pular do bonde andando, na ladeira da Augusta” O Cruzeiro, 27 de março de 1968

e bondes já existiam e se locomoviam graças à tração

transporte passou a figurar também em São Paulo.

animal. O historiador e pesquisador Waldemar Corrêa

Stiel conta que a primeira linha experimental de

Unidos, vieram para mudar completamente

bondes puxados por animais surgiu na cidade de Nova

a atmosfera brasileira, tornando-se um fator

York, em 1831. Esta primeira aparição, entretanto, não

determinante no progresso das cidades. No começo,

Os carros, todos importados dos Estados

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cidade em movimento

os bondes dispunham de nove lugares e eram puxados por um burro ou mula. Logo depois, o carro cresce em tamanho e capacidade – agora para 15 lugares, sendo arrastado por dois animais. “Paulistano sempre gostou mesmo de trabalhar e a facilidade de ir e vir do centro da cidade aos pontos de referência, como as estações ferroviárias, ativou a mentalidade empreendedora daquela gente provinciana, mas pretensiosa. Tanto que os carros exclusivos para cargas passaram a se multiplicar também”, conta Fernando Portela em seu livro Bonde, saudoso paulistano.

Mas essa associação animal-máquina não

era das mais adequadas: os bichos, especialmente os cavalos, custavam caro e adquiriam doenças graves que poderiam contaminar a tripulação e os passageiros. Outra preocupação era os excrementos espalhados pela cidade e o mau cheiro que impregnava as ruas e os carros.

Não por isso, mas bastante providenciais, foram

os novos bondes que surgiram no final do século XIX, que dispensavam os animais e se moviam, como que por um milagre, graças à invisível força da eletricidade. A novidade primeiro apareceu nos Estados Unidos e em alguns países europeus.

Com a chegada da eletricidade, os bondes

de tração animal estavam com os dias contados. Conviveram pacificamente por algum tempo, mas progressivamente os modernos bondes elétricos substituíam os tracionados por animais. O Rio de Janeiro foi pioneiro no Brasil e na América Latina na utilização da tração elétrica, tendo o serviço inaugurado no ano de 1892.

Por que “bonde”? A palavra tem origem no bilhete que se comprava para viajar nesses carros. Os bilhetes eram impressos nos Estados Unidos, por isso havia quem os chamasse de bond (bônus, apólice). O nome pegou.

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Em 1897, a Companhia Veículos Econômicos

inaugurou a primeira linha de bondes elétricos em Salvador, fazendo o percurso Comércio – Itapagipe, na parte baixa da cidade. Logo depois, a Companhia Linha Circular de Carris da Bahia passou a fornecer o serviço na cidade alta. Ainda no século XIX, em 1899, Manaus também teve inaugurado o seu primeiro serviço de bondes elétricos pela empresa Manaus Railway Company. Em São Paulo, o novo transporte chegou em 1900.

Pioneirismo

No Brasil, a tração elétrica primeiro chegou às ruas

da cidade do Rio de Janeiro. Inaugurado no ano de 1892 pela Companhia Ferro Carril do Jardim Botânico, o primeiro trecho eletrificado foi o trajeto do Centro ao Flamengo. A partir de então, o serviço expandiu-se, mas vale lembrar que, na cidade do Rio de Janeiro, até 1928, houve bondes puxados a burro da “Linha Circular Suburbana de Tramways”. Esta linha foi comprada posteriormente pela canadense The Rio de Janeiro Tramway, Light and Power Company Limited, que substituiu os carros animados pelos elétricos.

Mas como a eletricidade chegou ao Rio de Janeiro?

No final do século XIX, o país passava por profundas modificações: abolição da escravatura, proclamação da república, advento da indústria, entre outras. A Companhia Ferro Carril do Jardim Botânico, detentora do serviço, enfrentava sérios problemas operacionais, como altos gastos com alimentação importada para os animais, altos encargos, tarifas elevadas e ainda a proximidade do encerramento da sua concessão. O então prefeito, Félix da Cunha, resolveu estender o prazo de concessão, levando a companhia a procurar uma nova forma de tração para os seus carros, substituindo então os animais pela eletricidade. O processo de substituição começou em 1890 e terminou em 1892 com a sua efetiva implantação. A eletricidade era gerada por uma central termelétrica e o sistema utilizado era chamado Thomson-Huston, fornecido pela General Electric. A viagem inaugural ocorreu no dia 8 de outubro de 1892, partindo das imediações do Teatro Lírico, no Largo do Carioca, até a rua Dois de Dezembro. Este foi o primeiro bonde elétrico do Brasil e também de toda a América Latina.

Não demorou muito para que os bondes elétricos

ocupassem toda a cidade. Outras empresas do negócio também modernizaram seus carros, aderindo ao novo sistema de tração. Em 1904, a canadense Light chega ao Rio de Janeiro com o objetivo de introduzir na cidade a geração de eletricidade por força hidráulica. Após construir a Usina Hidrelétrica Fontes, a Light acabou por atuar também no sistema de transportes


Relato do jornal Correio Paulistano acerca da inauguração da linha de

Santo Amaro, até então, um município de São Paulo (08/07/1913).

“A nosso ver, ir a Santo Amaro, de hoje em diante, constituirá, sem dúvida, o melhor, o mais agradável passeio de São Paulo,

Flávia Lima

bondes de

ao menos para aqueles que vivem enfarados da buliçosa vida da cidade e necessitam de ver coisas novas, outras paisagens, panoramas diferentes.

Construindo a nova linha de bondes, ligando esta capital a Santo Amaro, veio a Light demonstrar mais uma vez o quanto se interessa por tudo quanto diz respeito ao nosso progresso.

Inúmeros são os benefícios prestados pela importante companhia canadense a

São Paulo, onde a ela

é devido não pequena parte de seus melhoramentos.

A data de ontem será sempre cara para nós, pois não hesitamos em afirmar que, em breve, Santo Amaro se tornará numa lindíssima, numa importante cidade. O impulso que agora vão tomar as suas indústrias, o seu comércio, a sua lavoura transforma-la-á numa pujante cidade.

(...) ”

Bonde a tração animal circulou até meados dos anos de 1920 no Brasil. Em subidas, os passageiros tinham de descer e ajudar a empurrar o carro. O bonde está em exposição no Museu da SPTrans, em São Paulo (SP).

23


cidade em movimento

coletivos, adquirindo companhias que

elétricos chegaram no mesmo ano.

ainda utilizavam a tração animal para

eletrificá-las, unificá-las e ampliar suas

de 56.315 metros e os carros foram fornecidos pela

linhas. Trouxe veículos mais modernos

Companhia Brill, dos Estados Unidos. Cada carro era

que conquistaram a população.

acionado por dois motores GE de 58 e 35 cavalos. Em

Doutor em história econômica pela

outubro de 1899, Stiel conta que foram iniciadas as

Unicamp, Alexandre Saes, que estudou A partir de 1908, os bondes começaram a circular com propagandas. As farmacêuticas eram as principais anunciantes.

As linhas projetadas tinham uma extensão total

obras para distribuição de força e luz, com a construção

as relações políticas e econômicas da Light no período

da primeira das três câmaras onde se instalariam os

de sua instalação no Brasil, conta que, em 1920, a Light

aparelhos transformadores de corrente de alto potencial,

apresenta uma proposta para a construção de uma linha

fornecida pela cachoeira de Parnaíba, em corrente de

subterrânea de Botafogo à Tijuca, no Rio de Janeiro. No

baixo potencial, empregada na distribuição.

projeto, estava previsto o mergulho dos bondes no centro

da cidade para descongestioná-lo. A proposta acabou não

maio de 1900 e foi um frisson na cidade. Os hotéis

sendo aceita porque a Light pretendia repassar para as

localizados no centro chegaram a preparar cardápios

passagens de bonde o gasto para financiar a obra.

especiais para o grande dia. Estiveram presentes na

Bondes paulistanos

A inauguração dos bondes aconteceu no dia 7 de

solenidade o presidente Rodrigues Alves e o vicepresidente Domingos de Morais, além de senadores, deputados, diretores de empresas, a imprensa e

Houve várias tentativas para a implantação do

milhares de populares.

sistema elétrico nos transportes coletivos em São Paulo,

mas nada se positivou até 1900. Segundo Stiel, a própria

repercussão no dia seguinte:

O jornal O Estado de S. Paulo dera a seguinte

Companhia Carris de Ferro, concessionária da primeira companhia de bondes de São Paulo, havia estudado essa

“Por todo o trajeto aglomerava-se enorme multidão

possibilidade, mas acabou desistindo. A ideia começou

nas esquinas, portas e janelas, aclamando a espaços a

a ser concretizada quando o comendador Antonio

empresa com vivas e palmas, à passagem dos veículos

Augusto de Souza pensou em formar uma companhia

apinhados de passageiros. Durante todo o resto do

para introduzir o sistema de transportes urbanos por

dia e parte da noite, os bondes foram franqueados ao

eletricidade, já muito usado em todas as grandes cidades

público, que acorreu em massa, conservando sempre

do mundo. O comentador Antonio Augusto de Souza

cheios os carros da Light and Power”.

era sogro do advogado Carlos de Campos e, em 1895,

24

seu irmão, Américo de Campos, foi ao Canadá em

missão oficial do Governo do Estado onde se encontrou

Por conta do consumo de eletricidade de 550 V, em

com o capitão da marinha italiana, Francisco Antonio

corrente contínua, a Light resolveu investir na geração

Gualco, que lá residia. O resultado foi a Lei 304, de 8

de energia e construiu a primeira termelétrica da

de julho de 1897, que autorizava a concessão para o

cidade. Logo depois, projetou e construiu a Usina

lançamento de bondes elétricos.

Hidrelétrica do Tietê, em Santana do Parnaíba. Foi

então que linhas de transmissão, subestações e projetos

O próximo passo seria então levantar o capital

A partir daí, esse transporte cresceria intensamente.

necessário para tal empreendimento. Os interessados

de novas usinas começaram a surgir. No final do ano

voltaram para o Canadá e lá a proposta interessou a

de 1900, São Paulo possuía 25 carros elétricos. Dois

sete grandes capitalistas. Fundaram então a The São

anos mais tarde, 85 carros e 85 quilômetros de linhas.

Paulo Railway Light and Power Co, que logo depois

mudaria a palavra “railway” (linha de ferro) por

seus próprios bondes. Em 1909, fez seu primeiro carro

“tramway” (linha de bonde). Os primeiros 15 bondes

fechado para carregar operários com tarifas mais

Assim, em 1904, a Light começou a construir


“O que mais me impressionou foi o gesto do motorneiro. Os olhos do homem passavam por cima da gente que ia no seu bonde, com um grande ar de superioridade. Sentia-se nele a convicção de que inventara, não só o bonde elétrico, mas a própria eletricidade”. Acervo Fundação Energia e Saneamento

Machado de Assis

Bonde para transporte de operários com tarifa diferenciada. Note o uso de bonde reboque nesta composição. Foto tirada na avenida Rangel Pestana, no cruzamento da rua Piratininga. Julho de 1916.

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cidade em movimento Troca de ideias Dois homens conversando: “Barata: Tu sabes, Zé? Vais ter electricidade por toda a parte ... O Lauro quer dar o privilégio da força ao Gaffrée, e tu vais ver o que é progresso. Zé Operário: Muito bem! E quando me darão casas decentes e salubres para eu morar? Barata: É fácil; vai morar dentro dos novos bonds electricos ... Zé Operário: Boa idéa ... para morrer à fresca!” O Malho, v. VI, n. 125, 4 de fevereiro de 1905

baixas e, em 1916, construiu o primeiro bonde com

“Uma febre de curiosidade tomou as famílias, as casas,

“truck-duplo”, ou seja, carro maior com oito rodas; os

os grupos. Como seriam os novos bondes que andavam

primeiros possuíam apenas quatro.

magicamente, sem impulso exterior? Eu tinha notícia

Um fato curioso foi a importação de um

pelo pretinho Lázaro, filho da cozinheira de minha tia,

luxuoso bonde, em 1906, pela Light. O conforto e

vindo do Rio, que era muito perigoso esse negócio de

o acabamento de alto padrão fizeram o bonde não

eletricidade. Quem pusesse os pés nos trilhos ficava

rodar nas ruas, a princípio. Em vez disso, o executivo,

ali grudado e seria esmagado facilmente pelo bonde.

batizado de “Ypiranga” pelo Cardeal Arcoverde, foi

Precisava pular”.

alugado durante anos para casamentos, batizados e outros eventos especiais.

Esse sentimento acometeu grande parcela da

população nos primeiros anos do bonde elétrico

A novidade

nas cidades. Manifestações de desagrado por parte da população marcaram o período. Resistente à

“O bonde ia agora atravessando os Arcos. Sob a luz de um dia brumoso, encoberto,

tecnologia, o poeta Machado de Assis também registrou sua oposição:

um dia pardo, a cidade se estendia irregular e triste. Bondes, carros e transeuntes passavam por debaixo da

“Não tendo assistido à inauguração dos bondes

arcaria secular”

elétricos deixei de falar neles. Nem sequer entrei em

Lima Barreto

algum, mais tarde, para receber as impressões da nova tração e contá-la. Ontem, porém, indo pela praia da

Pelas cidades em que figurou, o bonde

Lapa em bonde comum encontrei um dos elétricos que

elétrico foi recebido com reações diversas: alegria,

descia. Era o primeiro que estes olhos viam andar.

preocupação, medo, dúvida e até repulsa. Ao mesmo

Admirei a marcha serena do bonde, deslizando como o

tempo em que eram atraídas pela novidade, as

barco dos poetas ao sopro da brisa invisível e amiga.

pessoas sentiam-se temerosas, principalmente com

Mas como íamos em sentido contrário não tardou que

relação à eletricidade, o que para muitos ainda era

nos perdêssemos de vista, dobrando ele para o Largo

algo completamente desconhecido. Era comum,

da Lapa e Rua do Passeio e eu entrando na Rua do

por exemplo, as pessoas preferirem tomar o bonde

Catete. Nem por isso o perdi da memória. A gente do

a tração animal do que o elétrico. Para tentar

meu bonde ia saindo aqui e ali, outra gente entrava a

amenizar o receio das pessoas, a Companhia Ferro

diante, eu pensava no bonde elétrico”.

Carril do Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, passou

26

a imprimir nos encostos dos bancos dos veículos a

frase: “A corrente elétrica nenhum perigo oferece

tinham sua razão. Os acidentes com bondes eram muito

aos passageiros”.

comuns, considerando especialmente a alta velocidade

em que trafegavam – comparando-se aos bondes

O engenheiro civil e administrador do Museu da

Os receosos em aceitar o novo meio de transporte

SPTrans, Henrique Di Santoro Júnior, conta que num

animados – e ao emaranhado que se formavam nas

primeiro momento a expectativa e a curiosidade eram

ruas, com gente, carros de passeio, carroças, animais e

grandes, mas também havia muita dúvida. “As pessoas

bondes. “Havia na época uma grande preocupação com

achavam que havia eletricidade nos trilhos, no próprio

as consequências dos acidentes e não com os acidentes

carro e nos balaústres e que por isso poderiam tomar

em si, já que eles eram considerados inevitáveis”, explica

choque ao se apoiar ou encostar no bonde”. Para se ter

Henrique Di Santoro. Os bondes, inclusive, vinham

ideia desse julgamento, o escritor Oswald de Andrade

com a seguinte inscrição em seus bancos: “Prevenir

escreveu na época:

acidentes é dever de todos”. Nesse sentido, foi criado um


Acervo Fundação Energia e Saneamento

mecanismo que, em caso de atropelamento, a pessoa ao cair embaixo do bonde, automaticamente escorava em uma espécie de trava que desarmava uma esteira, que teria a importante função de resgatar a pessoa, ficando esta, sã e salva, sobre a esteira até a parada total do bonde. “Muitas pessoas foram salvas graças a esse sistema, um dispositivo simples, mas muito funcional”, completa Di Santoro.

Passado este tempo de adaptação por parte da

população, o bonde passou a compor a paisagem urbana e a ser símbolo de modernidade. Em pouco tempo, os bondes elétricos circulavam pelas cidades em grande número e outras companhias foram substituindo seus carros comuns também pelos elétricos.

Apesar do perigo ainda representado para a

sociedade da época por conta da eletricidade, aos poucos, as campanhas publicitárias das empresas começaram a esclarecer a opinião pública, que suavizavam os riscos e enalteciam as vantagens e as qualidades do novo transporte e da eletricidade. Os bondes, aliás, eram um importante instrumento de comunicação das empresas na época. As propagandas tomavam conta dos carros, pois se constituíam na forma mais eficaz de divulgação, já que percorriam toda a cidade.

Outro aspecto importante dos bondes é que eles

se adaptavam ao tipo de serviço prestado e atividade executada. Havia carros destinados a enterros, a casamentos, ao transporte de doentes, entre outros. Em Salvador, por exemplo, foi inaugurado em 1911 o denominado bonde-salão, utilizado em festas, como casamentos e batizados ou em solenidades diversas.

A inovação trazida pelos bondes elétricos

representou de fato uma grande transformação comparada aos meios de transportes anteriores, tendo em vista a disponibilidade do serviço, o conforto e a rapidez nos percursos. Além disso, o bonde foi o primeiro coletivo a reunir os mais diversos e variados tipos de pessoas, tornando-se rápida e progressivamente palco privilegiado para as vivências do cotidiano, transformando-se no cenário preferido para as anedotas, crônicas, romances, canções, propagandas, etc.

Vista do entroncamento da rua São Bento. 24 de fevereiro de 1902.

27


cidade em movimento

“Pode-se imaginar a explosão de criatividade a

depois loteá-los e vendê-los. Ela fazia isso por meio de

partir do mirante de um bonde. Além da visão geral,

outra empresa criada por ela, a imobiliária City”.

o bonde oferecia uma interpretação democrática da

vida, já que todas as camadas sociais e etnias podiam

período de concessão da Light para operar os bondes

ser observadas nas suas interdependências. As janelas

em São Paulo – a empresa não estar mais interessada

de um bonde abriam-se para o palco do cotidiano, da

em continuar com o transporte deve-se também à

vida na pauliceia“, escreveu Fernando Portela.

falta de regiões para expandir, logo, não havendo mais

previsão de lucrar com o negócio imobiliário.

Não poderíamos deixar de mencionar os

Segundo Branco, o fato de em 1941 – término do

“pingentes”. A população brasileira crescia

exponencialmente, não sendo suficiente o transporte

Ipanema ocorria nos mesmos moldes. A partir de 1890,

disponibilizado. Assim, dezenas de pessoas se

a Companhia Jardim Botânico promoveu a expansão

dependuravam nos bondes, impedindo, inclusive,

de seus serviços em direção àquela área, chegando a

a visão do motorneiro (‘motorista’ do bonde),

oferecer condução gratuita como forma de estimular a

dificultando o trabalho do condutor (o cobrador) e

ocupação e as vendas de terrenos na região. Em 1901,

facilitando a ocorrência de acidentes.

a mesma empresa estenderia seus trilhos até Ipanema,

onde já se vinha promovendo a instalação de serviços de

Os pingentes desapareceriam apenas a partir

de 1927, com o lançamento do bonde fechado, que pintado nas cores vermelho e laranja, foi apelidado de camarão. Implantado pela Light, este bonde se tornou

No Rio de Janeiro, a ocupação de Copacabana e de

infraestrutura, como esgoto e iluminação pública elétrica.

Trólebus

um ícone paulistano. “Onde chega o bonde, chega o progresso”

Brasil durante as três primeiras décadas do século

Os bondes foram os grandes impulsionadores da

XX, mas a partir de 1940, começa o seu período de

expansão das cidades. Implantados inicialmente

decadência. Os carros, já não tão novos, passam a

sempre nos centros, os bondes estendiam seus trilhos para as áreas periféricas, levando desenvolvimento por onde passavam.

apresentar problemas e a grande população de cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, não é mais atendida a contento pelos bondes elétricos.

Arquivo / Museu

SPTrans

Trólebus fabricado pela Atlas Grassi viajou de São Paulo ao Rio de Janeiro, com a ajuda de um gerador, para apresentação ao presidente da República Juscelino Kubitschek. 3 de maio de 1958.

28

A eletricidade nos bondes teve muito êxito no

Assim como as estradas de ferro, os bondes

Em São Paulo, no ano de 1925 já começam a

aparecer os primeiros ônibus de maneira anárquica. O

permitiram que as cidades crescessem em todas

engenheiro Adriano Branco conta que qualquer pessoa

as direções. A princípio, as companhias de bondes

interessada poderia comprar um ônibus (a diesel) e ir

procuravam regiões em que o mercado já existia,

para as ruas trabalhar. Foi somente no ano de 1936

mas conforme iam alcançando novos locais,

que a prefeitura resolveu regulamentar o transporte.

automaticamente, induziam a ocupação e a exploração

Estabeleceu que, para ser empresário, era necessária a

dessas áreas. A Companhia Vila Isabel, no Rio de

propriedade de pelo menos quatro veículos.

Janeiro, não se limitou a explorar um mercado

preexistente para suas linhas, criando o seu próprio

auto-ônibus e a falta de investimentos no serviço

mercado mediante articulação com o capital imobiliário,

de bondes acabou por decretar seu fim. A partir da

promovendo a abertura de loteamentos e novas áreas de

década de 1960, o bonde já era retirado pouco a pouco

habitação projetadas de forma a atrair as classes médias.

de circulação. A última viagem do bonde em São

Paulo foi comemorada e registrada com uma placa,

O engenheiro eletricista Adriano Murgel Branco, ex-

A concorrência com os novos ônibus, com os

Secretário de Transportes do Estado de São Paulo e ex-

descerrada solenemente no Largo 13 de Maio, em

diretor da CMTC, explica que a Light de São Paulo fez

Santo Amaro: “Aqui fez ponto final o último bonde

o mesmo. “À medida que a Light penetrava as cidades

de São Paulo, sendo prefeito José Vicente de Faria

com seus trilhos, ela comprava os terrenos ao redor para

Lima. 27 de Março de 1968”. Os bondes existiram em


B ondes 72 cidades brasileiras. Depois da sua extinção em São

Paulo, apenas a cidade de Santos continuou com o

comissão, a pedido do prefeito Prestes Maia, estava

serviço, que também foi extinto mais tarde.

incumbida de elaborar um estudo completo sobre

a situação do transporte. O estudo, concluído em

Nessa época, os trólebus já estavam nas ruas.

Adriano Branco conta que desde 1939 uma

Sua origem, entretanto, parece ter sido quase

1943, manifestou-se favoravelmente aos ônibus

contemporânea ao bonde elétrico, quando, no ano de

elétricos, tendo em vista o conforto, o silêncio

1882, o Dr. Finney, de Pittsburgh, propôs a operação

devido à ausência do atrito das rodas sobre os

de ônibus elétricos com corrente transmitida por fios

trilhos e a facilidade de locomoção a partir dos

aéreos e recebida por intermédio de um pequeno

dois cabos que mantêm contato com os fios

‘trolley’ (alavanca de captação de corrente elétrica)

transmissores de corrente elétrica.

ligado ao veículo por um cabo flexível.

Em São Paulo, no ano de 1914, já havia uma

melhores (por conta da guerra que se agravara) e

empresa que anunciava a grande novidade. Waldemar

a Light continuou com o serviço de bondes – por

Stiel cita uma publicação intitulada “A Cigarra”, que,

ordem do governo federal, a Light foi obrigada a

na época, divulgou o seguinte anúncio:

continuar com os bondes, mesmo não tendo mais

O projeto, todavia, ficou aguardando dias

interesse no negócio e tendo vencido o seu período “Bondes elétricos sem trilhos Para transporte de passageiros e mercadorias entre as cidades do interior servidas por iluminação elétrica. Informação e fotografias, Rua Direita, nº 8 A, sala 5”

de concessão; a prefeitura não tinha condições de assumir o negócio.

O caso é que dez anos depois, conforme conta

Waldemar Stiel, São Paulo viu o seu primeiro trólebus correr, servindo na linha Aclimação. Esses primeiros

Oito anos depois, foi aprovada a Lei 2.506, de

trólebus pertenciam a uma leva de 30 carros, que

30 de junho de 1922, que autorizava a concessão de

a Companhia Municipal de Transportes Coletivos

licenças a Ascario Cerquera e a Edgard de Azevedo

(CMTC), criada em 1947, havia comprado. Os carros

Soares para o estabelecimento de bondes elétricos sem

foram importados dos Estados Unidos e da Inglaterra.

trilhos, sistema “Electrobus”, ligando o alto de Santana

às divisas do Juqueri, Lapa, Freguesia do Ó e a Penha

gestões públicas. “Foi na gestão de Olavo Setúbal

às divisas de Guarulhos.

que se resolveu fazer um projeto de implantação

de corredores para os trólebus, mas conforme

Apesar dessas menções ao trólebus, entretanto,

Os trólebus cresceram e caíram, conforme as

nenhuma vingou. Parece que houve um protesto

as prefeituras iam mudando, as pessoas iam

de uma grande companhia que levou à cassação

investindo ou não. Só o corredor da avenida Santo

da concessão. A ideia só voltou a aparecer em

Amaro foi feito três vezes”, indigna-se Branco.

1938 quando foi realizada na sede do Instituto de

Engenharia de São Paulo uma demonstração sobre

foram instalados em 11 cidades brasileiras.

o funcionamento dos eletrobus (ou trólebus). O novo

Atualmente, apenas a cidade paulista ainda conta

carro foi considerado o meio mais moderno, prático e

com esse tipo de transporte.

seguro de coletivo urbano. No ano seguinte, o jornal O Estado de S. Paulo publicou: “A administração municipal pretende adquirir dez ônibus elétricos ou ‘Trolley-Coaches’, a fim de experimentá-los nesta capital, com o objetivo de procurar uma solução para o problema dos transportes coletivos em virtude de expirar em 1941 o contrato que a cidade mantém com a Light and Power”.

modernos

A tecnologia dos bondes elétricos acabou morrendo no Brasil - com algumas exceções, como o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) de Campinas (SP) e a tentativa do fura-fila, na capital paulista. Mas no mundo, ela evoluiu e gerou carros modernos, confortáveis e com avançado sistema de eletrônica embutido. Esses novos bondes lembram os veículos fechados que circulavam no país no início do século XX, melhorados com automação eletrônica que controla semáforos, mudança de via, as portas, a comunicação, conta com mecanismo de localização por GPS, entre outras características. Em diversas cidades europeias, o trólebus (veículo elétrico sobre pneus) e o bonde (também chamado de veículo leve sobre trilhos - VLT) facilitam o dia-a-dia das pessoas. A eletricidade usada no transporte, segundo o engenheiro Adriano Murgel Branco, traz inúmeras vantagens, entre elas, não poluir, não emitir gases, rendimento três vezes maior do que o do ônibus a combustão, dupla aceleração sem danificar o motor e redundância, pois há dois eixos com motor, o que confere mais segurança aos usuários.

Os trólebus, tendo São Paulo como pioneira,

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Genebra

Lyon

29


regulamentação

Por Lívia Cunha

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AS REGRAS DO JOGO

30

A regulamentação do setor elétrico brasileiro começou a ganhar forma cerca de 50 anos após o início de suas atividades no Brasil. Além de organizar as empresas, as regras foram importantes para garantir a própria expansão do segmento


A história das concessões de empresas de energia elétrica começa pouco depois da proclamação da república, quando se

A técnica, apesar de nova, já era conhecida.

e gestão do setor. No início da instalação das primeiras

A utilização crescia cada dia mais. Mas as regras

companhias geradoras de eletricidade, o país passava

de funcionamento ainda não estavam claras. Foi

por significativas mudanças políticas, com a abolição

necessário quase meio século para que o setor de

da escravidão, em 1888, o fim da monarquia com a

energia fosse regulamentado no Brasil. No início,

proclamação da república, em 1889, e a publicação

quando as primeiras empresas exploradoras de

da segunda constituição brasileira, em 1891. Essas

eletricidade começaram a surgir, imperava a auto-

alterações refletiam diretamente no modo de como o

organização.

setor energético era formado.

Como antes dos anos 1930 os serviços de energia

elétrica não possuíam legislação própria, o setor foi

acentuou o número de empresas fornecedoras de serviços elétricos.

Antecedentes

regido pelos interesses das concessionárias desde o início de suas atividades nos anos 1880. Nessa

época, eram firmados contratos, geralmente pelos

país liberal e federativo, princípios que se baseiam na

municípios, com privilégios de exclusividade para

autonomia econômica das empresas e na autonomia

as concessionárias prestarem algum serviço público

política dos estados e municípios, delimitando

ligado à eletricidade. A utilização da energia elétrica

campos de ação específicos para cada um. Com isso,

no país era ainda uma novidade e, na época, o Estado

a elite brasileira, que tomava as decisões políticas e

não tinha tecnologia e recursos financeiros suficientes

econômicas, composta por fazendeiros, comerciantes e

para investir nesse ramo sozinho.

industriais, queria certa autonomia política em relação

ao governo federal. Por influência do poder exercido

No entanto, a eletricidade, desde o domínio de

A nova constituição definia o Brasil como um

sua utilização, sempre foi associada ao progresso e à

por eles é que, no período que é chamado de República

modernidade, o que transformava o setor elétrico em

Velha, de 1889, com a proclamação, até a Revolução

um segmento estratégico para o país que quisesse se

de 1930, os interesses econômicos e de grupos locais

desenvolver para industrialização e urbanização. Se a

imperaram sobre os nacionais.

exploração de serviços estratégicos não era definida

conforme o interesse público ou com a coordenação da

de energia elétrica começava a se formar. As primeiras

União, a modernização do país poderia até acontecer,

empresas de eletricidade que apareceram no Brasil

mas não conforme os interesses nacionais. Acontece

foram criadas para atender necessidades específicas

que para o Brasil monárquico e, posteriormente, recém

dessa classe dominante, que detinha também os

republicano, o setor elétrico ainda era um campo de

recursos financeiros necessários para investimento

atuação novo e os governantes não sabiam como gerir.

na infraestrutura. Essas primeiras eram companhias

pequenas, que tinham pouca potência, mas eram

O sociólogo e doutor em história econômica,

E é exatamente nesse período que o setor brasileiro

que desenvolveu como tese de doutorado um estudo

compostas por capital nacional e forneciam energia

sobre o setor elétrico brasileiro na República Velha,

gerada a partir de usinas termelétricas e hidroelétricas.

Alexandre Saes, explica que era exatamente pelo fato

A primeira usina de geração por hidroeletricidade

de o setor elétrico ser uma área muito recente que o

brasileira, chamada de Ribeirão do Inferno, começou a

governo “não tinha muita clareza de como fazer um

operar em 1883, na cidade de Diamantina, em Minas

processo de regulação, de como criar as leis, de como

Gerais, aproveitando a água de um afluente do rio

organizar”.

Jequitinhonha.

Outros fatores externos contribuíram para esse

retardamento na definição de regras de funcionamento

Mas os primeiros registros de utilização de

eletricidade no país datam de anos antes. Em 1876,

31


regulamentação Linha

geradores de energia elétrica no Brasil. Mercado empresas privadas nacionais. Muitos projetos de lei que tramitam na esfera federal dizem respeito

1900-1910

XIX

composto, principalmente, por pequenas

Final

Poucas regras para os empreendimentos

do século

do tempo Principais aspectos da evolução das regras para o setor elétrico brasileiro em mais de um século de história

Chegada das primeiras concessionárias estrangeiras. A regulação, nesse período, visa aos interesses do capital estrangeiro. Primeiros movimentos de regulamentação com a lei nº 1.145, 31 de dezembro de 1903, e o decreto nº 5.704, de 10 de dezembro de 1904. Regulamentam, em termos gerais, a concessão de serviços de eletricidade destinados ao fornecimento público

à isenção de imposto de importação para

federal e representam o início da regulamentação do setor elétrico nacional.

iluminação pública, como os projetos nº 205 e nº

Apresentam pouca eficiência porque os contratos eram firmados e regulamentos

53, de 1891 e 1892, respectivamente.

pelos Estados e municípios. Em 1907 surge a primeira versão do Código de Águas que vai tramitar sem sucesso por muitos anos.

Dom Pedro II, imperador brasileiro, em visita à

de empresas fornecedoras de serviços elétricos. O

Exposição da Filadélfia, conheceu a luz elétrica e,

historiador Alexandre Ricardi, que desenvolve estudos

encantado com ela, tinha intenção de implantá-la

sobre companhias de energia elétrica no estado de São

no Brasil. Assim, três anos depois, em 1879, Dom

Paulo na República Velha, conta que, por influência

Pedro II concedeu a Thomas Edison a permissão para

do federalismo, as concessões “eram cedidas pelo

introduzir no país aparelhos e processos destinados

município, mais exatamente a partir da constituição de

à utilização da luz elétrica. Já no mesmo ano, foi

1891. Sendo assim, mais de uma empresa podia obter

inaugurado o primeiro serviço de iluminação elétrica

concessões, explorando o serviço de fornecimento de

de caráter permanente no país. Era a iluminação da

eletricidade em determinadas áreas e concorrendo com

Estação Central da Estrada de Ferro Dom Pedro II, hoje

outras empresas.”

chamada de Central do Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, a então capital federal.

32

Arrumando a casa

Poucos anos depois, em 1883, foi inaugurado o

primeiro serviço de iluminação pública, alimentado por

uma termelétrica, na cidade de Campos, estado do Rio

século XIX, o mundo assistia à Segunda Revolução

de Janeiro. A energia era fornecida por uma máquina

Industrial, quando foram introduzidas novas fontes

a vapor de 70 cv, correspondente a 52 kW de potência,

de energia, como a eletricidade e o petróleo e seus

que acionava três dínamos para acender 39 lâmpadas.

derivados, que fizeram surgir uma série de novas

Esse parece ter sido o primeiro serviço de iluminação

indústrias. Por consequência dessa evolução técnica,

elétrica não só do Brasil como em toda América do

grandes empresas foram formadas nos países mais

Sul. A primeira usina para abastecimento público e de

desenvolvidos, como Estados Unidos, Inglaterra e

origem hídrica, considerada por muitos estudiosos o

Alemanha, para explorarem esses novos mecanismos

marco inicial da geração elétrica brasileira, construída

em países periféricos, como Brasil, México e Cuba.

em 1889, foi a usina hidrelétrica de Marmelos (ou

Assim, na virada dos dois séculos, grandes companhias

Marmelos-Zero), abastecida pelo rio Paraibuna, em

internacionais aportaram no Brasil para explorarem os

Juiz de Fora, também no Estado de Minas Gerais.

serviços de força motriz e iluminação a eletricidade.

Mais tarde, usinas locais para abastecimentos de

Nesse período, entre meados e o final do

Na chegada de empresas como a do grupo Light,

pequenas indústrias, em especial dos ramos de tecidos

de origem canadense, e da Amforp, dos Estados

e mineração, além de iluminação pública e transporte

Unidos, a latente necessidade de organização do

elétrico, começaram a surgir. Apesar de ainda ser de

setor com regras e normas tornou-se cada vez mais

forma incipiente, o país já se iluminava e, aos poucos,

clara com o passar dos anos, mas ainda sem sair

começava a se modernizar.

efetivamente do papel. Durante a primeira república,

o governo federal criou regras superficiais para o

A história das concessões de empresas de energia

elétrica começou poucos anos depois da proclamação

controle do novo setor.

da república, quando se acentuou também o número

Nesse período, as empresas que começaram a


as concessionárias definissem os valores das tarifas e as determinassem em ouro, ao invés de seguir a moeda local. Com isso, havia uma correção monetária embutida.

Em 1920 é criada a Comissão de Estudos de Forças

1920-1930

1910-1920

Em vigor a liberdade tarifária, que permitia que

Hidráulicas, vinculada ao Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil, órgão do então Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Vigora ainda a liberdade tarifária das concessionárias.

trabalhar com o fornecimento de energia elétrica para o Brasil possuíam poucas regras de funcionamento. Os

A

vida antes das regras

a lei nº 1.145, de 31 de dezembro de 1903, e o decreto

No início do século XX, pequenas usinas geradoras de energia elétrica

nº 5.704, de 10 de dezembro de 1904.

surgiam por todo país para alimentar a iluminação de cidades, de pequenas

Essas leis definiam que o prazo máximo da

indústrias, de casas. Foi nessa época, em 1937, que o eletrotécnico Douglas

concessão era de 90 anos, mediante contrato, e que,

Guzzo nasceu. Em um núcleo residencial da Companhia Força e Luz de Jaú,

após o término da concessão, os bens utilizados

que tinha 14 famílias, Guzzo viveu seus primeiros anos.

seriam revertidos para a União, sem indenização. A

fiscalização dos contratos, por essas normas, deveria

trabalho do pai, que era chefe na usina de Gavião Peixoto, localizada

ser feita pelo governo federal. Contudo, nesse período,

entre os municípios de Araraquara e Boa Esperança do Sul, interior de

quem detinha o poder político eram os municípios, em

São Paulo. Nascendo e vivendo no núcleo da usina, ele assistiu de perto à

especial as Câmaras de Vereadores, e nesses espaços as

evolução da utilização da eletricidade no Brasil.

normas eram ditadas.

interligação entre as usinas, na época em que o pai chefiava a usina, como

primeiros movimentos de regulamentação surgiram na primeira década do século XX, quando são publicados

Em 1907 surgiu a primeira versão do Código de

Desde pequeno, Douglas teve contato com eletricidade, devido ao

Conta que, no interior, antes da regulamentação do setor e da

Águas, que, anos mais tarde, foi a primeira legislação

não tinha telefone ou rádio, a comunicação era feita “de uma forma muito

efetiva do setor elétrico, referente à exploração de

simplista: você abria a linha de transmissão uma vez e fechava. Abria

hidroeletricidade. O projeto foi elaborado pelo jurista

uma segunda vez e fechava. Era um toque para que o meu pai, a uma

Alfredo Valadão e apresentado ao Congresso no dia

distância de 30 quilômetros, retornasse à sua origem”. Eram dois ou três

26 de novembro do mesmo ano. O texto, contudo,

pequenos apagões que funcionavam como um sinal de comunicação entre os

tramitou por muitos anos sem sucesso.

funcionários da empresa.

O Código de Águas só foi transformado em

Alguns anos depois, quando ele mesmo já trabalhava na Companhia

norma 27 anos depois, com a publicação do decreto

Paulista de Força e Luz (CPFL), que adquiriu a empresa de Jaú, Guzzo

nº 26.234, de 10 de julho de 1934, no governo de

relata que o centro de operação do sistema, chamado de despacho de

Getúlio Vargas. O decreto definia a regulamentação

carga, “tinham pessoas que estavam treinadas para receber informações

da indústria hidroelétrica no Brasil e dava outras

e dar comandos operativos”. Ele era usado para comunicação com as

providências. Além disso, a constituição federal recém

outras usinas e de controle de tensão. “Já nessa época existiam rádios

publicada, de 1934, dizia que “compete privativamente

de comunicação, com freqüências diferenciadas”, explica, e era por meio

à União legislar sobre energia elétrica”.

do despacho de carga que a companhia controlava suas usinas antes das

concessionárias serem interligadas.

Um pouco antes, Getúlio Vargas determinou, em

1931, a retirada da competência dos municípios para autorizar a exploração da energia hidráulica, passando o controle para o governo federal, e dois anos depois, em 1933, acabou com a tarifa ouro.

33


regulamentação Linha

Pelo decreto nº 20.395, de 15 de setembro de 1931, o governo passa a controlar a regulamentação de exploração de energia hidráulica. Acaba a cláusula ouro, com o decreto nº 23.501, de 27 de novembro de 1933. Promulgação do Código de Águas (Decreto nº 24.643), de 10 de julho de 1934, primeiro grande instrumento regulatório do setor. A União passa a deter a competência de legislar e outorgar concessões de

1940-1950

1930-1940

do tempo Principais aspectos da evolução das regras para o setor elétrico brasileiro em mais de um século de história

Início de investimentos estatais no setor pelo governo federal a partir de 1945. Os Estados de Minas Gerais e Rio Grande do Sul criam usinas e órgãos estaduais de regulamentação. Em 1946, o governo federal apresenta o Plano Nacional de Eletrificação, que propõe

serviços públicos de energia elétrica. Surge, ainda, o Conselho Nacional

a concentração dos investimentos em usinas

de Águas e Energia Elétrica (CNAEE), com o decreto-lei nº 1.285, de

de pequeno e médio porte com o Estado como

18 de maio de 1939.

coordenador.

Até essa data, valia a liberdade tarifária que tinha

O fato de a regulação ter começado com Getúlio

seus valores definidos em ouro. Com isso, o valor

Vargas, que assumiu o governo após a Revolução

da tarifa era fixado a partir do custo do metal e isso

de 1930, deveu-se, entre outros fatores, às ações

incorria em várias alterações nos valores cobrados dos

modernizadoras que ele propôs para o Estado

consumidores, que trabalhavam com a moeda local.

brasileiro. “Vargas achava que o setor elétrico era um

Nesse ano foi então publicado o decreto nº 23.501, de

setor estratégico”, conta Saes, “e achava que o Estado

27 de novembro, que colocou fim aos pagamentos em

precisava ter um controle sobre o setor”. Por isso, criou

tarifa ouro e proibia que estes fossem feitos em outra

uma série de normas e ações para garantir ao país certo

moeda que não a nacional. O Código de Águas, no ano

controle sobre como a eletricidade era explorada.

seguinte, determinou o processo de fixação de tarifa a

partir de um custo fixo.

ganhava com o passar dos anos, no final da República

Velha, em 1930, o Brasil já contava com 891 usinas

Foram nas três primeiras décadas do século

Para se ter ideia da dimensão que o setor elétrico

XX que a energia hidroelétrica começou a ser

geradoras de eletricidade, sendo 541 hidráulicas e

explorada em grande escala no Brasil, até pela

337 térmicas. Contava ainda com algumas grandes

condição privilegiada do país que contava com

empresas, como a Light e a Amforp, que controlavam

muitas bacias hidrografias e rios com vazão suficiente

grandes e importantes mercados brasileiros.

para a instalação de usinas. Como era a forma

economicamente mais viável para o Brasil, a utilização

e desenvolvimento do setor elétrico no Brasil”, de José

crescia e o governo determinou suas regras iniciais de

Luiz Lima, a capacidade instalada de energia elétrica

utilização.

no país cresceu 61.709,52%, de 1890 a 1930. Por isso,

regulamentar este setor era tão importante.

Mas as primeiras fontes de energia a serem usadas

foram o gás e o carvão mineral, importados de países ocidentais, com grande destaque para a Inglaterra,

De acordo com a dissertação de mestrado “Estado

Organizar para crescer

que, como vinham de fora, estavam sujeitos a

34

variações cambiais e à disponibilidade externa. Mesmo

com a dependência estrangeira, algumas empresas

para tentar acompanhar o crescimento que o país

O governo federal começou a organizar o setor

mantinham usinas alimentadas por esses combustíveis

sofria. Cada vez mais empresas surgiam, novas ligações

fósseis. Por isso, a legislação brasileira incluiu, ainda

elétricas eram feitas e os transportes elétricos, nas

que superficialmente, um texto referente às usinas

maiores cidades, ainda eram importantes meios de

termelétricas. No Código de Águas, acrescentado

transporte para a população.

pelo decreto-lei nº 3.763, de 25 de outubro de 1941,

constava que os termos da norma “estendem-se

governo criou o Conselho Nacional de Águas e Energia

igualmente à energia termoelétrica e às empresas

Elétrica (CNAEE), em 1939, para acompanhar o setor.

respectivas, no que lhes forem aplicáveis”.

Uma das primeiras ações determinadas pelo CNAEE

Logo após a promulgação do Código de Águas, o


Rio de Janeiro e de São Paulo continua aumentando e, em 1957, é criada a empresa federal Central Elétrica de Furnas para ajudar no abastecimento.

1960-1970

1950-1960

Demanda de energia dos Estados de

Surge o Ministério de Minas e Energia (MME) pela Lei n° 3.782, de 22 de julho de 1960. Criada a Eletrobrás, em 1962, com as atribuições de planejar e coordenar o setor. Em 1963, a usina de Furnas começa a operar. No ano de 1965, a Divisão de Águas e Energia do Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM) é transformada no Departamento Nacional de Águas e Energia (DNAE), que, dois anos mais tarde, com a extinção do CNAEE, teve sua denominação alterada para Departamento de Águas e Energia Elétrica (DNAEE). Ainda em 1967 são fixadas

Fundação Energia e Saneamento

alíquotas mais elevadas para o Imposto Único sobre Energia Elétrica.

Subestação da Augusta, responsável por parte da distribuição da energia gerada pela The São Paulo Tramway Light and Power, em 1915. Nessa época, uma mesma concessionária gerava, transmitia e distribuía a energia. Oitenta anos depois, começou a processo de desverticalização do setor elétrico brasileiro.

35


regulamentação Linha

MME estabelece os princípios técnicos que dão origem ao Grupo Coordenador para Operação Interligada (GCOI), órgão especializado na operação otimizada do parque gerador. Começa a expansão do setor influenciada pelo II Plano Nacional de Desenvolvimento. Em 1971, é criada a Reserva Global de Reversão (RGR) – para permitir a retomada das concessionárias não-estatais ao final do período de concessão – e o governo aperfeiçoa a legislação tarifária, com a lei nº 5.655, de 20 de maio. Em 1973, pela lei nº 5.899, é

1980-1990

1970-1980

do tempo Principais aspectos da evolução das regras para o setor elétrico brasileiro em mais de um século de história

Redução dos investimentos do Estado, graças às crises do petróleo, faz o setor elétrico perder gradativamente a eficiência. Discordâncias entre concessionárias estaduais,

criada a Usina de Itaipu. A equalização tarifária entre as concessionárias de todo o país

Eletrobrás e área econômica do

vem em 1974, com o decreto-lei nº 1.383. Setor passa a gerar recursos para autofinanciar

governo federal, responsável pelo

sua expansão. Primeiro (1973) e segundo (1979) choque do petróleo.

controle orçamentário.

foi a revisão dos contratos e das concessões vigentes.

concentração dos investimentos em usinas de pequeno

Dessa forma, o governo federal começou a entrar em

e médio porte com o Estado como coordenador. Pouco

conflito com as empresas privadas, especialmente as

depois, estimulada pela política de industrialização

estrangeiras, que detinham o monopólio de grandes e

de Juscelino Kubitschek, foi criada a empresa federal

rentáveis regiões.

Central Elétrica de Furnas. Iniciada em 1958, entrou

É em consequência dessas ações que o setor

em operação em 1963 para atender aos três principais

elétrico brasileiro sofre sua primeira crise na década

centros consumidores do país, as cidades de São Paulo,

de 1940. O Estado encontrava dificuldades em

Rio de Janeiro e Belo Horizonte.

regulamentar o setor pela forte presença de capital

estrangeiro no controle. As regras que começavam a

elaborou um projeto de desenvolvimento do setor

surgir não privilegiavam tanto as companhias como

elétrico, o que propiciou a criação de parte das

a fraca legislação da República Velha e aí surgiu o

empresas estaduais fornecedoras de energia elétrica. É

conflito.

nesse período também que a população urbana começa

a superar a rural, as indústrias se multiplicaram e a

As empresas, entretanto, brigavam por melhores

Juscelino, que governou o país de 1956 a 1961,

tarifas que, com o início da regulamentação, passaram

energia elétrica tornava-se imprescindível para a vida

a ser estipuladas pelo governo. Elas não enxergavam

moderna.

campo propício para aumento no investimento no setor, graças ao clima de incertezas políticas e devido à

Com regras e com padrões

ascensão de grupos nacionalistas.

36

As empresas se retraíram, reduzindo investimentos,

As regras para organização do setor elétrico

e o governo não tinha técnica e recursos financeiros

não dizem respeito somente a interesses privados

para tocar sozinho o setor. Muitos contratos de

ou nacionais e a questões políticas. Era necessário

concessão estavam para vencer, então as companhias

regulamentar o setor para que ele mesmo ampliasse

pararam de investir em novas usinas, “quando começa

sua abrangência e crescesse.

a se ter constantes faltas de energia no período de

Segunda Guerra”, comenta Alexandre Saes. Em

e estados, importante para o próprio crescimento da

seguida, o fim da guerra fez as empresas estrangeiras

indústria elétrica no Brasil, mostrou-se condicionante

realocarem seus investimentos para seus países de

para a definição de padrões de trabalho. Isso porque,

origem.

no início da instalação das concessionárias, não

havia definições de qual frequência e tensão elétrica

Essa situação fez o Estado tomar mais ações

A interligação das usinas geradoras, entre cidades

regulatórias a fim de impedir o engessamento do

as concessionárias deveriam seguir. Enquanto a

setor. Assim, a União ampliou suas atribuições e

industrialização era pequena, isso não representava

passou a investir diretamente na geração elétrica. Foi

tanto problema para as fornecedoras e para os

nesse período, em 1946, que o governo apresentou

consumidores.

o “Plano Nacional de Eletrificação”, que propôs a

“Inicialmente foram adotadas duas frequências,


1990-2000

Crise no setor. A possibilidade de falta de energia passa a ser uma realidade. Privatizações se apresentam como alternativas. Início da reforma do setor elétrico brasileiro, com as leis nº 8.631, de 1993, que extingue a equalização tarifária vigente e cria os contratos de suprimento entre geradores e distribuidores, e nº 9.074, de 1995, que cria o produtor independente de energia e o conceito de consumidor livre. Pela Lei nº 9.427, de 26 de dezembro de 1996, é instituída a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Em 1996 é implantado o projeto de reestruturação do setor elétrico brasileiro (Projeto RE-SEB), coordenado pelo MME. Em 1997, a lei nº 9.433, de janeiro de 1997, institui a Política Nacional de Recursos Hídricos e cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Ainda em 1997, o decreto nº 2.335, de 6 de outubro, aprova a estrutura regimental da Aneel. A lei nº 9.648, de 27 de maio de 1998, cria o Mercado Atacadista de Energia (MAE) e o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).

cuja escolha dependia dos geradores comprados para

“que temos o início da interligação dos sistemas, por

as usinas geradoras. Para o cidadão comum, que usava

meio de linhas de transmissão de energia a longas

a eletricidade para iluminação residencial ou pública,

distâncias, que hoje atinge quase todo o país”, relata o

tanto fazia já que as lâmpadas acendiam com qualquer

advogado e engenheiro eletricista Moacir Fischmann.

frequência, mas esta tinha importância para os motores e pouca gente os usava”, explica o engenheiro

Aumentando as distâncias

eletricista, ex-diretor de Potência do Instituto de Energia e Eletrotécnica, da Universidade de São Paulo

(IEE/USP), Duílio Moreira Leite.

elétrica, não só nos Estados Unidos, com Edison, como

também as primeiras realizadas no Brasil, eram feitas

Os dois principais centros econômicos brasileiros

As experiências iniciais de geração de energia

utilizavam padrões de frequência diferentes. As

com corrente contínua (CC), na segunda metade do

usinas montadas pela Light de São Paulo tiveram

século XIX. Mas a corrente nessa forma trazia algumas

geradores comprados dos Estados Unidos e, por isso,

limitações em termos de transmissão de energia porque

elas funcionavam em 60 Hz, enquanto as usinas da

ela gerava grandes perdas elétricas a longas distâncias.

Light do Rio de Janeiro tinham equipamentos vindos

Por isso, um dos principais problemas da eletricidade

da Europa, que geravam energia na frequência de

nesse período era aumentar seu alcance e ampliar sua

50 Hz. “Até então, a frequência das empresas era

utilização.

individualizada pela própria área de concessão. Ela

não era interligada”, explica o ex-chefe de seção do

alternada, entre o fim da década de 1880 e o início

departamento de operação da Companhia Paulista de

de 1890, por Nikola Tesla, foi possível se transmitir

Força e Luz (CPFL), Douglas Guzzo.

energia elétrica a longa distância sem grandes perdas.

O engenheiro e historiador Gildo Magalhães, em

Quando a industrialização se acentuou, as cidades

Só com o desenvolvimento comercial da corrente

cresceram e a interligação dos sistemas elétricos se

seu livro “Força e luz: eletricidade e modernidade

tornou cada vez mais necessária; foi preciso definir

na República Velha”, apelida essa capacidade de

um padrão. A escolha foi feita pelo padrão do estado

“transmissibilidade”. Isso significa que a corrente

que tinha maior quantidade de indústrias, no caso

alterada é transmissível e transportável a grandes

São Paulo, para tentar minimizar os possíveis custos

distâncias com baixas perdas. Aponta ainda essa

de alteração. Os equipamentos industriais, se não

característica como um dos fatores determinantes para

trabalhassem na frequência correta, funcionavam mal

a aceleração da difusão dos usos da eletricidade.

e apresentavam problemas, mais do que poderiam

apresentar aparelhos eletrodomésticos, que ainda

aumenta-se a tensão elétrica para valores muito

eram pouco usados e tinham custo menor do que os

elevados, a fim de reduzir as perdas no transporte,

industriais.

e depois a reduz novamente para distribuir para os

consumidores. Isso permitiu que o campo de uso da

É com o surgimento da Eletrobrás, em 1962, e a

entrada em operação da Usina de Furnas, em 1963,

Na transmissão de energia a longas distâncias,

eletricidade fosse ampliado e que usinas maiores,

37


regulamentação Linha

2000-2010

do tempo Principais aspectos da evolução das regras para o setor elétrico brasileiro em mais de um século de história

Resolução da Aneel nº 456, de 29 de novembro de 2000, estabelece as condições gerais de fornecimento de energia elétrica. Em maio de 2001, governo adota medidas emergências para tentar reduzir risco de colapso de oferta de energia e cria a Câmara de Gestão da Crise de Energia (CGCE). O racionamento energético, no mesmo ano, reforça a necessidade de reorganização do setor. A reestruturação começa com as leis nº 10.847, que autoriza a criação da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e nº 10.848, que dispõe sobre a comercialização de energia elétrica. Ambas as leis são de 15 de março de 2004. O decreto nº 5.175, de 9 de agosto de 2004, cria o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) e, dois dias depois, o decreto nº 5.177 dispõe sobre a organização, as atribuições e o funcionamento da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). O decreto nº 5.184, de 16 de agosto de 2004, cria efetivamente a EPE, responsável pelo planejamento do setor. Fontes: Fascículo “Direito em Energia Elétrica”, de Marcelo Gastaldo, publicado na revista O Setor Elétrico; livro “Força e luz: eletricidade e modernização na República Velha”, de Gildo Magalhães, e a apresentação “Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro: Desafios e Perspectivas”, de Amilcar Guerreiro.

afastadas das cidades, fossem construídas. A elevação

a ser uma realidade. Então, ficou clara a necessidade de

da tensão contribui ainda para a redução dos custos

a área energética brasileira ser renovada.

de distribuição, sendo, no final da cadeia, repassado

aos consumidores tanto residenciais quanto comerciais

privatizações que começaram na era Thatcher-Reagan,

e industriais. Se a corrente contínua fosse utilizada,

também alcançando o Brasil. Começou então um

o custo final para o consumidor poderia ser maior,

processo de desestatização e reestruturação do setor,

devido ao custo mais elevado para transmiti-la.

separando as atividades de geração, transmissão,

distribuição e comercialização de energia elétrica.

Para as tensões também foram definidos padrões.

O mundo, de modo geral, vivia uma onda de

Para baixa tensão, no Brasil podem ser encontradas

tensões monofásicas nas faixas de 110-127 V e de

A lei nº 8.631, de 4 de março de 1993, extinguiu a

220-240 V. Duílio Moreira Leite, relata ainda que “a

equalização tarifária e criou contratos de suprimento

Eletrobrás, na década de 1970, decidiu nomear uma

entre geradores e distribuidores. A lei nº 9.074, de

comissão para escolher um padrão para o Brasil e se

1995, criou o produtor independente de energia e o

chegou à solução mais econômica: 220 / 380 V, que

consumidor livre e, em 1996, foi implantado o Projeto

era adotada na Europa e que foi adotada em muitos

de Reestruturação do Setor Elétrico Brasileiro, o Projeto

estados. Mas não se podia de uma hora para outra

RE-SEB, que, sob coordenação do Ministério de Minas

trocar a tensão em que havia um número muito maior

e Energia, reforçou a necessidade de programar a

de consumidores, em São Paulo, principalmente”.

desverticalização das empresas de energia elétrica.

Desverticalização do setor

Em 1993 houve o primeiro passo nesse caminho.

Outra mudança significativa para o setor aconteceu

em 2004 quando foi promulgada a lei nº 10.848, que é o marco legal que dispõe sobre a comercialização

As primeiras empresas de eletricidade geravam,

de energia elétrica. O novo modelo define ainda a

transmitiam e distribuíam a energia para os

convivência de empresas estatais e privadas, que passam

consumidores. Por conta das crises do petróleo,

a ser divididas por atividade (geração, transmissão,

em 1973 e 1979, e de outros fatores, como o alto

distribuição, comercialização, importação e exportação).

serviço da dívida externa (juros) atribuído às grandes

Acentuam-se ainda os ambientes livre e regulado de

hidrelétricas – especialmente Itaipu – e a proibição

comercialização de energia elétrica.

de empréstimos visando ao setor elétrico imposta pelo Banco Mundial , o governo brasileiro perdeu capacidade de mobilizar recursos para investir no setor elétrico exatamente depois de centralizar todo o comando nele. Com isso, o setor começou a apresentar sérias dificuldades financeiras, durante as décadas de 1980 e 1990. Como não havia recursos para investir no setor, a possibilidade de faltar energia no país começou

38

Pesquisa: • Direito da eletricidade: teoria geral e parte prática Walter T. Alvares, Casa do Estudante do Brasil. • Direito em Energia Elétrica Marcelo Machado Gastaldo, Revista O Setor Elétrico. • Força e luz: eletricidade e modernização na República Velha Gildo Magalhães, Editora Unesp.


Da

normalização para a regulamentação

Para garantir a organização e a integração das concessionárias, além

de permitir a expansão do setor elétrico brasileiro, foi necessário definir regras de funcionamento para as empresas, que estabelecessem padrões de funcionamento e atuação. Mas essas ações poderiam encontrar entraves se os produtos do setor elétrico não fossem normalizados, adotando padrões de tamanho, material, resistência, entre outros. Isso porque, sem um padrão construtivo, eles estariam sujeitos a variações de fabricação, podendo gerar problemas na instalação, utilização e comercialização. Sem uma norma de elaboração, eles poderiam deixar sua utilização restrita e, sem um padrão, poderiam não ser fabricados em linha de produção em massa. Isso tornaria os equipamentos mais caros para o consumidor no fim da escala produtiva.

Assim, desde cedo, no início da produção industrial em larga escala,

os próprios fabricantes começaram a se mobilizar para criar modelos para seus produtos, que fossem adotados por toda uma categoria e região. Esse processo de normalização foi iniciado, na virada do século XIX para o XX, na Grã-Bretanha, primeiro país a entrar na Revolução Industrial e a sentir necessidade de serem criadas normas nacionais. Foi criado, em 1901, o Engineering Standards Committee, para definir os padrões nacionais para engenharia e, três anos depois, nascia a Comissão Eletrotécnica Nacional, a IEC, definido normas e padrões para os equipamentos elétricos.

Para o mercado brasileiro poder acompanhar os acontecimentos da

Europa, foi criado, ainda em 1908, o Comitê Brasileiro de Eletricidade, Eletrônica, Iluminação e Telecomunicações (Cobei), que tem como objetivo incentivar e promover o desenvolvimento e difusão da normalização técnica no Brasil. Entre 1938 e 1939, a ideia de criar uma entidade nacional de normalização ganhou força no país e acabou dando origem, em 1940, à Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

Em 1944, a Organização das Nações Unidas (ONU) criou o Comitê

de Coordenação de Normalização e, dois anos depois, representantes de 25 países se reuniram para criação de uma organização internacional que facilitasse a coordenação e a harmonização de normas industriais entre os diversos países. Como conclusão da discussão, foi criada a Organização Internacional de Normalização, a ISO.

Entretanto, a primeira iniciativa do governo brasileiro nesse

campo só veio 70 anos depois do início da criação das entidades de normalização. Pela lei nº 5.966, de 11 de dezembro de 1973, foi criado o Sistema Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Sinmetro), que é composto por diversas organizações, dentre elas o Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro). Com o passar dos anos, o setor foi ganhando cada vez mais órgãos para auxiliar na definição de normas e o setor elétrico conserva até hoje o posto de um dos segmentos mais organizados e normalizados do ramo industrial.

39


distribuição

Por Bruno D’Angelo

ELETRICIDADE E

A história do desenvolvimento do sistema elétrico brasileiro: das iniciativas privadas esparsas a uma complexa organização e controle automatizado com forte intervenção do governo federal

Quando a eletricidade

deixou de ser algo restrito à alimentação de máquinas, transportes coletivos e à iluminação de pequenas praças públicas e começou a ganhar o mundo, alimentando residências, estabelecimentos comerciais e indústrias, sua implantação, gerenciamento e controle tornou-se um problema estratégico para as empresas privadas investidoras e para o poder público: como fazer para produzir energia elétrica em grande quantidade? E, mais ainda, como fazer para transportar essa energia a muitos lugares e a distâncias não imaginadas até então?

Energia elétrica tornou-se sinônimo de progresso

da humanidade. Em curto espaço de tempo e até os dias atuais, todas as atividades do homem, direta ou indiretamente, dependem dela a ponto de ser impensável ver-se destituído da eletricidade e de seus benefícios.

40


PROGRESSO

Dessa maneira, ao se descobrir o real alcance

primeira usina geradora de eletricidade do mundo.

da energia elétrica no final do século XIX e começo

Concomitantemente, com o intuito de solver a

do século XX, fizeram-se prementes rápidas

questão do transporte de energia elétrica germânico,

transformações para que mais pessoas recebessem as

é construída na Alemanha a primeira linha de

melhorias propiciadas por ela. Essas transformações

transmissão de corrente contínua a longa distância. O

foram desde desenvolvimentos tecnológicos, na

entrave se deu justamente no que concernia ao tipo

tentativa de conceber uma geração e distribuição

de corrente em que era transmitida a eletricidade,

de eletricidade mais eficiente, com menos perda

isto porque a corrente contínua, dominante, até

e dissipação de calor, até a concepção de normas,

aquele momento, demonstrou-se, na prática, não

órgãos governamentais e leis que regulamentassem a

muito adequada, apresentando tensão e rendimento

novidade que surgia.

insuficientes.

A dificuldade era então reunir todos os atores

A questão envolvendo corrente contínua e

a fim de colocar a eletricidade em prática no Brasil,

corrente alternada já preocupava os cientistas desde o

um país com características peculiares: território de

surgimento dos primeiros motores elétricos. Buscando

tamanho continental e hidrografia privilegiada para a

resolver a questão do comutador que tornava o

geração de energia elétrica. Junte a isso o fato de, no

equipamento complicado, além de tentar deixá-lo

início dos anos 1900, o país ser um arremedo europeu,

mais barato e eficiente, diversos inventores, dos

com uma quase não existente industrialização,

quais se pode destacar o italiano Galileu Ferraris, o

comandado por uma elite paulistana enriquecida pela

servo-croata Nicolau Tesla e o russo Michael Von

agricultura cafeeira.

Dolivo-Dobrowolsky, começaram a trabalhar não

somente no aperfeiçoamento dos motores de corrente

Como visto, as coisas não eram assim tão fáceis de

arrumar e foi preciso, no início, maciça ajuda externa

contínua como em motores funcionando com sistema

e investimentos na área de formação e capacitação

de corrente alternada.

de engenheiros para que o Brasil entrasse de vez na

era da eletricidade, da luz elétrica. Antes de entrar

apresentar uma saída relevante foi o italiano Ferraris.

nos pormenores dessa “epopeia”, contudo, é preciso

Ele construiu um motor de duas fases com um cilindro

fazer um pequeno recuo e mostrar como os inventores

de cobre como rotor, mas logo descobriu que sua

estrangeiros resolveram, primeiro, os seus problemas

invenção apresentava um sério problema: seu motor

com a transmissão da eletricidade.

de campo girante não podia fornecer uma potência

A solução alternativa

mecânica maior do que 50% em relação à potência elétrica consumida.

Com o sucesso do motor elétrico desenvolvido

No tocante à corrente alternada, o primeiro deles a

Assim como o inventor italiano, Tesla se debruçou

sobre a causa da corrente alternada. Sua pesquisa

pelo cientista alemão Werner Von Siemens e com

a respeito de um sistema de transmissão de energia

os crescentes aprimoramentos da nova máquina, o

elétrica que prescindisse dos complicados comutadores

processo de industrialização baseado no motor elétrico

resultou em um motor de indução de duas fases que

se espalhou rapidamente, o que gerou um novo desafio

não apresentou bom rendimento assim como o motor

ao empresariado da época: como transmitir energia

de Ferraris, mostrando-se também inviável do ponto

elétrica para regiões cada vez mais distantes que

de vista econômico.

começavam a se industrializar?

parecia estar com os dias contados, mas graças a

Para suprir a demanda crescente, Thomas Alva

Edison constrói, em 1882, nos Estados Unidos, a

A alternativa do motor de corrente contínua

Dobrowolsky ela ganhou novo fôlego para ressurgir de

41


distribuição

uma vez por todas. Trabalhando em cima do sistema de Tesla, o engenheiro russo desenvolveu um motor trifásico com potência contínua em torno de 80 watts e rendimento de, aproximadamente, 80%. Impulsionado pelo sucesso de sua invenção, Dobrowolsky pôde sustentar que economicamente os sistemas de corrente alternada trifásica eram os mais viáveis.

Como explica o engenheiro eletricista e professor

emérito da Escola Politécnica da USP, Ernesto João Robba, o emprego de corrente alternada, em substituição à corrente contínua, e a invenção do transformador, em 1882, que permitiu elevar ou reduzir o valor eficaz da tensão elétrica, foram os dois inventos que abriram novas perspectivas para o transporte de energia.

No início, a superioridade da corrente alternada

diante da corrente contínua não era tão evidente assim, como se vê pelo sistema elétrico usado pelas principais cidades do mundo, no final do século XIX. Berlim, Paris e Nova York, estimuladas pela peculiaridade da corrente contínua, que permitia o armazenamento em baterias e garantia, assim, o abastecimento de energia no caso de distúrbios no gerador, já haviam decidido pelo sistema de corrente contínua.

Contudo, as deficiências da corrente contínua,

o fato de não poder ser transformada em corrente alternada para transmissão ainda fazia uma dúvida pairar sobre as cabeças de seus adeptos. A cidade de Frankfurt, na Alemanha, por exemplo, discutia fortemente qual sistema era o melhor, ponderando os prós e os contras de cada um. A luz na discussão surgiu em 1891, em uma feira internacional de materiais elétricos realizada na cidade, quando foi apresentada com grande sucesso uma linha de transmissão em corrente alternada que ligava as cidades de Lauffen e Frankfurt. Com 175 Km de extensão, ela tinha um rendimento aproximado de 75%.

O sistema exposto na feira alemã funcionava

da seguinte forma: um gerador alimentado por uma turbina hidráulica com potência de 200 kVA produzia energia elétrica para Lauffen. Quando passada para a linha de transmissão, um transformador aumentava a tensão do gerador elétrico para 25 mil volts. Em Frankfurt, outro transformador reduzia novamente a tensão para 65 volts. A energia fazia funcionar

42

um motor de 100 kW, desenvolvido pelo russo Dobrowolsky; este acionava uma bomba de água que alimentava uma cachoeira artificial construída no pátio da feira de materiais elétricos.

Diante dessa demonstração bem-sucedida, a

empolgação foi grande, mas se engana quem acreditou que a escolha pela corrente alternada havia sido feita. A discussão a respeito do melhor sistema de energia elétrica de Frankfurt ainda duraria mais dois anos, até que a Câmara de Vereadores da cidade decidiu por uma margem pequena de votos pela utilização da corrente alternada. Após isso, foi uma questão de tempo até que outras cidades, não só alemãs, mas como do restante da Europa, se rendessem ao sistema de corrente alternada.

Houve, entretanto, certa resistência em modificar a

corrente contínua por corrente alternada. Na Suíça, por exemplo, no final do século XIX, apesar de já haver uma superioridade do novo sistema, as coisas não funcionavam como se esperava. Para se ter uma ideia, das 80 usinas elétricas construídas até aquele momento na Suíça, a maioria, 36, era para funcionar em sistema de corrente alternada, mas monofásicas ou bifásicas. As usinas de corrente alternada trifásica eram apenas 23, diante de um número quase igual de usinas de corrente contínua: 21.

Um dos principais países da Revolução Industrial,

os Estados Unidos, também ficou reticente no começo sobre qual sistema elétrico escolher. A grande dúvida era em relação ao número de fases que devia ser adotado. Mas depois da ampliação da usina hidrelétrica de Niágara, ficou mais fácil se render a eficiência do sistema de corrente alternada trifásica. Não obstante a desconfiança, a corrente alternada acabou vencendo a batalha. Após o desfecho da Primeira Guerra Mundial, dois terços de energia consumidas pelos países industrializados – Inglaterra, Alemanha, França e Estados Unidos – já era por meio do sistema de corrente alternada.

Dom Pedro II e burguesia cafeeira

Enquanto nos países europeus mais ricos e nos

Estados Unidos, uma indústria da eletricidade já se consolidava, no Brasil, as mudanças nesta área caminhavam a passos lentos conforme as iniciativas


esporádicas do monarca Dom Pedro II. Isto porque,

seu potencial hídrico sem medo de perdas elétricas.

ele desejava provar à sociedade brasileira, já

Entretanto, longe do que se vê hoje, as primeiras

descontente com o regime, que podia cumprir um

usinas hidrelétricas apresentavam potências reduzidas,

duplo papel simultâneo: ser o baluarte da tradição e

o suficiente para suprir áreas específicas, particulares,

um incentivador de avanços científicos. Imbuído desta

na sua maioria, para uso comercial.

certeza, o imperador brasileiro trouxe para o Brasil

algumas novidades que circulavam na Europa, entre

hidrelétrica brasileira foi a Usina de Ribeirão dos

elas, a luz elétrica.

Infernos, em Diamantina, Minas Gerais. Ela era

composta de uma caixa de força com dois geradores

As pioneiras ações de Dom Pedro II no que

De acordo com Penteado Jr. e Dias Jr., a primeira

concernia à iluminação por meio da eletricidade

de 6 kW. “Sendo significativo o fato de que eles eram

se restringiram a áreas específicas e de pequenas

acionados por uma turbina hidráulica de madeira”,

dimensões. Em 1879, por exemplo, ele inaugurou um

afirmam. Uma linha de transmissão de apenas 2

sistema de iluminação pública na antiga Estação da

km levava eletricidade para acionar duas bombas

Corte da Estrada de Ferro Central do Brasil, no Rio

de desmonte a jato em um terreno de extração de

de Janeiro, em que trocou 46 bicos de gás por seis

diamantes.

lâmpadas de arco voltaico. Dois anos mais tarde, o

Campo de Santana, também no Rio de Janeiro, recebeu

já predominava sobre a termelétrica, foi quando

mais 16 lâmpadas de arco voltaico e, no mesmo

começaram a surgir as primeiras empresas de

período, uma exposição industrial foi iluminada com

eletricidade do Brasil. Em um primeiro momento,

60 lâmpadas da companhia Edison Electric.

iniciativa de pequenos grupos de homens

com dinheiro. Em São Paulo, por exemplo, os

Em pouco tempo, os projetos foram aumentando

Na virada do século XIX, a energia hidrelétrica

de tamanho e, em 1883, Campos, no Rio de Janeiro,

empreendimentos elétricos tiveram início com uma

tornou-se a primeira cidade da América do Sul a

burguesia cafeeira, que estimulada por viagens a

receber iluminação pública por vias elétricas. Logo

Europa, decide trazer para o Brasil a luz elétrica;

depois, em 1884, foi a vez da cidade de Rio Claro, em

símbolo de progresso.

São Paulo, receber 10 lâmpadas de arco voltaico para

iluminação pública. Cabe destacar aqui, que todos

euforia a nova invenção, há relatos de que, em 1907,

estes primeiros empreendimentos elétricos brasileiros,

na festa de inauguração da iluminação pública de

de caráter limitado, foram alimentados por energia

Botucatu, cidade interiorana de São Paulo, foram

termelétrica; tecnologia dominante na ocasião.

armados dois coretos na praça principal da cidade

onde tocaram a Banda da Força Pública e a banda

Conforme o engenheiro eletricista Aderbal

Para se ter uma ideia de como era recebida com

A primeira hidrelétrica

Penteado Jr. e o historiador José Augusto Dias Jr.,

local. Houve queima de fogos de artifício e a curiosa

no livro História da Técnica do e da Tecnologia no

montagem de uma réplica de cerca de 10 metros da

brasileira foi a

Brasil, a opção pela termelétrica pode ser explicada

Torre Eiffel, fato que pode ser explicado: no ano de

também pela dificuldade tecnológica de transmissão

1900, a estrutura ganhou uma portentosa iluminação

a grandes distâncias. O País enfrentava praticamente

elétrica, acontecimento que se tornou mundialmente

os mesmos problemas dos estrangeiros: o sistema de

famoso.

Usina de Ribeirão dos Infernos, em Diamantina (MG),

corrente contínua impossibilitava alterações de níveis de tensão e aumentava as perdas durante o processo.

A chegada das estrangeiras

Dessa forma, havia uma limitação quanto ao alcance da área de influência da usina geradora de energia.

Estas precisavam ficar perto dos centros de consumo,

eram regionais. Em outras palavras, não havia

ou seja, longe de aproveitamentos hidrelétricos.

uma organização e nem um controle por parte do

incipiente governo da república. Os empreendimentos

Com o surgimento de geradores de corrente

As empresas elétricas do início do século XX

alternada e outros aprimoramentos que tornaram estas

se faziam por acordos contratuais entre as prefeituras

máquinas mais eficientes, o Brasil conseguiu utilizar

e as empresas. Os equipamentos para a efetuação

composta de uma caixa de força com dois geradores de

6 kW. 43


distribuição

O Grupo Light pode ser considerado um

Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL), localizada

naquela época, até simples lâmpadas necessitavam de

no interior de São Paulo.

importação. A situação do sistema elétrico brasileiro

começou a encorpar com a chegada, em 1899, na

à estruturação e à organização de seu sistema elétrico,

cidade de São Paulo, da companhia canadense The São

progredindo também tecnologicamente. Controlando

Paulo Tramway, Light & Power Co.

as pequenas empresas brasileiras, a Amforp unificou

sistemas que apresentavam grandes diferenças no que

Conforme o professor Robba, a empresa

E graças a elas, o Brasil deu um grande passo rumo

estrangeira, por meio de seus investimentos em

se referia a tensão e frequência utilizadas, contribuindo,

usinas hidrelétricas, conseguiu fazer o que até

dessa forma, para a normatização e padronização

aquele momento os empresários brasileiros não

técnica e administrativa do setor elétrico brasileiro, que

haviam sido capazes de fazer: implantar um serviço

saía de um agregado de pequenas companhias, para

completo de energia elétrica na cidade de São Paulo;

uma rede integrada sob a tutela da CAEEB.

não, apenas, em iluminação pública, mas também

na movimentação de bondes e eletrificação de

de frequências diferentes no Brasil também ocorreu

residências e indústrias.

entre a Light e a Amforp, no Estado do Rio de

Janeiro, em 1930. A interligação tinha como

Os primeiros investimentos maciços em serviços de

A primeira interligação com sistemas elétricos

geração, transmissão e distribuição de energia elétrica

objetivo transmitir energia da Ilha dos Pombos,

foram responsabilidade da Light. Como a demanda por

região alimentada pelo sistema Rio Light em 50 Hz

energia em São Paulo crescia de forma acelerada, no

para Niterói Petrópolis e outras cidades fluminenses,

início do século XX, foi necessário que a companhia

que funcionavam no sistema de 60 Hz da Amforp.

canadense construísse uma série de hidrelétricas e

Para tanto, foi construída a subestação conversora

redes de distribuição e transmissão. Destaque para

de Rio da Cidade, em Petrópolis, que possuía

usina de Paranaíba, o primeiro investimento da Light

duas unidades conversoras de 3 MW e tinha suas

na cidade. Inaugurada em 1901, no rio Tietê, a usina

transferências de energia controladas a distância por

possuía duas unidades geradoras de 1,0 MW. De

meio de sinais enviados por linha telefônica.

acordo com Robba, estas eram as maiores potências

unitárias do mundo na época.

causa da revolução de 1930 que conduziu Getúlio

Vargas ao poder, a subestação foi inaugurada para

Não demoraria muito, apenas quatro anos, de fato,

A curiosidade da interligação é que, por

dos responsáveis

e a Light aportaria na cidade do Rio de Janeiro, onde

funcionar no sentido diferente do previsto. A Ilha

inauguraria, em 1908, a usina hidrelétrica de Fontes,

de Pombos havia sido dominada pelos revoltos e

pelo grande

com extraordinária potência instalada de 24 MW. De

sua energia parcialmente cortada, dessa forma, a

acordo com o professor da Poli, o Grupo Light pode

subestação foi posta para funcionar e converter

ser considerado um dos responsáveis pelo grande

energia da Amforp para o atendimento da Rio Light.

desenvolvimento populacional e industrial do eixo

Outras interligações entre sistemas elétricos foram

Rio - São Paulo, já que foi a empresa canadense quem

efetuadas, nos últimos anos da República Velha,

industrial do eixo

estruturou o sistema elétrico das duas cidades.

mas sempre de caráter emergencial, não resultando,

Rio – São Paulo,

necessariamente, no estabelecimento de uma

os serviços elétricos com outras inúmeras empresas

desenvolvimento populacional e

já que foi ela quem estruturou o sistema elétrico das duas cidades.

44

do trabalho eram todos adquiridos no exterior;

Até o final da década de 1920, a Light dividia

de capital nacional, mas era a única companhia estrangeira no País. O quadro mudou com a chegada,

operação coordenada entre empresas.

Intervenção do governo

em 1927, da empresas norte-americana, American and Foreign Power Co. (Amforp), que, por meio

da Companhia Auxiliar de Empresas Elétricas

elétrico brasileiro, ou melhor, fizeram-no existir.

As companhias estrangeiras ajeitaram o setor

Brasileiras (CAEEB), assumiu o controle de empresas

Aterrissaram no Brasil, com o intuito de expandir

de eletricidade regionais, tais como a Companhia

seus mercados consumidores e em busca de lucros e

Energética da Bahia (Coelba), em Salvador e a

fizeram o governo brasileiro perceber a relevância da


eletricidade para economia do País e resolvesse ele

a década de 1950 o Brasil ter serviços de geração,

mesmo colocar a mão na massa e começar a organizar

transmissão e distribuição organizados sob a forma de

o setor, gerindo sua normatização e controle.

sistemas isolados e independentes.

Quem se encontrava no comando máximo

Por sua vez, o controle cada vez mais rígido

do País, na época, início da década de 1930, era

do Governo Federal, em específico, a questão do

Getúlio Vargas, líder gaúcho de uma revolução que

custo histórico prevista pelo Código de Águas,

desmontara a estrutura viciada na qual paulistas

que limitava os lucros das empresas, fez as

e mineiros se alternavam no cargo da presidência

concessionárias estrangeiras resistirem a construir

da República. Vargas assumiu o poder e instaurou

novos empreendimentos. Juntando-se a isso, as

posteriormente a primeira ditadura brasileira; seu

dificuldades da administração federal em aparelhar-

governo se destacou por ser fortemente nacionalista e

se de maneira apropriada para exercer sua atividade

centralizador, características que foram aplicadas ao

fiscalizadora, a aplicação do código ficou muito

segmento de energia elétrica.

tempo em suspenso e atrapalhou o processo de

expansão do sistema elétrico do País.

Não que, anteriormente, o governo não houvesse

feito nada nessa área, mas suas ações se limitaram

à criação de órgãos governamentais para estudos e

abastecimento em 1939, o que obrigou Getúlio Vargas

levantamentos de aproveitamentos hidrelétricos sem

a abrir mão das rígidas exigências legais impostas

força normativa. Já existiam, por exemplo, nesse

às concessionárias estrangeiras, que impediam

período, a Comissão de Forças Hidráulicas do Serviço

a expansão do parque gerador e a interligação

Geológico e Mineralógico do Ministério da Agricultura,

de sistemas elétricos. Com esse afrouxamento

estruturada em 1920, e o Serviço de Águas da Diretoria

normativo, várias interligações foram autorizadas e

de Produção Mineral do Ministério da Agricultura, que

implementadas durante a Segunda Guerra Mundial,

surgiu em 1924.

sob a coordenação do Conselho Nacional de Águas

e Energia Elétrica (Cnaee). Mesmo assim, a crise de

A questão é que somente em 1934 já durante o

Tal situação fez o Brasil passar por uma crise de

Governo varguista, uma ação relevante foi tomada

suprimento de energia em alguns pontos do país

visando a legitimar o poder governamental no

tornou-se cada vez mais preocupante.

que se referia a eletricidade: o Código de Águas,

o primeiro instrumento jurídico que permitiu ao

de maior porte. Foram criados, então, entre outras

governo central intervir no planejamento e no

empresas de energia elétrica: a Companhia Hidrelétrica

controle do setor elétrico.

do São Francisco, (Chesf), em 1945, que foi responsável

pela construção da Usina de Paulo Afonso, no rio São

No início da década de 1940, a regulação e

Era preciso, dessa forma, realizar investimentos

normatização de empreendimentos elétricos brasileiros

Francisco, e pela construção do sistema de transmissão

já se encontravam, em sua maioria, nas mãos

para o suprimento de toda a região nordeste do Brasil;

governamentais, ficando a atuação estrangeira restrita

a Centrais Elétricas de Minas Gerais, (Cemig), em 1952,

a investimentos financeiros.

que foi responsável pela construção da usina de Três

Crise, expansão e interligação

Marias. Além da exploração do Rio Grande, por Furnas, e da construção das usinas do conjunto Jupiá-Ilha Solteira, pela Centrais Elétricas de São Paulo (Cesp).

O duplo pilar em que se baseava o setor elétrico

Como explica o professor da Poli, Ernesto Robba,

brasileiro em meados do século XX, regulação por

o surgimento de grandes usinas hidrelétricas e o

parte do governo nacional e capital oriundo do

esgotamento das reservas hídricas, próximas aos

exterior, fez o sistema elétrico do País se apresentar

centros de consumo, e a consequente exploração

de maneira peculiar e com que, a longo prazo, alguns

de fontes mais afastadas, impunham que o sistema

problemas relativos à geração de energia ocorressem.

de transmissão contasse com reforços no sentido de

No caso dos investimentos estrangeiros, a preferência

permitir sua operação interligada. Contudo, antes, era

por abastecer somente os centros urbanos fez até

preciso superar um obstáculo: as diferentes frequências

45


distribuição

empregadas nas regiões brasileiras. “Havia lugares em

importância para integração do sistema Sul/Sudeste, a

que a frequência era 50 Hz e outros em que era 60 Hz”,

usina hidrelétrica de Tucuruí, situada no rio Tocantins,

comenta. Para solucionar o problema, foi iniciado o

no Estado do Pará, foi deveras importante para a

programa de padronização da frequência, que optou

interligação Norte/Nordeste e, mais tarde, também

por 60 Hz.

para a conexão com o restante do Brasil. A usina

começou a ser construída em 1975 e a primeira turbina

Dos investimentos para conseguir interligar o

sistema elétrico brasileiro, destaca-se o aproveitamento

do empreendimento começou a funcionar nove anos

do potencial hidrelétrico de Furnas (1963) e a

depois, contudo, curiosamente, como era grande

construção de Itaipu, dez anos depois. O projeto

a urgência, em 1981, antes mesmo de iniciadas as

de Furnas incluiu a instalação de 1200 MW e a

atividades de Tucuruí, um circuito de transmissão em

implantação de linhas de transmissão, com 345 kV,

500 kV permitiu a ligação imediata entre as cidades de

ligando Belo Horizonte à capital paulista, passando

Belém (PA), São Luis (MA) e o sistema da Chesf.

pelo Rio de Janeiro. Havia uma crise energética

na região sudeste e Furnas impediu o colapso no

da Eletrobrás, Sebastião da Silva, que participou de

fornecimento de São Paulo e Rio, os dois maiores

todo o processo de construção da usina de Tucuruí,

centros urbanos e industriais do País, na época.

o empreendimento foi importante também para o

Para que a transmissão de Furnas funcionasse

desenvolvimento econômico da região em que foi

perfeitamente, ela passou a contar com um moderno

instalado. “Antes de Tucuruí, não havia nada na região,

sistema de comunicação por microondas, interligando

agora há aeroportos e muito mais infra-estrutura”,

suas usinas e principais subestações.

afirma. Silva comenta também que a indústria de

alumínio da região foi beneficiada porque se utilizou

Já Itaipu, com capacidade de 12.600 MW, o que

Conforme o assistente da diretoria engenharia

representava 70% do parque gerador do país em

da energia elétrica gerada por Tucuruí para processar

1973, época em que foi inaugurada, impôs novos

a bauxita. A propósito, os primeiros contratos de

rumos ao planejamento de expansão dos sistemas do

fornecimento da energia de Tucuruí foram concluídos

Sudeste e do Sul. Por causa dela, foi instituída, pela

com empresas produtoras de alumínio: a Alcoa, do

Lei Itaipu, os Grupos Coordenadores para Operação

Maranhão e Albrás, no Pará.

Interligada (GCOI) das regiões Sudeste e Sul, que vieram substituir os antigos Comitê Coordenador da

Os comandos dos sistemas

Operação Interligada (CCOI), que compreendia ou

46

somente a região Sudeste ou a região Sul. Estes grupos

posteriormente foram substituídos pelo Operador

houve uma mudança muito grande no âmbito

Nacional do Sistema (ONS).

administrativo do setor. Em um primeiro momento,

nos idos dos anos 1880, a eletricidade ainda incipiente,

Por isso, Furnas e a Lei de Itaipu são consideradas

Desde o início das atividades elétricas no Brasil,

marcos fundamentais da história da operação dos

não se pode dizer que havia uma estrutura organizada.

sistemas elétricos interligados no País. Furnas, por

Eram iniciativas esparsas de burgueses enriquecidos.

exemplo, foi definida por Juscelino Kubitschek como

Logo, chegaram as empresas estrangeiras, Light e

o centro de gravidade do programa de expansão

Amforp, que ajudaram o Brasil a dar os primeiros

dos sistemas elétricos do Sudeste e elemento-chave

passos rumo a um sistema elétrico mais desenvolvido.

da interligação desses sistemas em um conjunto

integrado. Ambas propiciaram um avanço importante

da República, com seu governo centralizador,

nas conexões e na operação coordenada, entre 1963 e

as companhias do exterior ficaram restritas

1973, época na qual o crescimento do parque gerador

somente ao aporte de capital para a construção de

brasileiro foi significativo, passando de 6.355 MW para

empreendimentos, passando a organização do setor

16.698 MW, sendo que 12.577 MW desse montante já

elétrico para as mãos do governo nacional. Surgem,

pertenciam aos sistemas elétricos interligados do País.

neste momento, os primeiros órgãos normativos,

legislativos e administrativos do segmento elétrico.

Se Furnas e Itaipu são tidas como de grande

Com a chegada de Getúlio Vargas à presidência


Pode-se dizer, no entanto, que a entrada definitiva

necessária a criação de um órgão com mais condições

do País na profissionalização administrativa do

de operar em suma sistema que agora integrava,

setor aconteceu em 1961 com a criação da holding

praticamente, o Brasil inteiro, o chamado Sistema

estatal Centrais Elétricas Brasileiras S.A (Eletrobrás),

Interligado Nacional (SIN).

que nasceu com a função principal de executar a

política do governo do Brasil nos setores de produção,

características peculiares do sistema elétrico brasileiro

transmissão e distribuição da energia elétrica,

e a experiência acumulada pelos anteriores grupos

coordenando e financiando projetos, em todo o país.

e comitês regionais nas atividades de coordenação,

planejamento, programação e supervisão da operação

De acordo com Robba, quando do surgimento

A criação do ONS respeitou, sem dúvida, as

da Eletrobrás, os sistemas elétricos de potência

dos sistemas interligados, tornando mais evidente

brasileiros estavam estruturados como monopólios

ainda o reconhecimento da necessidade de otimização

estatais e federais. Todos eles sob responsabilidade

rigorosa e centralizada da operação hidrotérmica.

da nova holding, que, por sua vez, era diretamente

ligada ao Ministério de Minas e Energia. Neste

território brasileiro, para aprimorar a segurança do SIN,

momento, a Eletrobrás contava com subsidiárias,

o ONS elaborou um relatório estabelecendo um Plano

responsáveis basicamente pela área de geração e de

de Ação que observou a identificação e a melhoria

transmissão, ficando o setor de distribuição a cargo de

das instalações vitais do sistema, a reavaliação dos

concessionárias estaduais.

procedimentos de recomposição e a implantação

dos chamados Esquemas de Controle de Segurança

O quadro se modificou a partir da década de 1990,

Após o blecaute de 1999, que atingiu 70% do

quando houve um boom das privatizações no País. O

(ECS), que tinham o intuito de minimizar os efeitos de

setor elétrico não passou incólume. As subsidiárias da

eventos que eram muito difíceis de ocorrer, mas que se

Eletrobrás, assim como ela própria e as concessionárias

ocorressem teriam grave impacto sobre o fornecimento

de distribuição foram privatizadas, sendo criada para

de energia.

regular o novo sistema que se estruturava a Agência

Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Esta assumia a

de Energia Elétrica (Cepel) foram concebidos novos

posição do Departamento Nacional de Águas e Energia

corredores de recomposição do SIN e revisados os

Elétrica (Dnaee).

procedimentos de recomposição já existentes nas áreas

geoelétricas, como também os processos operativos de

Conforme Robba, a mudança se fez necessária. O

Com ajuda da Eletrobrás e do Centro de Pesquisas

O Estado estava sobrecarregado e o custo da energia para os consumidores

Estado estava sobrecarregado e segundo ele, o custo

tempo real. Já a transferência para o ONS dos centros

da energia para os consumidores finais estava muito

de operação das empresas subsidiárias da Eletrobrás

finais estava muito

elevado. Dessa forma, o antigo monopólio estatal pelo

deu ao operador os recursos de infra-estrutura

qual se caracterizava o setor elétrico foi transformado

imprescindíveis para a realização das funções de

elevado.

em uma grande indústria, com diversos participantes,

coordenação e supervisão da operação em tempo real.

cujo produto é a energia elétrica. Nesta levada, foram

separados também os serviços de geração, transmissão

de Gerenciamento de Energia (Sage), programa de

e distribuição de energia elétrica.

supervisão e controle, que foi desenvolvido pelo Cepel,

em 1999, e possibilitou o ONS receber grandezas

No que concerne ao controle dos sistemas

Junte-se a todo esse complexo, o Sistema Aberto

integrados, a reestruturação do setor também levou a

telemedidas e telessinalizações a intervalos de 10

criação do ONS, que veio substituir os antigos comitês

segundos. Dessa forma, o SIN passou a ter, por parte

coordenadores regionais. Estes tiveram relevante

de seu operador, uma maior qualidade da operação

importância a partir dos anos 1960, em uma época

em tempo real, assim como um suprimento de energia

na qual a integração elétrica do Brasil ainda se

mais seguro e confiável. O ponto é que com essas

limitava a um número restrito de territórios. Com o

novas tecnologias e a bagagem adquirida dos comitês

crescimento do parque gerador brasileiro, que começou

e grupos de coordenação regionais, o ONS pôde

a apresentar usinas com cada vez mais capacidade e os

controlar bem sucedidamente, pelo menos até agora, o

crescentes investimentos em linhas de transmissão, foi

sistema interligado brasileiro.

O antigo

monopólio estatal pelo qual se caracterizava o setor elétrico foi transformado em uma grande indústria, com diversos participantes, cujo produto é a energia elétrica.

47


sob um olhar

José Roberto Cardoso

OERSTED E O SUCESSO PROFISSIONAL

48

Comecei a escrever este texto no dia 14

divergiu: enquanto Anders tornava-se juiz de

de agosto. Embora poucos saibam, esta é uma

direito, chegando até a ocupar, ocasionalmente,

data marcante para a Engenharia Elétrica. Neste

o posto de primeiro-ministro, Hans, por sua vez,

dia do ano de 1777, nascia em Rudkøbing, na

resolveu ser cientista.

Dinamarca, Hans Christian Oersted.

de Immanuel Kant (1724-1804), para o qual

A vida de Hans Christian Oersted foi,

Oersted era fascinado pela filosofia germânica

no mínimo, curiosa. Filho mais velho de um

somente a razão não é suficiente para se chegar

farmacêutico, teve sua educação fortemente

a um completo conhecimento da natureza, como

influenciada pelos seus vizinhos, que tomavam

era preconizado. Afirmava que é necessário um

conta dele e de seu irmão mais novo, Anders

tratamento cuidadoso das pesquisas para se

Sandoe, enquanto seus pais ganhavam a vida.

atingir o objetivo e Oersted seguia à risca este

princípio em seus trabalhos.

O casal que se ocupava da guarda dos

meninos era um alemão, fabricante de perucas,

e sua esposa dinamarquesa, que ensinaram aos

experimentou uma breve atividade profissional

garotos a língua alemã, a religião e também a

em sua área de formação como gerente da “Lion

aritmética. Outro amigo do casal e um padre

Apothecary”, um excelente estabelecimento

os instruíram na multiplicação e na divisão. O

farmacêutico de Copenhagen, ao mesmo tempo

grego e o latim foram ensinados por um gravador

em que exercia um trabalho não remunerado,

em madeiras e o desenho por um padeiro. Esta

ministrando algumas aulas na universidade.

educação não convencional induziu nos garotos

uma sede por conhecimento, como bem descreve

de um conhecido e talentoso filósofo para um

W. A. Atherton no seu livro From Compass to

cientista consagrado, aconteceu quando recebeu

Computer, A History of Electrical and Electronics

uma bolsa de estudos de três anos para viajar e

Engineering.

tomar contato com as personalidades do mundo

intelectual dos países europeus. Ele estava em

Por conta de tudo isso, Hans e Anders eram

Terminado seu curso de graduação, Hans

A virada na vida de Oersted, que passou

inseparáveis, não só nos estudos como também

viagem pela França e Alemanha em 1801 quando

na vida cotidiana que perdurou até a época da

ainda grassava o frenesi científico devido à

universidade. Por influência de seu pai, Hans

descoberta da bateria por Alexandre Volta em

seguiu a carreira de farmacêutico e Anders

1800. Foi neste momento que ele decidiu construir

a carreira do direito, ambos na Universidade

sua própria bateria.

de Copenhagen. Concluídos seus cursos

universitários, o caminho deles, no entanto,

eletroquímica, de modo que permitiu a Oersted

A descoberta de Volta criou também a


Oersted demonstrou que uma corrente elétrica variável (ligando e desligando a bateria) produz um efeito chamado campo magnético, que vai defletir a agulha imantada. Anos mais tarde, começou-se a perguntar se o inverso não seria verdade, isto é, se variandose um campo magnético não seria produzido um efeito de campo elétrico, chamado corrente, o que coube a Faraday demonstrar. Michael Faraday

observar a eletricidade se associando fortemente

daria perante uma plateia.

à Química, deixando de ser uma ciência isolada

e compartimentada. Sua dedução foi ainda

ser fino e ter alta resistência, pois imaginava

mais consolidada ao verificar que um fio fino

que, para conseguir produzir o efeito procurado,

percorrido por corrente elétrica se aquece e

ele deveria estar aquecido. Estava errado! Pois,

pode produzir a luz, levando-o a concluir que a

mesmo com uma pequena corrente fluindo pelo

eletricidade e a luz são resultados das mesmas

fio, um fraco campo magnético foi produzido

forças da natureza.

ao seu redor com intensidade suficiente para a

agulha magnética se mover.

Com todo este embasamento, Oersted começou

Na sua concepção, o fio do circuito deveria

a observar as similaridades entre a eletricidade e

o magnetismo: ambas exibem forças de atração

que mesmo Oersted não ficou totalmente

e repulsão, leu relatos de que após a queda de

convencido de seu resultado. Novos experimentos

um raio, agulhas foram magnetizadas e Franklin

foram então realizados em julho de 1820 com

havia demonstrado a natureza elétrica do raio.

uma bateria mais potente. Mesmo assim foi difícil

Assim, ele não tinha dúvidas de que a eletricidade

para ele acreditar no resultado que observava e

e o magnetismo deveriam também ser produzidos

que daria a ele um lugar especial na história da

pelas mesmas forças da natureza, apesar de, em

ciência. Sua conclusão foi a de que a corrente

1780, Charles Coulomb provar conclusivamente

elétrica produz o magnetismo.

(ele não sabia o quanto estava errado!) que a

eletricidade e o magnetismo eram duas ciências

a eletricidade e o magnetismo, criando a mais

totalmente distintas apesar das similaridades

sofisticada ciência do nosso tempo, denominada

apresentadas.

Eletromagnetismo. O trabalho de Oersted se reflete

em nossos dias, pois foi graças a ele que Ampère

Convicto de suas conclusões, Oersted partiu

O efeito não foi muito dramático, de modo

Este acontecimento foi o marco da união entre

em busca de uma prova de suas intuições. No

descobriu que um condutor percorrido por

inverno de 1819-1820, ele ministrava uma série

corrente elétrica, imerso em um campo magnético,

de aulas a um pequeno grupo de estudantes

está sujeito a uma força, de modo que este efeito

das séries mais avançadas. A experiência que

explorado adequadamente permitiu a invenção

ele desejava realizar era o efeito de um circuito

dos geradores e dos motores elétricos.

fechado sobre a agulha magnética de uma

bússola.

que o sucesso está ao alcance das mãos de

qualquer um, bastando que estejam abertos

A experiência com o circuito aberto havia sido

Gosto de contar esta história para mostrar

realizada exaustivamente, porém sem sucesso.

para o novo, sem preconceitos e juízo de

Não tendo tempo para realizar o experimento

valor. Deem valor à experimentação como

antes de uma palestra, na qual pretendia mostrar

garantia de uma boa conclusão, busquem uma

os resultados obtidos, ele resolveu postergá-lo.

experiência internacional e, por fim, acreditem

No entanto, enquanto ministrava sua palestra

na sua intuição. Esses fatores, aliados a um

sobre outro assunto, ele mudou de ideia e resolveu

comportamento ético irredutível, não há como

realizá-la para a audiência. Pela primeira vez na

não levar ao encontro do tão sonhado sucesso

história da ciência, uma descoberta científica se

profissional.

José Roberto Cardoso é engenheiro eletricista, mestre e doutor em engenharia elétrica. Realizou um pós-doutorado no Labaoratorie d’Electrotechnique de Grenoble, na França e atualmente é professor titular da Escola Politécnica da USP (EPUSP), coordenador do Laboratório de Eletromagnetismo Aplicado e vice-diretor da EPUSP. Foi fundador e presidente da Sociedade Brasileira de Eletromagnetismo por duas gestões e é pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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