Morada Franciscana em Olinda

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a morada franciscana

Um estudo sobre a dimensão subjetiva do Complexo dos Franciscanos em Olinda

História 4: Brasil Colônia e Império Leonardo Nóbrega | 18/0124986 Professor: Andrey Schlee 2020.2 | FAU UnB


Esta apresentação é o trabalho final da disciplina “Arquitetura e Urbanismo do Brasil Colônia e Império”, lecionada na FAU UnB pelo professor Andrey Schlee. A proposta é produzir uma pesquisa de tema relacionado à ementa da disciplina e que contenha como fontes alguns dados retirados da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.


“O dia-a-dia de um frade, seja qual for a ordem a considerar, não mudará muito. Trabalhar e orar. Para o trabalho, as oficinas e a horta ou pomar. Para o orar, o coro, as orações conjuntas, marcadas religiosamente na própria estrutura e divisão do dia-a-dia do frade.” (MENEZES, 1984, p. 272)


Introdução Todos aqueles que, ainda que fugazmente, refletiram sobre esse tema, sabem que o caráter essencial da arquitetura – o que a distingue das outras atividades artísticas – está no fato de agir com um vocabulário tridimensional que inclui o homem. (ZEVI, 2009, p.17)

conformação de um espaço tal qual ele é? Assim, procuro aqui investigar de que forma a subjetividade, os valores e a filosofia do homem franciscano se refletem na construção da sua morada para, portanto, compreender o patrimônio arquitetônico em uma dimensão imaterial.

Em “Saber ver a arquitetura”, Bruno Zevi nos convida a refletir sobre o papel do ser humano no espaço arquitetônico. Apesar das construções serem frequentemente compreendidas segundo um raciocínio visual, a experiência arquitetônica não se limita a este sentido e compreende diversas outras dimensões, algumas de caráter físico (como os outros sentidos) e outras ligadas diretamente à subjetividade.

O lugar escolhido como estudo de caso foi o Complexo Franciscano em Olinda, que compreende o primeiro convento franciscano em terras brasileiras e faz parte da lista de Patrimônios da Humanidade da UNESCO por seu caráter arquitetônico (junto com outras 19 igrejas) e por estar no Centro Histórico de Olinda. Também está protegido por inscrição no livro de tombo das Belas Artes do IPHAN (COSTA, 2020, p. 8).

Quando tratamos da subjetividade no espaço construído devemos ter em mente o papel das narrativas sobre o espaço e da percepção de quem o vivencia. Para quem habita uma determinada casa, ela não é um mero espaço como tantos outros são. A casa se torna a morada do pensamento. É onde se imagina que vai acordar no dia seguinte e para onde se espera voltar depois de um dia de trabalho.

Como base para a discussão, será usado o texto “Construir, Habitar, Pensar” de Martin Heidegger (1954), que disserta sobre o significado da morada a partir de sua compreensão enquanto fenômeno. É importante ressaltar que o texto de Heidegger não será compreendido como uma metodologia de análise de obras, mas como um impulso inicial para um debate sobre dimensões poéticas e subjetivas da construção de uma casa.

Mas ainda que em si a ideia do lar carregue um significado simbólico e poético, ele ainda se refere a um espaço físico. A um lugar edificado no qual alguém se fixou. Tendo em mente o caráter do ambiente físico enquanto produto de relações socioculturais pré-existentes, podemos nos questionar: quais foram os aspectos culturais que levaram a

O trabalho inicialmente irá percorrer a história da Ordem dos Frades Menores, iniciada por São Francisco de Assis no Século XII. Em seguida, passaremos à história das construções franciscanas no Brasil e à apresentação do Complexo Franciscano de Olinda. Partiremos então para

uma compreensão do habitar segundo Heidegger e para a análise dos espaços do convento a partir da ótica heideggeriana, assumindo as condicionantes da quadratura (sobre a terra, sob o sol, diante dos deuses e em comunidade com os mortais) como pontos iniciais.


São Francisco de Assis Francisco Bernadone (Assis, Itália, 1182 – 1226) nasceu num momento chave na história da Civilização Europeia. Se situava no apogeu do feudalismo medieval, de tradição ruralista e espacialmente dispersa. Ao mesmo tempo o nascia do renascimento comercial, estímulo inicial ao surgimento da burguesia e ao consequente reestabelecimento dos núcleos urbanos como centralidades políticas, sociais e culturais. Ele tinha origem burguesa, vindo de uma família de comerciantes ricos da Itália. Inicialmente seguiu carreira militar e, após uma passagem pela Igreja de São Damião, ele assumiu uma atitude diferente em relação à vida e à religiosidade (COSTA, 2017, p. 47).

portanto, assumiu como missão a dedicação irrestrita ao evangelho e à divulgação da palavra de Jesus O seu carisma levou à criação de um grupo de seguidores que assumiu a feição de ordem religiosa, a Ordem dos Frades Menores, reunindo três mil frades em 1219 (MAGALHÃES, 2005, p. 29) que seguiam a filosofia de “observar o Santo Evangelho, viver da obediência, da castidade e não possuir absolutamente nada, e só dividir a pobreza” (FRAZÃO, s.d.). Podemos encontrar a filosofia da fraternidade franciscana inclusive na relação entre membros da ordem. Segundo Jacques Le Goff (2001 apud. MAGALHÃES, 2005, p. 38)

Com seu exemplo e prática diária de vida, ele estabeleceu as bases para uma perspectiva nova ao modo medieval de relacionamento dos homens entre si, através da percepção do outro em sua dimensão mais ampla, e deles com a natureza, fazendo emergir um sentido inovador, cristianizado, nessa relação.

Francisco não quer(ia) ser monge, uma vez que vai ao meio dos homens e, se a Cúria não lhe tivesse feito uma imposição, teria evitado que seus discípulos formassem uma ordem. Seu ideal de uniformidade, de igualdade, por um lado, e de amor, por outro, leva-o à adoção do termo irmão [frade] para ele próprio e seus companheiros – aquilo que virá a ser sua ordem foi concebida por ele como uma fraternitas.

Francisco de Assis, portanto, agia segundo um ideal de fraternidade. Fraternidade que não era limitada aos semelhantes mas se expandia ao reconhecer o outro enquanto criação de Deus, sendo o outro um pagão, um pobre, um animal ou até mesmo um elemento da natureza. Francisco,

Vale ressaltar a importância do Santo Antônio de Pádua, primeiro doutor da Igreja Franciscana, e de Santa Clara, fundadora da Ordem de Santa Clara (ou Segunda Ordem de São Francisco) enquanto lideranças religiosas vinculadas aos franciscanos.

Ana Magalhães (2005, p. 29) nos informa que

Figura 1: Predica agli uccelli, Giotto, c. 1290


Os franciscanos no Brasil Assim como nos indicam Menezes (1984, p. 274) e Campello (2001, p. 35), os franciscanos já estavam no Brasil na época do descobrimento, com a primeira missa em terras nacionais sendo celebrada pelo frade franciscano Henrique de Coimbra em 22 de abril de 1500. No entanto, a Ordem só veio se estabelecer fisicamente no país com a construção da casa de Olinda, em 1585.

Como é uma ordem medicante, se diferindo dos agostinhos e beneditinos enclausurados, a participação dos franciscanos junto à comunidade sempre foi bastante expressiva. Esse fato, aliado à relação próxima entre a Coroa Portuguesa e a Igreja Católica, se refletiu na expansão da atuação dos frades além da religiosidade e catequese. Murillo Marx apontou que “várias eram as funções de cunho público desempenhadas pelos seus estabelecimentos” (1984 apud. ALBUQUERQUE, 2012, p.24), das quais podemos citar a proteção territorial e o desenvolvimento urbano (CARVALHO, 2007, p. 17). Em dois séculos, os franciscanos construíram 23 conventos no Brasil. Entre eles, os 14 da região Nordeste (cronologicamente: Olinda, Salvador, Igarassu, João Pessoa, Recife, Ipojuca, São Francisco do Conde, Serinhaém, Cairu, Paraguaçu, Iguape, São Cristóvão, Penedo e Marechal Deodoro) foram estudados por Germain Bazin (1956), que denominou o conjunto de Escola Franciscana do Nordeste e a destacou como primeira manifestação de uma arquitetura

brasileira legítima. A partir de tais estudos, temos que as fachadas que seguem a tipologia do Convento de Santo Antônio de Cairu apresentam unidade compositiva na magnífica composição monumental de essência piramidal, obtida com a superposição de três pavimentos de larguras decrescentes. O pavimento inferior é um pórtico de cinco arcadas, separadas por grandes pilastras de ordem toscana. Outras pilastras dividem o pavimento intermediário em três tramos. O arremate é um tabernáculo com uma estátua que tem um frontão com volutas coroado por uma cruz. Volutas monumentais, ao lado de pirâmides altas formam a transição entre os diferentes níveis da composição. (BAZIN, 1956, p. 148-149)

Figura 2: Igreja de Santo Antônio, João Pessoa fund. 1589 / rec. 1700-1210

Entre estes conventos, o considerado por Campello (2001) como o “mais arrebatador” é o de João Pessoa (figura 2). A esta tipologia também podemos incluir o de Olinda (figura 3). Ele possui algumas particularidades, como a ausência de 5 arcos na parte inferior, apesar da modenatura seguir o mesmo princípio. Além da fachada, a estrutura funcional dos complexos franciscanos também possui unidade enquanto conjunto, com organização espacial em torno do claustro, presença de vazios espaciais e ampla área verde.

Figura 3: Igreja de Nossa Senhora das Neves, Olinda fund. 1585 / rec. fim do sec. XVII


A casa dos franciscanos em Olinda Na década de 70 do século XVI, a discussão sobre uma possível construção de uma casa para os frades franciscanos já acontecia em Olinda. A obra foi aprovada apenas em 1985 pelas autoridades governamentais, tomando como local para a implantação o terreno doado pela viúva Maria Rosa, a primeira irmã da Ordem Terceira de São Francisco em Olinda, que lá já havia construído uma capela em devoção à Nossa Senhora das Neves. Esta primeira construção terminou em ruínas durante a ocupação holandesa, senão pelo incêndio de 1631, pelo posterior abandono dos templos religiosos olindenses (figura 6; S. FRANCISCO, 1886) A partir da ilustração “ Marin d’Olinda de Pernambuco” (figura 5), podemos ver uma representação do convento do século XVI. Era um “conjunto assobradado com fachada templo marcada por um classicismo geométrico simplificado” (CARVALHO, 2013, p. 124). Dele restam apenas a cisterna, ruínas de algumas dependências, tanques e lavatórios (figura 4; LAMPIÃO, 1985).

Figura 4: Revista do Sphan, 1985, edição 37

Figura 5: Marin d’Olinda de Pernambuco, Johannes de Laet, c. 1630


A casa dos franciscanos em Olinda

Figura 6: Diário de Pernambuco, ano 1886, edição 99, p. 3 (S. FRANCISCO, 1886)

Figura 7: Revista do Sphan, 1984, edição 33


A casa dos franciscanos em Olinda O complexo franciscano em Olinda é formado por três blocos distintos: o Convento dos Franciscanos, a Igreja de Nossa Senhora das Neves e a Igreja da Ordem Terceira de São Roque.

Ordem Terceira

Igreja

Convento

Anna Carvalho (2013, p. 128) nos informa que a igreja primitiva se tornou a capela-mor do templo novo, ampliada com coro, sacristia, adro e cruzeiro. Ela fica entre a ordem terceira e o convento. Este se divide em área social (portaria, parlatório, sala capitular e auditório), área intelectual (bibliotecas, salas de estudo, oficinas e salas de recreação), área espiritual (capelas de Sant’Ana e do Sacrário) e área de serviços (celas, enfermaria, refeitório, cozinha, rouparia, sanitários e depósitos). O claustro interliga essas áreas e surge como um vazio fundamental na circulação, na apreensão e na vivência do espaço. O adro em frente à igreja assume um importante papel tanto compositivo (proporcionando a observação da monumentalidade), quanto simbólico (marcação do espaço de Deus na terra) e comunitário (estabelecendo um diálogo entre o templo e o espaço urbano). Essa ligação com a comunidade tem reflexos, inclusive, no imaginário popular, a exemplo da narrativa corrente de um suposto tesouro escondido na cisterna do convento (figura 9; DOMINGO, 1957).

Figura 8: Volumetria do conjunto


A casa dos franciscanos em Olinda

Figura 9: Diário de Pernambuco, ano 1957, edição 166


A casa dos franciscanos em Olinda

Pavimento térreo 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11.

Hall Antigo Refeitório Recepção Quarto Cozinha Copa Área de Serviço Garagem Depósito Refeitório Pátio Externo

Primeiro Pavimento 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22.

Sala do Capítulo Sala de Aula Claustro Circulação Sacristia Capela Capela-mor Corredor dos mortos Nave Galilé Capela de São Roque

Figura 10: Pavimentos do complexo franciscano em Olinda

Segundo Pavimento 23. 24. 25. 26. 27. 28. 29. 30. 31. 32. 33.

Capela de Sant’Ana Auditório Sala Diretoria e Secretaria Capela do Santíssimo Escritório Arquivo Cela Banheiro Coro Biblioteca


“Bauen, Wohnen, Denken” (1951) Seguindo com o objetivo de discutir a subjetividade no habitar, tomaremos como referencial teórico a reflexão de Martin Heidegger em “Bauen, Wohnen, Denken” (1951), traduzido como “Construir, Habitar, Pensar” (1954). Partimos de uma premissa fenomenológica, ou seja, a busca da reflexão acerca dos fenômenos que o Ser experimenta em sua finitude. A fenomenologia surge da problemática de comumente incorporarmos termos de forma limitada, sem entendê-los de fato, sendo a filosofia (refletir, demorar-se num assunto) uma maneira de atingir o real significado de algo. Sobre o fenômeno da morada, Heidegger postula duas questões iniciais: 1. 2.

O que é habitar? Em que medida pertence ao habitar um construir?

E na busca pela resposta a essas perguntas, caminhamos por uma jornada poética e linguística que tenta entender o habitar enquanto traço fundamental do ser-homem. Fuão (2016, p.13) nos informa que o “ser” para Heidegger é um conceito, enquanto o “ente” seria o indivíduo “aqui e agora”, ou seja, num lugar e num tempo determinado (o homem em seu contexto, o homem enquanto homem e não coisa). É a definição do Dasein (ser aqui e agora) que permeia grande parte da filosofia heideggeriana. Analogamente teríamos a contraposição entre espaço (abstração conceitual) e lugar (individualizado e único, determinado a partir da mesma racionalidade humana que se

reconhece enquanto Dasein). A morada enquanto lugar, portanto, partiria da ideia de resguardo, retomada diversas vezes por Heidegger em seu texto, ou seja, quando “os mortais protegem e cuidam das coisas em seu crescimento” (HEIDEGGER, 1964). Essa relação associa diretamente os conceitos de habitar e construir na medida em que compreendemos o construir enquanto resguardo e o habitar enquanto consequência (e ao mesmo tempo condicionante) dessa relação. Assim temos que o cultivo supracitado precisa acontecer numa estância (o lugar onde se inaugura um encontro) e numa circunstância (a condição ou estado necessário para que esse encontro se dê), nos quais entendemos o encontro como a relação fundamental entre o homem e o ambiente no qual está inserido. Heidegger prossegue nos respondendo quais as condicionantes para o estabelecimento das estâncias e circunstâncias da morada: é a “quadratura”, à qual chegamos quando permanecemos sobre a terra, sob o céu, diante dos deuses e em comunidades com os mortais. O habitar em si, portanto, se torna um traço fundamental do homem ao passo que ele se encontra “entre a terra e o céu ou entre deuses e coisas, num permanente estar a caminho. Sem pertencer propriamente a nenhum desses âmbitos, (trazendo) em si o traço da estranheza, e mesmo da errância” (SARAMAGO, p. 76-77).

Figura 11: Bauen Wohnen Denken


“Bauen, Wohnen, Denken” (1951) Partindo do princípio que o habitar é indispensável ao estabelecimento do ser no espaço e que o pensar, por sua vez, é um compromisso do Ser “por e pelo Ser” (DILTON, p. 210), temos o pensar o habitar como uma relação dialética carente de reflexão, visto que ao pensar estaremos num ambiente (ou pensaremos um ambiente) que também terá consequências no próprio processo de pensamento. O construir, nesse sentido, assume protagonismo, pois toma para si a etapa da configuração espacial, a etapa do pensar o lugar (lembrando que associamos tal configuração à ideia de resguardo e não aos preceitos técnicos de engenharia civil ou arquitetura). Nesse sentido, podemos afirmar que a busca dos franciscanos é por uma compreensão do mundo enquanto morada. É cultivar a Terra e a comunidade dos mortais, seja

física ou espiritualmente. Podemos observar esse posicionamento na descrição de Frei Apolinário da Conceição sobre o ofício de frei Lucas da trindade: O Veneravel Padre Fr. Lucas da Trindade [...] Foy Religioso de virtuosos, e exemplares procedimentos. [...] em Prelado, como o foy do Convento de S. Boaventura, quando este se fabricava, elle era o servente do Pedreiro, e juntamente o que com elle trabalhava; outras vezes, como se fora hum dos Frades modernos, se empregava em alimpar a Cerca do Convento, arrancando-lhe o mato posto com suas mãos. Assim exercitado em virtudes, e desprezos de si mesmo, se lhe chegou o ultimo prazo de seu desterro [...] (CONCEIÇÃO, 1733 apud. COSTA, 2020, p.14).

Quadratura Sobre a terra Sob o sol Diante de Deus Em comunidade com os mortais

No qual observa-se a valorização dos que cuidam do ambiente, com a glorificação da atitude do frei Lucas quando se dispôs a atuar na edificação da casa dos franciscanos. Para compreendermos o pensar dos irmãos franciscanos na definição de sua morada em Olinda, tomaremos a quadratura como ponto de partida, observando as diferentes esferas subjetivas apontadas por Heidegger e a maneira com qual o espaço (lugar) dos franciscanos responde aos princípios fundamentais de seu pensamento.


um lugar sobre a terra


Sobre a terra A escolha do espaço no qual será construída a morada é determinada a partir de questões relevantes ao povo que lá habitará. As casas franciscanas estabelecem uma série de relações com o meio que lhes são particulares e a partir delas podemos encontrar diálogos poéticos entre o homem e o espaço que nos indicam dimensões subjetivas do pensamento. Apesar dos conventos e mosteiros tradicionalmente fixarem os homens no espaço, São Francisco convocava seus companheiros ao caminhar como prática constante. Ele não ansiava por casas duradouras como nos conventos beneditinos nem por distância aos núcleos urbanos. Dessa forma, se estabeleceu uma relação bastante próxima entre o franciscanismo e a comunidade mesmo quando as construções mais duradouras passaram a ser produzidas pela Ordem dos Frades Menores, exigência que surgiu após a obrigatoriedade do noviciado para os franciscanos em 1220 (SILVA, 2012, p. 16). À época da chegada dos fundadores franciscanos em Olinda, a primeira atitude para estabelecer uma casa de São Francisco era fincar uma cruz no solo (SILVA, 2012, p. 15). Ali, portanto, viria a ser construído o espaço de Deus e dos homens de Deus. Um ato simbólico e narrativo que dava início a uma nova história. Figura 12: Complexo Franciscano de Olinda em meio à natureza


Sobre a terra A relação entre a filosofia franciscana e a natureza é extremamente próxima, inclusive com o título de “padroeiro dos animais” sendo do próprio São Francisco de Assis. Nesse sentido, não nos surpreende a integração entre as construções artificiais da ordem, como os conventos, e o ambiente natural pré-existente. Primeiramente, temos que os franciscanos costumavam situar seus conventos e igrejas em elevações junto a corpos d’água, o que resultava em espaços de destaque na paisagem e no imaginário popular (CARVALHO, 2008, p. 19). No complexo de Olinda podemos encontrar essa intimidade entre arquitetura e paisagem na implantação dos blocos, pois eles eram posicionados de acordo com o relevo e em meio à natureza preservada à medida que eles iam sendo construídos.

Já a proximidade ao meio urbano favorece a atuação junto à comunidade, cara às ordens mendicantes. Tanto quando essa atuação seguia princípios religiosos, como os de catequese, quanto em ofícios políticos ou civis. Arquitetônica e urbanisticamente, a relação com o meio urbano se dá principalmente a partir do adro, que “abre seus braços” para receber a comunidade. Figura 13: Mapa de Olinda de Johannes Vingboons com terreno dos franciscanos marcado.


Sobre a terra O contraste entre o natural e o urbano permitia a união entre vivência contemplativa e ativa (MAGALHÃES, 2005, p. 28). Dessa forma podemos estabelecer um paralelo entre a casa franciscana e a própria condição do homem franciscano no mundo. Ao mesmo tempo que São Francisco se reconhecia enquanto espírito (ser racional) ele não negava o valor dos seres não racionais, reconhecendo como irmãos até mesmo os inanimados (como o fogo ou a pedra). Como nos informa José Antonio Merino (2006 apud. SILVA, 2012, p. 65), O homem franciscano tem clara consciência de estar no mundo e de viver uma natureza concreta, com coisas, seres animados e inanimados e com animais. Sua relação com o mundo é também vital e afetiva. É a partir dessa filosofia que se conformou o convento de Olinda. Mesmo na condição de obra artificial construída a partir da racionalidade humana, ele estabelece uma harmonia dialética com o meio que o rodeia, seja ele em sua feição urbana ou natural.

Figura 14: Vista de satélite de Olinda com terreno dos franciscanos marcado.


um lugar sob o sol


Sob o sol Diversas são as maneiras de conceber o espaço e a escolha de como executar essa tarefa pode seguir princípios diversos. Em suas falas, São Francisco já ensaiava um partido arquitetônico quando ele “conclamava os companheiros a desprezar a moradia [...] a casa do frade não precisava ser de pedra, duradoura como os antigos mosteiros” (SILVA, 2012, p. 16).

Para uma compreensão abrangente do construir franciscano, precisamos entender quais as estratégias pensadas pelos frades construtores para edificar um espaço eficiente, ou seja, resistente às demandas da natureza, mas coerentes com a filosofia da simplicidade propagada pela ordem. O portal eletrônico do Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada (CECI) nos aponta que o sistema construtivo é em alvenarias estruturais em pedras e tijolos, seguindo a tradição colonial brasileira. Sobre estas paredes se apoiam os telhados de madeira, inicialmente de caibros roliços e ripas de embira, mas substituídos posteriormente por madeiramento serrado. No texto “A Arquitetura”, disponível no site, podemos ler que: Em vários pontos do convento, notam-se essas respostas claras e francas, como nos vigamentos de madeira a repousarem diretamente sobre o arenito das colunas toscanas do claustro; no azul cobalto dos painéis de azulejos, em contraste com as calmas

Figura 15: Claustro do Convento dos Franciscanos de Olinda


Sob o sol paredes caiadas; nos grandes beirais que geram ambientes sombreados; nas pequenas aberturas retangulares a emoldurarem a paisagem; nas portadas e cercaduras de cantaria, que delimitam as janelas, e na simples articulação da arcada renascentista do claustro. A originalidade e o valor estão na simplicidade, unidade e coesão dos elementos arquitetônicos e espaciais. Essas características reforçam a expressão franciscana da língua portuguesa, como termo que indica simplicidade, franqueza e abnegação, características essas presentes nesse Conjunto. (O CONVENTO...) As obras vinculadas à Escola Franciscana do Nordeste também apresentam diversas adaptações às condições climáticas dos trópicos. A galilé e o claustro, assim como o alpendre nas construções anteriores à chegada dos holandeses, criam espaços intermediários sombreados ao mesmo tempo que permitem a ventilação. Além disso, os vazios espaciais, como o claustro e a praça do relógio de sol, atuam para redução do acúmulo de calor no interior do complexo. Silva (2012, p. 65) descreve os claustros como “uma ilha da natureza, mesmo quando não adornado com plantas, pois acolhe o céu, as chuvas, as estrelas.” Já os azulejos se destacam no controle da umidade local, diminuindo a possibilidade de infiltrações e sendo aproveitados em seu potencial estético e pictórico.

Figura 16: Claustro do Convento dos Franciscanos de Olinda

Figura 17: Entrada da Igreja com arcos da galilé


um lugar diante de Deus


Diante de Deus Heidegger elenca o espaço de devoção como um dos fundamentos da quadratura. Temos a devoção ao divino como uma atitude particular dos seres humanos. A morada, em sua dimensão subjetiva, tem a capacidade de abrigar a espiritualidade em toda a sua expansão. Se assumimos a cidade como um habitar, temos as igrejas ou templos religiosos como espaços “diante dos Deuses”, proporcionando espacialmente a busca espiritual. A proximidade entre a comunidade e os franciscanos levaram a uma relação afetuosa e íntima dos moradores de Olinda com os frades e com o espaço do complexo. Além das missas abertas ao público, ele abriga diversas festividades religiosas (figura 18; FESTA, 1877), além de ser escolhido para cerimônias ritualísticas, como missas de sétimo dia (figura 19; OBITUÁRIO, 1902) e casamentos. O diálogo com o meio urbano se inicia através do Adro (figura 20), definido por Benedito Toledo (1983, p. 140) como um “espaço de transição entre o sagrado e o profano”. É um dos vazios espaciais na conformação física do complexo, acolhendo a paisagem urbana. Ele oferece a visão monumental da fachada da Igreja e possibilita um percurso simbólico ao visitante. Uma caminhada ao encontro com o divino, assim como é a própria vida material. O espaço ainda abriga o cruzeiro, primeiro elemento simbólico e estético a ser reconhecido pelo observador, cujo significado retoma “o encerramento do ciclo da presença de Jesus entre os homens” (SILVA, 2012, p. 28).

Figura 18: Diário de Pernambuco, ano 1877, edição 274

Figura 19: Diário de Pernambuco, ano 1902, edição 142

Figura 20: Adro dos complexo franciscano em Olinda (a) em 2018 e (b) na década de 80


Diante de Deus Os conventos franciscanos se situam no contraste entre a relação com a comunidade e a relação com Deus (figura 25). Enquanto o Adro acolhe o meio urbano, no interior é possível encontrar um espaço de recolhimento voltado à contemplação e à vivência eclesiástica dos frades. Quando buscamos compreender o modo de pensar do homem franciscano, precisamos ter em mente o destaque proporcionado à dimensão espiritual do ser. Quando Heidegger (1954) nos apresenta um “oratório atrás da mesa comensal” como exemplo de lugar diante dos Deuses numa morada, podemos compreender que, para um homem comum, a vida cotidiana abre espaço para a religião, restrita a espaços específicos em perímetros delimitados. O homem religioso assume outra postura. Para ele, a vida espiritual é a protagonista de sua jornada.

Figura 21: Claustro

Figura 22: Sacristia

Figura 23: Capela do Capítulo

Figura 24: Capela de Sant’Ana

Dessa forma, todo o complexo assume caráter religioso, seja nos momentos de meditação, de catequese ou mesmo no preparo da comida. O claustro assume papel fundamental nessa dinâmica, sendo um espaço “voltado para si mesmo e alheio à vida profana” (MENEZES, 1984, p. 274). Os outros cômodos se distribuem em torno dele, dos quais se destacam a própria igreja e sacristia, a capela de Sant’Ana e a capela do Capítulo como espaços de devoção.


Diante de Deus Um dos aspectos fundamentais na conformação espacial das instituições religiosas é a valorização da arte. Ela assume um caráter que vai além da despretensiosidade estética, atuando no ensino da religiosidade e na transmissão simbólica dos valores católicos e das narrativas bíblicas. É nesse sentido que Maria Angélica Silva (2012, p. 31) afirma:

b. Pintura: em destaque as pinturas nos forros da Capela do Capítulo, da igreja de Nossa Senhora das Neves,. da Sacristia e da Capela de Santanna. Esta última representando os “Santos Franciscanos no Orbis Seraphicus” simbolizando os irmãos franciscanos santificados até então (figura 27; VALENTE, 1955).

O ornato é justificado como um oferecimento do melhor do humano ao divino. A alegria estética pode ser virtuosa. Por vezes defendendo o despojamento e o desprezo pelas coisas do mundo; por outra, vestindo-se com pompa, a arquitetura e os elementos artísticos estarão no centro do conflito franciscano, entre o viés mundano e a simplicidade que honra a Deus.

c. Talha: Produzem um grande efeito visual no interior das capelas e atraem a atenção dos fieis que lá estão, como na talha rococó do altar-mor da Capela da Ordem Terceira de São Roque.

Quatro tipos de elementos visuais podem ser elencados como marcantes no complexo franciscano de Olinda:

d. Arquitetura: Além da dimensão funcional, também compreendida enquanto elemento visual em seu caráter estético. A cenografia da fachada vista a partir do adro permite uma compreensão da monumentalidade do espaço e, consequentemente, a sua apreensão enquanto símbolo.

a. Azulejaria: de diversos tipos, sendo a mais antiga a composição pictórica e não narrativa presente na Capela do Capítulo. Os azulejos narrativos de maior destaque são no corpo da nave da igreja, com a história de Nossa Senhora e Jesus (figura 25), no claustro, com a história de São Francisco de Assis, e na Capela de Sant’Ana, com a história de Sant’Ana (SILVA, 2018, p. 43-46).

Por fim, a dimensão intelectual também assume importância religiosa na formação dos novos frades (figura 28; GUIMARÃES, 1975), no estudo dos textos sagrados como forma de atingir o divino e na passagem do conhecimento entre frades (tanto por discussões teológicas e filosóficas quanto por reflexões éticas). Essa atitude intelectual se expressa nas bibliotecas e salas de aula do convento.

Figura 25: Interior da Igreja de Nossa Senhora das Neves

Figura 26: Biblioteca


Diante de Deus

Figura 27: Diário de Pernambuco, ano 1955, edição 37


Diante de Deus

Figura 28: Revista Manchete, ano 1975, edição 1215


um lugar em comunidade com os mortais


Em comunidade com os mortais Quando Heidegger nos fala sobre o lugar em comunidade com os mortais, ele nos indica a importância do espaço atender às necessidades físicas do seres humanos, ou seja, em permitir a sua própria existência enquanto matéria. Quando observamos a dimensão material da vida franciscana, vemos que:

ambientes coletivos aos privados, sendo providas de portas para “reforçar o impedimento de acesso pelos leigos” (SILVA, 2012, p. 47).

O corpo situa-se numa posição ambígua, mas fundamental. Se por um lado é o “irmão corpo”, por outro é instigado a ser uma ausência, penalizado nas disciplinas, alimentado irrisoriamente, despojado do prazer carnal. É justamente valorizado por abrir o caminho de acesso aos céus. (SILVA, 2012, p. 19)

O refeitório, ao mesmo tempo que atende uma função ligada à dimensão física, também assume importância ritualística a partir das diversas cerimônias que envolvem o comer. É nesse sentido que Silva (2012, p. 44) aponta a presença do espaço De Profundis, no qual o ritual de alimentação se iniciará antes de adentrar o refeitório. É nele que acontecia a cerimônia do lava-pés para eventuais hóspedes do convento, um ato de humildade e de se reconhecer enquanto servo de Deus diante dos visitantes.

E nesse sentido, temos que os espaços reservados às necessidades físicas do corpo são claramente desprovidos de requinte e ornamentação, estes reservados aos locais de encontro com o divino.

Também destacamos aqui a importância da relação com a natureza e com o cultivo dos alimentos diários, de forma a proporcionar uma certa autossuficiência ao convento e de estabelecer a interação entre o homem e a terra.

Os principais espaços de tal “dimensão animal” (CARVALHO, 2008, p. 22) presentes no convento são o refeitório, a cozinha, a área de serviços e as celas. Estas últimas são individuais e localizadas nos pavimentos superiores, posicionadas voltadas à rua ou à natureza, permitindo a contemplação de ambas as paisagens às quais o convento se vincula. Vale ressaltar a presença da escada como elemento espacial que marca a passagem dos

Figura 29: Escada do Convento dos Franciscanos em Olinda


Conclusões Ao analisar a forma do convento franciscano a partir da subjetividade e das narrativas que nele se desenvolvem, podemos compreender como a arquitetura de um espaço surge em resposta não só às condições ambientais, funcionais e tecnológicas, mas também a um imaginário e à espiritualidade.

contexto histórico enquanto preserva os ideais da ordem. Segundo, pela presença das narrativas, do imaginário e da filosofia, ou seja, do modo de pensar franciscano, na própria apreensão do espaço.

Esse desenvolvimento poético do espaço vai muito além de uma aplicação despretensiosa da estética, apesar desta se fazer presente onde quer que exista arquitetura. Ele atende também às virtudes, aos valores e ao modo de enxergar o mundo de determinado povo. A análise do Complexo dos Franciscanos em Olinda nos apresenta uma belíssima interação homem-paisagem estabelecida nos 436 anos de história. Uma relação em contínuo desenvolvimento, que ao mesmo tempo que se adapta às novas realidades urbanas, culturais, tecnológicas, funcionais e estéticas, também observa o passado e reconhece as ideias de fraternidade e amor ao outro pregadas por Jesus e interpretadas por São Francisco de Assis. Temos aqui, portanto, uma arquitetura que não se findou enquanto construção, e nessa afirmação existem duas ideias distintas. Primeiro, pela recepção aos acréscimos, modificações e aperfeiçoamentos às novas realidades. É a forma franciscana de alterar o espaço de acordo com o

Figura 30: Frade na porta da Sacristia


Figuras 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. 25. 26. 27. 28. 29. 30.

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