Barry Magid
Mente comum Um diálogo entre o zen-budismo e a psicanálise
Tradução:
Antonio Selvaggi
Título original: Ordinary mind: exploring the common ground of Zen and psychoanalysis Tradução autorizada da edição norte-americana, publicada por Wisdom Publications, de Nova York, Estados Unidos Copyright © 2002 e 2005 Barry Magid Copyright da edição brasileira © 2012: Letra e Imagem Editora Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98) Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Revisão: Ricardo Silveira Foto da capa: © Bellat | Dreamstime.com
Magid, Barry Mente comum: um diálogo entre o zen-budismo e a psicanálise / Barry Magid; tradução Antonio Selvaggi – Rio de Janeiro: Folio Digital: Letra e Imagem, 2012.
isbn 978-85-61012-05-2
1. Filosofia e psicologia. I. Título. II. Magid, Barry. cdd: 100 cdu: 130.3
www.foliodigital.com.br Folio Digital é um selo da Letra e Imagem Editora Rua Teotônio Regadas, 26/sala 602 cep: 20200-360 – Rio de Janeiro, rj tel (21) 2558-2326 www.letraeimagem.com.br
Aos meus mestres,
Charlotte, Sharon e Sam
sumário
Prefácio, por Charlotte Joko Beck 9
Introdução 13
um. A psicologia do self 28
dois. Prática de-cima-para-baixo: mu 40
três. Prática de-baixo-para-cima: apenas sentar-se 49 quatro. Self e unidade 59 cinco. Self e vazio 73 seis. Não-self 81
sete. O mito da mente isolada 94
oito. Constância 104
nove. Transformação 117
dez. O zen é inútil 131
onze. Relacionamento e autoridade 145 doze. Uma prática ou duas? 159
treze. Formalidade e naturalidade 182 Notas 194
Glossário 200
Referências bibliográficas 203 Índice remissivo 208
Agradecimentos 214 Sobre o autor 215
prefácio
Ao sermos questionados sobre o tipo de vida que gostaríamos
de ter, muitos de nós talvez dissessem algo como: “Queria ter
uma vida equilibrada e produtiva.” Alguns poderiam também acrescentar que gostariam que fosse satisfatória e benéfica para
os outros. Até aí, tudo muito bem! Porém, para a maioria de nós, a vida não é bem assim, e ficamos confusos, sem entender por que não conseguimos viver da forma como queremos.
Existem muitas maneiras de tentar obter o que se quer. A
psicoterapia costuma ser uma tentativa. De fato, costuma ser
muito útil – no entanto, com frequência não consegue nos con-
duzir totalmente para uma vida satisfatória. Como professora
de Zen, ouço meus alunos declararem repetidas vezes coisas do
tipo: “Faço análise há 15 anos e aprendi muita coisa que me
ajudou – mas ainda falta algo. Ainda não me sinto realmente
livre.” Em geral, os que dizem isso são, eles próprios, terapeutas
(costumo ter de 30 a 40 alunos que são terapeutas). Dizem que
continua sendo desconcertante o fato de não se sentirem em paz com suas vidas.
Quando alguém me pergunta o que a prática zen tem a ofe-
recer, respondo: “Nada.” Nunca dou um conselho nem prometo
uma solução. Peço apenas que o novo aluno faça o melhor possível, depois de transmitir algumas instruções simples que en-
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mente comum
volvem a atenção. Isso inclui algumas questões. Primeiro, temos
que ter clareza do que estamos fazendo – e deixando de fazer – durante a meditação, o zazen. Precisamos aprender a observar e
rotular os pensamentos e vivenciar inteiramente o corpo e todas
as suas tensões e sensações enquanto estamos sentados. Além disso, a vida cotidiana e os problemas que nela afloram têm que ser vivenciados como uma prática constante; isso é difícil e
demanda esforço, sobretudo nos primeiros anos de prática. Com
o tempo, e bem lentamente, o aluno vê que as “respostas” para
aquela sua vida equilibrada e produtiva não se encontram em
uma distante terra mística, mas em sua própria mente e em seu corpo, em sua própria experiência direta.
Com a sequência da prática zen, conforme vai desenvolvendo
coragem e determinação, o aluno percebe que o dualismo ine-
rente a um “eu” que observa “problemas” precisa ser questionado. Os esforços incessantes (e fúteis) de “corrigir” a si mesmo e
aos outros esmorecem à medida que se torna óbvio que corrigir
simplesmente não é a resposta para as dificuldades humanas.
Quando isso ocorre, a pessoa começa a compreender a diferença crucial entre “corrigir” e “transformar”.
Mas é bastante difícil, se não impossível, expressar em pa-
lavras a diferença entre uma vida que é corrigida e outra que é
transformada. Por um lado, existe uma fisicalidade fulgurante
na prática zen que só se torna óbvia no silêncio e no esforço do
zazen. Quando vivenciamos a tensão corporal da emoção no
vácuo dos pensamentos, o self condicionado ou a casca começa
a enfraquecer e começa a brotar a possibilidade da vida satisfa-
tória que todos almejamos – a vida transformada. O professor de
zen deve ficar atento ao aluno que vive fora da realidade ou do
que está ocorrendo no instante presente e que continua tentando encontrar uma solução baseada no pensamento egocêntrico e na culpa.
Prefácio
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A prática zen pode ser difícil, frustrante e lenta, mas, depois
de algum tempo (em geral muito tempo), o aluno vai notar que sua reatividade emocional está diminuindo e que a capacidade
de agir com clareza e sensatez está aumentando. O egocentrismo diminui, bem como a crítica excessiva. Os relacionamentos
são mais íntimos e satisfatórios. A compaixão surge com mais
frequência e não requer esforço.
Porém, esta prática é o trabalho de uma vida, não tem fim.
É o processo de vivenciar seguidamente cada coisa que ingressa em nossa vida, a cada momento.
A boa terapia e a prática zen podem ajudar muito a revelar
o material doloroso e oculto de nossas vidas. Tendem a diferir na forma como lidam com o que é revelado. Um terapeuta que
é praticante de zen tratará desse material, tanto em si mesmo
como no trabalho com os clientes, de modo muito diferente do que faria antes de começar a prática zen. Com frequência meus
alunos terapeutas me falam da maneira como encaram seu tra-
balho agora; é muito tocante para eles e para mim quando uma
transformação genuína começa a substituir todas aquelas tentativas fúteis de ajudar e corrigir.
O processo orgânico de transformação muda tudo que faze-
mos, mas não é uma mudança que vem com o nosso próprio es-
forço. É apenas a vida acontecendo através da mente e do corpo.
E embora seja sempre surpreendente, poderoso e maravilhoso,
é também bastante comum – tão comum como descascar cenouras.
Barry Magid leva essa perspectiva transformada de sua pró-
pria prática e ensino do zen para a maneira como faz psicoterapia. Mente comum é uma excelente discussão sobre um assunto
vital. Espero que muitos terapeutas leiam este livro com atenção
e consideração, para seu próprio benefício e para uma melhor
contribuição para as vidas de seus clientes. Neste livro, todos,
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mente comum
em terapia ou nĂŁo, podem aprender muito sobre a verdadeira
causa e o verdadeiro fim do sofrimento, e sobre como vivenciar a vida por inteiro, como ela ĂŠ.
Charlotte Joko Beck
San Diego, CalifĂłrnia
introdução
Nos últimos 25 anos, venho praticando tanto a psicanálise como
o zen-budismo: de início, como paciente na minha própria aná-
lise nos tempos de aluno iniciante de Zen, e agora como psicanalista e professor de Zen. No começo, era como se estivesse
realizando duas práticas separadas em paralelo, e costumava
me perguntar como elas podiam ou deveriam se relacionar en-
tre si. No entanto, com o passar dos anos elas foram convergindo e comecei a enxergar ambas como exercícios estruturados
de consciência do momento presente. De forma gradativa, fui
desenvolvendo uma estrutura conceitual comum para descrever o mecanismo de mudança de personalidade em ambas. O que
eu aprendia na análise esclarecia o que eu via ocorrer no zendô,
assim como as mudanças que fui percebendo em mim mesmo e
nos outros por meio da prática zen me faziam repensar algumas
das minhas ideias básicas sobre o que viabiliza as mudanças
terapêuticas.
A convergência dessas práticas – aparentemente muito dife-
rentes – em minha própria vida parece refletir uma evolução na maneira como nossa sociedade entende a meditação. Práticas
que antes eram vistas como estritamente religiosas ou espirituais assumiram um aspecto quase terapêutico aos olhos do público e agora atraem pessoas pelos mesmos motivos que talvez elas
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mente comum
levem em conta antes de começar uma terapia psicanalítica. À
medida que as forças econômicas vão empurrando a psicotera-
pia para um modelo médico – e a gestão de saúde exige diagnós-
ticos específicos, planos de tratamento focados em sintomas e
soluções psicofarmacológicas –, práticas espirituais de todos os
tipos tratam cada vez mais de questões de identidade, qualidade
de vida, bem-estar e função dos valores na vida contemporânea
(questões que antes levavam as pessoas à psicanálise). Entre os
meus pacientes, um número cada vez maior tem algum interesse ou experiência em uma ou outra forma de prática espiritual, seja ioga, meditação, artes marciais ou um híbrido da Nova
Era. O mesmo se aplica a diversos colegas de profissão, muitos
dos quais, atualmente, ampliam suas buscas psicanalíticas e seu aprendizado original com algum tipo de prática espiritual – da
qual talvez tenham apenas vaga noção de como relacioná-la ao processo terapêutico que praticam com seus pacientes. Da
mesma forma, muitos dos meus alunos de zen já fizeram algum
tipo de terapia. Porém, enquanto uma quantidade crescente de
pessoas procura combinar diversas práticas em suas próprias vidas, é comum sentirem certo desconforto relacionado à maneira como essas várias práticas se relacionam conceitualmente entre
si. Seria a meditação apenas uma fuga dos problemas psicológi-
cos? Será que uma abordagem psicológica da meditação reduz a espiritualidade a uma autoajuda? Não seria melhor manter as
práticas separadas, deixar que trabalhem em seu próprio âmbito
e não se preocupar muito com os métodos e resultados que uma
indica para a outra?
Embora a abordagem que descrevo neste livro possa se pare-
cer com muitas variedades de psicoterapia, existe algo distintamente psicanalítico quanto à minha forma de observar as coisas.
O que torna uma terapia especificamente psicanalítica? Sempre
que alguém me pede para explicar o que distingue a psicotera-
Introdução
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pia da psicanálise, gosto de responder que “a psicanálise não
ajuda a ninguém”. Mesmo admitindo que isso possa ser encarado como um comentário irônico, creio que de fato aponta para
uma distinção importante dentro das chamadas “profissões de
ajuda”. Ao “não ajudar”, estou me referindo à natureza fundamentalmente aberta da investigação psicanalítica. Embora os
pacientes busquem um tratamento por causa de problemas que
querem resolver, a psicanálise não é uma técnica de resolução
de problemas. Ela não tem um objetivo específico nem busca
um resultado particular. Apesar de provocar transformações
pessoais bastante radicais, a análise em si não objetiva nenhum conjunto de metas definidas – nem, necessariamente, um alívio
para os sintomas. A máxima fundamental que norteia a prática
psicanalítica é a mesma que motivou Sócrates e os primeiros
filósofos gregos: “Conhece-te a ti mesmo.”
O método psicanalítico se contrapõe ao cerne da nossa vida
moderna. É deliberadamente lento. Ele pede ao analisando que se sente (ou, como é tradicional, se deite) e fique quieto, passe
muitas horas imerso em seus sentimentos, entre em uma pers-
pectiva de vida que é orientada para processos, e não para ob-
jetivos. Esse método pressupõe que a vida e a felicidade de cada
indivíduo são mais preciosas do que qualquer medida econômica e merecem nossa atenção e cuidado infinitos. Nunca poderá
ser avaliado em termos de eficiência e custo. Tudo isso pode dar
à orientação psicanalítica uma vantagem clara quando se trata de construir pontes conceituais com uma infinidade de práticas
budistas, e com o zen em particular.
O zen e a psicanálise compartilham esse terreno comum de
não direcionamento ou, como diriam os budistas, “ausência de
ganho”. Embora haja regras e técnicas simples que devemos se-
guir na prática de ambos, nem o zen nem a análise funcionam
com base em um conjunto específico de etapas prescritas. Há,
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mente comum
contudo, várias escolas de budismo e vários tipos de terapia que
avançam exatamente dessa forma: as práticas de plena atenção do Vipassana parecem se desdobrar ao longo de um caminho
escalonado bem definido, bem como diversas terapias cognitivo-
-behavioristas traçam uma sequência de exercícios concebidos
para provocar uma tomada de consciência e permitir a mudança de padrões de pensamento arraigados.1 Todas essas abordagens
são legítimas e se adaptam melhor ao temperamento de mui-
tas pessoas quando comparadas com o zen ou a análise. Porém, toda técnica tem suas próprias vantagens e armadilhas. Stephen
Batchelor descreveu as consequências da seguinte maneira:
Uma técnica é a corporificação de um procedimento lógico. Ao
empregarmos uma técnica, aplicamos uma série de estágios in-
terconectados que foram analisados previamente. Cada um de-
les é conectado ao seguinte de modo causal. Desde que sigamos corretamente os vários estágios, produziremos um resultado
previsível (...) Qualquer caminho espiritual que fale de uma sé-
rie de estágios interconectados que levem ao despertar (...) tem
um aspecto tecnológico.2
Imaginamos que há um método, uma forma racional de nos
levar daqui para lá, confirmando o tempo todo uma visão de que o lugar onde estamos é de algum modo errado ou insuficiente.
O zen enfatiza que onde já estamos não é de maneira al-
guma errado ou insuficiente. Ele toma como ponto de partida nossa dificuldade (recusa) em acreditar ou entender como isso
pode ser possível. Tanto o zen como a psicanálise nos convidam a ficar quietos e apenas observar. No início das instruções de meditação, costumo dizer aos novos alunos que a meditação é
como sentar-se em frente ao espelho. O próprio rosto aparece de
imediato e não há dúvidas quanto a fazer certo ou errado. Nosso
Introdução
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trabalho é simplesmente observar e ser honesto com relação ao que vemos.
Porém, por trás da simplicidade aparente do não direciona-
mento do zen e da prática psicanalítica, espreitam inúmeras teo
rias e filosofias sobre a natureza do que chamamos de mente, self,
saúde, patologia, ilusão e iluminação, entre muitos outros ele-
mentos. Tanto a psicanálise quanto todas as diversas formas de
budismo tentam oferecer um modelo abrangente da mente e um
modo de lidar com o sofrimento humano. Qual o grau de sobre-
posição que podemos esperar encontrar entre dois sistemas de
pensamento que enfrentam o mesmo conjunto de problemas, mas
partem de estruturas culturais e históricas profundamente distin-
tas? O que poderia convencer um professor de budismo e um psicanalista de que eles podem tirar algum proveito desse diálogo?
Há cerca de 50 ou 60 anos, o zen e a psicanálise passaram
por outro período de convergência, que foi registrado em uma coleção de ensaios de Erich Fromm, D.T. Suzuki e Richard de
Martino. O que lhes serviu de base foi uma conferência em Cuernavaca, México, em 1975, patrocinada pelo Departamento
de Psicanálise da Faculdade de Medicina da Universidade Nacional Autônoma do México, onde estavam presentes cerca de
50 psiquiatras e psicólogos, quase todos psicanalistas.3 A articulação que viabilizou essa conferência partiu de alguns dos
pensadores mais proeminentes e inovadores da comunidade
analítica, incluindo Erich Fromm e Karen Horney.4 No esforço
de articular uma alternativa para a teoria psicanalítica clássica,
eles encontraram no zen um método cativante de mudança radical da personalidade que parecia funcionar segundo princípios
totalmente diferentes dos utilizados no modelo freudiano padrão. Para Fromm, o passo crucial era sair de uma psicologia da
doença para uma nova psicologia do bem-estar, que ele chamou de psicanálise “humanista”: