cidades imaginรกrias
foto capa: Architecture of Density, Michael Wolf.
leticia monteiro (nº.141850007) arquitetura e urbanismo - ufsj 3º período / 2015.1.2 profª livia muchinelli estúdio: arquitetura pública - equipamentos comunitários ênfase livre
cidades imaginรกrias
a imagem das cidades “Os homens não conseguem enxergar nada ao redor deles além de sua própria imagem; tudo fala de si para eles. Sua própria paisagem é viva.” (MARX apud. BURGIN, 1997)
A maneira que enxergamos e representamos a cidade pode produzir profundos impactos em sua forma de organização. Para LYNCH as cidades possuem uma imagem pública que é o resultado da sobreposição das imagens de muitos indivíduos. Essa imagem é determinada através de alguns elementos urbanos, citados pelo autor como: 1. Vias, os canais onde o observador se move; 2. Limites, elementos lineares não utilizados; 3. Bairros, regiões urbanas permeáveis e passíveis de identificação; 4. Cruzamentos, pontos dos quais e para os quais o observador se desloca; 5. Pontos Marcantes, ponto de referência que o observador não adentra. Esses elementos são variáveis de acordo com o observador. Dessa maneira, a imagem individual de uma cidade é intensamente pontuada pelas experiências de quem a percebe. Como, por definição, a cidade se trata de um espaço de coletividade é um desafio compreender como essas diversas interpretações compõem um quadro único da imagem dessa cidade e como essa imagem coletiva pode interferir nas experiências individuais
no espaço urbano. Ainda, LYNCH determina alguns conceitos que qualificam a imagem das cidades: legibilidade e imaginabilidade. A legibilidade é referente a capacidade de se estabelecer modelos coerentes dentro do espaço, de se estabelecer relações de deslocamento e orientação no espaço. O conceito de imaginabilidade esta relacionado no impacto que esse espaço tem no observador, de atraí-lo visualmente e estabelecer conexões marcantes. As imagens ainda podem segundo LYNCH serem decompostas em identidade, estrutura e significado. Identidade seria seu valor de diferenciação, suas particularidades. A estrutura refere-se as relações que ela estabelece entre o observador e o objeto representado, e o significado os sentidos atribuídos à ele – sejam esses de ordem prática ou sentimental. Pretende-se aqui discutir qual a relação dessas cidades imaginárias – aquelas que concebemos mentalmente de acordo com nossos valores de observação – e a cidade fisicamente constituída. Propõe-se pensar não apenas a cidade como geratriz dessas imagens mas na maneira que essas representações também são passíveis de desenvolver um papel ativo na transformação do espaço urbano. Ou seja, a imagem não se encerra como uma interpretação estática da cidade mas se configura como uma série de leituras do espaço, que é passível de agir como transformadora da experiência urbana e, consequentemente, transformar a própria imagem da cidades.
as imagens que modificam cidades Uma parceria entre o laboratório de estudos urbanos da University College London (UCL) e o jornal The Guardian gerou uma série de matérias intitulada “Picturing Place” que buscava investigar sobre exemplos de como imagens podiam influenciar o espaço urbano e discutir o papel da linguagem visual na construção do espaço, procurando desenvolver uma metodologia para aperfeiçoar o uso crítico dos diversos tipos de representação possíveis. As imagens – mapas, fotografias, desenhos etc – podem produzir um profundo impacto na organização das cidades. A importância da representação gráfica nesse aspecto é conseguir criar novos modelos de se enxergar a cidade, tornando determinados aspectos visíveis. É uma maneira de se fazer compreender um ponto de vista e pode gerar discussões a cerca de um tema e contribuir para transformação das cidades. Um exemplo apresentado nessa série ocorreu em 1854, quando Londres passava por um surto de cólera, o médico John Snow decidiu criar um mapa marcando a moradia de cada afetado. Com o mapa de Snow foi possível ligar os casos a uma bomba de água específica, o que permitiu que se entendesse melhor a transmissão da doença mas também impulsionou a instalação de sistemas sanitários. O mapa é considerado um catalisador para o desenvolvimento da infra-estrutura urbana de Londres.
Outro exemplo, em 2011 um grupo de ativistas para melhoria do espaço público de Nova York fez um levantamento de espaços públicos vazios no Brooklyn e criou um mapa para divulgar esses espaços subaproveitados e incentivar que a população reclamasse o direito do uso desses terrenos. Como resultado, 46 lotes que eram fechados ao acesso da população passaram a ser usados como praças, hortas comunitárias, jardins etc. Esse exemplo se assemelha um pouco com o projeto do levantamento realizado no estúdio “Arquitetura Pública: Equipamentos Comunitários”, ao desenvolvermos pranchas com diretrizes e informações sobre o bairro Vila Brasil e entregarmos aos moradores esperamos que as informações levantadas sirvam de incentivo para que a população consiga se articular para conseguir melhorias na infraestrutura do bairro.
mapa do dr. John Snow. disponível em: http://www.theguardian.com/cities/2014/dec/01/ picturing-place-how-images-shape-our-cities-snow-cholera-corbusier-graffiti
mapa para divulgação dos espaços públicos vazios no Brooklyn. Disponível em: 596acres.org
as imagens que criam cidades As imagens tem papel fundamental no trabalho do arquiteto e urbanista. É através dela que podemos desenvolver o projeto e formular o espaço. Muitas vezes os projetos se resumem apenas nesse aspecto da representação, não chegando a ser concretizados, e não por isso deixa de ser importante: essas representações servem para formalizar conceitos e reflexões acerca do espaço. Ao pensar a cidade moderna, Le Corbusier desenhou a “Ville Contemporaine”, uma cidade para 3 milhões de habitantes. O projeto – que nunca foi construído – sintetizava as crenças do arquiteto para cidade moderna: setorização, grandes espaços públicos, separação e hierarquia de vias. Brasília também surgiu a partir de um desenho. Os esboços de Lucio Costa foram considerados pelo júri do concurso para construção de Brasília o “único projeto para capital do Brasil” por ter “o espírito do século XX: é novo; é livre e aberto; é disciplinado sem ser rígido” (SEGAWA). Imaginar, desenhar e construir uma cidade é muito emblemático. São casos raros onde realmente se aplicam essa lógica de extremo planejamento na construção das cidades. Mas a cidade pode ter um autor? A forma geral de Lúcio Costa determinou o desenho de Brasília, criou sua imagem icônica – e determinou a criação
claro calar sobre uma cidade sem ruínas Em Brasília admirei Não a niemeyer lei, admirei a vida das pessoas penetrando nos esquemas, tinta sangue no mata borrão, vermelho gente entre pedra e pedra pela terra a dentro Em Brasília, admirei Admirei o pequeno restaurante Oculto, Criminoso por estar fora Da quadra permitida Sim, Brasília Admirei o tempo Que já cobre de anos Tuas impecáveis matemáticas Sim, Brasília, O erro sim, não a lei Muito me admiraste, Muito te admirei (Paulo Leminski, 1984)
esboços do projeto de brasilia, por Lucio Costa. disponíveis em http://www.vitruvius.com.br/ revistas/read/arquitextos/09.098/130
de cidades satélites já que a cidade em si não comportava a quantidade de pessoas. Mas cada habitante da cidade a cria de uma maneira diferente. É necessário sempre considerar que atrás de um desenho ordenado e conceituado existirão as pessoas – já dotadas de valores e imagens acerca da cidade – que usufruirão esse espaço. Quem são essas 3 milhões de pessoas da “Ville Contemporaine”?
a Ville Contemporaine de Le Corbusier. Disponível em: http://www.mediaarchitecture.at/ architekturtheorie/le_corbusier/2011_corbusier_links_en.shtml
as imagens que vendem cidades Em um contexto capitalista, as cidades são tratadas como mercadoria. Como tal, é fácil perceber o uso das imagens daquela cidade como propaganda. Seguindo a lógica do mercado, as imagens da cidade são reformuladas para poder atender os anseios do público e se tornarem objetos de consumo – seja com turismo, especulação imobiliária etc. É comum que se explore determinada característica de uma região para potencializar esse atrativo. Tal situação pode ser presenciada em São João del Rei, a exemplo da exaustiva cópia de modelos arquitetônicos que remetam ao colonial, nesse contexto percebemos um falseamento da arquitetura histórica priorizando a criação de um cenário que sirva ao turismo. Torna-se preocupante esse tipo de atitude, de maneira geral, pois prioriza a estética da cidade em detrimento de seus cidadãos, especialmente os de baixa renda. Em um artigo entitulado “Os perigos da economia hipster” da Al Jazeera, a jornalista Sarah KENDZIOR aborda a gentrificação de cenários urbanos decadentes. Isto é, a renovação de espaços decadentes da cidade e a consequente expulsão dos habitantes originais daquele espaço. Nesses casos, acontece uma falsa noção de requalificação dos bairros que tem sua infraestrutura melhorada mas não para favorecer sua população original, mas para que essa seja “substituída” por uma população mais privilegiada. Ainda, nesse
novo contexto preserva-se uma nostalgia seletiva que romantiza e se apropria da história daquele espaço. Enquanto isso, a população original desses bairros perdem seus lugares de referência e continuam sem acesso à uma melhor infraestrutura urbana. Ambas situações apontam para uma cidade cada vez mais pautada em seu valor comercial e perdida em termos de identidade. Uma cidade sendo tratada como objeto para consumo.
Intervenção em placa de obra em Williamsburg - NY: Mais coisas (para pessoas ricas). Mais Williamsburg Condoburg. Dísponível em: http://gowanuslounge.blogspot.com.br/2007/09/revengeof-old-dutch-mustard-80-met.html
considerações finais As imagens das cidades depende de um observador. Todas essas questões depende de se pensar a cidade como um espaço para as pessoas. Partindo dessa premissa é notável que um grande problema das cidades atuais é sua perda de relação com a escala humana. Em “As cidades para as pessoas”, Jan GEHL ressalta essa perda da escala. Para o autor, as cidades estão sendo produzidas como edifícios isolados e não mais planejadas como espaços urbanos. Tal mentalidade resulta num espaço público cada vez menos atraente para a população que se confina nos espaços privados – condomínios, shoppings etc. Os carros são outro fator que prejudicam o espaço público, ao criarem “bolhas” individuais para se deslocar na cidade perde-se o sentido de interagir com ela durante o percurso. Todo esse afastamento desencadeia um processo deterioração dos espaços comuns da cidade, que são cada vez mais reduzidos e mais mal cuidados. Com isso se perde a capacidade de estabelecer vínculos afetivos com o espaço, de vivenciar a cidade de fato. A perda de identificação com a cidade prejudica o processo de se criar as imagens da cidade. Se não se usufrui a cidade, não conseguimos estabelecer vínculos fortes com o espaço. Portanto, é de extrema importância que se invista na recuperação de espaços públicos e se estimule a apropriação dos mesmos pelas pessoas.
A capacidade de imaginar a cidade é a capacidade de estabelecer vínculos com essa, de propor uma interpretação do espaço e criar soluções para seus usos. Essa relação de cidades e imagens nem sempre gera resultados positivos, mas ainda é uma ferramenta fundamental para se pensar o espaço urbano seja por arquitetos ou cidadãos comuns.
dimensão humana - descuidada, eliminada e ignorada. Disponível em: < http://issuu.com/ region52/docs/cities_for_people-_spanish_final_ss >
bibliografia LYNCH, Kevin. A Imagem da Cidade. Lisboa: Edições 70, 1960. BURGIN, Victor. IN/Different Spaces. Berkeley: UCPress, 1996. GEHLS, Jan. Ciudades para la gente. Buenos Aires: Ediciones Infinito, 2014. SEGAWA, Hugo. Brasília: utopia que Lúcio Costa inventou. Disponível em < http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/ arquitextos/10.125/3629 > CAMPKIN, B. ROSS, R, MOGLIEVICH, M. Picturing Place. Disponível em: < http://www.ucl.ac.uk/urbanlab/research/ picturingplace > KENDZIOR, Sarah. The Peril of Hipster Economics. Disponível em < http://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2014/05/perilhipster-economics-2014527105521158885.html >
arquitetura e urbanismo - ufsj 2015.1.2