Filmosofia prova1

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Filmosofia no cinema nacional contempor창neo



Deise Quintiliano

Filmosofia no cinema nacional contempor창neo

ensaio


Copyright © 2014 Deise Quintiliano Copyright © 2014 desta edição, Letra e Imagem Editora. Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98) Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Revisão: Vitor Ribeiro Foto da capa: Steve 99

Deise Quintiliano Filmosofia no cinema nacional contemporâneo / Deise Quintiliano – Rio de Janeiro: Folio Digital: Letra e Imagem, 2014.

isbn 978-85-61012-22-9

1. Filosofia. 2. Cinema I. Título. II. Quintiliano, Deise. cdd: 869.3

www.foliodigital.com.br Folio Digital é um selo da editora Letra e Imagem Rua Teotônio Regadas, 26/sala 602 cep: 20021-360 – Rio de Janeiro, rj tel (21) 2558-2326 letraeimagem@letraeimagem.com.br www.letraeimagem.com.br


Sumário

Apresentação 11

Glossário Terminológico 15 A experiência fundamental do cinema 19 A contribuição de Daniel Frampton 21 O cinema pensa 27

Filmosofia ou lirosofia? 33

O cinema deleuziano na filmosofia 36 Fenomenofilmosofia 39 O filme-cérebro 48

O filme-cérebro e o filme-mundo 53

Componentes do filme-pensamento 61 O filme orgânico 65

Pragmaticismo Filmosófico 68

Representações pontuais da filmosofia no cinema brasileiro contemporâneo 75 Meu nome não é Johnny 77

Cinema, aspirinas e urubus 96 Referências bibliográficas  125



Parce que l’image cinématographique “fait”

elle-même le mouvement, parce qu’elle fait ce

que les autres arts se contentent d’exiger (ou de dire), elle recueille l’essentiel des autres

arts, elle en hérite, elle est comme le mode

d’emploi des autres images, elle convertit en

puissance ce qui n’était que possibilité. Gilles Deleuze

A thorough and detailed defense of the idea

that cinema is itself a kind of mind that film

thinks in its own way, merging with the thou-

ght of the filmgoer. And although the general

idea that movies and the mind share essential features has been around since cinema was

invented, Frampton develops it with great erudition and care, leading us to experience film as it should be experienced as a unique form

of consciousness. Colin McGinn

É bem difícil criar coerência entre referências

Felippe Cordeiro



A meus alunos e alunas,

razĂŁo de ser de minha persistĂŞncia.



Apresentação

São demais os caminhos que levam à reflexão. Foi refletindo que

este ensaio se tornou fruto da curiosidade, mas também do de-

leite, do desafio, da dificuldade, da investigação e, sobretudo, da

teimosia. A tentativa de encontrar respostas para a indagação “é

possível falarmos em cinema engajado apreciando alguns filmes

nacionais contemporâneos?” precipitou-me, de modo definitivo, nos tentáculos sedutores da sétima arte.

A análise hermenêutica de filmes como Central do Brasil e Di-

ários de Motocicleta me permitiram concluir, timidamente, que,

ainda que encontremos pistas disseminadas aqui e acolá, estamos longe de rivalizarmos com a consistência de movimentos

como o Neorrealismo italiano, a New Wave iraniana, a Nouvelle

Vague francesa ou mesmo os filmes noir americanos, detentor de

uma cimentada ancoragem na cinematografia característica do expressionismo alemão ou do realismo poético francês.

Percebi que, sorrateiramente, rolos de celulose me haviam

cingido num abraço de morte, que tolhe qualquer resquício de

liberdade desviante da rota que conduz incontinente à sala escura. Nessa temerária travessia, deparei-me com o enigmático con-

ceito de “filmosofia”, originalmente cunhado pelo escritor, crítico e produtor inglês Daniel Frampton, fundador do salon-journal

Film-Philosophy, e por ele sintetizado como um “manifesto em 11


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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

favor de uma nova maneira radical de compreensão do cinema”. Já me debatia, então, com tenacidade, no fracassado fito de

me desvencilhar das resistentes cordas entrelaçadas na armadi-

lha engendrada por Frampton. Sem muitas opções satisfatórias

que não o enfrentamento, lancei-me, assim, como as naus por-

tuguesas, num desconhecido mar tenebroso, sabedora de que

muitas sereias iriam entoar seu canto, confundindo-me o enten-

dimento e entorpecendo-me os sentidos. A tarefa era de monta!

Pouco a pouco, a gnose acumulada e o mergulho irrefletido

no “quase totalmente inédito” – se desconsiderarmos o Big Bang,

nada surge do nada – começa a se delinear textualmente sob a

égide dessa interessante abordagem cinematográfica, aplaudida

por inúmeros teóricos e críticos, a exemplo de Vivian Sobchack, que afirma: “Filmosofia, enquanto um manifesto filosófico, é

uma intervenção significante e provocativa no diálogo contem-

porâneo sobre cinema , expressa tanto no pensamento quanto na

ação. A larga retórica de Frampton é refrescante, suas referências fílmicas ecléticas e sua prosa um efetivo prazer de leitura”.

A essa voz, somam-se outras altissonantes e laudatórias ao

sui generis neologismo urdido por nosso autor, como a de Emma

Wilson, da Universidade de Cambridge: “Os conceitos de Frampton de ‘film-thinking’ (filme-pensamento) e de ‘filmind’ (filme-

-cérebro) arrebatam-me por serem brilhantes, oportunos (em

resposta ao cinema contemporâneo), além de possuírem um caráter de evocação e explanação. Determinada, apaixonada e

engajada, a Filmosofia desafia seus leitores a re-pensarem suas

experiências no cinema”.

Vejamos, ainda, Colin McGinn, da Rugters University, “a me-

ticulosa e detalhada defesa da ideia de que o cinema é por si mesmo um tipo de mente, de que o filme pensa de uma maneira

que lhe é própria, mescla-se com o pensamento do cineasta. E

embora a ideia geral de que filmes e cérebros partilham carac-


Apresentação

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terísticas essenciais esteja em voga desde a invenção do cinema, Frampton discorre sobre ela com grande erudição e cuidado,

levando-nos a experienciar o filme do modo como deve ser experimentado – como a única forma de consciência”.

Nenhuma manobra de recuo é doravante factível, justifican-

do a elaboração do presente ensaio a partir da enorme vontade

de avaliar o trabalho de Frampton, à luz da concepção contem-

porânea de coconstrução de sentidos e à sombra do escrutínio

de uma significação manifesta da Verdade que pudesse se insinuar nos intrincados percalços do complexo tema.

Os obstáculos inerentes ao desenvolvimento dessa matéria

decorrem de vários fatores, a saber: o caráter absolutamente

inovador da proposta de Frampton, a carência total de estudos

sobre o assunto, a ausência de demonstração pragmática da via-

bilidade de aplicação de modelos das teorias sustentadas por

Frampton, o aspecto revolucionário de seu conteúdo e a rigorosa inexistência, até a presente data, de análises teórico-práticas

que evidenciem uma rentabilidade concreta da utilização desse arcabouço na “fatura” de uma película.

Conforme o autor esclarece em vários momentos, o cinema

pensa, a câmera pensa, para além das tomadas de decisão do

cineasta. Optar por uma avaliação apoiada na filmosofia implica um investimento na liberdade e na inteligência fílmica. Por

isso, não deve haver filmes menos ou mais afeitos à inspeção

filmosófica.

A escolha de nossos corpora procede, destarte, do tentame de

responder ao questionamento filosófico fundamental: “como se

torna aquilo que se é?”, muito mais do que de uma busca frenética que tente dar conta dos pressupostos filmosóficos defendidos

por Frampton.

Trata-se de uma diretriz difícil, laboriosa, criativa com o ob-

jetivo de haurir de dois filmes brasileiros contemporâneos certa


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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

proficuidade investigativa, com claro apelo ora não mais à hermenêutica, mas à semiologia das imagens que também falam.

Os filmes de eleição foram O meu nome não é Johnny (de Mauro de Lima) e Cinema, aspirinas e urubus (de Marcelo Gomes), nos

quais trajetórias concernindo os percursos individuais de personagens e a subjetividade dos protagonistas são enfatizadas.

Contando com o olhar arguto também de espectador, cabe

ao leitor desse texto a decisão final sobre a validade do método e a operacionalidade do conceito de filmosofia, afinal, segundo

premissas filmosóficas, o espectador é o responsável soberano por sua vistoria do filme, tanto quanto o leitor pelos sentidos que depreende do livro.

Se logramos ou não êxito em nossa aventura, só o leitor será

capaz de decidir, secundando nosso intento com seu engenho e sua arte, perscrutando o sensível labirinto de Dédalo munido de

um aquilatado fio de Ariadne: a liberdade de fazer interagir seus

conhecimentos e visão de mundo com as fotografias, projetadas

no deleitante aconchego da sala escura, em face da imensidão solitária do grande écran.

A Autora


Glossário Terminológico1

Film-world – “Filme-mundo”: reprodução simples e direta da realidade transposta para a tela. É um mundo plano, organizado e comprimido – parente da realidade. Tem a funcionalidade

de um espelho que reflete nossa interação como o mundo.

A multiplicidade do movimento das imagens no século XXI implica dizer que o filme-mundo é uma espécie de segundo mundo no qual vivemos. O filme-mundo não é real.

Film-being – “Ser-filme”: potencialidades que ultrapassam os

limites do filme-mundo. Reconceitualização que conduz à

compreensão da película menos como uma reprodução da realidade do que como uma “real” criação de uma realidade

própria. O ser-filme não é humano.

Filmind – “Filme-cérebro”: conceito filmosófico do ser-filme. Não trata de uma descrição empírica do filme, mas de uma compreensão conceitual das origens das ações fílmicas e dos

Embora não desvelando todo o glossário acionado por Frampton, alguns conceitos operacionais dos pressupostos filmosóficos, aqui elencados, serão mais utilizados do que outros, no decorrer do ensaio. Optamos por descrevê-los e traduzi-los com o objetivo de dar mais clareza à riqueza da contribuição do autor que, em certos momentos, corre o risco de se perder no intrincado emaranhado terminológico de sua eleição, às vezes com a complementação de outros teóricos, a exemplo de Vivian Sobchack.

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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

eventos. Não é uma força externa ou um ser místico, invisí-

vel: o “filme-cérebro é o próprio filme” (Frampton, 2006, p. 7). Não o substitui, mas se aproxima da ideia de narrador.

Film-form – “Forma-filme”: mise-en-scène estética do filme. Aparato teórico capaz de demonstrar que o pensamento é uma

decisão dramática do filme, podendo desembocar em múlti-

plas vertentes, significados e efeitos.

Film-thinking – “Filme-pensamento”: Ação da forma-filme direcionada à intenção dramática; espécie de teoria da narração

fílmica. A forma-filme, por si só, é incapaz de constituir e

reconfigurar o filme-mundo. Essa é a função do filme-pensamento, que não se aparenta a nenhum tipo de pensamento

humano, mas encarna uma combinação de ideia, sentimento

e emoção. É possível esboçar o que, de fato, o filme-pensamento representa se o subdividirmos em:

Basic Film-thinking – O “filme-pensamento-básico” associa-se às

estruturas do filme-mundo (preto e branco ou colorido, razão e proporção); à adição de elementos formais tradicionais

(movimento, deslocamento); recriação do próprio filme-mundo (efeitos especiais, imagem). Constitui-se no único projeto de base para a estrutura e o aparecimento do filme-mundo.

Formal Film-thinking – “Filme-pensamento-formal”. Para além das simples “intenções” do filme-pensamento-básico, existe

um envolvimento ativo expresso nas cenas de que o filme-

-pensamento-formal visa a dar conta. Não significa uma

substituição da tradição crítica da mise-en-scène, mas tão so-

mente uma extensão do que ela recobre. A mise-en-scène crí-

tica tem sido associada aos elementos do filme-mundo, tais

como: iluminação, indumentária, atuação, espaço, decoração, disposição do cenário, apoio etc.

Fluid Film-thinking – O “filme-pensamento-fluido” é o que altera o filme-pensamento-básico pelo lado de fora. Trata-se de


Apresentação

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uma recriação do filme-pensamento. O filme-pensamento-

-fluido dilacera o filme-mundo, dividindo-o e rasgando-o por dentro, colocando-nos diante do ser-filme que pode imaginar

qualquer coisa, reinventar mundos reconhecíveis, à vontade.

Só é possível porque o filme-cérebro é um habitante inves-

tido do filme-mundo. O tipo de intenção segundo o qual ob-

jetos são verdadeiramente transfigurados revela a natureza integrada do ser-filme, revela o fato de que filmes-objeto são

criados e veem apenas a metade de um completo entendimento da intenção fílmica.

Filmgoer – “Filmes-testemunha”: o espectador que exerce papel

ativo no processo de apreensão da película e que, pela “es-

tética da recepção” (Jauss, Iser), aponta para a mudança do paradigma da investigação literária e discursiva, remetendo

o ato de leitura a um duplo horizonte: o implicado pela obra e o projetado pelo leitor de determinada sociedade.

Film-body – “Filme-corpo”: segundo Vivian Sobchack, trata-se

de uma “intencionalidade singular”, dotada de sua própria

“presença existencial” que define a ancoragem histórica do

filme, modificando o modo como filmes estabelecem relações com o mundo e com outros filmes. É uma espécie de

ação visível do filme-percepção. O mesmo que filme-imagem,

pois associa a película a uma vida orgânica.

Film-perception – “Filme-percepção”: Vivian Sobchack estabelece uma analogia entre o filme-percepção e a percepção

humana, destacando a intencionalidade singular do filme-

-percepção. Analogia não é identidade.

Film-intention – “Filme-intenção”: O mesmo que filme mundo, na terminologia proposta por Vivian Sobchack.

Film-experience e Film-vision – “Filme-experiência” e “filme-visão”: ambos são uma construção de Vivian Sobchack e

implicam uma atenção antropomórfica, uma distância entre


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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

o filme e o filme-mundo. É evidente o hiato que se pode observar entre a experiência fílmica e nossa própria existência,

porquanto filmes não tornam o pensamento humano visível

para os espectadores. Seria necessário que um flashback fenomenologicamente correto nos apresentasse o que o personagem está vendo e rememorando ao mesmo tempo. Somen-

te a forma-filme é capaz de aproximar o filme do estilo de

vida humano.

Film-Camera – “Filme-câmera”: não é um mero dispositivo autotélico, um fim em si mesmo, reproduzindo estilhaços da realidade. Carece da criativa invenção do cineasta para existir.

Filmosophy – “Filmosofia”: estudo do filme como pensamento que

contém uma teoria sobre ser-filme e sobre a forma-filme.

Conceptualismo do filme como uma inteligência orgânica –

um ser-filme pensante e reflexivo sobre personagens e assun-

tos apresentados na telona. Avalia a capacidade imaginante/ imaginativa do filme.


A experiência fundamental do cinema

A sétima arte sempre despertou entusiasmo, curiosidade, paixão,

às vezes até mesmo perplexidade por parte do público que aflui,

frenética e cotidianamente, para a sala escura. Por outro lado,

também suscitou uma verdadeira inflação retórica por parte da

crítica, que jamais se eximiu de expor sua apreciação, conside-

rando, não raro, tal julgamento um valor definitivo. Desde o ad-

vento do cinema, a racionalidade humana, associada a uma tradição de base hermenêutica, pôde constatar a emergência de um novo locus e de um excepcional instrumento de abordagem de

fatos, tramas, histórias e ficções. As noções de imagem, de pers-

pectiva, de montagem, de tempo, de plano, de enquadramento, de recorte, inserem-se numa realidade sui generis, penetrando

diretamente no cérebro dos espectadores para nele instaurarem

um dado novo, na exata medida em que a comunicação fílmica conecta narração e demonstração.

Essa experiência revela-se fundamental, pois tem por fito

compreender o tipo de universalidade que o cinema propõe, baseado em asserções imagéticas, concernindo uma realidade, um

sentido, uma possibilidade, passíveis de se mostrarem verdadei-

ros ou falsos, em consonância com seu amparo numa propos-

ta predominantemente referencial ou eminentemente ficcional. Nessa perspectiva, o cinema “abre o mundo”, obrigando-nos a

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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

levar em consideração elementos que pudessem ser naturalmen-

te desprezados, ignorados ou subestimados, numa outra dinâmica. Diante da vastidão de maneiras de conceber criticamente

a perspectiva cinematográfica, assumimos a que se apoia no

conceito de filmosofia (filmosophy), tal qual a concebe seu arquiteto, Daniel Frampton, em 20061, em diálogo permanente

com a noção deleuziana de “cinema cerebral” (Deleuze, 1985, p.

265) e com a perspectiva fenomenológica do cinema desenvol-

vida por Vivian Sobchack2, secundada nas reflexões filosóficas de Merleau-Ponty3.

Cf. Frampton, Daniel. Filmosophy. 2006 The Address of the Eye: a Phenomenology of FilmExperience. 3 La phénoménologie de La perception; Le visible et l’invisible; L’oeil et l’esprit.

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A contribuição de Daniel Frampton

Em linhas gerais, a filmosofia espelha um estudo do filme como uma engrenagem reflexiva autônoma, na qual o filme-cérebro

(filmind)1, contém uma teoria sobre o ser-filme (film-being) e

sobre a forma-filme (film form). Destarte, a filmosofia concebe

o filme como uma “inteligência orgânica”: um ser-filme que re-

flete sobre os personagens e temas propostos pelo próprio filme.

Para Frampton: “O ser-filme é o próprio filme” (Frampton, 2006, p. 7).

Trata-se, portanto, de um modo particular de vislumbrar

uma obra cinematográfica, fornecendo-nos um aparelhamento

distinto de compreensão do universo paralelo da sétima arte,

sempre instigante para o espírito escrutador do crítico. É um desafio lançado à nossa compreensão de realidade “forçando uma

consideração fenomenológica sobre como a realidade é percebida por nossos cérebros” (Frampton, 2006, p. 3). A proposta de

Frampton visa, assim, a apresentar-nos o filme em detrimento

da relação engendrada com a realidade circundante do especta-

No início do volume, propusemos um glossário terminológico básico com os conceitos adotados por Frampton, bem como uma breve explicação sobre nossas opções tradutórias para a Língua Portuguesa, considerando-se que, até a presente data, o livro não foi traduzido nem para o português.

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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

dor, embora tal convergência dite a tônica de parte significativa da filmografia mundial. O fato é que se ater tão somente a esse

aspecto empobrece uma possibilidade material de entendimento

de que o cinema é capaz de instituir sua própria realidade, seu

próprio mundo, cenas, objetos e efeitos, como desejar.

O trabalho de Frampton pode ser compreendido, então,

como um manifesto em defesa da inteligência e da independência fílmica, abraçando um novo sistema de reflexão e uma nova

episteme. Nesse sentido, é possível inferir por que a artilharia

pesada de muitos conceitos filosóficos encontram seu paradigma de explicitação no cinema. Todavia, a sala escura se revela como

muito mais do que um catálogo de abordagem de problemas me-

tafísicos, questionando conhecidos conceitos filosóficos.

Com efeito, a filmosofia não nos brinda simplesmente com

uma chave inédita e invulgar de compreensão do que se passa

no telão, mas palmilha uma rota alternativa de análise do filme,

partindo de sua própria argamassa constitutiva. Atualmente,

não se ignora mais a contribuição do cinema no debate filosófi-

co, porém é extremamente limitado conceber que um filme só

possa propor ideias ancoradas em histórias ou diálogos, o que

leva Frampton a questionar: “Se o ponto de partida desses filósofos é ‘o que um filme pode fazer pela filosofia?’, quanto tempo

vão levar ainda para compreender que o filme apresenta filosofia?” (Frampton, 2006, p. 9). Daniel Frampton chama, aliás,

atenção para um aspecto não negligenciável do filme-cérebro: o processo de criação de base do filme-mundo (film-world), que

reconhece pessoas e objetos no interior de uma operação de reconfiguração do filme-mundo, podendo ser intitulada filme-pensamento (film-thinking). É Deleuze quem nos auxilia na com-

preensão desse conceito: “Cada imagem no seu enquadramento, por seu enquadramento, deve expressar uma relação mental.

Os personagens podem agir, perceber, sentir, mas não podem


A contribuição de daniel frampton

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atestar as relações que os determinam. São apenas movimentos

de câmera e seus movimentos em direção à câmera” (Deleuze,

1983, p. 271-272).

Deleuze tem razão em estabelecer tal paralelo sob a batuta

da cinematografia do mestre do suspense, sobretudo se nos ati-

vermos à introdução assinada por François Truffaut, no livro-entrevista Le cinéma selon Hitchock: “Hitchock é o único cineasta

que consegue filmar e tornar perceptíveis pensamentos de um

ou vários personagens sem recurso ao diálogo” (Truffaut, 1966,

p. 15). De fato, é a câmera e não o diálogo que explica por que

o herói de Janela indiscreta está com a perna quebrada (fotos de

carro de corrida no quarto, máquina fotográfica quebrada). É a

câmera, em Sabotagem, que faz com que a mulher, o homem e a

faca não permaneçam numa relação de paralelismo, mas numa

verdadeira triangulação: “A melhor cena é a do jantar, já no fim do filme, depois da explosão da bomba que causou a morte do

menino, quando Sylvia Sydney decide matar Oscar Homolka. Há

vários detalhes e alusões à criança morta e quando, finalmente,

ela apunhala o marido, é menos um assassinato do que um suicídio” (Truffaut, 1966, p. 79).

Ainda mais interessante é remontarmos à fonte primária do

autor de A corda sobre a fragmentação episódica e a ausência de diálogo referidas por Frampton, tanto em Janela indiscreta

quanto em Sabotagem. Ouçamos a explicação de Hitchcock em entrevista concedida ao cineasta francês:

É a utilização de meios fornecidos pelo cinema para contar

uma história. Isso me interessa mais do que se alguém per-

guntasse a Stewart: como você quebrou a perna? Stewart responderia: “Estava tirando uma foto de uma corrida de

carros, uma roda se soltou e me atingiu”; não é verdade?

Essa seria uma cena banal. Para mim, o pecado capital de


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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

Figura 1. Decupagem visual da cena do assassinato em Sabotagem – Hitchcock (Truffaut, 1966, p. 80-81)


A contribuição de daniel frampton

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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

um cineasta revela-se quando discutimos a dificuldade de

escamotear o problema, dizendo: “Resolveremos isso com

um simples diálogo”. O diálogo deve ser um ruído dentre

outros, um rumor que sai da boca dos personagens cujas

ações e olhares contam uma história visual (Truffaut, 1966, p. 165).

A filmosofia não instaura uma analogia direta entre o pensa-

mento e o filme, porquanto este forja um modo distinto de nosso

discernimento, de nossa leitura do mundo e de apreensão dos

acontecimentos, propondo-nos uma nova modalidade de “pen-

sar”. Por essa razão, uma metáfora fenomenológica da percep-

ção humana poderia restringir as possibilidades de significação

do filme – a câmera pode ser vislumbrada como outro persona-

gem, aproximando mais o filme-pensamento de uma ideia, um sentimento, uma emoção, do que da singularidade da reflexão

humana. Efetivamente, o filme-cérebro permite ao filme-tes-

temunha (filmgoer) ou espectador viver a experiência fílmica

como seu drama pessoal, mais do que extraí-la de uma vivência estranha e exterior à ação dos atores, cineastas ou narradores

visíveis. Filmosofia é assim designada como uma filosofia orgânica do filme.


O cinema pensa

O resultado mais concreto do processo de reescalonamento e

reavaliação fílmica, enquanto um pensamento, representa a radi-

calização de nossa forma de compreender o filme. Antes de tudo,

urge prestigiar a imagem e o som, componentes normalmente

mais negligenciados ou descuidados1, pelos filmes-testemunha,

na maior parte das cenografias, o que leva Frampton a concluir:

“Meu argumento é que essa reconceituação do filme como pen-

samento permitirá, felizmente, um acesso mais poético à inteli-

gência do filme” (Frampton, 2006, p. 8).

Uma espécie de casamento entre filme e filosofia está na or-

dem do dia. A exemplo do movimento intentado por teóricos

literários, nos anos 1970, atualmente confrontamo-nos com es-

tudiosos, acadêmicos e pesquisadores que parecem buscar a melhor e mais adequada película para dar conta dos ensinamentos

de Aristóteles, de Nietzsche, de Kant, de Hegel, de Sartre. Em regra, esses professores-filósofos preocupam-se sobremaneira com como um filme contém histórias e caracterizações passíveis

de precisar, pertinentemente, os conceitos filosóficos que analiAs premiações dessas modalidades em festivais internacionais de cinema tem sido decisivas para a correção da injustiça contida em tal distorção, exigindo um cuidado especial na realização de componentes tão vultosos.

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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

sam. Muitas produções na esfera do filme-filosofia simplesmente

ignoram técnicas cinematográficas, atendo-se à trama encenada,

ao roteiro concebido e à motivação dos personagens. Ao trazerem à cena o peso da filosofia acadêmica, esses escritos acabam, não raro, promovendo uma transdisciplinaridade compulsória

ao associar as duas disciplinas em dessimetria, como água e óleo.

Ocorre, então, uma inversão de papeis: o filme coloca-se,

aqui, a serviço da filosofia, é refém de seus pressupostos, deve

mostrar uma realidade codificada, consoante às necessidades

do articulista-filósofo. Muitas vezes, o entusiasmo faz com que

professores lancem mão de filmes para ensinar filosofia em seus

cursos, ilustrando seus conceitos, atendendo a seus propósitos e respondendo a suas clássicas indagações. Merecem aplausos

as crescentes experiências extremamente bem sucedidas de uti-

lização desse veículo na conquista de corações e mentes para o

esclarecimento de formulações muitas vezes abstratas, comple-

xas e desencorajadoras, na busca de novas plateias.

Os consagrados Cinefilô e Filosofando no cinema, do professor

de filosofia, ensaísta e romancista Ollivier Pourriol, que analisa

pensadores de épocas distintas à luz de filmes conhecidos de

todos, numa abordagem original, demonstram a eficácia dessa

estratégia. As atenções encontram-se voltadas predominantemente para a história, o diálogo, a intriga e as motivações dos

personagens. O filme é, assim, deixado de lado enquanto o pro-

blema é lançado e respostas são fornecidas, com finalidade didática. Esses clássicos questionamentos, todavia, exaurem ricas

possibilidades interpretativas do filme, sendo progressivamente

abandonadas, estimulando os alunos a ignorarem o movimento sinestésico som-imagem, por exemplo, para se concentrarem tão

somente nos personagens e no fio condutor da trama propria-

mente dita.


O cinema pensa

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A sobrevivência desse recém-nascido diálogo transdiscipli-

nar, que pode se revelar extremamente fecundo, depende de

como utilizar o filme com vistas a agenciar um real interlocução entre epistemes distintas. Não resta dúvida de que o cinema

também apresenta conteúdos e histórias bastante tentadores se

colocados nas mãos de um filósofo. A filmosofia, porém, chama

atenção para o fato de que filmes representam mais do que isso, não se esgotando nos diálogos e complôs que encenam. Como

reconhece Julio Cabrera, a filosofia se desenvolveu, ao longo de

sua história, na forma literária e não através de imagens: “Mas

quem disse que deve ser assim? Existe alguma ligação interna e

necessária entre a escrita e a problematização filosófica do mun-

do? Por que as imagens não introduziriam problematizações fi-

losóficas, tão contundentes, ou mais ainda, do que as veiculadas pela escrita?” (Cabrera, 1999, p. 17).

Alguns escritores ainda aplicam os mesmos termos literários,

tomados por empréstimo aos departamentos de literatura, nos anos 1970, e esse conceito exterior conduz a uma análise que

não leva em conta a forma-filme, ao passo que insistir na es-

cavação de tais sendas cinematográficas possibilitaria um in-

vestimento concreto na tessitura de futuras reflexões sagazes. É preciso inverter a fórmula e entrever a hipótese de se colocar a

filosofia à mercê do cinema, para contrabalançar o peso de tudo o que já foi elaborado até o momento presente.

Foco, edição, câmera, som, enquadramento: todas essas téc-

nicas guardam uma estreita relação com a história fílmica pro-

posta. Obviamente, não podemos conceber formas e cores para definir ideias específicas, caso contrário o filme reduzir-se-ia à

linguagem. Mas Frampton nos adverte que:

A filosofia produz ideias num sentido preciso e o filme é um pensamento poético que obtém diferentes tipos de filosofia e


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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

de linguagem, os quais Wittgenstein considerou impossível

encontrar na conversa cotidiana. Somos nós que completamos o pensamento de um filme, quem decide, se quiser, que

ideias se pode ganhar com o filme. A filmosofia ultimamente

tem o objetivo de libertar a imagem de sua posição secundária, na interação humana dando-se atenciosamente conta das potencialidades do filme (Frampton, 2006, p. 10).

Buscando um entendimento sobre o que pode ser alcançado

cinematograficamente, a filmosofia visa a descortinar o filosó-

fico no movimento e na forma-filme. Se essa proposta representa um novo suporte aplicado ao filme, o que significará para o nosso pensamento e a nossa compreensão de mundo? O que

um filme é capaz de imaginar filosoficamente? Quais seriam as

implicações filosóficas em se vislumbrar o filme por intermédio

dessa estilização? Como a filosofia pode pensar a partir de ima-

gens? Em que sentido podemos empregar o filme-pensamento no atual debate de problemas e discussões filosóficas? Por que

utilizar essa reflexão “não conceitual” no cerne da filosofia?

Diante de tantas indagações, uma observação faz-se neces-

sária: possivelmente, o filme contém uma taxionomia de pensa-

mento completamente inabitual, diluída em prodigiosas linhas

de força, balizadoras de uma nova episteme. Talvez, os conceitos metafísicos operantes encontrem seus paradigmas exatamente

no cinema. Filosofia não é um tema, mas uma prática inventiva,

e o filme fornece a filósofos, como Deleuze, tanto uma criação

conceitual, enquanto ciência, quanto uma filosofia, propriamen-

te dita, em sentido estrito. Não nos esqueçamos, porém, da má-

xima afiançada pelo artífice de Cinéma 1 e 2, obras norteadoras

de nossa démarche, segundo a qual é também tarefa da filosofia

criar conceitos. Isso ocorre porque o cinema apresenta um tipo de imagem, no conjunto de distintas estéticas imagísticas, de


O cinema pensa

31

funções científicas e de conceitos filosóficos, onde não há a primazia de nenhum campo2.

Cabe reconhecer que cada filme planifica uma tenra tipi-

ficação do pensamento, suscetível de ser assimilada por uma

profunda compreensão do emaranhado imagístico: eis a contri-

buição primeva da filmosofia. Nesse sentido, a filmosofia não tem por escopo representar a solução mágica para os estudos

filosóficos fílmicos, mas se prestaria, muito adequadamente, a

uma adaptação junto a outras perspectivas e esquemas interpretativos vanguardistas. Um exame estritamente filmosófico

do filme compõe apenas uma leitura parcial a ser integrada a

outras perspectivas e análises. O livro de Frampton pode, assim, ser compreendido “conscientemente como uma provoca-

ção, quase um manifesto: felizmente, pode[ndo] criar perguntas,

bem como possibilidades de aplicação” (Frampton, 2006, p. 11). Num entendimento mais pormenorizado de suas acepções, o

conceito de filmosofia já não se revela tão impenetrável, possiPara Pierre Bourdieu, o universo ‘puro’ da mais ‘pura’ ciência é um campo social como outro qualquer, com suas relações de força e monopólios, suas lutas e estratégias, seus interesses e lucros, mas onde todas essas invariantes revestem formas específicas. O campo científico, enquanto sistema de relações objetivas entre posições adquiridas (em lutas anteriores), é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial. O que está em jogo especificamente nessa luta é o monopólio da autoridade científica definida, de maneira inseparável, como capacidade técnica e poder social; ou, se quisermos, o monopólio da competência científica, compreendida enquanto capacidade de falar e agir legitimamente (isto é, de maneira autorizada e com autoridade), que é socialmente outorgada a um agente determinado. Assim, é campo todo sistema de relações sociais funcionando segundo uma lógica que lhe é própria, engendrando seus próprios mecanismos de evolução. Para a compreensão do conceito de “campo intelectual”, Bourdieu propõe um vasto estudo, do qual destacamos “Champ intellectuel et projet créateur” in Les Temps Modernes, nº 246, nov. 1966, p. 865-906; “Champ du pouvoir, champ intellectuel et habitus de classe” in Scolies, nº 1, 1971, p.7-26 e La distinction. Paris: Minuit, 1980. 2


32

Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

bilitando ainda o ecoar de neologismos dos anos 1920, conforme adverte Ricciotto Canudo: “cinegrafia, cinelogia, cinemania,

cinefilia e cinefobia, cinepoesia, cinematurgia, cinecronismo a

lista prossegue. Só o tempo e o acaso definirão que terminologia permanecerá conosco” (Canudo, 1988, p 269).


Filmosofia ou lirosofia?

Analogias são estabelecidas entre o filme e a percepção humana, a partir do advento do cinema: os sonhos, as incursões do

inconsciente projetando-se na tela, o modo de apreensão da rea-

lidade. Segundo as teorias de Epstein1, o estudo de Frampton demonstra que o filme detém uma qualidade única de ser “um

olho independente do olho, escapando ao egocentrismo tirânico

de nossa visão pessoal... é a própria lupa”. (Epstein, 1981, p. 19).

Essa maneira de conceber o filme ultrapassa a ideia do cinema como um cambaleante sistema de signos e avança em direção a um novo tipo de articulação “lirosófica”, capaz de revelar “os

mistérios inconscientes da natureza e a natureza humana por

intermédio de sua exploração epistemológica do tempo e do espaço” (Merleau-Ponty, 1948, p. 58).

O cineasta franco-polonês introduz, além disso, o conceito de

“fotogenia”, como uma qualidade sublime, indefinível, inclassificável, atribuída pelo filme aos objetos e às pessoas/personagens, mais detalhadamente perceptíveis no close e na câmera lenta. Seu contemporâneo, o dramaturgo francês Antonin Artaud, pai

do teatro da crueldade, esboça, nos anos 1920, uma análise de

Autor de uma obra teórica considerável sobre o cinema, o polonês Jean Epstein destaca-se também por seu trabalho como cineasta e romancista.

1

33


34

Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

fulcro original, identificando no filme elementos mascarados

da vida ou o despertar de um sonho, na tentativa de dissecar, nessa matéria-prima, uma manifestação cerebral que permita

compreender que a realização desse filme se associa mais adequadamente a um distúrbio do pensamento normal ou a uma evasão mental.

A filmosofia implica, então, uma filosofia partilhada entre o

ser-filme e o filme-cérebro, uma vez que o conceito de ser-filme

oferece uma ossatura conceptual segundo a qual, para melhor

assimilar a intenção do movimento som-imagem, torna-se imperativo: “Operar uma gênese primordial dos corpos em função de

um branco, de um negro ou de um cinza (ou mesmo em função

das cores), em função de um prelúdio de visibilidade que ainda

não é uma figura, ainda não é uma ação” (Deleuze, 1983, p.

262). O filme-cérebro não fornece uma descrição de observações metódicas do filme; é antes uma compreensão conceitual

da origem das ações e dos acontecimentos nele existentes: “Filmosofia não é uma investigação empírica é uma decisão dos filmes-testemunhas utilizar o conceito ao vivenciar o filme [que

é singular a cada um que a ele assiste]” (Frampton, 2006, p. 99).

Da imagem ao pensamento ocorre um choque ou uma vi-

bração que faz nascer “o pensamento no pensamento”. Deleuze capta com argúcia que há em Artaud algo muito peculiar:

A constação de uma impotência que não incide ainda no cinema, mas, ao contrário, define o verdadeiro objeto-sujeito

do cinema. O que o cinema prioriza não é a potência do pensamento, é seu “despoder”, e o pensamento nunca teve

outro problema. É isso que, precisamente, é mais importante

do que o sonho: essa dificuldade de ser, essa impotência no coração do pensamento (Deleuze, 1983b, p. 216).


Filmosofia ou lirosofia?

35

A filmosofia preocupa-se muito particularmente com a ques-

tão filosófica que concerne ao filme-testemunha, indagando:

como o filme tece significações para além das intenções mecânicas? Essa abordagem oferece a nítida vantagem de revelar a

pura poesia do cinema, antes mesmo que os filmes sejam muti-

lados pelo conhecimento contextual.

Em poucas palavras, a preocupação cardinal da filmosofia

parece ser, sobretudo, a de descobrir o que o filme é capaz de

pensar sozinho. Se Frampton adota a terminologia filme-cérebro é porque, como vimos, não estamos mais diante de um

pensamento humano, mas de um molde atípico, que investe

no cérebro inovador, insólito, anômalo; de um cérebro fílmico,

insubmisso, numa certa medida, tanto ao cineasta quanto ao

filme-testemunha: a ação institui sua própria consciência e a

significação dramática origina-se no filme, mais do que em for-

ças exteriores a ele. Desse modo, filmosofia e “lirosofia” jamais

se contrapõem, mas fincam suas bases num diálogo permanente.


O cinema deleuziano na filmosofia

Como o cérebro de uma espiritualidade automatizada, a descrição deleuziana do ser-filme embasa-se, igualmente, nas teorias de Eisenstein para tornar mais precisa sua interpretação, naquilo que o artesão do Encouraçado de Potemkin denominava “a nova esfera da retórica fílmica, a possibilidade de proceder a um julgamento social abstrato”: O circuito completo compreende, então, o choque sensorial

que conduz imagens ao pensamento consciente, em seguida,

ao pensamento por figuras que nos leva às imagens, reedi-

tando um choque afetivo. Fazer ambos coexistirem, unir o

mais alto grau de consciência ao nível mais profundo do in-

consciente: o autômato dialético. A totalidade não deixa de

ser aberta (a espiral), mas é para interiorizar a sequência

das imagens, assim como para se exteriorizar nessa mesma

sequência. O conjunto forma um Saber, à moda de Hegel,

que agrega a imagem e o conceito como dois movimentos em

que cada um caminha em direção ao outro. Há ainda um terceiro movimento, não menos presente nos dois precedentes.

Não mais da imagem ao conceito ou do conceito à imagem,

porém, na vigência de uma identidade do conceito e da ima-

gem: o conceito está, em si, na imagem, a imagem, por sua

vez, está no conceito. (Deleuze, 1983b, p. 210). 36


Filmosofia ou lirosofia?

37

De fato, ao se aprofundar nos estudos da cultura japonesa, o

cineasta russo incorpora a ideia dos pictogramas orientais, isto

é, dos kanjis. A metodologia de trabalho obedece a certa estra-

tégia, antecipando técnicas muito utilizadas na contemporaneidade, onde vige uma preponderância visual: há dois caracteres separados; cada um investido de significados diferentes, mas

quando colocados juntos adquirem um terceiro sentido, ou seja, a junção de duas imagens, com o corte preciso, dotaria a cena de nova possibilidade interpretativa.

Não se pode ignorar o fato de que o filme-pensamento é pro-

duzido por um cineasta: seja baseado num plano estritamente

narrativo, descritivo ou mesmo apoiado numa extensa “imagem

-pensamento”, reveladora de um vazio experimental ou de uma

linguagem cujo escoamento entre os personagens seja fluido.

Esses ourives do grande écran traduzem ideias para o universo cinematográfico, dominando diferentes estratégias do filme

-pensamento. Agindo assim, o filme-testemunha recebe o filme

de um modo tal que as intenções mecânicas ou artísticas do

cineasta não conseguem dominar completamente nem limitar. Se por um lado os cineastas são os verdadeiros artífices de suas

progenituras cênicas - nenhuma dúvida quanto a isso - por outro, são “simples condutores do cinema-pensamento” e admiti-lo está

longe de tentar solapar a importância do papel desse ator maior.

Tal constatação demonstra simplesmente a aptidão peculiar da filmosofia em revigorar a experiência fílmica.

Consequentemente, a filmosofia se interessa pela questão

filosófica; sobre como películas transmitem sentido para os

filmes-testemunha, para além de qualquer intenção mecânico-

-inventiva: “São os filmes contemporâneos que necessitam dessa

conceituação do filme como um pensamento”. Tão logo a pro-

jeção se inicia, o filme-cérebro está presente e o pensamento

põe-se em movimento. O(s) sentido(s) da película ganha(m) vida


38

Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

graças às intenções do cineasta que nela se depositam. Ocorre,

então, a tentativa de auxiliar os filmes-testemunha a estabelecerem relações vivas e dialógicas entre o que se desenvolve no

telão e suas experiências singulares.

Ultrapassando qualquer “essência” suscetível de ser atribuída

à existência conceitual do filme-cérebro, o que se anuncia ver-

dadeiramente substancial para nosso conhecimento do cinema

(se declinarmos, alguns instantes, os pressupostos filosóficos) é saber o que de tudo isso poderá resultar.


Fenomenofilmosofia

A partir do delineamento fenomenológico do filme como experiência, formulado por Vivian Sobchack, tentemos compreender a contribuição dessa metodologia para os pressupostos da filmosofia. Na qualidade de método filosófico que se propõe a descrever a experiência vivida da consciência, a fenomenologia ajuda a elucidar a presença do filme-cérebro, no seu contexto. Todavia, por si só, o filme não é, por definição, fenomenológico, o que torna mais difícil a conceitualização do cinema por intermédio de uma fenomenologia adaptada. Enquanto seres humanos, podemos nos apoiar em nossa fenomenologia singularizada para buscar um atalho facilitador de tal compreensão. À medida que nos apresenta os componentes de sua própria fenomenologia, o filme revela-se, sobretudo, metafenomenológico. O filme-pensamento não é análogo ao pensamento humano, apreendendo apenas o que é visível, o que se faz ver, possuindo uma espécie de fenomenologia privada: “a fenomenologia refere-se ao engajamento humano com a realidade. O ser-filme não é humano e o filme-mundo não é real. O filme é uma realidade autônoma, é seu próprio mundo [...] somos seres subjetivos, contudo, os filmes parecem ser mais fluidos em seu propósito” (Frampton, 2006, p. 46). O filme possui, então, a necessidade de elementos suplementares na propositura de uma análise mais refinada dos fatos que 39


40

Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

apresenta: ângulo, cor, distância, em outras palavras, embora o aspecto fenomenológico seja profícuo, ele é de pouca utilidade

para o filme-testemunha. Não devemos, pois, utilizar o cérebro

para teorizar, ainda que ele nos leve a sentir e a experimentar, porque não conhecemos suficientemente bem o processo mental de organização de um filme: “o filme-cérebro pensa melhor do que nós” (Frampton, 1996, p. 91).

Traduzindo uma maneira de observar a experiência humana

e a forma como os eventos se integram e se mostram, a fenomenologia2 considera a realidade da aparência, à medida que

também ela é componente do “ser fenômeno”. Na base do estudo dos fenômenos, a fenomenologia – disciplina da experiência – nos ensina que, pela intencionalidade, “toda consciência

é consciência de alguma coisa” (Merleau-Ponty, 1945, p.11). É,

portanto, consciência “do que ela não é”. Apoiando-se numa

filosofia descritiva da experiência subjetiva, o filósofo francês

propõe que ela deveria referir-se às coisas como se apresentam na experiência da consciência, estudadas em suas essências, em

seus verdadeiros significados, livre de teorias e pressuposições,

despidas dos acidentes próprios do mundo real e do mundo em-

pírico, objeto da ciência.

Significativamente distante da fenomenologia de Husserl,

2 A palavra “fenomenologia” exprime uma máxima que se pode formular na expressão “as coisas em si mesmas”, numa “redução eidética”, isto é, relativa à essência das coisas (para as coisas elas mesmas), em oposição às construções soltas no ar, às descobertas acidentais etc. O termo tem dois componentes: fenômeno e logos; ambos remetem ao étimo grego: ϕαινομενον e λογος. A expressão grega ϕαινομενον, a que remonta o termo “fenômeno”, deriva do verbo ϕαινεσθαι, que significa mostrar-se, e por isso ϕαινομενον diz o que se mostra, o que se revela. Deve-se manter, portanto, como significado crucial da expressão “fenômeno”, o que se revela, o que se mostra em si mesmo (Cf. Heidegger, Ser e tempo, 1989, p. 57-58).


Filmosofia ou lirosofia?

41

amparada na descrição universal ou “essencial” da fenomeno-

logia transcendental, a fenomenologia existencial de Merleau-

-Ponty investe na personificação historicizada da descrição. Nessa via, espaço e tempo ganham sentido a partir da experiência subjetivamente apreendida.

Se lançarmos um dado, movimentando-o diante de nos-

sos olhos, conseguiremos ver somente, se tanto, três lados, ao

mesmo tempo. É, então, por um procedimento de inferência (e,

consequentemente, por um cálculo da experiência) que perce-

bemos as facetas “ausentes” do dado. Compreendemos, assim, essas “ausências” enquanto presenças. Se prosseguirmos com a

experiência do dado, concluiremos que somos nós quem atribui sua identidade, pertencente a uma dimensão distinta, que nos

permite, de quebra, descobrir um pouco mais sobre nossa subje-

tividade no mundo.

Aplicando esse raciocínio ao filme, notamos, sem grande difi-

culdade, que a todo o momento imagens estão presentes (ainda que ausentes na cena), o que torna factível que uma história seja

contada de múltiplas maneiras (deslocada, fragmentada, sobre-

posta, invertida, interpolada). Esse diálogo entre a fenomeno-

logia de Merleau-Ponty e o conceito de filmosofia esmiuçado por Frampton, pouco a pouco, auxilia-nos a avançar nas rotas abertas da compreensão fenômeno-filosófica do filme:

A fenomenologia revela como, ao pensarmos no objeto colocado diante de nossos olhos, de algum modo, o possuímos.

Como escreve Merleau-Ponty: “ver é ter à distância” [grifo do autor]. Quando vemos um objeto, tornamo-lo nosso.

Essa “estranha posse” do mundo, tal qual Merleau-Ponty a concebe, reflete a posse dos personagens e do cenário do

filme. Para Merleau-Ponty eis a razão pela qual filosofia é

adequada a filmes – à medida que ela consiste em “descrever


42

Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

a mistura da consciência com o mundo e seu envolvimento com o corpo, assim como sua convivência com os outros”; e

porque este é o material fílmico por excelência (Frampton,

2006, p. 40).

De fato, a fenomenologia nos ensina que um filme traduz

muito mais do que uma teoria da inferência, capaz de nos fa-

zer aceder à compreensão fílmica, esclarecendo que um filme

é possuidor de significações intrínsecas e de aspectos estéticos

inerentes ao seu próprio processo de representação. Na trilha

de Merleau-Ponty, Vivian Sobchack concebe o filme como uma

subjetividade independente, um sujeito-objeto que vê e é visto,

instaurando existencialmente uma personificação mecânica da percepção.

Um flashback fenomenologicamente correto deveria mostrar o que o personagem está vendo e recordando, ao mesmo

tempo – como ocorre quando você encara um objeto enquanto desenha em seu cérebro um velho amigo. Filmes não

tornam o pensamento humano visível para nós, e se a fenomenologia do filme prosseguir nessa trajetória, apenas en-

contrará estilos humanos de vida na forma-filme. Conceber o filme antropomorfologicamente restringe as possibilidades

da forma-filme. Parece, então, que se denominássemos o ser-

-filme “subjetivo” tratar-se-ia de uma subjetividade diferente

da que expressamos e possuímos (Sobchack apud Frampton,

2006, p. 42).

É possível que Sobchack veja o filme como subjetivo, mas

não como uma subjetividade concernente ao humano, em suas

ações. Assim sendo, ao mesmo tempo em que o filme revela a

expressão de uma intenção, ele também encarna o sentido des-


Filmosofia ou lirosofia?

43

sa expressão – subjetivamente e existencialmente, acontecendo

diante de nós (espectadores ou filmes-testemunha), para retomar a terminologia de Frampton. A ação perceptiva e subjetiva

do filme mostra-se, então, intrasubjetiva: para ele mesmo, por

ele mesmo, mas disponível apenas intersubjetivamente para os

filmes-testemunha.

Emerge, por conseguinte, uma espécie de corporificação fíl-

mica (o filme-corpo), como uma ação visível e gestual do filme-percepção, marcado por uma “intencionalidade singular” e

uma “presença existencial” inatas. O filme torna-se, destarte,

uma corporeidade capaz de conduzir suas representações singu-

lares. No plano fenomenológico, irrompe do transcendentalismo

em direção ao existencialismo e nossa corporificada existência

não pode mais ser compreendida enquanto uma passiva máqui-

na registradora nem como uma realidade decodificante, mas

como um ativo engajamento no processo do mundo-pensante. O

que conta, efetivamente, é como nossos corpos modelam e formulam nossas diversas possibilidades de categorização: a carne

é o terreno comum de todos os seres.

Compreender o filme como um corpo, uma corporificação

ou uma corporeidade deixa-nos dar conta de que o filme mo-

ve-se em direção às cenas, convidando sua natureza a influenciar objetos e eventos que possivelmente conheçamos, mas que

talvez nunca tenham sido vistos de um modo determinado. O

filme não é, portanto, enfatizado pelo seu corpo mecânico ou físico: câmera, projetor, tela etc. Esse filme-corpo (invisível na apreensão de si mesmo) é o sujeito da imagem, do espaço e do

dinamismo do filme, inscrevendo essa presença no mundo do

“sendo visto/vendo”.

O cinema anuncia-se uma vida orgânica, quase requerendo

a criação de um corpo sensível. Conceitualizar o filme como

corpo significa distingui-lo do filme-mundo, o que dificulta o


44

Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

processo de transmutação da fenomenologia para o filme: es-

tamos separados e ao mesmo tempo misturados com o nosso

mundo – mas o filme é esse mundo. Como bem observa Merleau

-Ponty (1966, p. 74): “O cinema é particularmente talhado para tornar manifestas a união do espírito e do corpo, do espírito e

do mundo e a expressão de um no outro. Eis a razão pela qual

não surpreende que o crítico possa, com relação a um filme,

evocar a filosofia”. O filme-mundo e o filme-intenção revelam-se, consequentemente, como duas faces da mesma moeda: O filme

assumiria assim a função de uma percepção (mecânica) existencialmente encarnada:

Como o concebemos, o filme é unicamente visível como uma

“terminalidade” intencional de um sujeito encarnado que vê, como uma atividade intencional irredutivelmente correlata

com um objeto intencional. Isso significa dizer que mecanismos e humanos que instauram a correlação com a visibi-

lidade existem como visão, não sendo por isso eles próprios

visíveis na correlação – nem podem então ser considerados

para atuar como instrumentos mediadores ou agentes nessa

correlação (Sobchack, 1992, p. 204).

Sobchack encontra uma válvula de escape para essa questão

ao fazer alusão ao filme-experiência e ao filme-visão, fraturando a inteireza da concepção fílmica e introduzindo uma atenção antropomórfica entre o filme e o filme-mundo: “o filme-corpo

e o filme-imagem poderiam ser vistos como únicos e iguais. O

resultado, porém é que devemos conceder ao filme sua termino-

logia própria, seus próprios termos e não uma fenomenologia de segunda mão” (Frampton, 2006, p. 43).

Cabe ainda o questionamento do que seria exatamente esse

corpo. Um corpo que pretende estar diretamente relacionado


Filmosofia ou lirosofia?

45

com o mundo e com outros filmes. Dito de outro modo, que

tipo de constituição consciente o filme apresenta? De que maneira pode-se dizer que o filme existe por si mesmo, com base

na percepção e na expressividade? Como poderíamos descrever

essa “presença invisível”? Vivian Sobchack considera que o fil-

me-testemunha tem acesso, tão somente, ao resultado da en-

carnação do filme-sujeito. O espectador vê-se confrontado com

imagens, sons, presumindo ou sentindo a “presença” que o municia. O filme é uma atividade intencional visto que cineastas e

a maquinaria cinemática que dão vida ao filme são invisíveis: “a

possibilidade do filme emerge e inscreve sua própria existência”

(Sobchack, 1992, p. 204)

O filme-testemunha não vê os mentores da película, sejam

humanos ou tecnológicos, fato que institui aparatos que nos le-

vam a aceitar sua única forma comprovada de existência – enquanto transcendemos nossa fisiologia, o filme transcende seu maquinismo. O filme confronta-se, então, com a única intenção

que lhe é própria: o filme-pensamento que existe por e para ele mesmo; o filme-corpo inscreve essa presença provocando no

espectador o sentido de sua existência. Essa presença é denominada pelo filme-testemunha como uma simples conceituação

do filme-corpo, na qualidade de “outro” – uma consciência animada que, visualmente, auditivamente e cineticamente visa ao mundo ou à sua própria atividade consciente numa estrutura de

engajamento incorporada com o mundo e com os outros, análo-

ga à nossa própria estrutura humana. Logo, o filme-outro mira

em direção à criação consciente do mundo, apesar de o “mundo” representar essa própria criação consciente.

A cena conclusiva do filme Blade runner pode metaforizar

adequadamente essa temática: a exemplo da peça de Pirandello,

Seis personagens à procura de um autor que lhes atribua uma

realidade efetiva ou dos brinquedos do Toy Story, em sua luta


46

Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

pelo reconhecimento de se sentirem mais do que rabiscos em movimento, o que interessa é a existência. As questões trazidas

à luz pelos replicantes de O Caçador de androides são homólo-

gas às indagações mais primitivas sobre a origem do homem, a finitude humana e a busca do criador. Mundo real e virtual

(con)fundem-se até o último instante, quando descobrimos que também a mocinha... é uma replicante!

Pode-se dizer que o filme-outro se revela quando vislumbra-

mos o presente visível, seja na perspectiva da locação cinemato-

gráfica, seja do ponto de vista da intenção da visibilidade. Esse

“outro” encarna, além disso, o sujeito de sua própria visão: “isso quererá dizer que ele é sempre autoconsciente? Eternamente reflexivo? Encontra-se, talvez, perpetuamente, em posição de conhecer?”. Quaisquer que possam ser as respostas, o fato é

que esse “outro” é um sujeito autônomo, anônimo, intimamen-

te materializado nas “experiências” do mundo. Por isso é que

filmes permitem-nos ver a atividade existencial (mais do que

unicamente o pensamento-fílmico), porque está sempre se transformando, sempre significando.

A fenomenologia presta, assim, uma excepcional contribuição

para o esclarecimento da relação entre pensamento humano

e pensamento fílmico, o subjetivo e o objetivo, engajamento

humano e engajamento cinematográfico com a realidade. Num certo sentido, ao associar a experiência criadora do cineasta à

visão humana, numa correlata isomorfia entre existência fílmica corporificada (movimentos, sentidos, direção) e existência

humana efetivamente vivida, o antropomorfismo intentado

por Sobchack pode limitar uma compreensão mais ampla da forma-filme. Nesse particular aspecto, a análise de Frampton é

esclarecedora, pois filmes podem “pensar” humores e desejos

por nossos movimentos, cores, balizamentos etc., mas nunca

do mesmo modo como vivenciamos nosso humor e desejo. A


Filmosofia ou lirosofia?

47

maneira como o filme “pensa” não espelha fenomenologicamente

o modo como nossa consciência audiovisual pensa.

Melhor: o filme amplia a experiência da percepção; oferece

mais – e também menos – no que concerne ao engajamento

subjetivo com o fenômeno. Imaginado por Sobchack, o “filmesujeito” se aparta aqui da concepção de filmosofia demarcada

por Frampton. Enquanto o primeiro compreende a construção

cinematográfica como subjetivamente “tendo o mundo”, o segundo sinaliza para um entendimento inédito de pensamento

que é a possibilidade transubjetiva de “ser o mundo”, donde se

origina a expressão filmind, que optamos por traduzir livremente

por “filme-cérebro”.


O filme-cérebro

O conceito de filme-cérebro pode ser desvendado como a estrutura por intermédio da qual se molda a sistematização do movimento som-imagem. Trata-se de uma descrição não empírica do

filme, um tipo de teoria que precede à avaliação estética da película. Essa denominação justifica-se pelo fato de não se aplicar

a um pensamento humano, centrando a gênese do filme-pensamento no próprio filme. Não há forças externas ou invisíveis: é

o filme quem conduz seu discurso. Deleuze definiu o ser-filme

como o cérebro da automação espiritual porque compreendeu que o cinema é mais do que um olhar ou uma percepção do mundo.

Fazer emergir o vocábulo antropomórfico cérebro não é um

ato gratuito, nos estudos filmosóficos, já que o termo denuncia

que o filme detém um conteúdo e uma estrutura não reflexivos.

Nesse sentido, o filme-cérebro firma-se na extensão retórica da

compreensão deleuziana de automação espiritual, quer dizer,

apresenta uma lógica própria capaz de representar a transubje-

tividade livre e indireta do filme-pensamento, a união do material e espiritual, potencializando o solipsismo que irrompe nas

fileiras da sala escura. Todavia, se o filme-cérebro resume-se

a uma simples convergência ensimesmada e autotélica, isto é,

voltada para si mesma, como seria possível ser também ineren48


O filme-cérebro

49

te a outros filmes? É Samuel Beckett quem nos auxilia no entendimento dessa interpretação contradita ao dissecar o papel

primordial da mente do protagonista, em seu romance Murphy, de 1938.

O espírito de Murphy retrata a si próprio como uma cavidade esférica, hermeticamente fechada para o universo. Não

implica um empobrecimento já que ela não excluía nada que

não contivesse em si mesma. Nada nunca teria estado, foi

ou estaria no universo fora dela, mas estaria presente de

maneira virtual, ou real, ou virtual progredindo para real,

ou real tendendo para virtual, no universo a que pertence

(Beckett, 1965, p. 100).

As palavras do autor de Esperando Godot poderiam descre-

ver a intenção conceitual de o filme ser a sua própria origem. Contudo, vimos que a filmosofia estabelece uma distinção entre

o filme-cérebro e o filme-mundo, que tentaremos reforçar. O

filme-mundo não se auto-organiza em detrimento do filme-cérebro, que é consciente dos eventos externos, uma vez que é

projetado por pessoas reais, com motivos e desejos reais. Assim

sendo, artistas, câmeras, técnicos, escritores, microfones, atores,

todos desempenham seus papéis. Os filmes-testemunhas, por

seu turno, experienciam filmes de modo que as intenções arte-

sanais e as técnicas mecânicas dos cineastas não são capazes de

controlar ou limitar.

Da obliteração de tais pretensões, pode-se haurir a maior re-

compensa da filmosofia para os estudos fílmicos: é o que permite a película respirar com seus próprios pulmões. Divorciar a

profusão de sentidos e sentimentos despertada pelo “querer-dizer” do cineasta confere um poder paralelo ao filme-testemunha,

capaz de interagir com o “mais-dizer” cinematográfico, elemen-


50

Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

to revigorador da sétima arte. Filmosofia é o que escapa ao poder plenipotencionário do criador para se alojar na inteligência sensível do filme-testemunha.

Partir da investigação fílmica concebida, tão somente, como

intenção mecânica e inventiva enseja o entendimento da pelícu-

la como experiência dual: som-imagem, para operarmos a apro-

ximação da poética cinematográfica, antes de ser contaminada

pelo conhecimento contextual ou filtrada pela compreensão in-

dividual. A filmosofia não se preocupa em descobrir o que filmes isoladamente refletem nem como se constitui a experiência

poética isolada em si mesma. Antes, investe todo o seu poder de fogo na aparentemente ingênua proposta contida nos novos

filmes-mundo, sobretudo quando conduzidos por diretores neófitos.

Tal movimento permeia tanto a teoria quanto a técnica fílmi-

ca, uma vez que aquilata a maior necessidade poética descritiva

da linguagem e, consequentemente, de compreensão da forma-

filme. Sem dúvida, Frampton não se equivoca ao anunciar: “A fluidez e o objetivo do movimento som-imagem sugere que todo

filme é pensamento. O filme contemporâneo pode ir a qualquer lugar e mostrar qualquer coisa – ele está reivindicando uma nova avaliação” (Frampton, 2006, p. 76). Isso ocorre porque o

filme-cérebro coloca a projeção a serviço da trama, dos personagens, do narrador ou até mesmo de uma força criativa externa: mudança de foco, de cor, de nitidez, de objeto sobre o qual se

deseja chamar a atenção.

Partindo de si mesmo, o filme-cérebro pensa por nós quando

dá pistas de possíveis comportamentos atribuíveis aos persona-

gens. A tomada de uma faca, de um punhal ou objeto perfurocortante, durante uma briga, pode assumir inúmeras significações: um personagem o viu, o verá, deve vê-lo ou, simplesmente,

considerará a hipótese de utilizá-lo. Esse aspecto do filme-cére-


O filme-cérebro

51

bro revela-se um dos mais operacionais nos estudos filmosóficos, à medida que agrega perspectivas destacadas de pontos de vista distintos. No grande plano, a ênfase de uma imagem exuberante

da natureza promove a ancoragem estética da filmosofia, sendo igualmente capaz de demonstrar aspectos diferenciados que

serpenteiam as propostas dos cineastas. Talvez, o que esteja em

jogo seja tão somente a beleza intrínseca da natureza.

O filme-cérebro, todavia, enriquece as possibilidades analíti-

cas ao evocar significações mais profundas, que não são forçosamente necessárias: esse procedimento contradiz um quadro di-

ferente abordado anteriormente? Estaria a serviço do reforço de

um momento distenso (de silêncio e paz) em oposição a outro de

rumor ou murmúrio? Seria o construto de uma ontologia da na-

tureza ou algo do gênero? Ainda que as respostas a essas interrogações sejam contingentes, não abolem o primado a estética

da incerteza especulativa, tão afeito a qualquer objeto artístico. Os questionamentos lançam luz justamente sobre o modo

como o filme-cérebro repensa o filme-mundo, sobre como sua

intencionalidade se torna forma e sobre como o filme-mundo se

revela, desvelando, ao mesmo tempo, seus princípios basilares.

Defrontamo-nos, por conseguinte, com significações reconhecí-

veis e identificáveis na película (pessoas, acontecimentos, fatos) que, não obstante, brotam das profundezas mais abissais onde

se eclipsa o filme-cérebro. Não nos referimos aqui, entrementes,

a nenhuma intenção extradiegética ou fantasmagórica. No seu

ensaio On Cinema, a voz de Virgina Woolf ecoa vigorosa, auxi-

liando no reconhecimento dessa organização fílmica como:

Algo abstrato, alguma coisa que se movimenta com controle

e consciência da arte, algo que clama por uma delicadíssima contribuição das palavras ou da música para se tornar

inteligível, ainda que a utilizando de maneira subserviente


52

Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

– refletindo sobre como de movimentos e abstrações podem, às vezes, ser compostos filmes (Woolf, 1926, p. 36).

O filme-cérebro não traduz uma intenção humana, mas sua

própria maneira de examinar, meditar, considerar, com apoio

na representação de imagens e som. Essa premissa nos autoriza

a concluir que qualquer filme-cérebro (isto é, qualquer filme) é

capaz de pensar a partir de binômios antagônicos como vagaroso-rápido, solto-apertado, pequeno-grande, barulhento-silencioso, manso-violento, mítico-real. É justamente no esteio dessa

inopinada convergência que o filme-cérebro brinda-nos com sua efetiva potência criadora, no seio da filmosofia.


O filme-cérebro e o filme-mundo

Destaquemos dois aspectos inerentes ao filme-cérebro: o ser-filme, que doa fundamentalmente seu DNA à gênese do filme-mundo, com pessoas e objetos reconhecidos, e o ser-filme, que designa e

reconfigura o filme-mundo. No inventário concebido por Framp-

ton, estaríamos, em ambos os casos, diante da confecção do filme

-mundo e do filme-cérebro. Esse último, por sua vez, singularizase como um produto da atividade tanto do filme-mundo quanto do

filme-pensamento, numa cuidadosa construção, que se apresenta fisicamente sob o modo de luz e som para os filmes-testemunha.

Uma mesa, uma poltrona, um cinzeiro ou um avião não ne-

cessitam de uma razão conceitual para existir tal qual eles são

ou os conhecemos, enquanto objetos. É o filme-mundo dando

suporte à filmosofia. Além disso, explicar tais objetos não au-

menta a qualidade de significação que os mesmos possuem para

o cineasta. Derivado do filme-cérebro, o filme-mundo de ruas,

pedestres e arranha-céus exprime, num certo sentido, sua inu-

tilidade no concerto dos propósitos cinematográficos. Contudo,

visando operacionalizar a compreensão filosófica do ser-filme,

técnica e teoricamente, essa explicação auxilia o cineasta a perceber a dimensão fluida que reveste o filme-pensamento.

Submetido a esse esclarecimento teórico, o filme-cérebro pro-

duz tudo o que se vê e se ouve num filme, evocando e introduzin53


54

Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

do no debate pessoas, espaços e ambientações, embora estudos

concernentes ao filme-mundo – isto é, a uma reprodução simples e direta da realidade transposta para a tela – sejam extremamente

negligenciados se levarmos em conta a exuberante força dos mo-

vimentos tectônicos conglomerada sob o título de filme-cérebro.

Esclareçamos, ainda, dois tópicos essenciais: primeiramente,

sabemos que o filme não é humano, mas anuncia, em parte, a

construção de uma intencionalidade humana. A condução de

Frampton permite pressupor que o filme-cérebro tende a ser

absorvido pela intencionalidade do cineasta mais do que promove uma ruptura radical para com a mesma. Nesse sentido, o

processo de edição, que dá forma final à película, assinala uma espécie de simbiose entre a ação do diretor e a força do filme

-pensamento. Outro elemento importante refere-se à existência significante de uma área cinza – ou nebulosa – do pensamento

deslizante entre ambas as formulações: filme-cérebro e filme

-mundo alçam voo numa relação de contemporaneidade, mais do que de anterioridade.

A coerência do mundo identificável na película revela-se tri-

butária do filme-mundo, sendo o filme-cérebro o fiador por excelência dessa convicção basilar. É nesse contexto que pessoas e

dinossauros podem interagir, “naturalmente”, em Jurassic Park,

por exemplo. Merleau-Ponty ressalva, com precisão, que a fenomenologia deve redescobrir que a presença nesse mundo é mais

antiga do que a inteligência: “A percepção não é uma espécie

de ciência comerciante e um primeiro exercício da inteligência.

Precisamos resgatar um comércio com o mundo e uma presença

no mundo mais velha que a inteligência” (Merleau-Ponty, 1966,

p. 66). É o filme-cérebro que exerce a proeza de captar essa presença, ocupando-se de trazê-la à baila.

A relação entre filme-cérebro e realidade destaca-se, por-

tanto, na análise, pois salta aos olhos que o básico filme-mun-


O filme-cérebro e o filme-mundo

55

do não é um suporte da realidade: “O filme-câmera nunca se

traveste, absolutamente, num dispositivo autotélico, num fim

em si mesmo, produzindo estilhaços da realidade” (Frampton,

2006, p. 77).

Isso não implica tampouco dizer que as experiências sub-

jetivas dos filmes-testemunha devam ser divorciadas de nosso

mundo real, suas práticas, suas políticas e sua humanidade.

Chama atenção, tão somente, para o fato de que estamos conceitualmente preparados para aceitar livremente qualquer tipo de

“imagem-realidade” que o filme decidir nos propor.

A filmosofia busca conceitualizar todos os filmes nos quais

a “realidade” possa estar fortemente transfigurada pela câmera lenta, mudanças de espaço e deslocamentos digitais. Os filmes mudaram... Resta às nossas convicções mudarem com eles,

acompanhando-os de muito perto na labiríntica sala das trans-

formações, dialogando com o apport que essa gnose trará para

os estudos fílmicos, no generoso campo da interdisciplinaridade.

É nesse sentido que Frampton adverte: “Devemos resistir ao desejo de sempre associar (ou submeter) o filme ao mundo real e

físico, com suas leis e propriedades, justamente porque os filmes

contemporâneos estão deixando essas mesmas leis e propriedades para trás” (Frampton, 2006, p. 77).

De uma ótica estritamente teórica, o filme-cérebro produz

visualmente objetos, transformando-os no seu particular filme-mundo. Não obstante a consciência que possamos ter de

semelhante processo, tais objetos (personagens, construções,

sons) são completamente absorvidos pelo filme-cérebro. O úl-

timo escrito de Roland Barthes, O quarto claro, parece passar em revista o primeiro, O grau zero da escritura, substituindo o

termo escritura por olhar. A compulsão visceral do autor de S/Z pela exploração da imagem pode ser convocada a auxiliar no

esclarecimento da relação imagem-objeto, fundamental para o


56

Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

entendimento da dimensão fluida que abraça o filme-cérebro e o filme-mundo.

O olhar fotográfico contém algo paradoxal que, às vezes, encontramos na vida: outro dia, no café, um adolescente

sozinho percorria a sala com os olhos; às vezes seu olhar

encontrava o meu; tinha então certeza que ele me olhava

sem entretanto estar certo de que ele me via: distorção in-

concebível: como olhar sem ver? Dir-se-ia que a Fotografia

aparta a atenção da percepção, sendo possível na primeira,

impossível na segunda; é uma aberração, uma noese sem noema, um ato de pensamento sem pensamento, um visado sem alvo (Barthes, 1980, p. 172).

Convertendo-se em linha de fuga ou espaço de transfigura-

ção, filmes contemporâneos denunciam a inexistência real do

objeto em favor de sua aparência, de maneira similar à conversão de personagens históricos em seres ficcionais, quando aden-

tramos os bosques narrativos da literatura. Com efeito, uma

espécie de idealismo distingue o filme-cérebro do filme-mundo, à medida que integra a compreensão do objeto à sua verdade

subjetiva. Ao afirmarmos que é pelo filme-cérebro que a pelí-

cula introduz o seu modo peculiar de pensar, convém indagar: se o filme-cérebro é seu próprio objeto, como avaliar a relação

estabelecida entre o cineasta e o objeto? A experiência que o

filme mantém com as coisas é semelhante a que nós mantemos

com os objetos? Se os objetos não são reais, como é possível

depreender experiências a partir desses mesmos objetos? No-

vamente, é Vivian Sobchack (1992, p. 31) quem oferece uma chave de leitura para o esclarecimento dessas perquirições, ao

pontuar: “o ‘filme-cérebro’ vivencia o mundo de um ponto de

vista subjetivo”.


O filme-cérebro e o filme-mundo

57

O recurso à teoria fenomenológica demonstra que a expe-

riência fílmica define seu modo de abordar e conceber objetos.

Mas se também o filme é um objeto, como lhe é possível separar e distinguir coisas? Não estariam tais concepções associadas ao

filme-cérebro, distorcendo e confundindo toda a mecânica da percepção com um simples movimento som-imagem? A resposta

desse paradoxo repousa, em primeira instância, na experiência

do cineasta, pois é ele quem vê, escolhe e insere objetos identi-

ficáveis no filme-mundo pelos filmes-testemunhas. Por que dizemos que o filme se move em direção a um objeto (uma janela,

uma poltrona ou uma fotografia) quando seria, ainda que estranhamente, mais correto admitir que o filme pensa o movimento e

esses objetos como únicos: com uma simples mudança de tomada

de imagem, a janela pode aumentar ou diminuir sua dimensão,

por exemplo, bem como os outros objetos.

O fato é que para o cineasta o quarto não é entrevisto como

um produto do filme-mundo: trata-se, simplesmente, de uma

janela, uma poltrona ou uma fotografia num cômodo, numa

perspectiva, segundo a qual, o deslocamento é feito pela câmera. Filme-cérebro e filme-mundo acabam se encontrando, traduzindo o mesmo efeito cênico. Todavia, se desejamos dar con-

ta do sentido primevo do conceito de filme-pensamento, resta acrescentar que, muito frequentemente, identifica-se com uma

intenção dirigida a objetos reconhecíveis, dos quais o filme-mun-

do torna-se a substancialização. Destarte, a maior parte dos

filmes apresenta o filme-pensamento enquanto uma experiência dos objetos. O melhor argumento para a não utilização do

termo “experiência” se justifica porque o filme não é humano, logo, não deveria simplesmente incorporar a nomenclatura de subjetivo.

Base da filmosofia, o filme-cérebro se caracteriza como uma

resposta da película ao futuro da cinematografia, uma vez que


58

Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

torna possível a alteração do tempo e do espaço dos objetos diferentemente da maneira como os experienciamos. Por essa razão, não confronta o filme-testemunha com fatos reais; mas com

sua própria realidade fílmica. Observar filmes dessa perspecti-

va não significa a supressão absoluta de certa inteligibilidade

concreta das formas transpostas para o telão; apenas aumenta

o grau de maleabilidade que esses objetos adotam ao serem se-

lecionados. Na esteira de Deleuze, seria possível deduzir que o

filme-cérebro compõe corpos sem grãos1.

O cérebro é a unidade. O cérebro é a tela. [...] os circuitos e

conexões do cérebro não preexistem aos estímulos, corpús-

culos ou partículas [grãos] – (hoje poderíamos ainda aludir

aos pixels) que o traçam. Cinema não é teatro, mas sim o canal que permite constituir corpos sem grãos. As relações são sempre paradoxais e em todos os lados ultrapassa simples

associações de imagens (Deleuze, 2000, p. 366).

O refinamento da análise de Frampton é secundado pela ne-

gatividade porque delineia o que o filme-pensamento não é. Em

outros termos, o filme-pensamento não depende dos persona-

gens nem se aplica a autores específicos; não se encontra numa posição de mero alinhamento com a câmera; não traduz uma

simples referência a uma história ou a uma convicção filosófica;

não depende da criatividade do diretor; não traduz uma confor-

midade com sonhos ou com manifestações do inconsciente; não

Cf. Gilles Deleuze (1998 [1989]) “The Brain is the Screen: Interview with Gilles Deleuze on The Time-Image”, tradução Melissa McMahon, in Réda Bensmaïa and Jalal Toufic (eds) Gilles Deleuze: A Reason to Believe in this World, special issue of Discourse: Journal for Theoretical Studies in Media and Culture, vol. 20, nº 3, p. 49.

1


O filme-cérebro e o filme-mundo

59

se aplica ao cinema de reflexão ou cinema abstrato; mas, sobre-

tudo, não é homólogo à percepção e ao pensamento humanos.

Isso implica dizer que o filme-pensamento não se traveste em

espelho das mentes nem visa refletir projetos antropomórficos;

não torna pensamentos visíveis; não trata simplesmente de pensamentos ficcionais do personagem demonstrados na película;

não se refere à exteriorização de “estados internos” nem exibe

metáforas de “estados mentais”; não diz tampouco respeito à

consciência objetivada (como verificamos nas relações humanas da consciência).

Como atua o pensamento humano? Meditando, planejando,

resolvendo problemas, refletindo, imaginando, devaneando, ar-

bitrando, calculando, articulando, percebendo. Povoa, então, o

cérebro com imagens e ideias, permitindo ao filme apresentar devaneios e fotografias ficcionais. Seria capaz de demonstrar

um raciocínio ou julgamento? Frampton é decisivo no esclarecimento desse ponto:

Eu poderia dizer que sim e que não. Não seria capaz à medida que nossas mentes podem raciocinar sem a necessidade

de uma demonstração física desse raciocínio: há um resul-

tado da decisão ou da opinião, mas não uma configuração

exterior do raciocínio. Seria capaz porque o filme pode ex-

teriorizar a reflexão de uma pessoa, apresentando-a de uma

maneira específica – não podemos demonstrar nosso julgamento, mas tão somente contar a alguém o resultado final

do julgamento. Então, o filme pode pensar mais e menos

do que nós. É por essa razão que a questão da analogia re-

vela-se redundante. Podemos começar pelo ponto em que o

“filme-pensamento” e o pensamento humano são diferentes

e caminharmos para a questão: que tipo de pensamento o

filme nos mostra, mais do que nos enfurecermos diante da


60

Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

impossibilidade de apresentar com exatidão “multiplicação” ou “argumento” (Frampton, 2006, p. 93).

Mascaram-se mais cifras e códigos sob a pele sensível do

script do diretor. Assim como na ficção a vida imita a arte (ou

a arte imita a vida), a filmosofia quase se torna sinônimo de

uma crença, de uma convicção, de uma verdade, tão ácidas que

acabam corroendo o seu material, a sua matéria-prima: a pelícu-

la. Espectador e cineasta finalmente se encontram no epicentro

desse terreno insólito, pois crer significa acreditar na confiabi-

lidade do humano e na veridicidade da realidade trasladadas

para o filme. Esse “Abre-te Sésamo” jamais será encontrado nos

meandros das análises fílmicas convencionais. Tal perda ou im-

potência, contudo, pode se reverter num ganho se conseguirmos,

de fato, admitir que a película não pensa nem sente como nós, mas inaugura a sua maneira própria de pensar e sentir.


Componentes do filme-pensamento

No âmbito das técnicas que integram os métodos de montagem, estudiosos da cinematografia, cineastas e cinéfilos já haviam

sido contemplados com a genialidade de Sergei Mikhailovitch

Eisenstein, por entender que: “o trabalho mútuo do plano e da

montagem é, na realidade, uma ampliação de um processo mi-

croscopicamente inerente a todas as artes. Porém, no cinema, esse processo é elevado a tal grau que parece adquirir uma nova

qualidade” (Eisenstein, 2002, p. 16), já que “a cinematografia

é, em primeiro lugar e antes de tudo, montagem” (Eisenstein,

2002, p. 35). As seguintes categorias formais de montagem

são explicitadas: métrica, rítmica, formal, atonal, intelectual.

Frampton não desconsiderou os ensinamentos do mestre lituano

na qualidade de força auxiliadora no entendimento da formafilme-pensamento, ao definir, em seu sétimo capítulo (Frampton,

2006, p. 116-138), o campo básico de composição do filme-pensamento, com vistas a elucidar melhor essa contribuição formal.

Imagem

A imagem básica (pensamento) do filme (filme-cérebro) não é, na verdade, tão básica assim. Cada grão [ou pixel] integra-se

para elaborar a imagem desejada pelo filme. Diretor e cineasta

necessitam tomar algumas decisões sobre o filme que estão pro61


62

Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

duzindo: razão padrão ou widescreen; preto e branco ou colorido; tipo de film stop (embaçado ou nítido); além de ideias sobre

filtros, efeitos especiais ou manipulação digital. Os realizadores

devem fazer escolhas que afetarão intrinsecamente nossa recep-

ção do filme; escolhas que podemos compreender como pensamento fílmico.

Cor

Filmosofia diz menos respeito à significação das cores do que à maneira como o filme dispõe das cores, utiliza cores e define o

modo como poderíamos aproximar esse uso ao analisar o filme.

A interpretação certamente amplia o universo de sentidos da película. Haja vista o leque de possibilidades de cores do filme

ser bastante restrito: preto e branco ou colorido, iluminado ou

sombrio, acabam traduzindo (porque capturam) muito do pensamento fílmico. Som

Assim como o foco, as cores ou qualquer outro elemento, o filme-cérebro conduz o som da película. Uma análise geral do som

fílmico pode ser captada a partir de seu uso e pela maneira

como alguns sons se associam às ações dos personagens. Uma

possível lacuna existente aqui é o fato de a análise não estar in-

tegrada à totalidade do filme. O som apresenta-se, usualmente, como um adendo, um acréscimo, um suplemento. Todavia, onde

um estudo convencional identifica alguns sons como metáforas

de perigo para o personagem, a filmosofia reconhece “o pensamento desse perigo”, um sentimento, através do som do perigo –

até mesmo nas circunstâncias em que o personagem está alheio

à noção de perigo que o circunda. Sons são tão efetivos quanto

a introdução de “quadros” adicionais na mente dos filmes-tes-

temunha.


O filme-cérebro e o filme-mundo

63

Foco

É uma decisão do filme-cérebro apresentar quantas imagens em foco desejar. Uma significação possível é que realça o sentido

em torno da ação dramática. A presença e qualidade fenomeno-

lógicas são claras nesse caso: uma espécie de virada de refletores para personagens ou fatos. Enfatizar o foco é um processo

cinematográfico complexo, já que apenas quando uma pequena

fatia de imagem estiver em evidência pode-se considerar que o

filme está operando uma escolha sobre o que ressaltar ou escamotear. É nesse eixo que Eisenstein situa seu conceito de “mon-

tagem tonal” ou ressonância emocional de tomadas especiais. Velocidade

A intensificação racional do tempo é um lugar comum no cinema, usualmente utilizado na criação de efeitos fenomenoló-

gicos ou poéticos. Do ponto de vista filmosófico, parece traduzir uma construção do filme-cérebro, por pensar para além de

nosso pensamento, permitindo-nos penetrar em percepções que

jamais seríamos capazes de produzir. Mas antes da lentidão há

velocidade zero, quietude. No momento em que o cinema acaba, o amor pela imagem é redescoberto.

Enquadramento

É a posição do pensamento. Somente a cena de duas pessoas

falando pode ser “moldurada” e pensada de diversas maneiras, mostrando ambas ou uma de cada vez; concedendo espaço ao

seu entorno; enquadrando por trás (ou à frente) objetos; essa

estratégia pode enfatizá-las ou ignorá-las, ao permitir que se

desloquem dentro ou fora da “moldura”. Naturalmente, muitos

tipos de enquadramento foram marcados no filme pelos escritores, num momento ou noutro, mas compreender o enquadramento como resultado do conhecimento que o filme tem de sua


64

Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

totalidade, e reconfigurá-lo como o filme pensando o drama da história através do enquadramento, abre as possibilidades de

sentidos gerados até mesmo pelas mínimas inflexões do foto-

grama.

Movimento

Filme é um pensamento no espaço, um raciocínio espacial capaz de descrever, compreender e transfigurar objetos e pessoas.

Vários filmes operam movimentos incríveis e inéditos, graças a

uma mobilidade extremamente perspicaz da câmera. Esse in-

ventivo componente pode ser adaptado de forma imaginativa, a critério do cineasta, ao lançar mão de bicicletas, carros, cabos

elevados, entre outras possibilidades de registrar locomoção, a exemplo de Deus ex machina, cuja origem remonta ao teatro

grego.

Deslocamento

O filme-cérebro gesta, colore e organiza. O conceito de ima-

gem em deslocamento apresenta-se como um novo tipo de mo-

vimento, como uma decisão de ir a qualquer lugar livremente, demonstrando diferentes perspectivas do progresso dos eventos.

O filme-cérebro pode decidir nos mostrar outro país ou outro

momento (a qualquer hora). As razões dos deslocamentos po-

dem, então, ser repensadas, detalhadamente, nas suas intenções.

Todo deslocamento de imagem é pensamento, então, todo deslocamento é passível de interpretação. Começamos a nos questionar por que deslocamentos ocorrem em certos momentos (e não

em outros) e, em consequência, no que se transformam; o que

isso quererá dizer.


O filme orgânico

Uma vez escrutinada a técnica da montagem, apertemos um

pouco mais o parafuso e abordemos a terminologia e os experimentos cênicos de Eisenstein: “entretenimento não é na realidade um termo totalmente inócuo: sob ele há um processo ativo

bastante concreto” (Eisenstein, 1990, p. 89), ou de Godard1 (da

Nouvelle Vague ou de Acossado) ou do expressionismo de Hitchcock (manifestado, sobretudo, nos thrillers Os Pássaros, Festim

Diabólico, Psicose) ou ainda de Scorcese (Taxi driver, A Última

Tentação de Cristo, Os Infiltrados).

Filme-cérebro revela-se, então, o eixo em torno do qual gira

o carretel que centrifuga todas as considerações observadas no

microscópio da refinada sismografia arquitetada por Frampton.

É nesse terreno inóspito que nos cabe o questionamento do que,

definitivamente, distingue o filme-cérebro do pensamento humano. Numa primeira abordagem, imaginemos que, para além

do enredo ou do argumento, o filme-cérebro não é, por definição, metafórico: “a similaridade entre o pensamento humano e

o filme-cérebro é funcional (ou paralela) mais do que fenomenoA partir de 1968, Jean-Luc Godard se marginaliza e se radicaliza politicamente, passando a assinar seus filmes sob o pseudônimo coletivo de grupo Dziga Vertov, em homenagem ao vanguardista cineasta soviético. 1

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66

Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

lógica (Frampton, 2006, p. 93). Essa é a razão pela qual não nos contradizemos ao atribuir o termo cérebro a uma entidade que se encontra dissociada da reflexão humana.

Algumas representações simbólicas evocam significações

mais abrangentes, como montagens específicas que traduzem

imagens do pensamento na mente do cineasta. Nesse sentido, o filme nos faz pensar, convida-nos a relacionar a película com outras ideias, o que ainda não é razão suficiente para definirmos

o filme como uma “coisa pensante”. O movimento cinematográ-

fico é “afetivo”, no sentido etimológico do vocábulo (atingido, tomado por afféctus, afetado de vários modos). O cineasta entra

em contato com temas, situações, personagens sem a necessi-

dade de qualquer recurso externo ao próprio filme, pois tudo

já está contido nele. Essa experiência, todavia, só logrará êxito se efetivamente o cineasta entrar no jogo, movendo suas peças

como numa partida de xadrez, no multifacetado tabuleiro da

filmosofia.

Retornemos ao ponto nevrálgico de que nos ocupamos, na

tentativa de melhor clarificar seu entendimento. O método da

montagem orgânica a que pertinentemente alude Eisenstein

concentra-se na revitalização das características e aspectos ina-

tos, comuns a todo ser humano, tanto quanto é comum a toda

humana e vital forma artística. Se nos concentrarmos numa experiência real do mundo físico e avaliarmos o que faz dessa

experiência algo singular e especial, traduzindo-a na ou pela

forma-filme – o que para Eisenstein constitui uma tradução

“orgânica”, semelhante a um nascimento, – permitiremos que a imagem ou tema desabrochem, com intensidade, na mente do

filme-testemunha, como que preenchendo um quebra-cabeça: “A

estética não é uma problemática independente da arte e da teo-

ria. Em estética, a teoria é o produto do movimento da arte e da

força da vida” (Bernas, 2008, p.7).


O filme orgânico

67

Com efeito, cada filme é assim expresso como um organismo

vivo, espargindo-se sob o modo de imagens e sons. Cada filme-

testemunha assiste a uma projeção diferente porquanto a forma-

filme negocia sentidos de acordo com as inúmeras percepções

implicadas, sem, contudo, realmente alterar sua própria natureza inumana. Cada película se retroalimenta, se ajusta, se procria, se completa na interação com outros filmes (por referência,

homenagem, evocação). O mesmo procedimento acomete os

filmes-testemunha, desconcertando-os, identificando ou contagiando suas vidas num período de duas horas, na sala escura.

Claro está que cada organismo fílmico “vivo” existe “por si mesmo” – tal qual uma máquina – como um trabalho artístico au-

tônomo. Acolhemos o investimento filmosófico, portanto, como uma semiologia fílmica, à medida que signos em liberdade nos

permitem promover uma análise síncrona com o emaranhado

de textos-tecidos (no sentido barthesiano) que cada um de nós, na qualidade de espectador, traz consigo.


Pragmaticismo Filmosófico

Ainda que salientando somente parte dos questionamentos lançados por Daniel Frampton, na fatura de sua Filmosofia, nossa mirada central consistiu em discutir, brevemente, a relação

entre emergentes possibilidades de compreender o cinema e o

conceito operacional de filme-pensamento. O intuito foi tam-

bém o de tentar compreender e assimilar a maneira como a filmosofia interage com práticas contemporâneas de abordagem

da película. A inquirição, reflete, outrossim, sobre o impacto

causado pelos cortes ou movimentos de imagens (tanto quanto sobre imagens em movimento) nos códigos de apreensão dos

filmes-testemunha, corroborando a indagação: como filmes podem modificar nossa percepção da vida cotidiana?

Não obstante não ocupem uma posição de destaque no âma-

go do debate filmosófico, não ignoramos a pujança das anima-

ções digitais: Avatar (2009); do “stop motion”1: A fuga das Ga-

Segundo Ken A Priebe (2006), entende-se por animação stop motion uma técnica de filmagem que se fundamenta na captura da movimentação de um objeto ou boneco através de uma sucessão de fotografias. Quando as fotografias são exibidas em sequência, tem-se a ilusão de que o objeto, ou boneco, movimenta-se. Essa era a técnica utilizada na ancestralidade dos desenhos animados.

1

68


Pragmaticismo filmosófico

69

linhas (2000), Wallace e Gromit: A Batalha dos Vegetais (2005),

da mistura entre imagens analógicas e digitais d’O clube da luta

(1999), do sutil pensamento do realismo poético de Jean Renoir

(A Regra do Jogo, 1939)2, Jean Vigo (Atalante, 1934) ou Marcel Carné, (Hotel do Norte, 1938) - menos contundente, porém, do que a montagem do cinema soviético ou do expressionismo

francês. Explorando distintas soluções cinematográficas, trata-

se aqui, tão somente, de uma tentativa de não deixar tais reali-

zações à margem dessa reflexão. A filmosofia não se preocupa

nem se interessa por um método em particular, menos ainda por

todas as probabilidades de configuração que o cinema é capaz

de proporcionar. O propósito centra-se no tipo de filme-pensamento que tais formatações são passíveis de inaugurar.

Dois anos antes da publicação do “livro-provocação” de

Frampton, Philippe Dubois (2004, p. 28) já sinalizava o caminho das pedras, ao esclarecer:

Cinema de exposição designa, na verdade, um conjunto de

propostas dos artistas que procuram utilizar diretamente o

“material” filme em sua obra plástica ou inventar formas de

apresentação que se inspiram (ou fazem pensar) em efeitos

ou formas cinematográficas (o “modelo cinema”), embora

tendam a subverter o ritual tradicional de recepção do filme

(sala escura, espectador sentado em sua poltrona, duração padrão imposta etc.). Nessas novas exposições, (re) inventa-se a

tela múltipla (desdobrada, triplicada, em linha, oblíqua, em paralelo, em frente e verso), projeta-se na luz ou em objetos

que não se reduzem a superfícies planas; põe-se o filme numa cadeia infinita (entramos e saímos, ou melhor, passamos na

2 http://www.youtube.com/watch?v=xShSUpU3b68. Site consultado em 22/10/2013.


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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

hora e no ritmo que quisermos), experimentam-se novas posturas dos espectadores (de pé, sentado, deitado, móvel), explora-se a duração da projeção (breve, muito breve, muito longa,

infinita) etc. E tudo isto se faz totalmente “em vídeo”.

Tecnologias contemporâneas têm nos fornecido exultantes

concreções dos filmes-mundo. Lembra-nos Frampton, porém, que o interesse da filmosofia não está na tecnologia nem no

delineamento da quantidade de “animação” do filme, mas na materialização do novo filme-pensamento que essa revolução de

imagens permite produzir. O cinema pode, finalmente, pensar alguma coisa. Qual seria, então, o próximo passo? Que traçados

o cinema seria capaz de externar posteriormente? Apoiando-

-nos na aparência e na produção de novas imagens – fotografia

acrescida de imagens computadorizadas – encontramo-nos em

condições de sustentar que o cinema contemporâneo passa por

um processo de mutação quase tão vultoso e radical quanto fora a sua própria invenção.

Clube da luta é esse novo “cinema-fluido”, esse puro pensamento. O novo “cinema-fluido” requer de nós uma profunda

re-flexão sobre a imagem cinematográfica. Esse novo cinema

estende, estica e essencialmente confirma sua natureza transubjetiva. Inicialmente, o “filme-pensamento-fluido” auxilia

na multiplicação de pontos de vista disponíveis, permitindo

ao filme estar em qualquer lugar: dentro da lata de lixo do

Clube da luta, atrás da bala em Matrix ou viajando no motor

do carro em Velozes e Furiosos. (Frampton, 2006, p. 206).

(Os grifos são do autor)

Faz-se mister salientar que essa perspectiva fílmica original

não se submete aos regramentos do mirífico cinema digital. Uma


Pragmaticismo filmosófico

71

das realizações mais notáveis do movimento impressionista concentra-se na sequência de telas elaboradas por Monet tendo por motivo o mesmo objeto: a Catedral de Rouen. O pintor desejava

captá-la, capturá-la, retê-la, apreendê-la de vários modos, em

vários horários distintos, de vários pontos de vista. Com esse

escopo, produziu vinte pinturas da mesma catedral, que foram

exibidas na galeria Durand-Ruel, em 1895. O papa do impressionismo reiterou a estratégia ao elaborar uma série de pinturas de

pilhas de feno, utilizando semelhante engenho.

A sétima arte parece não ter ficado indiferente ao singular

experimento. Muito antes do advento do cinema 3D, vimos a câmera perscrutar, quase que à exaustão, as diversas faces da

personagem Selma, em sua multiplicidade de ângulos e repe-

tidos deslocamentos. Parecia querer buscar uma modalidade

de esquadrinhamento que permitisse enlaçá-la; evocar uma

verdade sobre ela, nas mais insignes representações do filme-

-pensamento, aplicado ao premiado Dançando no escuro (2000). Palma de Ouro no 53º Festival de Cannes, o filme de Lars von

Trier é lançado juntamente com um manifesto intitulado DOGMA 95. Esse documento defende um cinema diferente, nadando na contramão da correnteza e enfatizando que um filme não é

feito sozinho, portanto, o nome do diretor não deve figurar nos créditos da telona.

O cinema ainda vasculha suas possibilidades de pensar for-

mas originais e revigorantes, encontrando-se muito mais próximo de sua aurora do que de seu ocaso. Dedicado a artistas que se

encontram no limiar da filmografia e das artes visuais, desde os

anos 1990, defrontamo-nos com o movimento intitulado Filme-

-galeria. Essa iniciativa coloca à disposição de museus e galerias aparelhamentos de projeção, visando a promover a visibilidade

de obras cinematográficas. Não raro, a historiografia do cinema é desconsiderada, bem como os conceitos de vanguarda, filme


72

Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

experimental, estrutural, cinema materialista, minimalista etc., donde a importância de se repensar o cinema. Isso é, às vezes,

enfatizado pela natureza elíptica e fragmentária do Filme-galeria, cujas lacunas, como num exercício lúdico, o filme-testemunha é convidado a preencher.

As escultoras e cineastas Jane e Louise Wilson criam filmes

que descrevem fisicamente o espaço, rastreando-os com o exame de movimentos que colapsam a viagem da bala nos

cantos das salas de exibição, como caleidoscópios. Seus filmes (de fábricas abandonadas ou áreas degradadas) se tornam espaços nos quais apresentam elementos reveladores

de uma instituição (a exemplo de 1999 explorações de Casas

do Parlamento). Douglas Gordon de 24 Horas Psycho3 desacelera o filme de Hitchcock, levando um dia inteiro para

mostrá-lo, revelando o expressionismo do filme [...] Tacita

Dean explora luz e tempo no filme – Sound Mirrors explora o cenário usando o tempo, tempo para a imagem (mar,

3 A esse respeito, consultar o consistente estudo de Viviane Vallades, intitulado KÍNEMA-ÉMATOS+ GRÁPHEIN: experimentações do dispositivo cinema na contemporaneidade, apresentado na “III JORNADA DISCENTE PPGMPA – USP”, que esclarece: Douglas Gordon (1966), artista escocês, trabalha principalmente com apropriações de filmes clássicos do século XX, em suas videoinstalações. Em 24 Hour Psycho se apropria do filme Psicose, de Alfred Hitchcock, de 109 minutos, e o filme passa a ter 24 horas. O tempo dilatado causa modificações na percepção das imagens do filme e modifica nossa experiência habitual do cinema. Apresenta a plasticidade da imagem ao invés da narrativa, o suspense da obra. Os espectadores não conseguem acompanhar a narrativa e o que fica em evidência são os quadros expostos do filme. Na instalação, a tela está suspensa e é possível ver o trabalho pela frente e pelo verso. Gordon retira o som, deixando somente as imagens em exposição. Consulta ao site http://www.pos. eca.usp.br/sites/default/files/artigo_de_viviane_vallades_para_jornada_discente.pdf, feita em 29/08/2013.


Pragmaticismo filmosófico

73

quebra-mar, horizonte) penetrar em nossos cérebros, tempo

para a imagem nos proporcionar tudo o que puder (Framp-

ton, 2006, p. 207).

O cinema contemporâneo, por seu turno, não se manteria à

margem desse debate, visto que aprovisiona uma nova inteligi-

bilidade do pensamento fílmico. O fato é que filmes produzem

imagens na busca frenética de novos filões que lhes facultem

contar uma história. Superfícies, mundos, tempos, formas, rup-

turas, traços... todo elemento é passível de convergir para desen-

volver um enredo, de modo inabitual, apresentar personagens

singularmente, demonstrar um fato, originalmente. Por essa

razão, Frampton insiste que: “filmes podem nos mostrar coisas

ordinárias, de uma maneira nova, podem nos fazer olhar novamente o que considerávamos já ter compreendido, podem nos

fazer passar a limpo o trivial” (Frampton, 2006, p. 209).

Em pequena ou larga escala, o filme-pensamento revolucio-

na o cognoscível, dando a sensação de que nosso pensamento

pode transformar o mundo, convergindo, de algum modo, para a leitura proposta por Walter Benjamin, na Obra de arte na era

de sua reprodutibilidade técnica (1936, p. 324). Ao estabelecer

uma relação com a pintura, por exemplo, o crítico alemão percebe que o filme é portador de um aspecto de realidade comple-

tamente livre de qualquer equipamento. A imagem fotográfica, e, em especial, a explorada lentamente, pode iluminar aspectos

do original inalcançáveis a olho nu. Com esse olhar longo e pro-

fundo sobre a ação humana, talvez a humanidade acione pensamentos meditativos acerca de nossas experiências, alimentando nossa sanha investigativa: “O filme-testemunha provavelmente

não começa a entender seu entorno cinematicamente, todavia,

pode iniciar uma busca por informações diferentes no mundo”

(Frampton, 2006, p. 209).


74

Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

Por um atalho autônomo, conceitos e expressões filmosóficos

atuam sobre nossa percepção, reestruturando nosso contato com o mundo. Filosoficamente, nossa maneira de vislumbrar a vida

é afetada pelos filmes, à medida que eles alteram nossa apreensão da realidade. Muitas vezes, somos levados a considerar que

vemos tão somente através da imagem, capturando diretamente os personagens. O filme, contudo, está sempre pensando com e

por intermédio de nossa percepção.

A filmosofia move-se no sentido de otimizar uma atenção

especial concedida às imagens cênicas – no cinema, no vídeo

game ou na televisão. Melhor: a filmosofia busca implantar e

lapidar um método que cresce à proporção que o filme avança,

com a possibilidade de acompanhar o que quer que a cinema-

tografia invente no futuro. Uma vez dissecados os alicerces da

filmosofia, jamais o filme-testemunha se sentirá transtornado por seus desdobramentos e renovados aportes, sendo até capaz

de antecipar soluções: “ver o filme como pensamento une con-

teúdo, forma e filme-testemunha, de modo tal que o espectador capta a totalidade orgânica do filme graças a seus personagens e acontecimentos, pelo viés das formas dramáticas, mais do que

pelas camadas de história ou estilo” (Frampton, 2006, p. 212).

Filmosofia firma-se, destarte, como um produto da idade

contemporânea, municiada por copiosos recursos cinematográ-

ficos. É uma habilidade, um instrumento, uma semiologia; uma

alternativa que permite construir algo inusitado. É uma estraté-

gia com o objetivo de assumir uma postura filosófica diante do

filme, descortinando, ao mesmo tempo, o filosófico que impregna o filme. É uma estrutura para o presente e para o futuro. É

um dos possíveis caminhos do nosso pensamento. É onde nascem e morrem nossas convicções.


Figura 2. O Encouraรงado de Potemkin (Eisenstein)

Figura 3. O Caรงador de

Andrรณides (Ridley Scott)

Figura 4. Parque dos Dinossauros (Steven Spielberg)


Figura 5. Acossado (Jean-Luc

Figura 6. Taxi Driver (Martin

Figura 7. A Fuga das galinhas

Figura 8. Avatar (James

Godard)

(Peter Lord e Nick Park)

Scorsese)

Cameron)


Figura 9. A regra do jogo (Jean Renoir)

Figura 10. Clube da Luta (David Fincher)

Figura 11. Matrix Reloaded (irm達os Wachowski)


Figura 12. Velozes e

Furiosos (Rob Cohen)

Figura 13. Danรงando no

escuro (Lars von trier)


Representações pontuais da filmosofia no cinema brasileiro contemporâneo

Se os filmes detêm uma capacidade específica de abrigar sen-

tidos a partir das fontes que lhes são próprias, não existe película mais ou menos afeita à avaliação filmosófica. Todas são

igualmente passíveis de serem submetidas à engenhosa lupa da

filmosofia por constituírem o eixo temático “pivotal” de sua ingerência e por se posicionarem no ângulo agudo de incidência

dessa investigação epistemológica. Todavia, compreende-se que, em função da utilização de certas técnicas cinematográficas

(cor, imagem, som, movimento, deslocamento, velocidade, plano etc.), o analista se encontrará diante de um corpus mais ou

menos rico de detalhes capazes de mais bem agenciar o aporte

da filmosofia para os estudos cênicos.

Em nossa investigação, selecionamos dois filmes com base

na rigorosa construção da subjetividade dos protagonistas, en-

carnados por um personagem real, tornado tecido ficcional-ima-

gístico e um personagem ficcional, que poderia sair do telão

ocupando as páginas da vida ou da história, em procedimento semelhante ao explorado por Woody Allen na comédia A rosa

púrpura do Cairo, de 1985, por exemplo. Objetivamente, elege-

mos como corpus Meu nome não é Johnny e Cinema, aspirinas e

urubus, com o propósito de, recorrendo ao suporte dado pela

filmosofia, na explanação teórica de Daniel Frampton, tentar 79


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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

responder à indagação filosófica basilar: “como se torna aquilo

que se é?”. Não privilegiamos nenhuma montagem facilitadora

da explicitação de postulados filosóficos, porquanto a proposta

filmosófica, à qual buscaremos nos ater, refuta qualquer tipo

de artifício falseador de suas premissas norteadoras. O desafio,

todavia, está na tentativa de desvelar exemplos práticos de uma

teoria que tende a ser operacional, mas se apresenta, até a presente data, de modo eminentemente teórico.


Meu nome não é Johnny

Iniciamos nossa abordagem partindo do estudo de três sequências fragmentadas do filme Meu nome não é Johnny, do cineasta

Mauro de Lima. Interessa-nos, sobretudo, pinçar o caráter demonstrativo da rentabilidade do método na análise da narrativa

cinematográfica, mais do que conduzir à exaustão o retalhamento de seus conteúdos. Convictos da concepção de que o filme

pensa, prepara laboriosamente sua filosofia, ausculta seus mais

íntimos silêncios, responde às suas interrogações, adentremo-

nos pelas veredas desse inusitado bosque, percorrendo, com co-

ragem diligente, as surpreendentes trilhas que nossas escolhas nos permitirão descortinar.

Dificilmente ratificaremos a proposta de que a filmosofia

representa, de fato, um instrumento de análise fílmica sem tomarmos como ponto de partida o estudo de um caso concreto,

particularmente de um elemento de importância capital para a definição do personagem-título: a velocidade. Baseado no livro

homônimo, Meu nome não é Johnny é um filme brasileiro de for-

te conteúdo dramático. Realizado por Mauro de Lima, em 2008, a película conta a história de João Guilherme Estrella, célebre

traficante de drogas do Rio de Janeiro. Nascido no elegante

bairro do Leblon, filho muito amado por seus pais e idolatrado por seus amigos, converte-se em importante personagem do

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82

Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

gangsterismo boêmio carioca. Tendo buscado todas as formas de aventura e liberdade a todo preço, João torna-se, nos anos

1990, o “barão da coca” da zona sul da cidade, abastecendo as classes mais privilegiadas.

As cenas do longa-metragem traduzem o perigo e o ritmo

alucinantes de vida assumidos por João, apoiados numa velocidade frenética, em perfeita sintonia com a situação de malfeitor em movimento perpétuo, encarnada pelo protagonista. Numa

passagem específica, na qual nenhum elemento evoca a velocidade subjacente às ações e aos diálogos da trama, ela se impõe

por si mesma, de maneira autônoma, captada pela câmera quase

que por acaso, como por um voyeur numa “janela indiscreta”.

Nada mais plácido, mais sereno, mais moroso ou indolente do que imaginar uma gôndola, deslizando docemente nos canais

históricos de Veneza. Essa passagem ocorre efetivamente na

trama. A falta de celeridade da célebre barca veneziana acaba

irritando o herói, justamente em função da sensação de desace-

leração que acarreta.

Figura 14 – Meu nome não é Johnny (Mauro de Lima)


Meu nome não é johnny

83

Todas as hipóteses teóricas que a crítica pudesse formular a

esse respeito são subitamente engolidas pelo claro corte cênico, anunciador da pouco provável transformação da gôndola numa

lancha que rompe abruptamente o silêncio ambiente, substituin-

do, como num passe de mágica, a gôndola, fazendo-a desaparecer, numa espécie de superposição pictórica.

De fato, o filme sutura as pregas de seu próprio tecido narra-

tivo, sem qualquer necessidade de recurso ao diálogo: estamos

diante do filme-cérebro, que cria seus contornos e molda suas

soluções. Numa cena precedente, em companhia de sua namo-

rada, o protagonista já havia, inclusive, sido multado, numa au-

toestrada de Barcelona, por excesso de velocidade.

Figura 15 – Meu nome não é Johnny A passagem é interessante porque é extremamente bem es-

truturada no âmbito da composição cinematográfica, permitindo-nos inferir o aspecto de erradicação, de transgressão, de

violação das convenções sociais que singularizam Johnny. O

episódio evoca, aliás, considerações muito pessoais do escritor

Jean-Paul Sartre, no que tange à relação entre a lancha e a velocidade, expressa em sua autobiografia As Palavras:


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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

Em 1948, em Utrecht, o Professor Van Lennep me mostrava alguns testes projetivos. Um determinado cartão reteve minha atenção: figuravam nele um cavalo a galope, um homem caminhando, uma águia em pleno vôo, uma lancha-motor saltando; a pessoa devia indicar a vinheta que lhe causava a mais forte sensação de velocidade. Eu disse: “É a lancha”. Depois observei curiosamente o desenho que se impusera de maneira tão brutal: a lancha parecia decolar do lago, em um instante planaria acima daquele marasmo onduloso. O motivo de minha escolha me ocorreu imediatamente: aos dez anos, tivera a impressão de que minha proa fendia o presente e dele me arrancava; desde então corri e corro ainda. A velocidade não se distingue tanto, a meus olhos, pela distância percorrida em um lapso de tempo definido, quanto pelo poder de arranque (Sartre, 1964, p. 187-188) [Grifos nossos].

A exemplo da lancha-motor, para se desenraizar, o personagem se projeta fora do mundo e de suas convenções, numa espécie de expatriação temporal radical e vertiginosa, exercendo, de bom grado, seu poder de “flecha lançada por ordem, que perfura o tempo e atinge o alvo em cheio” (Sartre, 1964, p. 187), isto é, seu poder de desarraigamento.

Figura 16 – Meu nome não é Johnny


Meu nome não é johnny

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Figura 17 – Meu nome não é Johnny A asfixia do real é, assim, suprimida, o que nos permite com-

preender melhor tudo o que é possível de se apreender de Johnny,

apoiando-nos nessa experiência singular do filme-cérebro (enquadramento, velocidade, deslocamento, movimento) mais do

que em vários conceitos filosóficos. Essa não representa, eviden-

temente, a única possibilidade de abordagem da cena fílmica, todavia nos possibilita introduzir na análise um elemento novo

– a imaginação do filme, por intermédio da câmera, tal qual preconizam os pressupostos filmosóficos. De maneira independente,

essa justaposição de imagens fornece aos filmes-testemunha elementos fundamentais que destacam a afirmação da liberdade, da

solidão, do mundo, da realidade e a maneira como a filmosofia

confecciona seus componentes, auxiliando-nos na decifração dessa cartografia que desenha o perfil de Johnny, anunciando, com

originalidade, como ele se tornou aquilo que sempre foi.

Em outro momento interessante do filme, o personagem Jo-

hnny toca a campainha de uma casa, sem que saibamos exatamente quem atenderá. Surge Dona Marly, uma senhora idosa,

rosto alegre, radiante de bondade, que inicia um diálogo típico


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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

de avó que se preocupa com seu neto. Bem arrumada, a casa representa tipicamente o habitat da classe média carioca. Ainda

que o diálogo seja suprimido, o conteúdo que realmente importa

extrair da cena jamais será comprometido ou ameaçado. Retiremos, então, o som e permitamos que apenas as imagens nos

falem.

Figuras 18 e 19 – Meu nome não é Johnny Expressão de calmaria, compreensão e paciência, Dona

Marly senta-se à mesa e prossegue falando alguns minutos,


Meu nome não é johnny

87

diante do herói que toma chá com biscoitinhos e começa a se

agitar. Os biscoitos passam a ser retirados da boca, já quebrados, sendo esmagados e colocados no pires, ao lado do chá. As rápidas manipulações do sachê na chávena denunciam, pelas

mãos e pela tensão dos dedos, a irritação e pressa de Johnny,

que pronuncia uma frase, impedindo a anfitriã de prosseguir seu discurso.

Figura 20 – Meu nome não é Johnny Há uma inversão de atitudes, pois Dona Marly se levanta e

Johnny, pouco a pouco, se acalma. A senhora se aproxima de

um quadro na parede, até então, discreta e praticamente imperceptível tela de fundo da cena. Retira o quadro, que deposita

cuidadosamente no assoalho, revelando-nos a existência de um

cofre. É seu rosto que assume agora aparência mais crispada, em contraste com o sorriso contido de Johnny.


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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

Figura 21 – Meu nome não é Johnny A cena é surpreendente porque Dona Marly extrai do cofre dois sacos contendo uma porção significativa de cocaína, entregando-os ao herói, bem mais relaxado, nesse momento. Recuperemos o som para acompanharmos o desfecho do diálogo. Dona Marly faz alusão à “boa quantidade” do “produto” e alerta João Guilherme para que, doravante, só utilize o cognome “ambrosia” ao telefone, todas as vezes que vier a tratar do assunto. Há uma desconstrução radical entre a expectativa do filme-testemunha e a efetividade da cena: a ingênua vovó revela-se uma pródiga fornecedora de drogas e o quadro que oculta o cofre (fig. 21) ostenta a imagem de um homem capaz de evocar outro célebre (fig. 22).

Figura 22. Meu nome não é Johnny

Figura 23. Karl Marx


Meu nome não é johnny

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A fotografia não é de Karl Marx: essa teria sido uma decisão

do cineasta, mais do que um agenciamento filmosófico. Tentemos

uma incursão na inteligência intrínseca à engenhosidade da película pensante ao estabelecermos uma leitura que entrelace a tríade dos significantes: cocaína - Karl Marx - ambrosia. É difícil não

vir à tona a máxima de Marx, segundo a qual “a religião é o ópio

do povo”, versão vulgarizada de uma reflexão mais ampla contida

na Introdução à crítica da filosofia do direito em Hegel: “A miséria

religiosa é por um lado a expressão da miséria real, por outro o

protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura

oprimida, o coração de um espírito sem coração, o espírito de um

tempo sem espiritualidade. Ela é o ópio do povo”.4 Com efeito, colocada em seu contexto, a frase nos força a identificar o mérito

de Hegel em ter considerado as relações entre filosofia e religião.

A ambiguidade das concepções religiosas hegelianas, toda-

via, despertara em seus discípulos, dentre os quais Karl Marx, interpretações contraditórias. Tanto os exegetas politicamente

mais próximos de um posicionamento mais à direita, como Bruno Bauer, quanto os mais à esquerda, a exemplo de Marx, captu-

ram uma atitude hostil à consciência religiosa, capaz de condu-

K. MARX, Introduction à la critique de la philosophie du droit chez Hegel, cité par R. COFFY, Dieu des athées : Marx, Sartre, Camus, Paris, Chronique sociale de France, Coll. « Le fond du problème », 1963, pp. 41-42. Cumpre observar que há controvérsias quanto à interpretação da célebre máxima de Marx, ao se referir especificamente à “miséria religiosa” e não à “religião”, que é um paliativo à miséria real e, ao mesmo tempo, a conseqüência contra essa miséria. Se há dor, humilhação, injustiças inadmissíveis nesse mundo, a humanidade é convidada a crer na existência de um além melhor e mais equânime, ao invés de buscar transformar a realidade circundante. O propósito de Marx dirigir-se-ia, nessa direção, contra os socialistas alemães dos anos 1840, por determinarem a luta contra a religião uma prioridade, quando, efetivamente, deveriam combater a miséria real e suas consequências nefastas. Cf. (http://www.marxists.org/francais/marx/works/1843/00/km18430000.htm). Consultado em 30/09/2013.

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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

zir ao ateísmo. Inserido na tradição idealista do protestantismo,

para Bauer “não existe nada na religião que não seja produto do

homem”5. Pode-se inferir dessa constatação um paralelo com a

leitura de Kojève sobre Hegel: “Ele [Hegel] constrói a história de diversas teologias sucessivas. Ele mostra que essas teologias

são obras humanas e que, consequentemente, o Ser revelado por

elas só pode ser humano”6.

Nas sendas de Feuerbach, Marx radicaliza a crítica de Bauer:

As provas da existência de Deus são tão somente provas, explicações lógicas da existência e da consciência de si real do

homem. Por exemplo, a prova ontológica. Qual é o ser que se

mostra imediatamente presente quando se pensa nele? É a

consciência de si. Nesse sentido, todas as provas da existência de Deus são provas de sua inexistência, são refutações de

todas as representações de um Deus7.

Descongelemos a cena e deixemos rodar nosso filme um pou-

co mais. Como inserir Marx nessa leitura se não for para marcar como ferro em brasa que o ópio (a cocaína) substitui a religião

na moderna sociedade massificada pelo consumo e nas representações proteiformes de poder alienante, que, todavia, con-

glomera ricos e pobres, amalgama o asfalto à favela, esfacela a

dicotomia bandidos e mocinhos, no cotidiano do Rio de Janeiro?

Não é o ópio, a droga, a cocaína, afinal, que denunciam o ato-

leiro no qual se encontra mergulhado o homem contemporâneo,

5 Cf. TRAN VAN TOAN, « La critique de la religion par Marx », in Revue philosophique de Louvain, N° 97 (1970), p. 58. 6 A. KOJEVE, Introduction à la lecture de Hegel, cité par TRAN VAN TROAN, op. cit., p. 65. 7 K. MARX, Manuscrits de 1844, cité par TRAN VAN TROAN, loc. cit., p. 62.


Meu nome não é johnny

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debatendo-se contra as angústias pós-modernas, exilando-se

num universo paralelo onírico, na ilusão de encontrar refúgios

em paraísos artificiais? Novo deus ou seu alimento – ambrosia – a configuração atualizada do mundo brinca com a imortalidade

outrora contida na iguaria concedida aos deuses do Olimpo: a cocaína, isto é, a “ambrosia” agora mata os homens!

Após o processo de prisão e julgamento, o percurso de Johnny

abre um capítulo especial dirigido à loucura. O herói é condenando à reclusão em um manicômio judiciário, isto é, à interna-

ção num hospital de custódia pelo prazo mínimo de dois anos.

Essa “clemência” só é obtida porque apesar da culpabilidade inconteste de Johnny, o personagem é inocentado da acusação de

pertencimento a uma quadrilha internacional. Repertoriando A

História da loucura, verificamos que só a partir do século XVII se estabelece a relação entre doença mental e internação. Isso

ocorre, historicamente, segundo Foucault, como uma substituição da segregação imposta aos leprosos, na Idade Média.

Se a função dos apartados, num primeiro momento, permite

o exercício religioso da caridade cristã, no aludido século, a so-

breposição dos valores sociais aos morais traveste os indivíduos

à margem do politicamente aceitável em dejetos a serem descar-

tados devido ao incômodo que causam à ordem e ao status quo. É antes o doente (e não a doença) que necessita ser extirpado, pela

subversão que sua presença impõe à limpidez reinante numa

sociedade imaculada, não conspurcada pelo feio, pelo lúgubre,

pelo diferente: “O fato de haver tomado suas distâncias de ter-

-se tornado enfim uma forma delimitável do mundo perturbado

do desatino, não libertou a loucura; entre ela e o internamento

estabeleceu-se uma profunda ligação, um elo quase essencial”

(Foucault, 1997, p. 399).

Após a metade do século XVIII, o temor provocado pelas

casas de internação associa-se a uma macabra metáfora social,


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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

pois a segregação dos doentes não se situa mais nos leprosários, destacados da cidade. É a humanidade-lepra que a sociedade se

vê obrigada a confrontar, refinadamente apreendida nas palavras de Priscila Pianzentini Vieira8.

Nos espaços fechados do internamento, assim, o mal estava

em plena fermentação, pronto para entrar em ebulição e sol-

tar seus vapores nocivos e os seus líquidos corrosivos em que

se espalham por todo o ar e acabam por atingir as vizinhan-

ças, impregnando seus corpos e contaminando as suas almas.

É, então, através de todo um saber fantástico, e não no rigor do pensamento médico, que o desatino enfrenta a doença.

Figura 24 – Meu nome não é Johnny O sociólogo Zygmunt Bauman desvela algumas marcas que

caracterizam a velocidade das mudanças econômicas, tecnoló-

8 Cf. Priscila Piazentini Vieira. Revista Aulas. ISSN 1981-1225. Dossiê Foucault N. 3 – dezembro 2006/março 2007. Organização: Margareth Rago & Adilton Luís Martins.


Meu nome não é johnny

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gicas e culturais do cotidiano enquanto tributárias de procedimentos acolhidos sob a designação genérica de “pós-modernos”.

Para Bauman, o desejo de aniquilação dos estranhos pelo eclipsamento das linhas fronteiriças que diferem o “eu do outro”, lan-

çando a liberdade dentro dos limites da incerteza, faz parte das

angústias desse fenômeno que ainda carece de uma definição mais categórica. Representada por uma justa e segura posição na sociedade, a necessidade de confecção de uma identidade

sólida e duradora determina que “todo padrão deva ser mantido”

(Bauman, 1997, p. 38). Destarte, toda ambiguidade referente à

perda de certo grau de segurança dessa identidade, compreendida como uma anomalia e vista como “imundície” ou “sujeira”, deve ser lavada.

O mundo da loucura não se dissocia dessa reflexão. No mani-

cômio judiciário, Johnny se aproxima de outro condenado que, embora jamais tenha logrado êxito no seu intento, “pesca ratos”:

Figura 25. Meu nome não é Johnny


94

Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

Figura 26. Meu nome não é Johnny Escrito em 1509 e publicado em 1511, o Elogio da loucura, de

Desiderius Erasmus, mas comumente conhecido como Erasmo

de Rotterdam, se apresenta como mais uma peça na composição

do insólito amálgama. Dedicado a sir Thomas More, também

esse texto coteja a humanidade a um enxame de insetos em

combate contínuo – o homem é um animal insignificante, condenado a uma vida breve e ridícula, à mercê de guerras, epidemias e catástrofes. Um mundo pútrido de insetos fétidos atravessa, igualmente, a loucura do herói:

Se por fim observásseis, como fez Menipo, do mundo da lua,

as diversas agitações mortais, certamente creríeis estar ven-

do uma cerrada nuvem de moscas e pernilongos, disputando,

engajando-se, lutando entre si, invejando-se, espoliando-

-se, mistificando-se, fornicando-se, nascendo, envelhecendo, morrendo. Nem mesmo podeis imaginar os horrores e

as revoluções com que este animalzinho enche a terra, tão pequeno embora e de tão pouca duração, que comumente se

chama homem (Rotterdam, 1953, p. 105).


Meu nome não é johnny

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Recuperemos a sugestiva abertura do filme, apresentado

pelo logotipo da Downtown:

Figura 27. Meu nome não é Johnny Transcorrido o primeiro ano de sua prisão, Johnny beneficia-

-se do indulto de natal, recebendo um cartão enviado pela juíza que o condenara e diante de quem já havia afirmado, durante o

julgamento, de modo peremptório: “O meu nome não é Johnny”.

Figura 28. Meu nome não é Johnny


96

Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

Atentemos ao conteúdo da mensagem, na verdade, uma frase

da escritora belga, de língua francesa, Marguerite Yourcenar:

“O verdadeiro lugar do nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos”.

Acompanhado pelos amigos de infância, é nesse contexto que

João Guilherme sai pela primeira vez do hospício, sendo acometido por uma súbita emoção. Refletindo a visão do protagonista

dentro do carro, a tomada da cena, envolta no véu da obscurida-

de do túnel Rebouças, projeta a minudência luminosa de pequenas lâmpadas encravadas numa titânica treva celeste, como que

desejando dizer ao herói que, malgrado todas as vicissitudes ou

talvez especialmente por elas, ele nunca deixara de ser Estrella.

Figura 29 – Meu nome não é Johnny


Cinema, aspirinas e urubus

Outro corpus que nos interessa transpassar pelas afiadas lâmi-

nas da abordagem filmosófica é o longa-metragem Cinema, aspirinas e urubus, de 2005. Na contramão da velocidade vertiginosa

observada em Meu nome não é Johnny, a proposta estética que

marca, com força, a estreia do cineasta pernambucano Marcelo

Gomes, espalha, estrategicamente, redutores de velocidade no decorrer de todo o percurso narrativo.

O ardil já pode ser observado no incipit do filme, haja vista

que a primeira frase é proferida apenas aos sete minutos e 52 segundos. Nada mais afeito à teorização proposta por Frampton

do que uma película na qual sobejem imagens e sons em detrimento da verborragia dialógica, muitas vezes tipificadora do cinema hollywoodiano. Todavia, abordemos, criticamente e com

vagar, a composição pela escansão quadro a quadro da película.

Silêncio na projeção dos créditos e logotipos dos patrocina-

dores culturais. Tela branca. Silêncio, paulatinamente quebrado

por um hipotético rumor de motor de caminhão. Tela branca

como que envolta por uma névoa. Música incidental de Lamartine Babo (1937), na melodiosa voz de Chico Alves.

Uma primeira pista: a brancura da bruma evoca uma espécie

de époché, situando a ação em algum momento do tempo e do

espaço, que, pouco a pouco, o filme-testemunha é convidado a 97


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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

destrinçar. Semelhante a uma cerração, o recurso imagético do

esbranquiçamento só se corporifica à medida que progressivamente ganha nitidez (nas figuras 31, 32, 33): nosso personagem

se encontra, de fato, no coração desértico do Brasil, muito pro-

vavelmente na caatinga que caracteriza e castiga parte ponderável do nordeste do país.

Figura 30 – Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes)

Figura 31 – Cinema, aspirinas e urubus


Cinema, aspirinas e urubus

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Figura 32 – Cinema, aspirinas e urubus

Figura 33 – Cinema, aspirinas e urubus A azáfama narrativa de Meu nome não é Johnny cede, assim,

espaço a uma estética econômica, pausada, vagarosa, povoada

por uma iconografia densa, às vezes, assumindo uma função

descritiva, como a que observamos na apresentação do semiárido nordestino, na sequência fotográfica da organização cênica.


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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

O protagonista nos é apresentado por sua projeção no espe-

lho retrovisor. Como se sabe, o espelho implica uma falsidade, a ilusão de uma vidência, uma dissimulação. Ele não mostra

um personagem, mas um inverso, um simétrico, um outro; não

expõe um corpo, mas uma superfície, um reflexo. Resta inquirir

o que oculta nosso personagem central. A trama logo se encarregará dessa revelação.

Ao promover componentes como imagem e som, em descon-

formidade com o diálogo, no balizamento fílmico, a filmosofia esclarece que compreende por som todo o universo sonoro do

filme: silêncio, murmúrios, músicas, vento, pássaros, vozes. O

corte temporal insinuado nas primeiras imagens confirma-se,

igualmente, no som: a escolha da matriz sonora é uma decisão soberana do cineasta, podendo nos auxiliar no mapeamento de

passagens sensíveis, capazes de iluminar a inteligência fílmica. É

nesse contexto inicial que se insere o referido clássico de Lamartine Babo1: “Serra da Boa Esperança, / Esperança que encerra / No

coração do Brasil /Um punhado de terra / No coração de quem

vai, /No coração de que vem, / Serra da Boa Esperança, /Meu último bem [...]”.

Em seu velho caminhão, o herói conta ainda com o apoio

de um velho rádio que auxiliará no desenrolar da ação dramática, contextualizando os fatos históricos: o Repórter Esso

anuncia que o ano é 1942 e estamos em plena Segunda Guerra mundial. A cuidadosa investigação de Rodrigo Carreiro, no

seu artigo “Relações entre imagens e sons no filme Cinema,

1 http://www.youtube.com/watch?v=PWRhmmq3Rpc Site consultado em 21/10/2013. Sabemos que a canção foi regravada por inúmeros e ilustres cantores, como Altemar Dutra, Eduardo Dusek, Silvio Caldas e Gal Gosta. A opção por Chico Alves revela-se um inconteste marcador cronológico que situa o momento histórico da ação.


Cinema, aspirinas e urubus

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Aspirinas e Urubus”2, é extremamente esclarecedora a esse respeito.

Para desenvolver melhor o uso dos silêncios e do rádio como ferramentas narrativas, bem como sua articulação com as estratégias de encenação, é preciso conhecer o argumento e

o contexto da trama. A história se passa no ano de 1942, no

Sertão da Paraíba, no momento em que o Brasil está pres-

tes a anunciar, de forma oficial, sua posição de apoio aos

Aliados na Segunda Guerra Mundial. É nesse cenário que

ocorre o encontro do sertanejo Ranulfo (João Miguel) com o

comerciante alemão Johann (Peter Ketnath). Ambos são nômades. Ambos estão em deslocamento – e, mais importante,

ambos estão em fuga. O brasileiro faz o trajeto clássico dos nordestinos que os livros de História do Brasil chamam de

“êxodo rural”, e que ocorre pelo menos desde o século XIX. Ele ruma do campo à capital, na tentativa de fugir da fome. Está desempregado e deseja tentar a sorte em uma cidade

grande; talvez o Recife, quem sabe o Rio de Janeiro. O alemão também foge, mas justamente na rota oposta. Por causa

do contexto histórico desfavorável, permanecer em grandes cidades pode lhe ser prejudicial (Carreiro, 2010, p. 3).

“Esperança no coração de quem vai”, a letra de Lamartine já

permitia inferir o ser secreto do herói: é alemão, foge da guerra embrenhando-se “no coração do Brasil” e, em breve, terá que

optar entre a deportação ou a prisão. Inúmeros teóricos e profissionais especializados em montagens de imagens e matrizes so-

2 Cf. CARREIRO, Rodrigo. Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação | E-compós, Brasília, v.13, n.1, jan./abr. 2010. E-ISSN: 1808-2599. P.1-19.


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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

noras para filmes, como Walter Murch (2004) e Jacques Aumont

(2006) vislumbram nesses dois eixos as vertentes decisivas que ditam o ritmo final da ação dramática.

Em contraposição à velocidade e à grandiloquência verifica-

das em Meu nome não é Johnny, a compressão do ritmo faz com

que a primeira frase seja proferida após sete minutos e 53 segundos de projeção: “Tu pode [sic] me levar ali adiante?”, pergunta

um sertanejo a Johann, pedindo carona. O diálogo não prospera e aos dez minutos é um curioso Ranulfo quem ocupa o lugar do

primeiro sertanejo, no caminhãozinho do protagonista.

Causa certa surpresa descobrir que o alemão vende aspiri-

nas no interior do sertão, afinal, o grande mal de que padece

o povo não é de dor de cabeça, mas de fome. A publicidade na

parte lateral do caminhão não deixa dúvidas: “Contra os ma-

les de cabeça: Aspirina”. Está desvelada, pois, a segunda parte

do enigmático título. Os personagens prosseguem sua jornada

numa dinâmica que esclarecerá o primeiro termo do trinômio,

pois, para apresentar e vender seu produto, um pequeno cinema

itinerante, ao ar livre, é montado, contando, a partir desse momento, com a coadjuvação de Ranulfo.

O par aparentemente inusitado – cinema e aspirinas – conju-

ga-se na grata missão de convidar o filme-testemunha a refletir sobre as engrenagens do metacinema, deixando sua ossatura

visível à medida que todo processo de junção das peças do projetor acontece nas ruas, diante do público. Consciente de sua estrutura, de sua história, dos mecanismos de sua produção, o

cinema não se furta a deixar transparecer suas entranhas nem a desvelar seus segredos, a exemplo de Johann, que, malgrado

os riscos advindos do contexto político, não esconde sua nacionalidade de ninguém.


Cinema, aspirinas e urubus

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Figura 34 – Cinema, aspirinas e urubus Barro que molda o esqueleto da sétima arte, a exposição do

dispositivo artesanal desnuda suas vísceras, deitando o cinema no divã para que ele fale de si mesmo. A organização visual de

tal engenho e arte encontra eco num dos mais sensíveis tributos contemporâneos à prática do metacinema, rememorando os

anos que antecederam a chegada da televisão, numa pequena cidade da Sicília, em Cinema Paradiso.

Figura 35 – Cinema Paradiso (Giuseppe Tornatore)


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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

Muita tinta rolou, muita literatura se fomentou e inúmeros

filmes retrataram o próprio processo de elaboração fílmica. Bas-

tardos inglórios, de Quentin Tarantino e o brasileiro Cine Holliúdy, de Halder Gomes, são exemplos concretos de manipulação

do metacinema, na contemporaneidade, tanto quanto o foram, com nuanças específicas, o autobiográfico Oito e meio, de Fellini

ou a reflexão sobre a pintura Paixão, de Godard, até retrocedermos ao grau zero da filmografia: Um homem com uma câmera,

de Vertov. Esse documentário reflexivo sobre os fundamentos

da montagem na história do cinema, de 1929, coloca em ação as

técnicas desenvolvidas pelo cineasta, denominadas de “cinema

-olho” e “cinema-verdade”.

A revelação da mágica não sabota a força da magia, diante

de uma pequena multidão extasiada que se dobra em face da sedução do cinema, sucumbindo, em seguida, ao poder do apelo

publicitário, veiculado pela engenhosa mandraca (fig. 36, fig. 37,

fig. 38 e fig. 39): Para acabar com todos os males, aspirina para todos!

Figura 36 – Cinema, aspirinas e urubus


Cinema, aspirinas e urubus

Figuras 37 a 39 – Cinema, aspirinas e urubus

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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

Com

refinada perícia, todo o magnetismo encantador contido nesse admirável mundo novo foi explorado por Tornatore. Hipnotizado pelo cinema local, o menino Totó (Salvatore Cascio), pela amizade e admiração eternas que sente por Alfredo (Philippe Noiret), projecionista que se dispõe a partilhar o avesso e o direito dos bastidores da ourivesaria cênica, metaforiza, com seus olhinhos brilhantes, o arrebatamento de que o ilusionismo da sétima arte é capaz.

Figuras 40 e 41 – Cinema Paradiso (Giuseppe Tornatore)


Cinema, aspirinas e urubus

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A exemplo do que se verifica em Cinema, aspirinas e urubus,

tampouco as projeções de rua foram negligenciadas, na poética

homenagem que Tornatore presta ao cinema. Aliás, a expressividade da decupagem visual, alicerce da filmosofia, redimensiona

a necessidade do diálogo a um segundo plano. Enveredamo-nos,

com alegria, no coração do desafio idealizado pela experimen-

tação filmosófica.

Com efeito, já que o cinema está lotado, até que a imagem ocu-

pe a superfície propícia à projeção ao ar livre, é o encadeamen-

to quadro a quadro que prende a atenção do filme-testemunha, sequioso por apreender como é possível que imagens passeiem

livremente pela praça pública, vindo se fixar no único espaço que lhes era cabível. É com venerando espanto que o público acolhe

mais essa manobra ilusionista, perfeitamente em consonância

com o ardil da sétima arte: o cinema fala, o cinema pensa, o cinema ganha pernas e “caminha” para onde quiser, ultrapassando

fronteiras e rompendo barreiras, comprovando sua vitalidade e

potencialidades múltiplas, mágicas, plurais, criativas, inusitadas, elevando o cinema a outro patamar: à sua suprema excelência.

Figura 42 – Cinema Paradiso (Giuseppe Tornatore)


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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

Enquanto estratégia propagandística, a prestidigitação ope-

rada por nosso herói germânico para a apresentação de seu

produto é a pedra angular que traz à baila a síntese semiótica auferida por Umberto Eco, no incontingente texto Apocalípticos

e integrados. Nele, o autor de O pêndulo de Foucault não assu-

me com relação aos mass media nem a posição “apocalíptica”

da Escola de Frankfurt (segundo a qual os meios de cultura de

massa se colocam a serviço das classes dominantes), nem abraça

os “integrados” (que vislumbram no alargamento dessa cultura a possibilidade concreta de integrar um segmento importante

da sociedade, antes completamente à margem de sua realidade contemporânea). Se não o faz, todavia, é porque acredita que: O universo das comunicações de massa é – reconheçamo-

-lo ou não – o nosso universo; e se quisermos falar de valores, as condições objetivas das comunicações são aquelas

fornecidas pela existência dos jornais, do rádio, da televisão, da música reproduzida e reproduzível, das novas formas de

comunicação visual e auditiva. Ninguém foge a essas condições, nem mesmo o virtuoso, que, indignado com a natureza inumana desse universo da informação, transmite o seu

protesto através dos canais de comunicação de massa, pelas

colunas do grande diário, ou nas páginas do volume em paperback, impresso em linotipo e difundido nos quiosques das

estações (Eco, 2006, p. 11).


Cinema, aspirinas e urubus

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Figura 43 – Cinema, aspirinas e urubus De fato, se não arrebata um estrondoso sucesso de vendas

(fig. 43) é sobretudo devido à impossibilidade financeira do

povo sertanejo - pobre, carente de tudo, desprovido de bens ma-

teriais -, muito mais do que em decorrência de um resultado deceptivo, produto do efeito persuasivo que associa a veiculação

da propaganda da aspirina à retórica narrativa cinematográfica. Não nos esqueçamos, porém, que o país originário de nosso

personagem encontra-se em guerra com Brasil, guerra da qual

Johann tenta a todo custo escapar. Forcemos novamente a porta e busquemos penetrar, um pouco mais fundo, na inteligência do

filme e na independência da câmera, pressupostos filmosóficos

por excelência. Seu velho caminhão prossegue em deslocamen-

to pelo sertão, quando o protagonista resolve “respirar”. É interessante observar que ele não opta pela janela, o que seria a opção mais corriqueira. Logrará êxito em seu intento?

A indagação não é de somenos importância: Johann é ale-

mão. Embora pacifista, pois admite que “não nasceu para ma-

tar”, tem o fito de construir sua existência, de maneira livre e

soberana, para além de todas as adversidades que, dia após dia


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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

e em progressão crescente, vão cerceando suas ações, culminando com a recente declaração de guerra do Brasil às forças do

Eixo, anunciada pelo Repórter Esso. Recuperemos, pois, essas

imagens (fig. 44, fig. 45, fig. 46 e fig. 47) que traçam como que o

risco do bordado no tecido narrativo fílmico e deixemo-las falar.

Figura 44 – Cinema, aspirinas e urubus

Figura 45 – Fotografia de um tanque de guerra


Cinema, aspirinas e urubus

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Figura 46 – Cinema, aspirinas e urubus

Figura 47 – Fotografia de um tanque de guerra móvel com parte do corpo de um soldado


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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

Figura 48 – Cinema, aspirinas e urubus

Figura 49 – Fotografia de um tanque de guerra com um soldado no exterior


Cinema, aspirinas e urubus

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Nosso pacifista ainda não está vencido. Embora a contragosto,

depara-se com amarras existenciais que o inserem inexoravelmente numa realidade refutada, indesejada. O filósofo Jean-Paul Sartre nos esclarece o preço da liberdade como valor correlato

à responsabilidade. Com efeito, para o escritor existencialista,

o homem não é apenas responsável por si mesmo, é antes tam-

bém responsável por todos os homens. Os termos subjetivismo

e subjetividade assumem, portanto, dois sentidos fundamentais: escolha do sujeito individual por si próprio e impossibilidade de

transpor os limites da subjetividade humana. Da segunda acepção, Sartre extrai o sentido mais arguto do existencialismo: “Ao

afirmarmos que o homem se escolhe a si mesmo, queremos dizer que cada um de nós se escolhe, mas, queremos dizer também

que, escolhendo-se, ele escolhe todos os homens” (Sartre, 2001,

p. 31). Todos os nossos atos que criam o homem que queremos

ser encontram-se, assim, implacavelmente atrelados, amarrados,

amalgamados e em relação intrínseca com a imagem de homem

tal qual julgamos que deva ser.

Efetuar uma escolha entre duas possibilidades (ou isto ou

aquilo) implica a afirmação concomitante do que se escolhe e

uma aposta naquilo que se escolhe. Esse momento da reflexão

sartriana remete ao imperativo categórico de Kant, já que nunca

é possível escolher o mal. Escolhemos, então, sempre o bem e

despimos esses conceitos de qualquer maniqueísmo, atentando

exclusivamente para o fato de que a escolha não pode ser boa

para nós sem que o seja, ao mesmo tempo, para todos. Por outro

lado, se a existência precede à essência e se queremos existir

ao mesmo tempo em que moldamos nossa imagem, ela é válida para todos, bem como para nossa época. Nossa liberdade é

eivada de responsabilidade, à medida que ela engaja a humanidade inteira: “escolhendo-me, escolho todos os homens” (Sartre,

2001, p. 33).


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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

É pelo viés da liberdade que Johann pode refazer-se, por um

projeto, novo, diferente, consciente da responsabilidade ineren-

te a toda e qualquer escolha. Conseguirá nosso herói investir na

liberdade de tal modo que logre êxito em descolar-se do “ser alemão”, mergulhando no “ser pacífico”, que em nada se compara

ao conceito de lâcheté (covardia) em Sartre? Recuperemos nosso

itinerário, pois ainda necessitamos perquirir o traçado de Déda-

lo, seu labirinto, na compreensão filmosófica do terceiro termo do trinômio: urubus. Uma segunda pista: a introdução da ave

ciconiiforme, na película, ocorre, metaforicamente, numa brincadeira do protagonista com um menino de um vilarejo local.

Após uma sessão fílmica de apresentação da aspirina, o viajante

alemão utiliza do facho de luz para simular, com as mãos, o voo da célebre ave faxineira (fig. 50 e fig. 51).

Figura 50 – Cinema, aspirinas e urubus


Cinema, aspirinas e urubus

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Figura 51 – Cinema, aspirinas e urubus Produtos da realidade do sertão, representação da sujeira, da miséria e da morte, os urubus só entram concretamente em cena no encerramento do filme, quando Johann, já ciente de que deve abandonar o país ou render-se à prisão, aguarda, na estação, o trem que o conduzirá à Amazônia, em companhia de Ranulfo, seu novo grande amigo. Ambos observam os sobrevoos dos abutres brasileiros, presenças bastante pertinentes com a situação de precariedade que acomete os companheiros de infortúnio e de viagem (fig. 52, fig. 53, fig. 54, fig. 55, fig. 56).

Figura 52 – Cinema, aspirinas e urubus


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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

Figuras 53 a 55 – Cinema, aspirinas e urubus


Cinema, aspirinas e urubus

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Vivendo até os dezesseis anos, em média, os urubus encon-

tram-se em florestas ou desertos. Devido às suas garras pequenas, os urubus não atuam como aves de rapina. Impedidos de ca-

çar, cumprem a importante função de manter o equilíbrio ecoló-

gico ao consumir carniça, restos de comida, carcaça de animais

mortos e carne putrefata. Graças a um poderoso suco gástrico secretado de seu estômago, essas aves-necrófagas, essenciais

para o meio ambiente, estão protegidas contra as bactérias e

toxinas provenientes de sua alimentação,

Num primeiro momento, transparecendo um nonsense, o tí-

tulo do filme adquire lógica e pertinência: nada mais adequado, física e metaforicamente, à situação do povo brasileiro, advindo

das zonas mais áridas do sertão nordestino, do que ter o seu valor

representativo associado à impotência de uma ave que não conse-

gue “cantar de galo”: “eles não têm siringe, o órgão vocal das aves, emitindo uns barulhos esquisitos chamados de crocitar”.3 Cada

habitante pobre se lhe apresenta como uma hipotética “refeição

pútrida” especial, conforme se observa na fig. 56.

Os urubus encarnam, nessa acepção, uma leitura carnava-

lizada de Os Pássaros, de Hitchcock. Estes são agressivos, ater-

rorizantes e pouco afeitos à morte lenta que impregna Cinema, aspirinas e urubus. Trata-se de aves mais nobres, mais condizen-

tes com a população da cidade de Bodega Bay, que efetivamente

atacam. Não demonstrando tendências à ação, seu correlato tro-

pical atua de maneira limitada, aguardando passivamente que

o alimento se lhe apresente, como num banquete. Permanece

à espreita de suas presas, numa atitude inerte, consoante à im-

3 http://mundoestranho.abril.com.br/materia/como-os-urubus-conseguem-comer -carne-podre. Artigo de Yuri Vasconcelos, com base na consultoria de Fernanda Junqueira Vaz Guida, Chefe do Setor de Aves da Fundação Zoológico de São Paulo. Consulta feita em 25/10/2013.


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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

potência do povo nordestino diante da fatalidade da seca e da aspereza da existência.

Figura 56 – Cinema, aspirinas e urubus Não dispondo de glândulas sudoríparas para dissipar o calor,

os urubus adotam uma estratégia pouco galante e repulsiva para evitar que a temperatura de seu corpo suba demais: defecam e

fazem xixi nas próprias pernas. O cheiro ruim também afasta

eventuais predadores. Além disso, ficam com o bico aberto para

perder calor. Sem maior necessidade de justificar a opção do

cineasta por urubus, a pobreza e a miséria em foco dialogam com os aspectos feio, lúgubre e medonho da enigmática ave: a cabeça e o pescoço pelados ajudam na sobrevivência. Como se

alimentam de carne podre, cheia de bactérias e outros micro

-organismos letais, se tivessem penas, essas regiões poderiam entrar em contato com a comida, transformando-se em pontos de contaminação.

Auxiliado por Ranulfo, nosso protagonista consegue se es-

conder da incursão policial na estação, já ciente de que o ami-

go não o acompanhará na aventura amazônica que se desenha.


Cinema, aspirinas e urubus

119

Também o coadjuvante deseja investir nos seus sonhos: partir

para a cidade grande, desgarrar-se da austera realidade nordes-

tina, descobrir mundos, descortinar atalhos, lavar-se da pobreza

atávica do sertão em que habita e que o habita. Transmudar a

intransigência objetiva do fora num real investimento na singu-

laridade subjetiva do dentro. Despir-se da carcaça com a qual promoverá o banquete dos urubus, em favor de uma construção

que lhe permitirá se tornar homem entre homens. É o momento

em que sua existência-galo canta a plenos pulmões, abafando o

mais tênue crocitar de uma existência-urubu. Sim! Tinha direi-

to a outra vida, a sair da fantasmagoria adentrando a fantasia,

transformando a fabulação em visão, a ficção em ação: ia, finalmente, seguir para a capital, tentar a vida, outra vida, no Rio

de Janeiro.

Figura 57 – Cinema, aspirinas e urubus Seu presente é a chave do caminhãozinho do alemão, torna-

do personagem em fuga. Nosso filme termina, filmosoficamen-

te, como começara: uma névoa branca envolve o motorista do

caminhão, que agora é Ranulfo. O esbranquiçamento aumenta


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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

até o desaparecimento total de toda cor, de toda imagem, de qualquer traço.

Mais uma vez, parece entrar numa cápsula de deslocamento

do tempo-espaço, semelhante à imaginada na ficção científica,

como na invenção genial do teletransporte de Jornada nas Estre-

las (fig. 58, fig. 59, fig. 60, fig. 61), capaz de oferecer a Ranulfo

o poder prestidigitador do cinema: ele está apto a ir onde quiser, desmaterializar-se e tornar a se materializar onde bem desejar.

Figuras 58 e 59 – Cinema, aspirinas e urubus


Cinema, aspirinas e urubus

Figura 60 – Jornada nas Estrelas (Gene Roddenberry)

Figura 61 – Cinema, aspirinas e urubus

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Filmosofia no cinema nacional contemporâneo

O desfecho do filme é um convite que evoca as sintônicas

palavras de Julio Cabrera, ao analisar, em seu O cinema pensa, outro filme: Paris, Texas, de Wim Wenders: “A aridez e a

imensidão do deserto, onde os irmãos se encontram, acentuam precisamente esse nada inaugural que pede aos gritos um novo começo” (Cabrera, 2006, p. 219).

Nada mais afeito à pertinência da destinação de nossos per-

sonagens. Tendo superado inúmeras provas reveladoras de uma

vontade imperecível de se manter afastado da guerra, o alemão,

escolhe a clausura livre da floresta – não se submetendo à de-

portação nem partindo para o campo de prisioneiros, no interior de São Paulo.

Seu país entrou em guerra, sua subjetividade pacífica, que

preserva a todo custo, não! Todas as suas escolhas convergem para uma rota alternativa que lhe possibilite dotar de sentido

o desamparo primordial, tornando-se aquele que sempre foi.

Consciente de seu ato, de algum modo, o herói consegue dizer:

“o meu nome não é Johann”.



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