3 Viagens pelo Eu dos Eus RACHEL KORMAN, HELENA MARTINS-COSTA E TATIANA MACEDO
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Depois do Espaço t, surge a Quase Galeria Espaço t, espaço de integração pela arte, numa perspectiva de inclusão total, sem tabus, estereótipos, preconceitos e tudo aquilo que segrega o valor humano. Valorizamos apenas a aceitação incondicional do outro. Numa perspectiva transversal da sociedade, dos ricos dos pobres, dos coxos aos esteticamente intitulados de belos, todos cabem no conceito. Num mundo cada vez mais desumanizado, solitário, onde todos são ―colocados em gavetas‖, verificamos que o homem apenas representa o papel que lhe é dado, e quase nunca mostra o seu verdadeiro interior. Com o Espaço t, aqueles que por ele passam ou passaram, crescem e entendem que o verdadeiro homem não é o do ―gaveta‖ mas o do seu interior e entenderam também o que há na sua verdadeira essência, quer ela seja arte bruta, naife ou apenas arte de comunicar, é por si só a linguagem das emoções, a linguagem da afirmação do maior valor humano. O pensar e o libertar esse pensamento crítico sobre uma forma estética. Esse produto produz uma interacção entre o produtor do objecto artístico e o observador desse mesmo objecto; promovendo assim sinergias de identidade e afirmação melhorando dessa forma a auto estima e o auto conceito daqueles que interagem neste binómio e se multiplica de uma forma exponencial. Este é o Espaço t, E apesar de sempre termos vivido sem a preocupação de um espaço físico, pois sempre tivemos uma perspectiva dinâmica, e de elemento produtor de ruído social positivo, ruído esse que queremos que possa emergir para além das paredes de um espaço físico. Apesar de não priorizarmos esse mesmo espaço físico, pois ele é limitador e castrador foi para esta associação importante conseguirmos um espaço adaptado às necessidades reais e que fosse propriedade desta associação que um dia foi uma utopia. Com a ajuda do Estado, mecenas, e muitos amigos do Espaço t, ele acabou por naturalmente surgir. Com o surgir do espaço do Vilar, outros projectos surgiram tendo uma perspectiva de complementaridade e crescimento desse espaço, que apesar de real o queremos também liberto desse conjunto de paredes, fazendo do espaço apenas um ponto de partida para algo que começa nesse espaço e acaba onde a alma humana o quiser levar. Surgiu assim a ideia de nesse lugar criarmos outro lugar, também ele figurativo embora real, chamado Quase Galeria. Uma galeria de arte contemporânea com um fim bem definido: apresentar arte contemporânea Portuguesa nesse espaço, dentro de outro espaço, onde cada exposição será uma fusão de espaços podendo mesmo emergir num só espaço. Com este conceito pretendemos criar uma nova visão do Espaço t, como local onde outros públicos, outros seres podem mostrar a sua arte, desta vez não terapêutica mas sim uma arte no sentido mais real do termo que forçosamente será também terapêutico, pois tudo o que produz bem estar ao individuo que o cria é terapêutico. Com o apoio das galerias: Graça Brandão, Presença, Reflexus, Modulo, 3 +1, Jorge Shirley e com a Comissária e amiga Fátima Lambert, temos o projecto 2
construído para que ele possa nascer de um espaço e valorizar novos conceitos estéticos contribuindo para a interacção de novos públicos no espaço com os públicos já existentes promovendo assim, e mais uma vez a verdadeira inclusão social, sem lamechices, mas com sentimento, estética e cruzamentos sensoriais humanos entre todos. Queremos que com esta Quase Galeria o Espaço t abra as portas ainda mais para a cidade como ponto de partida para criar sinergias de conceitos, opiniões e interacções entre humanos com o objectivo com que todos sonhamos – A Felicidade. Jorge Oliveira O Presidente do Espaço t
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3 Viagens pelos eus do eu ―3 viagens pelos eus do eu‖, integrando obras das artistas plásticas Helena Martins-Costa (Brasil), Rachel Korman (Brasil/Portugal)e Tatiana Macedo (Portugal) apresenta trabalhos de fotografia e um vídeo. ―There is no perception in the absence of the body. Nevertheless, any number of modern commentators have claimed that the rise of aesthetics in the eighteen century depends on the repression of the body.‖1 ―Toda a descida em nós mesmos é simultaneamente uma ascensão, uma assumpção, uma vista do verdadeiro exterior.‖2 A pessoa retrata-se, apresenta-se ou representa-se quanto mostra suas decisões sobre o congelamento dos outros que povoam seu quotidiano ou se atravessam em lugares do passado. Sempre apropriação possível, afinidades lúcidas ou consolidação de si. No confronto das imagens das três artistas desconhecem-se as razões efectivas dos lugares, suspeita-se dos enredos próprios ou anónimos, promovendo novas iconografias e interpretações. O artista não está isento dos ―condicionalismos sensoriais‖ (Edward T. Hall3); está sujeito às suas experiências diferenciadas, o que sucede pelo simples facto de os homens vivenciarem, habitarem em mundos sensoriais específicos e diferentes. Os condicionalismos da percepção, quer do corpo próprio, quer dos outros corpos, do corpo-outrem, clarificam a verdade que a percepção é cultural e diferenciada. As mensagens registadas no ―eu‖ pelos órgãos sensoriais, logo a elaboração psicocognitiva e demais ilações, resultam de uma representação do mundo plural e multicultural.4 Na Arte, o corpo é ―objecto‖ enquanto pode ser considerado (e decidido) através de diferentes estratégias que respondem a outras tantas e várias intencionalidades (por parte do artista/autor). A sua fixação, a captação e o registo do corpo como imagem pode revestir-se de apropriações, entre outras, como as que seguem: - em movimento, em quietude — conceitos labanianos; - instauração/constituição de gestos - continuidade/descontinuidade dos movimentos; - configuração/composição da pose (encenação géstica) – imobilização, duração e dissolução; - recriação quer do movimento, quer da quietude — mesmidade, alteridade ontológico/estética, 1
Tobin Siebers, “Introduction: Defining the Body Aesthetic”, The Body Aesthetic – From fine art to body modification, Michigan, The University of Michigan Press, 2000, p. 1 2 Novalis, Fragmentos (trad. Mário Cesariny), Lisboa, Assírio & Alvim, 1986, p.14 3 Cf. Edward T. Hall, La dimension cachée, Paris, Ed. du Seuil, 1978, cf. Chap. 9, pp.129-130: "C'est à se fondement sensoriel préculturel que le savant doit inévitablement se référer lorsqu'il compare les modèles proxémiques. Le premier, infraculture, concerne le comportement et il est enraciné dans le passé biologique de l'homme. Le second, préculturel, est physiologique et appartient essentiellement au présent. Un troisième niveau, microculturel, est celui où se situent la plupart des observations proxémiques. (...)" 4 Cf. António Pinto Ribeiro, Corpo a corpo – possibilidades e limites da crítica, Lisboa, Ed. Cosmos, 1997, p.118
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com o intuito, intenção de cumprir: - desenvolvimento de um trabalho performático possível; exercício de exploração/conhecimento — auto-gnósico — do corpo próprio; - elaboração exterior dando visibilidade para outrem — constituição intersubjectiva, no campo societário, cultural...
A afirmação do corpo em imagem – no caso das 3 artistas nesta mostra – demonstra a consciencialização de si como acto singular, único e exclusivo. O que não indispõe quanto à sobrevivência de modelos reconhecíveis nos outros – sejam estes denominados ou ausentes de identificação. O artista, ao usar-se como objecto a converter em obra5, mostra ser imprescindível a convocação de um ―quase arquétipo‖ particular. Verifica-se distintamente que a imagem internalizada do "corpo próprio" (conceito introduzido por M. Merleau-Ponty) se institui como: — representação (interior/mental)que o sujeito se faz do corpo enquanto aparência; — modo como se comparece perante si configurado: integra as 3/4 acepções do corpo — real, imaginário, idealizado >>> simbólico —, num contexto social, cultural, particularizado pela sua inscrição, história pessoal; — presentificação totalizadora (em unidade interna/externa) perante os outros, implicando actos de decisão artística e estética. Como tive, já anteriormente, oportunidade de assinalar, alguns dos eixos de sustentação para a definição estruturada, existencialmente e analiticamente, da imagem do corpo podem enunciar-se: 1) pela organização em torno de uma forma destacada: sentimento de unidade das diferentes partes do corpo ("desarticulação" - José Gil), da sua apreensão como todo, dos seus limites, do seu contorno preciso no espaço e 2) pela propriedade/posse substancial de um conteúdo — corpo continente de si mesmo >>> imagem do corpo como um universo coerente e familiar onde se inscrevem sensações previsíveis e reconhecíveis... 3) pela concepção epistemológica do saber: conhecimento pelo sujeito, ainda que rudimentar, da ideia que a sociedade se faz da espessura invisível do corpo; saber daquilo que o constitui, como agenciamento de órgãos e funções... Também para o artista, a imagem e a definição do corpo que o sujeito elabora, decorre de diferentes fontes: a) dos outros em presenças efectivas; b) do confronto com as imagens ―mediatizadas‖ dos outros: — criação/celebração de idolatrias; — criação/estipulação de modelos; — criação/interiorização de estereótipos. c) do próprio:
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(A contemplar, a ver, tanto por si mesmo, após sua externalização em imagem, como pelos espectadores.)
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— imagens segmentadas, parcelares, visionadas sobre si mesmo – de acordo com a perspectiva descensional sobre o próprio eu – dirigido o olhar sobre si que não instituem a completude do euimagem-todo; — imagens reflectidas em superfícies especulares; — imagens-retratos (fotográficos e videográficos)…
Não seja de surpreender, pois, que fotógrafos quanto pintores e outros tenham realizado série infinitas de cativação de imagens de si. Nem todas as imagens de si mesmo são auto-retratos, no sentido mais literal do termo. O auto-retrato, recorrente e transversal na História da Arte Ocidental envolve, designadamente na época contemporânea e na actualidade, uma atitude interior — consciente ou inconscientemente potencializada com intuito de demonstrar a "corporeidade própria"6.
Tatiana Macedo A pessoa pensa-se a si mesma. Procura-se a pessoa, nunca ou somente uma paisagem, dizia Bernardo Carvalho em Mongólia. Si mesm(a)o busca-se de dentro para fora, revendo-se em outrem e regressando a si, tendo passado pelos outros do outro. Na viagem por si, o corpo torna-se exploratório, além do tempo e no espaço. O corpo pode aceder a posturas de quase ―loucura‖, reencarnando situações vividas por outrem, absorvendo-as e devolvendo-as com genuinidade. ―Se o nosso corpo, em si mesmo, não é senão um centro de acção comum dos nossos sentidos – se nós possuímos o domínio dos nossos sentidos – se os podemos fazer agir à vontade – se os podemos centrar em comunidade, então não depende senão de nós darmos a 7 nós próprios o corpo que queremos.‖
As Séries apresentadas por Tatiana Macedo: “Mental Disorders for the camera”, “Tensões Corpo/Objecto” e “Polaroid Studies: Tensões Corpo/Objecto” possuem denominadores comuns. O corpo próprio é encenado, cenário; ou seja é, simultaneamente sujeito e objecto; é próprio e alheio. 6
Descoberta da constituição do "meu próprio corpo" — Paul Valéry. "No término da mente, o corpo. Mas no término do corpo, a Mente." 7 Novalis, Fragmentos (trad. Rui Chafes), Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, p.51
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O registo do corpo nestas imagens fotográficas explora o espaço de envolvência, localiza-se assumindo uma propriedade sobre as coisas – por exemplo o televisor, o balde, os sapatos ou as botas. Esses objectos conduzem à diferencialidade relativamente ao corpo, promovendo-lhe a singularidade, conferindo-lhe uma corporalidade intensa; proporcionam através de uma vontade decisória e ironista (caso de Polaroid Studies) que conduz o registo supostamente ―espontâneo‖, a convicção definitiva e identitária – recordem-se as imagens fotográficas de Erwin Wurm. O gesto - movimento e rosto - é simultaneamente significante e significado. Oferece ao corpo um outro tipo de universalidade, a de uma "lógica do sentido" que lhe permite operar passagens de um código a um outro sem recurso a uma grelha transcendente. Esta propriedade do corpo traz a marca da cultura, de uma distância com a natureza que, aliás a organização do corpo humano permitiu.
As fotografias correspondem a etapas vivenciadas – umas mais directamente imputáveis à identidade própria da artista, outras pretendem-lhe uma desafectação, um distanciamento. Todavia, as marcas da pessoalidade criativa encenam-se em poses caracterizadoras de uma assunção do corpo próprio que se relaciona com uma exploração coreográfica além da exploração perfomática. Existe uma certa generosidade relativamente aos outros que são o eu. As colocações outorgam uma presentificação, uma apresentação e, numa percentualidade menor, uma representação. Une-as o desempenho que é registado em tempos e condições criativas diferenciadas. Nuns casos, a aparente instantaneidade das polaroids cumpre a concretização morosa e elaborada da Série conclusiva. Mas possuindo em si um hieratismo estético decisório. Não são imagens transitivas mas estabelecidas, independentemente da duração do pensamento, das argumentações conceptuais que as antecede em termos de concreção. Organizando a passagem do olhar do espectador pela contemplação das fotografias sequencializam acções cinéticas que ultrapassam a imobilidade do registo. O movimento precede e sucede à fixação, estabiliza-a e garante-lhe pessoalidade.
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Rachel Korman A pessoa deixa vestígios de si, algures, nenhures…para que alguém se apresse e os veja ou deles se aproprie. Atenção, pois os vestígios podem esvanecer-se demasiado rapidamente…. Aí, a pessoa dissolve-se (isto é 1 pergunta…). Uma das modalidades através das quais, a fotografia se relaciona com o ―real‖, cativando-o, é pelos vestígios, pelos rastos, pelas marcas, assinalou Philippe Dubois. A Série Vestígios vem sendo construída ao longo de anos, à semelhança das pequenas aderências que o tempo nos regala. Os vestígios, que deixam marcas no solo, instituem-se como imagens do corpo. O corpo existe, é usado em acções (quase performances). Os elementos naturais acolhem o corpo da artista e deixam-se penetrar, efectivando a sua força mítica. É caso de forças cosmogónicas quase: neve [água], areia [água + terra], flor de sal [água salina] e relva [terra brotando da água]. A ductilidade da matéria condiciona a morfologia dos vestígios gerados. O corpo lançase e permanece, na decorrência de uma osmose que é ritual. Fica para os demais o registo do acto e da acção na obra. Lembra o Fausto de Goethe, quando se refere às condições e impulsos da criação por analogia à Criação divina: "No princípio era a Acção!"8
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Goethe, Fausto, "Quarto de Estudo" (1250-1264), Fausto (trad. de Agostinho d'Ornelas), Coimbra, Universidade de Coimbra, 1953, pp.60-61
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A imagem externa (tornada exterior) é fisicalizada/corporeizada em relação à concepção da imagem interna, com a conformidade (credível e legitimadora) da interioridade – compleição da auto-imagem mental/profunda. Presencia-se um processo que materializa a ideia (=imagem mental antecipatória) que, por sua vez, ao aprofundar-se, somente subsiste enquanto imagem. Mas as imagens são esculturas em reverso, em molde negativo. Não se dissolvem em cavidades geometrizantes: as marcas antropomórficas asseguram nas 4 imagens que o corpo/identidade é um e o mesmo mas, simultaneamente, garantem-lhe diversidade. Quem é o título da obra que complementa a intervenção de Rachel Korman. Consiste numa composição de fotografias, tipo passe, cujas dimensões são 3x4 cm, percorrem um arco temporal iniciado aos 5 anos de idade e que se desenha até aos 50 anos. A artista interferiu nas fotografias ao lhes infligir uma aceleração que funciona em termos perceptivos. Ou seja, não se trata de uma temporalização de sequência de imagens como se de um diaporama se tratara – o que permitiria aos espectadores aperceberem-se dos detalhes fixos e estabilizados de cada uma das fotografias. A aceleração, que lhes conferiu gera sobreposições sucessivas, impede o reconhecimento individuado de cada unidade/fotografia. O empastamento das imagens evidencia a não-consciência diária da passagem do tempo na vida. E uma metáfora da vivência do tempo subjectivo… A existência sonora Quem? Deixa igualmente de ser perceptível em termos auditivos, dês-reconhendo o significado da palavra. Duplo empastamento, dupla contaminação: indistintas unidades fotográficas e indistinta interrogação sobre quem [é]…
Quem… .
Helena Martins-Costa “Les visages font-ils partie du coprs? Parfois j’en doute. Ils semblent sans le poids du reste. Ils viennent directement du démoniaque et de l’angélique, d’en bas et 9 d’en haut; le reste est seulement terrestre.”
Os rostos não estão; foram erradicados da imagem fotográfica. Os rostos existiam nas fotografias originais, fotografias essas das quais Helena Martins-Costa se apossou. A identidade dos fotografados dissolveu-se no tempo e no espaço – na história, não possuindo tampouco um título.
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Guido Ceronetti, Le silence du corps, Paris, Albin Michel, 1984, p.56
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Sem título, sem identidade, sem nome: poder-se-ia pensar. É em tudo o contrário. Pois alguém, a artista, decidiu e agiu, apropriando-se de fotografias inominadas e sobre elas foi agindo. Questione-se qual o significado – para os espectadores – destes corpos truncados, cujos rostos foram expulsos. Os rostos, as faces que, de forma convencional, são os elementos mais facilmente denunciadores das identidades singulares. Esta acção é, irreversivelmente, premeditada. Pretende-se intensificar a vicissitude de anonimato, desidentidade dos corpos. A leitura que se desenhe pode não ser literal, melhor, será quase certamente questão polissémica. Para lá daquilo que é preconizável, do que corresponderia às expectativas cognoscíveis aos contempladores, o confronto com corpos de ―cabeça seccionada‖ organizam uma nova ordem de compreensão, uma extensibilidade do que seja a apreensão individuada da pessoa humana. Pense-se quão frequentemente, os rostos não servem para enfatizar a personalidade…quanto podem dissimulá-la, torná-la ilusória. A ausência de rosto completo – nalgumas imagens a cabeça ainda deixa vislumbrar o queixo – obriga a uma focagem mais atenta ao corpo visível.
Corpo travestido pelos cânones da moda de época, atravessando desde a década de 10 até aos anos 40 e/ou 50 do séc. XX. Os adereços denunciam o período em que os
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fotografados tenham vivido. Nalguns casos, as fotografias procedem de famílias da alta sociedade paulista. Outras, advêm de lugares e tempos desconhecidos totalmente. Padrões de comportamento, colocações de corpo que rectificam estipulações psico-societárias, atitudes que denunciam sensibilidades ou circunstâncias potencializam interpretações que transcendem em muito a condição óbvia do visualmente percepcionado sem mais. Considere-se que os corpos inominados são duplamente desidentificados… mas essa certeza é apenas uma pseudo-condição, algo que não corresponde exactamente à situação. A identidade passa a ser outorgada, registada por mão da artista que se converte em autora pois decidiu distintos actos que transfiguraram as fotografias iniciais. A recepção do real passa pela transfiguração mantendo dados genuínos das fotografias originais. As marcas da passagem do tempo sobre as matérias fotográficas são preservadas. Não há restauro, não existe apagamento dos sinais que garantem a autenticidade, garantindo pois que houve identidade para além da projecção de teor auto-presentativo que a intencionalidade e a consequente acção da artista concretizou. Não se trata de auto-retrato ―directo‖, nem mesmo intermediado mas localiza-se na ordem da projecção identitária que sublinha a propriedade autoral.
CODA As viagens pelo eus do eu dependem do eu e da substância que o recebe O conceito de figura, nas diferentes acepções, revoluciona-se. Atendendo ao estudo do retrato na pintura renascentista, nomeadamente em Leonardo da Vinci, verifica-se a preponderância atribuída no todo, à fisionomia — em termos de percepção visual deliberada — e particularmente à representação da boca e dos olhos. Os olhos constituem-se, segundo o autor, órgãos privilegiados, demonstrando importância crescente na cultura erudita da época e posteriormente. No século XVI, o retrato individual apresenta-se como fonte e tema, fundamentais da pintura, liberto das referências, quase exclusivas e obrigatórias, até então, da figuração religiosa. Através da consciência de individuação pelo corpo, chegou-se à individuação pelo rosto, em que se inscreveu primordialmente o olhar, como a parte do corpo humano mais individualizada, a da suprema e irrefutável singularidade. Em 1543, na obra De Corpus humani fabrica, Vesálio determinava a distinção implícita
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entre o homem e o seu corpo. O homem passou a ser fonte de um dualismo que encarou o corpo isoladamente, numa espécie de indiferença a que o homem emprestava o seu rosto. Neste, os olhos cumpriam uma relevância inquestionável, à qual correspondiam extrapolações mítico-simbólicas imprescindíveis. El ojo, que llaman ventana del alma, es la vía principal por donde el centro de los sentidos o común sentido (commune senso) puede contemplar más ampliamente las infinitas y magníficas obras de la naturaleza; la oreja es el segundo sentido, el cual se ennoblece 10 escuchando el relato de las cosas que el ojo ha visto.
Nas obras patentes nesta mostra, os olhos viajam entre a presença e a ausência. Em Tatiana Macedo os olhos ora se gritam a si mesmos, espelhando a lucidez constrangedora da identidade, ora se escondem dentro de objectos que são extensão do eu quando é em paralelo imagem estereotipada dos outros… Em Rachel Korman os olhos pertencem a um corpo que é força e densidade convertido em vestígio e substância matricial, denotando a sua radicação cosmogónica – simbolizando o humano desde os tempos primordiais. Helena Martins-Costa cumpre a irreversibilidade do tempo assumindo-a como duração pois visibiliza quanto é possível nós sermos os outros através da apropriação que não oblitera o que fosse ou seja a existência desses ―mesmos‖ – Je est un autre, preveniu Rimbaud. A concepção do corpo variou, conforme as sociedades e os tempos, considerando parâmetros como: o seu tratamento social; o valor simbólico imbuído na mentalidade dominante; os modelos de relação intersubjectiva mediante o corpo, e a acepção relacional com o mundo, no sentido cosmológico. Ao longo do séc. XX, nas artes plásticas, a representação da figura humana foi um dos pretextos mais adequados à experimentação das novas linguagens plásticas, tomando como núcleo a própria alteração ao conceito de pessoa, através da pragmática do corpo. Nas artes performativas, designadamente, na dança, grandes transformações tomaram as formas coreográficas e destituídos os vocabulários mais académicos, por rupturas, e também gradualmente. Na imposição das linguagens de vanguarda, o corpo foi usado com sentido performativo, procurando expor uma determinada visão do mundo, uma representação do mundo derisória, relativamente aos preconceitos e normas de gosto anteriores. Entrado o séc. XXI, a focagem criativa e conceptual no corpo ganhou movas acepções e correspondendo a desígnios insuspeitáveis que são tão intermináveis quanto os casos pessoais que haja. As obras de Helena Martins-Costa, Rachel Korman e Tatiana Macedo colocam-nos perante questionamentos heterogéneos e divergentes, possuindo todavia denominadores comuns, como se pode verificar. A auto-identidade de cada artista se revela nas peculiaridades, nos seus acontecimentos pessoais e únicos como autoras. Mª de Fátima Lambert
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Leonardo da Vinci, Aforismos, Madrid, Espasa-Calpe, s/d, p.64
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Helena Martins-Costa Sem título - 2000/2009, 6 fotografias p/b, impressão sobre papel de algodão, 78,57x49 cm (cada)
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Rachel Korman da série Vestígios (flor de sal) - 2009, Fotografia, 110 x 137cm
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da série Vestígios (areia) - 2009, Fotografia, 137 x 110cm
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da série Vestígios (neve) - 2009, Fotografia, 110 x 137cm
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da série Vestígios (relva) - 2009, Fotografia, 110 x 137cm
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Tatiana Macedo Mental disorders for the camera #1 – 2001, Impressão de Gelatina de Sais de Prata (Silver Gelatin prints), 24x30cm (moldura), Provas únicas
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Mental disorders for the camera #2 - 2001
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“Tensões Corpo/Objecto (part of A Room With a View”) Londres, 2004 Impressão de Gelatina de Sais de Prata (Silver Gelatin prints), 80x120cm (montado em pvc preto 5mm), Provas únicas
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“Tensões Corpo/Objecto”, Londres - 2004, Impressão de Gelatina de Sais de Prata (Silver Gelatin prints), 24x30cm (moldura), Provas únicas
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“Polaroid Studies : Tensões Corpo/Objecto” Londres, 2004 Polaroids, 24x30cm e 30x40cm (moldura), Provas únicas
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Helena Martins-Costa, nasceu em Porto Alegre, vive e trabalha em São Paulo. Formação: graduação no Instituto de Artes da UFRGS, Porto Alegre. Mestrado em Poéticas Visuais na ECA – USP, São Paulo. Exposições individuais: 2009 : Sem Título, Centro Cultural Maria Atônia– USP, São Paulo,SP. Realidades Imprecisas. SESC Pinheiros, São Paulo. 2004 : Temporada de Projetos: Paço das Artes, São Paulo,SP. 2000 : Projeto Imagem Experimental, Museu de Arte Moderna de São Paulo - MAM Higeanópolis, São Paulo, SP. Exposições Coletivas:. 2006 : ― Desindentidad: Arte Brasileira Contemporânea no Acervo do Museu de Arte de São Paulo‖, IVAN, Valência, Espanha. Novas Aquisições. Coleção Gilberto Chateubriand, MAM- RJ, RJ. 2004: ―50 Anos da Arte da Fotografia brasileira – Acervo do MAM SP”, Santander Cultural – Porto Alegre, RS.2003 : “Um Teritório da Fotografia ―Usina do Gasômetro, Porto Alegre, RS. 2002: "Visões e Alumbramentos, fotografia contemporânea da Coleção Joaquim Paiva‖, Paralela Bienal, Oca, São Paulo, SP. 2002: ―Insólitos, Arte Brasileira no Séc XX‖, MAM Villa Lobos – São Paulo, SP. 2002: ZOOM - Fotografia contemporânea - Museu de Arte Contemporânea "José Pancetti", Campinas, São Paulo. 2000 -:Algo Noir , Galeria Obra Aberta, Porto Alegre, RS. 1999: Transfiguração e Desaparição exposição com Vânia Mombach, Galeria Iberê Camargo - Usina do Gasômetro, Porto Alegre, RS. Obras em Acervos: Museu de Arte Moderna de São Paulo - MAM SP; Coleção Gilberto Chateaubriand - Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,MAM RJ. Editora Arte y Naturaleza, - Madrid, Espanha. Coleção Joaquim Paiva - Rio de Janeiro,RJ; Fundação Vera Chaves Barcellos , Porto Alegre, RS
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Tatiana Macedo
Nasceu em Lisboa a 28 de Fevereiro de 1981. Licenciada em Belas Artes pela Central St. Martins College of Art & Design, University of the Arts London. Obteve também o Professional Development Award in Studio and Location Photography pelo London College of Communication. Já expôs em Lisboa, Londres, Madrid, Bruxelas e Paris, nomeadamente na École National Supèrieur des Beaux-Arts e como representante do Reino Unido no 49ème Salon de Montrouge. Em 2005 participou no Programa Gulbenkian Criatividade e Criação Arftística em Fotografia e em 2007 na Residência Internacional Sítio das Artes realizada no Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão no âmbito do Fórum Cultural Estado do Mundo. Ainda no mesmo ano foi convidada pelo Instituto Camões a integrar a exposição ―Deslocações: Quatro Perspectivas Portuguesas Contemporâneas‖ em Bruxelas, São Tomé, Maputo, Cabo Verde, Brasília e Luanda onde dirigiu um Workshop de Retrato na Fotografia Contemporânea com artistas Angolanos no Centro Cultural Português-Instituto Camões em Luanda. Ganhou a Bolsa de Jovens Criadores do Centro Nacional de Cultura em 2008 e novamente em 2009. Viajou para Xangai em 2008 com uma bolsa da Fundação Oriente para produzir o seu novo corpo de trabalho. Ainda no mesmo ano foi convidada a publicar um ensaio visual sobre a cidade de Lisboa no livro ―Lisboa Mistura‖. Das suas exposições individuais destaca-se a exposição ―Boys Need Yoga Too‖ Na VPF Rock Gallery, Lisboa 2008/2009. Integrou recentemente a exposição ―Arte Viajante: Manifestações de Arte Portuguesa Emergente‖ em Caracas, Venezuela. Em Novembro do presente ano editou o seu primeiro livro de artista intitulado Luso-Tropicália. Está no presente a fazer o Mestrado em Antropologia de Culturas Visuais na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
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Rachel Korman (1955, Brasil) vive e trabalha em Lisboa. Estudou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro, no final dos anos 90, tendo como mestre o artista Nelson Leirner. Em 2007 mudou-se para Lisboa onde cursou o Avançado de Fotografia do Ar.Co. (Centro de Arte e Comunicação Visual) sob orientação dos curadores Sergio Mah e Nuno Faria. Em 2008/2009 frequentou o Independent Art Studies Program da Maumaus, em Lisboa. Dentre as principais exposições da qual participou destacam-se: 2010 - De heróis está o inferno cheio, Plataforma Revólver, Lisboa, 3 viagens do eu, Quase Galeria, Porto (curadoria Fátima Lambert); Pensão Ibérica, residência artística, Lisboa 2009 - The Shadow of my Being, Rosalux, Berlim (individual), XV Bienal de Cerveira, Vila Nova de Cerveira, PT, Novas Aquisições do Museu Bernardo, Caldas da Rainha, PT; 2008 - O contrato do desenhista, Plataforma Revólver (curadoria Paulo Reis), Lisboa; 2007 - Conversando com Cindy (individual) galeria João Lagoa, Porto; 2006 - 5ª Bienal Internacional de Fotografia e Artes Visuais de Liège, Bélgica, Salão de Arte da Bahia, Salvador, Brasil; 2005 - Lugar de Passagem, Maus Hábitos, Porto, PT, FotoRio, Rio de Janeiro; 2004 - N.Leirner 1994+10 (artista convidada), Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, Falso ou Verdadeiro, Galeria Anna Maria Niemeyer, Rio de Janeiro, Registros (individual), Mínima Galeria, Rio de Janeiro; 2003 - Grande Orlândia, Inclassificados, Projéteis de Arte Contemporânea, FotoRio, Rio de Janeiro, além de Mostras Internacionais de Fotografia em Quito (Equador), La Paz (Peru) e Buenos Aires (Argentina). Em 2002 foi premiada no 2º Salão Nacional de Arte de Goiás, 59º Salão Nacional de Arte do Paraná e 9º Salão de Arte da Bahia.
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