a construção do livro
EMANUEL ARAÚJO
a construção do livro princípios da técnica de editoração
2ª edição revista e ampliada 2ª impressão Revisão e atualização BRIQUET DE LEMOS
Prefácio ANTÔNIO HOUAISS
Lexikon Editora Digital Ltda. Rua da Assembleia, 92/3º andar – Centro 20011-000 Rio de Janeiro – RJ – Brasil Tel.: (21) 2526 6800 – Fax: (21) 2526 6824 www.lexikon.com.br – sac@lexikon.com.br Veja também www.aulete.com.br – seu dicionário na internet
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ A687c 2.ed.
Araújo, Emanuel, 1942-2000 A construção do livro [recurso eletrônico] : princípios da técnica de editoração / Emanuel Araújo ; revisão e atualização Briquet de Lemos ; prefácio Antônio Houaiss. - Rio de Janeiro : Lexikon, 2012. 640 p., recurso digital : il. Formato: PDF Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web Apêndice Inclui bibliografia e índice ISBN 978-85-86368-85-1 (recurso eletrônico) 1. Editoração. 2. Livros eletrônicos. I. Lemos, Antonio Agenor Briquet de, 1937-. II. Houaiss, Antonio, 19151999. III. Título. CDD: 070.5 CDU: 808.2
Para Sonia, companheira dos tempos difĂceis, interlocutora de todas as horas
O comprador de um livro cheio de erros realmente nĂŁo adquire um livro, mas uma praga. Johann Froben (1460-1527)
Sumário
Nota ................................................................................................................................. 15 Prefácio à 1ª edição, de 1985 .......................................................................................... 17 Prefácio do autor ............................................................................................................ 23 Introdução ...................................................................................................................... 25 PARTE I
— Preparação de originais ................................................................................ 33
Capítulo 1 — Editoração, um conceito na história ............................................... 37 A. Os livros dos bibliotecários............................................................................ 38 B. Os livros dos monges ...................................................................................... 41 C. Os livros dos impressores ............................................................................... 45 D. Os livros dos editores ..................................................................................... 48 Capítulo 2 — Normalização geral do texto ........................................................... 55 A. O editor e o texto ........................................................................................... 57 (i) A questão do estilo ................................................................................... 59 (ii) Usos e abusos contra a clareza ............................................................... 67 (iii) O vocabulário ......................................................................................... 69 (iv) A frase. Técnica do período curto ......................................................... 72 (v) O parágrafo .............................................................................................. 74 B. Ortografia ........................................................................................................ 76 (i) Maiúsculas ................................................................................................ 78 (ii) Minúsculas............................................................................................... 81 (iii) Grafia de nomes próprios...................................................................... 83 (iv) Substantivos comuns: formas optativas ............................................... 84 (v) Divisão silábica ........................................................................................ 85 (vi) Numerais ................................................................................................ 86 C. Reduções ......................................................................................................... 89 (i) Abreviaturas ............................................................................................. 90 (ii) Siglas ........................................................................................................ 91 (iii) Símbolos ................................................................................................. 92 D. Citação e realce gráfico .................................................................................. 93 (i) O realce: aspas e brancos.......................................................................... 93 (ii) Citação de versos ..................................................................................... 94
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E. Notas ................................................................................................................ 95 (i) Sistemas de remissivas ............................................................................. 96 (ii) Sistemas de notas .................................................................................... 97 F. Bibliografia..................................................................................................... 100 (i) Nome do autor ....................................................................................... 102 (ii) Título ..................................................................................................... 105 (iii) Informações complementares e tipográficas ..................................... 108 (iv) Artigos de periódicos ........................................................................... 112 (v) Documentos em meio eletrônico ........................................................ 114 (vi) Pontuação: notas e bibliografia........................................................... 114 G. Traduções ...................................................................................................... 117 (i) Onomástica ............................................................................................. 118 (ii) Aparato editorial ................................................................................... 121 H. A digitação .................................................................................................... 124 (i) Reprodução de originais: o problema dos erros .................................. 126 (ii) Apresentação material de originais ..................................................... 128 I. Indexação ....................................................................................................... 130 (i) Tipos de índices ...................................................................................... 132 (ii) Ordenação alfabética ............................................................................ 136 (iii) Aparato editorial.................................................................................. 138 Capítulo 3 — Normalizações especiais ...................................................................... 143 A. Poesia ............................................................................................................ 144 (i) Poesia em prosa ...................................................................................... 144 (ii) Poesia em verso ..................................................................................... 147 B. Teatro ............................................................................................................. 158 (i) O texto dramático: definição e estrutura.............................................. 159 (ii) Padronização editorial.......................................................................... 166 C. Línguas estrangeiras ..................................................................................... 170 (i) Grego ....................................................................................................... 171 (ii) Latim ...................................................................................................... 173 (iii) Inglês ..................................................................................................... 174 (iv) Alemão .................................................................................................. 175 (v) Francês.................................................................................................... 177 (vi) Italiano .................................................................................................. 178 (vii) Espanhol .............................................................................................. 179 (viii) Russo ................................................................................................... 179 Capítulo 4 — Edição crítica ......................................................................................... 183 A. Estabelecimento do texto ............................................................................ 184 (i) Recensão ................................................................................................. 186
Sumário
(ii) Correção................................................................................................. 191 (iii) Padrões editoriais................................................................................. 196 B. Os textos da Antiguidade Médio-Oriental .................................................. 199 (i) Transposição gráfica ............................................................................... 200 (ii) Problemas de tradução ......................................................................... 205 (iii) Padrões editoriais................................................................................. 208 C. Textos da história do Brasil .......................................................................... 213 (i) Caracterização dos diplomas ................................................................. 215 (ii) Diversidade das edições ........................................................................ 223 (iii) Arcaísmos ............................................................................................. 230 (iv) Colação de textos .................................................................................. 236 (v) Padrões editoriais .................................................................................. 242 D. Textos literários ............................................................................................ 247 (i) Bibliografia descritiva ............................................................................ 248 (ii) Fixação do estema ................................................................................. 256 (iii) Padrões editoriais................................................................................. 262 PARTE II
— O processo industrial ............................................................................... 271
Capítulo 5 — O projeto gráfico ................................................................................... 277 A. O estudo do tipo ........................................................................................... 278 (i) As letras: formas do traçado .................................................................. 279 (ii) Tipometria ............................................................................................. 287 (iii) O estilo dos tipos.................................................................................. 294 (iv) A escolha do tipo.................................................................................. 318 B. A composição ................................................................................................ 324 (i) Composição manual .............................................................................. 326 (ii) Composição a quente ........................................................................... 328 (iii) Composição a frio ................................................................................ 331 C. O papel .......................................................................................................... 342 (i) Características ......................................................................................... 345 (ii) Classificação ........................................................................................... 347 (iii) Formatos............................................................................................... 350 (iv) Aproveitamento de papel .................................................................... 353 D. O preço do livro ........................................................................................... 354 (i) Cálculo do original ................................................................................ 354 (ii) Cálculo do preço ................................................................................... 356 Capítulo 6 — Revisão de provas.................................................................................. 363 A. O erro ............................................................................................................ 364
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B. A técnica da revisão ...................................................................................... 367 (i) Os sinais .................................................................................................. 368 (ii) Procedimentos do confronto original/prova ...................................... 369 C. Etapas da revisão........................................................................................... 370 Capítulo 7 — O projeto visual .................................................................................... 373 A. O princípio da legibilidade .......................................................................... 374 (i) Ritmo da leitura ..................................................................................... 374 (ii) Os caracteres .......................................................................................... 375 (iii) As linhas ............................................................................................... 380 B. Organização da página ................................................................................. 384 (i) Formatos ................................................................................................. 385 (ii) Esquemas construtivos ......................................................................... 387 (iii) O diagrama ........................................................................................... 395 C. Estrutura do livro ......................................................................................... 399 (i) Parte pré-textual ..................................................................................... 399 (ii) Parte textual .......................................................................................... 416 (iii) Parte pós-textual .................................................................................. 430 (iv) Elementos extratextuais ....................................................................... 434 D. Arte-final ...................................................................................................... 437 (i) Montagem .............................................................................................. 438 (ii) Acabamento .......................................................................................... 440 Capítulo 8 — A iconografia......................................................................................... 443 A. O legado da tradição manuscrita ................................................................ 446 (i) A imagem eficaz ..................................................................................... 446 (ii) A imagem simbólica ............................................................................. 447 B. A ilustração impressa ................................................................................... 453 (i) Imagem e tradição ................................................................................. 456 (ii) Imagem e fidelidade ............................................................................. 462 (iii) Imagem e técnica ................................................................................. 473 Capítulo 9 — A impressão .......................................................................................... 493 A. O impacto das novas tecnologias ................................................................ 493 B. Tipografia ...................................................................................................... 500 (i) As impressoras ........................................................................................ 500 (ii) Clicheria................................................................................................. 507 (iii) Fotogravura .......................................................................................... 510 (iv) Características da impressão tipográfica ............................................. 514
Sumário
C. Rotogravura .................................................................................................. 515 (i) Gravação das chapas............................................................................... 515 (ii) A impressão ........................................................................................... 517 (iii) Características da impressão em rotogravura .................................... 519 D. Offset ............................................................................................................. 520 (i) Fotolitografia .......................................................................................... 520 (ii) A impressão ........................................................................................... 523 (iii) Características da impressão offset ..................................................... 527 E. Impressão a seco (xerografia) ....................................................................... 527 (i) O princípio da impressão a seco ........................................................... 528 (ii) As impressoras ....................................................................................... 530 (iii) Características da impressão a seco ..................................................... 531 F. As tintas de impressão ................................................................................... 532 (i) Composição das tintas ........................................................................... 533 (ii) Secagem ................................................................................................. 534 (iii) Uso nos sistemas de impressão ........................................................... 536 G. Impressão em cores ...................................................................................... 537 (i) Composição da cor ................................................................................. 537 (ii) Como determinar valores para as cores .............................................. 540 (iii) A seleção de cores ................................................................................ 541 (iv) A utilização gráfica da cor ................................................................... 542 (v) Provas de cor .......................................................................................... 545 H. O produto final ............................................................................................ 548 (i) Controle de qualidade ........................................................................... 549 (ii) Montagem e acabamento ..................................................................... 550 APÊNDICES ..................................................................................................................... 557
Apêndice A — Abreviaturas ........................................................................................ 559 (i) Axiológicas .............................................................................................. 559 (ii) Bibliológicas .......................................................................................... 561 (iii) Filológicas ............................................................................................. 563 Apêndice B — Ortografia de onomásticos ................................................................. 565 (i) Africanos ................................................................................................. 565 (ii) Gregos .................................................................................................... 566 (iii) Indígenas .............................................................................................. 568 Apêndice C — Conversão de cíceros em paicas ......................................................... 571 Apêndice D — Equivalências de linhas entre o original e a composição ................ 572 Apêndice E — Sinais de revisão de provas ................................................................. 573 Apêndice F — Sequência de cadernos por páginas ................................................... 579
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A construção do livro INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................................ 581
A. Obras gerais................................................................................................... 581 B. História do livro............................................................................................ 581 (i) O livro manuscrito ................................................................................. 581 (ii) O livro impresso .................................................................................... 582 C. Preparação de originais ................................................................................ 583 (i) Obras gerais sobre normalização .......................................................... 583 (ii) Estilo, ortografia e gramática ............................................................... 584 (iii) Reduções............................................................................................... 584 (iv) Bibliografia ........................................................................................... 585 (v) Tradução................................................................................................. 585 (vi) Indexação .............................................................................................. 586 D. Edições críticas ............................................................................................. 587 (i) Padrões gerais ......................................................................................... 587 (ii) Textos históricos .................................................................................... 588 (iii) Textos literários .................................................................................... 588 E. A página impressa......................................................................................... 589 (i) Obras gerais............................................................................................. 589 (ii) O tipo ..................................................................................................... 590 (iii) O livro na máquina ............................................................................. 596 (iv) Revisão de provas ................................................................................. 598 (v) Diagramação .......................................................................................... 598 (vi) A iconografia ........................................................................................ 600 ÍNDICE ............................................................................................................................ 605
Nota
Faz mais de vinte anos que este livro foi editado. Se, antes da introdução das modernas técnicas de produção editorial, no final da década de 1960, o sociólogo francês Robert Escarpit denominou o grande incremento do mercado editorial nos países desenvolvidos, em grande parte devido ao fenômeno do livro de bolso, ‘revolução do livro’, o que dizer das transformações ocorridas nas duas últimas décadas na própria forma como o livro é produzido? Essas transformações foram tantas e tão diversas que seria o caso de falarmos agora de uma ‘revolução no livro’. Esse foi um dos desafios enfrentados na atualização de obra tão importante quanto A construção do livro, de Emanuel Araújo. Emanuel Araújo conhecia profundamente, tanto na teoria quanto na prática, o universo do livro. Sabia que as técnicas gráficas e editoriais estavam sujeitas a contínuas mudanças e tratou de tornar seu texto tão atual quanto possível. Mas sabia também que, por mais moderna e avançada que fosse a tecnologia gráfica e editorial daqueles idos de 1986, um bom profissional não poderia deixar de conhecer os antecedentes históricos dessa tecnologia, a fim de melhor compreender e praticar as peculiaridades de seu ofício. Um ofício que tem raízes profundas no humanismo e cujas fronteiras lindam com as das artes visuais, da comunicação, da psicologia e que tem interface com praticamente tudo que começa com o prefixo biblio-. Na atualização para esta edição, procurou-se conciliar dois imperativos: primeiro, o de respeitar e preservar, tanto quanto possível, a integridade e o cunho pessoal e autoral do texto original; segundo, o de conservar o caráter prático da obra, como fonte
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de consulta para todos aqueles interessados no processo de produção do objeto livro — o que tornou necessário o acréscimo de um volume significativo de informações, que abrangem principalmente as modificações tecnológicas e seu impacto sobre esse processo. Quanto à normalização textual foram preservadas as soluções adotadas pelo autor, e as razões para isso estão bem claras no prefácio da primeira edição. No entanto, tratou-se de colocar no texto, sempre que isso fosse pertinente, a informação sobre a prática recomendada pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), cabendo ao leitor escolher a forma que lhe parecer mais conveniente. Não se alterou a forma de citação das notas de rodapé. No entanto, as ‘Indicações bibliográficas’, devidamente atualizadas, foram redigidas conforme a norma brasileira, que não diverge muito do critério seguido por Emanuel Araújo. As alterações foram poucas, os acréscimos, pelo motivo indicado, foram muitos, e os cortes foram mínimos, por entendermos que mesmo aqueles trechos referentes a práticas que caíram em desuso conservam interesse histórico e fornecem ao leitor informações úteis para compreender a evolução da indústria do livro até o momento atual. A bibliografia indicada no final do livro foi atualizada, com a menção de edições recentes de muitos dos títulos sugeridos por Emanuel Araújo. Títulos novos, tanto brasileiros quanto estrangeiros, foram acrescentados. Foram excluídos pouquíssimos títulos que constavam da edição anterior devido ao fato de haver equivalentes mais acessíveis e atuais. Agradecemos a Sonia Lacerda, viúva do autor, a Briquet de Lemos, colega editor e ex-professor de biblioteconomia, à Unesp, à Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e à Fundação Biblioteca Nacional o estímulo necessário à reedição atualizada desta que é uma obra indispensável.
Prefácio à 1ª edição, de 1985
O livro tem, até agora, no Brasil, uma existência quantitativamente quase marginal — embora, para a maioria dos atuais países soberanos, nem sequer o quantificador ‘quase’ caiba: mal de muitos consolo seria, mas não é — e precisamos realmente avançar nessa área fundamental da cultura. Há síndromes ou sintomas que auguram ao livro — já agora não apenas no Brasil senão que também no mundo — um de dois futuríveis polares: ou bem será mais que nunca o instrumento por excelência da tradição–transmissão da posse e do conhecimento, ou bem será matéria superada pelo menos do ponto de vista tecnológico. Isso que acima é dito nos propõe algumas pequeninas questões que tento a seguir enfrentar, para buscar algum sentido ao que digo: a) por que se pode dizer que o livro tem tido no Brasil existência quase marginal? b) por que o livro é (ou não é) o instrumento por excelência da tradição da posse e do conhecimento (notando que sua superação tecnológica é problema conexo com esta questão)? De fato, o livro tem tido existência quase marginal no Brasil, pelo menos do ponto de vista quantitativo. Até o início do século XIX — vale dizer, até três séculos depois do ‘descobrimento’ do Brasil e do livro impresso — o livro não foi estampado entre nós (salvo dois ou três casos ‘ilegais’ de prelos logo sequestrados ou destruídos pela polícia del-rei). Não o foi, mas nada teria impedido — e quase nada impediu — que livros impressos
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em Portugal ou alhures nos chegassem, muitos dos quais devidamente autorizados pela fé oficial e os bons costumes conexos com ela. Chegaram, é verdade, tão verdade que se pode citar mais de uma livraria (no sentido de coletivo de livros de leitura e consulta de um só dono — que os podia emprestar, vá lá) de residentes no Brasil, ou ‘brasileiros’ ou brasileiros, digo, brasilienses — do Brasil dos séculos XVII e XVIII, não incluídas as livrarias conventuais ou clericais. Mas deve-se ter em vista que, comparado com Portugal — que tinha 2% de sua população como letrados, até o século XVIII —, o Brasil — até esse século — não teria tido mais de 0,5% de letrados: pelo fim do século XVIII–início do século XIX, isso (2% e 0,5%, respectivamente) significaria, sobre população de cada parte mais ou menos emparelhada em 3,5 milhões de pessoas (nem tão pessoas assim, pois no nosso caso havia a indiada brava e a negraria escrava), 70 mil e 17,5 mil letrados respectivamente (com a diferença de que os portugueses dispunham de notáveis acervos acumulados tanto da tradição manuscrita quanto da tradição impressa). No começo do século XIX, além da Impressão Régia, implantou-se entre nós uma precária, mas crescente, tipografia, voltada por seus prelos para jornais e sobretudo pasquins e folhas volantes, de tal arte que ficção, poesia (salvo ocorrências ainda então episódicas de seções de poesia, pois os folhetins esperarão um par de décadas ainda), direito, medicina, história, geografia e afins eram preferentemente impressos no exterior (Portugal, França, Alemanha), até que algumas impressoras estrangeiras nos remetessem projetos e prelos para aqui atuarem, já adentro da segunda metade do século em causa. Nesse interregno, a Europa de ponta (França, Inglaterra, certos cantões suíços, italianos, flamengos, certos estados alemães e centro-europeus) transitava dos seus 2% de letrados setecentistas para 50%, aproximadamente, por 1850, e 92–96%, por 1899–1900, enquanto a península Ibérica saía dos 2% em fins do século XVIII, chegava aos 20% por 1850 para atingir os 50% por 1899–1900. O Brasil, consequente, teria que percentual pelo fim do século XIX? Um traço da marginalidade do livro em nossa vida cotidiana de então pode ser obviamente depreendido e compreendido: imensa massa, escrava ou mesmo ‘livre’, de iletrados, pequeníssima fração de literatados capazes de ler ou escrever minimamente e fraçãozinha dessa fração capaz de escrever como escritores e de ler como leitores habituais. Até hoje, esse estigma brasílico, inicial e medial, nos pesa. Quando, após veleidades de termos ensino primário universal gratuito, principiamos a ter teatro popular, e cinema, e rádio, e televisão, e circenses, o livro ainda não se radicara (o que acontece na infância e na primeira adolescência) entre os brasileiros: sua história, do livro (quero dizer), entre nós, é, assim, a de um objeto quase inexistente de uso excepcional pelos literatados excepcionais da massa de iletrados em evolução para objeto acaso existente de uso intensivo por letrados excepcionais de massa semiliteratada sem
Prefácio
hábitos de ler (nem pensemos no escrever). Tenho insistido em que, se computados os ‘livros’ mesmo e somente, de 1920 a 1985, temos editorado um exemplar per capita per annum (e nem falemos da lusofonia que, se tem Portugal com um índice incomparavelmente melhor, tem o setor africano em condições trágicas): a França, com seus 50 milhões de habitantes, angustiava-se nos inícios deste ano ao verificar que só (!) publicara 9 (nove) livros (livros, propriamente) per capita em 1984. O fato é que o trânsito da iliteratação para a literatação, isto é, dos 2% antigos para os 98% atuais, foi um imperativo da modernização burguesa expressa pela Revolução Francesa e pela Revolução Industrial inglesa em sua expansão europeia e, logo em seguida, ultramarina nos povos transplantados, em particular os Estados Unidos da América. A Rússia e — depois — a União Soviética são, a tal respeito, produto da Revolução Soviética, mas, por isso mesmo, fato moderníssimo. O que parece é que o Brasil, como um todo, ainda não entrou nessa modernidade: somente o eixo São Paulo–Rio de Janeiro detém presumivelmente 80% da nossa fruição dos livros. Temos de sair de onde estamos, nesse particular; temos de tornar o livro — com o teatro, o cinema, o rádio, a televisão, o cassete, o videocassete — objeto de usufruição geral, universal, dos brasileiros de cinco a 150 anos de idade. De uns poucos anos a esta parte, a problemática técnica do livro, com a bibliologia, vem começando a ter um lugar ao sol na nossa editoração. Isso não ocorre por acaso: efetivamente, a nossa editoração — tanto a do setor privado quanto a do setor público — tem florescido em qualidade, abrindo-se aos horizontes da eficácia e da beleza, graças ao vetor da normalização. O espaço e o espírito da normalização presumem dois caminhos de racionalidade: o da universalização de meios e métodos e soluções, e o da particularização por contraste dos recursos necessários aos casos excêntricos. Com isso, os ideais de unidade com diversidade são compatibilizados, oferecendo aos usuários e usufructuários do livro — como objeto e como texto–linguagem — o que há de melhor: se, em média, o livro brasileiro não pode ainda oferecer-se como produto industrial de perfeição artesanal e artística, pode, entretanto, apresentar-se — num grande percentual — como produto bibliológico de alto rigor: nossas principais e poucas editoras, no universo da ficção e da poesia, da arte e da técnica, da ciência e do saber, já correspondem à expectativa mais exigente, embora muita coisa indigna do nome de livro — sobretudo na relevantíssima base didática — circule por aí. Livros como este — avancemos o nosso pensamento — se destinam a pregar e a divulgar a boa doutrina: o livro integra a civilização e a cultura de forma fecunda e perdurante: ainda somos uma civilização escrita e o seremos mais, nos milênios por vir. O segundo futurível consiste em considerar irrelevante que o livro esteja ou entre em crise — no Brasil e no mundo —, já que a ‘aldeia global’ (ou suas variantes mais ou menos aperfeiçoadas) descartará da realidade a realidade do livro: o processamento cibernético-eletrônico atual é apenas o vestíbulo do que acontecerá daqui a dez, vinte,
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trinta anos, e nesse então velharias como papel, impressão, livro passarão a seres arqueológicos. Na linha do passado recente — no trânsito do século XVIII para o XIX —, o advento das estruturas e modo de produção burgueses não pôde dispensar a literatação de massa e, com isso, o redimensionamento do livro na vida social. O que Gutenberg sonhou foi apenas um substitutivo mecânico para o trabalho dos copistas manuscritores: a tiragem por ele desejada era a que os scriptoria pré-renascentistas realizavam. Só no fim do século XVIII, só no curso do século XIX é que se compreendeu o efeito multiplicador do prelo, à altura da literatação geral. Esse fato material foi paralelo a outro fato material: a divisão do trabalho físico e mental sofreu uma revolução; estima-se que, pela metade do século XIX, um vocabulário de em torno de 260 denotativos era suficiente para designar todas as ciências, artes, mesteres, profissões; pela metade deste século, um vocabulário mínimo de 24 mil designativos se fazia insuficiente para designar as ciências, subciências, superciências, metaciências, artes, subartes, transartes, profissões, especializações, microespecializações. No conjunto, um instrumento fundador de humanidade, as línguas, em particular as grandes línguas de cultura (inglês, francês, espanhol, italiano, alemão, português, russo, chinês, japonês, árabe...), transitavam de um léxico máximo de 40 mil palavras no fim do século XVIII para um léxico mínimo de 400 mil palavras nos meados deste século. Esse imenso léxico não ocorre, jamais, num só segmento social, falado e escrito, numa obra só (salvo o grande dicionário, quando há — o que não é o caso brasileiro nem da lusofonia): ele é o somatório de todos os segmentos sociais e de todas as obras de língua portuguesa ou da lusofonia, no nosso caso, com a contrapartida de todas as línguas de cultura, sobretudo as de cultura de ponta. É ele, assim, um indicador da modernidade cultural e civilizatória. Essa acumulação léxica — função da prática mental setorial aprofundada — decorre das potencialidades oferecidas pelo vetor por excelência do avanço cognitivo e cultural, o livro, mesmo ante a era da computação e da cibernética e informática. Destarte, o livro, materialmente, na sua feição mais requintada ou mais generalizada presente — folhas de papel impressas, alçadas, coligadas e vestidas, numa unidade normalmente portátil (mesmo que a duas mãos) —, esse livro pode desaparecer: mas não desaparecerão, com sua fisicidade, as suas mensagens e seus códigos: isso que se chamam dialetos literários, isso que se chamam dialetos científicos, isso que se chamam dialetos tecnológicos — e assim por diante. O computador que equivaler à soma de todos os livros será um servo daqueles dialetos — da linguagem oral, que é sobretudo resultado dialético da linguagem escrita — e oferecerá as páginas, as ilustrações, as remissivas, as notas, as capitulações, as subdivisões temáticas, os índices e tanta coisa mais que, por ora, a oralidade não sabe transmitir eficazmente sem sua imagem visual, a escrita. O ‘livro’ poderá, assim, para certos fins, apresentar-se sob outra técnica
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física. Mas, enquanto perdurar o rigor da leitura a sós, o enlevo da leitura a sós, a emoção do manuseio sensual das páginas, enquanto isso perdurar, teremos os livros-livros, esses que estão aí tão incorporados à nossa maneira de sermos humanos (tanto assim que, onde ele não é isso, aí impera o atraso, a sotoposição, a exploração). Ora, este livro, A construção do livro, de Emanuel Araújo, aposta na existência do nosso livro-livro pelos séculos futuros — sem exclusividades, como é obviamente sensato. Gostaria de deter-me em considerações laudatórias — que tanto as merece — ao Autor: a boa técnica de apresentação do seu livro nos dá uma súmula de sua biografia, graças à qual se verá que, lastreado numa cultura e erudição clássicas e numa vivência e prática modernas, ele, Autor, é a pessoa ideal para ousar e realizar esta obra — de que tanto, efetivamente, de que tanto estamos precisados. Na linhagem de um livro meu, pioneiro entre nós, mas elementar, Emanuel Araújo dá o passo à frente substantivo na bibliologia brasileira e lusofônica, impondo-se a partir dagora como a obra de consulta e referência indispensável em tudo quanto se refira aos temas do amplo espectro teórico e prático suscitado pelo livro — como corpo e alma —, que a bibliologia — e suas feições de fazer concreto abarcado sob o nome abrangente e genérico de tipografia — oferece aos seus interessados. E são interessados todos os profissionais da elaboração dos originais, da composição, da revisão, da impressão, todos os estudiosos da tradição manuscrita e impressa, todos os cultores das ciências, artes e técnicas desta nossa civilização escrita: na realidade, o trabalhador mental idôneo — nas suas quase infinitas especializações contemporâneas — não pode dispensar mil e uma consultas a este livro, para melhor encaminhar sua própria especialização, dando-lhe também uma das chaves básicas à sua universalização possível. Roubando horas de seu lazer, transformando-as em seu lazer, o Autor cristalizou aqui anos de estudo e anos de prática, durante os quais experimentou o que aqui se condensa. Graças a uma linguagem clara e convincente, lida-se com este livro e lê-se este livro com encantamento. Bibliólogos, bibliotecários, biblioteconomistas, bibliófilos, bibliômanos, bibliósofos, bibliopolas e quantos bíblio-s houver — o universo do livro, que afinal é uma duplicação do universo — irão debruçar-se sobre este livro, para aproveitarem suas lições, para saberem infringir criadoramente suas normas e normalizações, para melhor penetrarem a essência e existência desse instrumento e setor do conhecimento e cultura que é o livro. Rio de Janeiro, 22 de maio de 1985 A NTÔNIO H OUAISS
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Prefácio do autor
Tenho a convicção de que este livro deveria ser um trabalho colegiado, isto é, obra coletiva onde cada especialista contribuiria em sua área de trabalho e estudo. Sei, portanto, as falhas que decorrem do fato de tão amplo empreendimento ser levado a cabo por uma só pessoa, mas ainda assim considerei que tinha experiência suficiente para tanto, com a vantagem, sobre uma obra colegiada, de imprimir ao livro um cunho pessoal — justamente em suas virtudes e defeitos — de mais fácil aceitação por parte do leitor ou do simples consulente, que pode concordar ou ‘brigar’ comigo em tal ou qual pormenor. As discordâncias, em particular, que geralmente implicam sugestões de melhoria, serão especialmente bem-vindas. A primeira parte do livro é inteiramente dedicada aos problemas de normalização textual, e aí se verá com frequência o esforço de combinar regras ditadas pelas instituições normalizadoras oficiais com certas tendências de padronização consagradas pelo uso corrente dos editores. Quando houve necessidade de optar, sempre me pautei pela convicção que tem permeado minha atividade profissional: a regra básica da editoração é a de quebrar qualquer regra que prejudique a fluência da leitura. A segunda parte destina-se a fornecer ao supervisor editorial os elementos essenciais para o desempenho de sua tarefa quando o livro entra na fase de preparação industrial. Desse ponto em diante recorri ao didatismo fornecido pelas ilustrações. No correr do trabalho há muitas referências a obras com títulos em inglês, francês, espanhol e italiano. Estes só são traduzidos excepcionalmente, quando contêm pala-
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vras de pouco uso ou vocábulos técnicos incomuns, pois entendo que o supervisor editorial, a quem se destina primordialmente este livro, deve conhecer no mínimo aquelas línguas de cultura. Entretanto, no caso de alguns termos correntemente usados na área de editoração, registrei sua equivalência em pelo menos inglês e francês (às vezes acompanhados da etimologia), considerando que a bibliografia técnica imediatamente disponível ao editor brasileiro pertence a essas línguas. Os apêndices foram restringidos a um número mínimo e todos apresentam uma função eminentemente prática. Tampouco elaborei o tradicional glossário, por considerar que este se encontra suprido pelo índice, que remete a conceitos e explicações de procedimentos técnicos desenvolvidos no corpo principal do livro. A bibliografia foi organizada de modo temático, com os títulos que julguei mais importantes para cobrir o universo tratado. Cada item corresponde a verdadeira especialização que abrange centenas ou, em alguns casos, milhares de trabalhos, cuja listagem seria aqui impraticável. Note-se, ademais, que muitos autores citados em notas não aparecem na bibliografia; na realidade, as citações em causa têm valor apenas exemplificativo, reconhecendo-se ao leitor, assim, a faculdade e a competência para evocar outras e melhores indicações. Por fim, não poderia deixar de agradecer de público a algumas pessoas que tiveram a paciência de ler toda a primeira parte do livro, a qual tive tempo de datilografar como pré-original de ‘versão preliminar’: Dora Flaksman, Ivan Junqueira e Sandra Lazzarini. Deles recebi valiosas críticas, mas nem sempre as aceitei, de modo que não lhes cabe qualquer responsabilidade por esta ou aquela falha do texto. O mesmo vale para Antônio Houaiss e Sonia Lacerda, que puderam ler ambas as partes. O primeiro, de resto, encontra-se presente neste livro não só por seus comentários como pela profunda influência que pessoalmente exerceu sobre minha formação como editor. À segunda expresso em particular um comovido agradecimento por sua leitura infatigável e acurada, que me norteou mediante dúvidas sempre pertinentes e de aguçado bom senso.
Introdução
— Este livro não é meu! Meu Deus, o que fizeram do meu livro? A exclamação, patética, vinha da famosa jornalista internacional (mas, no caso, como escritora) Oriana Fallaci, ao perceber que a tradução brasileira de seu livro Um homem não era fiel à estrutura paragráfica do original, construída em forma de monólogo compacto (Jornal do Brasil, 28.4.1981). O que a escritora concebera como blocos de longo discurso interior foi transformado, na tradução, em diálogos convencionais, i.e., cada fala contida num parágrafo, começando com travessão, enquanto no original não havia distinções semelhantes, mas aspeamento de interlocuções para ‘relembrar’ diálogos. Em posterior entrevista, Fallaci definiu, como criadora, seu ponto de vista (Jornal do Brasil, 7.5.1981): — Em Um homem todos os diálogos são dados sem parágrafo, e não só porque este é notoriamente o meu modo de escrever, de obter o ritmo da página, a musicalidade da língua, [...] mas porque isto corresponde a uma rigorosa necessidade de estilo ditada pela substância do livro. Quero dizer, em Um homem o diálogo é um diálogo recordado, um diálogo interior, e não um diálogo que determina um diálogo. [...] É um livro em que a forma e a substância, o estilo e o significado se integram indissoluvelmente. Tampouco deixou de assinalar: — E trabalhei tanto para escrevê-lo! Três longos anos sem nunca deixar aquele quarto e aquela pequena mesa, jamais uma interrupção, uma distração, um descanso, nada de férias, nada de domingos, nada de natais e páscoas. Sempre trabalhando, das
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oito da manhã às oito da noite, refazendo, corrigindo, limando o estilo, cuidando da ausência de parágrafos. Com seu protesto, Oriana Fallaci levantou um sério problema de editoração. Tratase, aliás, de um problema duplo: sua própria técnica literária e — o mais importante para o editor de texto — o respeito em relação a essa técnica, o que a autora definiu como seu estilo. Vejamos a questão por partes. No concernente à técnica literária dos diálogos, até o século XIX conheciam-se apenas (salvo o recurso de ‘estruturas epistolares’, por exemplo em Choderlos de Laclos, Balzac...) o discurso direto, com as falas dos personagens num presente permanente, como no teatro, e o discurso narrativo ou indireto, em que o autor lida com as falas do passado e do presente como árbitro, delimitando-as claramente em sua exposição. A partir de meados do século XIX, entretanto, surgiu o discurso aparente ou discurso indireto livre, em que o fluxo de pensamento do personagem se introduz no estilo indireto puro. De início, neste caso, os autores usaram aspas para não confundir o leitor, mas estas seriam logo abandonadas como técnica narrativa. Quanto ao estilo, nunca é demais assinalar que foi com a Revolução Industrial, vale dizer, com o amadurecimento da sociedade capitalista, que os escritores começaram a ter consciência não da forma em geral, mas da forma individual, da maneira particular, trabalhada, burilada, sofrida, da exposição de cada autor como artista que produz obra única e consumada. Explica-se: pelo menos desde o Renascimento, até o Classicismo, a literatura fazia-se num universo de circulação restrita e pequena concorrência, sendo o seu público praticamente limitado à burguesia abastada e à nobreza cortesã. Em conformidade com isso, a exibição estilística fundava-se mais no ornamento, na base comum da língua como fato corrente e universal. A noção de plágio, nesse contexto, inexiste, pois a uniformidade confunde-se com a tradição, a exemplo do que encontramos em Shakespeare, Marlowe, Corneille, nos árcades e, ainda hoje, por motivos particulares, em nossa literatura de cordel. A revolução das técnicas e do mercado, traduzindo-se no binômio velocidade–quantidade, suscitaria a massificação do livro, contra a qual emergiu a figura do autor como artista, como criador por excelência, como aquele que domina a gramática para ter o direito de fraturá-la. Roland Barthes observa que, então, começa a surgir para a literatura um problema de justificação: a escritura vai procurar álibis para si; e justamente porque começa a aparecer uma sombra de dúvida quanto ao seu uso, uma classe inteira de escritores preocupados em assumir a fundo a responsabilidade da tradição vai substituir o valor-uso da escritura por um valor-trabalho. A escritura será salva não em virtude de sua destinação, mas graças ao trabalho que tiver custado. Começa então a elaborar-se uma imagética do escritor-artesão que se fecha num lugar lendário, como um operário na oficina, e desbasta, talha, pole e engasta sua forma, exatamente como um lapidário extrai a arte da matéria, passando neste trabalho horas regulares de soli-
Introdução dão e esforço... Esse valor-trabalho substitui de certa maneira o valor-gênio; há uma certa vaidade em dizer que se trabalha bastante e longamente a forma.1
As ressonâncias dessa atitude, desse fato, revelam-se em autores de temperamento tão diferentes como Oriana Fallaci (“sempre trabalhando, das oito da manhã às oito da noite, refazendo, corrigindo, limando o estilo”) e João Cabral de Melo Neto, que em entrevista (IstoÉ, 5.11.1980) confessou que “a primeira versão de alguma coisa que faço chega a dar vergonha”, só alcançando o texto definitivo depois de trabalhar “até não aguentar mais, até a cabeça não dar mais nada”. Naquele caso-limite do protesto de Oriana Fallaci, tomado acima como exemplo, o impasse resume-se assim: por um lado, a necessidade de remanejamento — reivindicada pela casa editora — da estrutura paragráfica original, adaptando-a ao que seriam os ‘hábitos brasileiros’ de leitura, e por outro, em resultado, o que a autora sentiu como violência a um ato de criação. A casa publicadora almejava, naturalmente, apenas o sucesso de venda, e a autora, além desse êxito, o reconhecimento do leitor para com sua expressão literária. O aspecto gráfico de manchas em grandes blocos compactos de texto (às vezes tomando todo o seu espaço) resulta de fato em páginas maciças, no mínimo pouco arejadas, o que, sem a menor dúvida, prejudica a legibilidade. Ademais, no caso em questão não havia perfeito domínio da técnica do monólogo interior, em que se devem distinguir, através de situações ‘dramáticas’ ou mesmo de recursos gráficos, o que se passa no presente do narrador e aquilo que é expresso como lembrança. A imperícia do escritor, destarte, pode suscitar, como suscitou, problemas de interpretação em vários níveis. De qualquer modo, quando a forma se confunde com o estilo não resta outra alternativa senão aceitá-los no todo. Ao se trabalhar com obras em que o elemento primordial é a informação (compêndio, ensaio e congêneres), existe aquela liberdade de redisposição dos originais em benefício da clareza, mas com produção literária impõe-se o absoluto privilégio autoral. Trata-se, na verdade, de um princípio socialmente reconhecido, com o qual o editor de texto convive a cada passo em seu exercício profissional. Desentendimentos dessa e de outras origens ainda ocorrem no Brasil, entre autor e casa editora, muitas vezes pela ausência, nesta, de um setor ou departamento de editoração, ao qual competiria escolher determinado original (dentro de um programa adrede estabelecido por tal setor) e submetê-lo a um ‘manual de estilo’ que fixasse em definitivo todas as possibilidades de normalização dos textos destinados à publicação. E
1
O grau zero da escritura (trad. Anne Arnichand e Álvaro Lorencini, São Paulo, Cultrix, 1971), pp. 75-76. [Nova ed.: O grau zero da escrita (trad. Mário Laranjeiras, São Paulo, Martins Fontes, 2004.] Também é importante, no mesmo sentido, a leitura de Pierre Bourdieu, A economia das trocas simbólicas (trad. Sérgio Miceli, São Paulo: Perspectiva, 1974), capítulos 3 e 6. [5. ed.: 2003.]
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quer no caso de autores vivos, quer no de depositários de autores mortos, a margem de padronização editorial que se reserva à editora tem de ser explicitada em contrato comercial supervisionado por especialistas em direito autoral. Ainda hoje, porém, coexistem no Brasil casas publicadoras de organização profissional atualizada, em que um especialista, o editor, se encarrega tanto da seleção de originais quanto de seu percurso até se transformarem em livros, e aquelas estruturadas sob moldes ‘domésticos’, em que o dono contrata a edição, segundo critérios o mais das vezes subjetivos, transferindo para o revisor tipográfico a responsabilidade de infundir coerência interna ao original (sobretudo na ortografia), e isto na adiantada fase de provas; nesses casos, também a escolha da fonte de tipos e do papel, bem como a diagramação, ficam a cargo da impressora. Mas não se devem estranhar semelhantes disparidades num país em que a atividade editorial alcança somente dois séculos de história e ainda permanece, em ponderável medida, ‘paternalizada’ ou amparada através de incentivos estatais. Creio ser possível dividir a prática editorial brasileira em três períodos principais — e como qualquer divisão cronológica, esta é necessariamente arbitrária e mais ou menos rígida na tentativa de didatismo. 1) O primeiro período iniciou-se oficialmente quando, em 13 de maio de 1808, o príncipe dom João, recém-chegado ao Brasil, assinou o decreto que criava a Impressão Régia, contrariando disposições anteriores que alegavam não ser “conveniente se imprimam papéis no tempo presente, nem ser de utilidade aos impressores trabalharem no seu ofício, aonde as despesas são maiores que no Reino”. Daí em diante criou-se um público leitor, primeiro na Corte, mas logo também nas províncias, ávido de obras técnicas (direito, economia, medicina, botânica, filosofia...) e de ficção (de romances e peças dramáticas a textos populares, como a História da donzela Teodora). As tipografias, em número crescente por todo o Império, refletiam as exigências desse mercado. A qualidade gráfica da Impressão Régia mereceu elogios de um experiente bibliólogo, Rubens Borba de Morais: “A impressão é nítida e clara, a distribuição do texto e das notas nas páginas, a proporção das margens, tudo enfim... é perfeito. Não se faria melhor na Europa”.2 Mas foi uma exceção. No geral, em termos de editoração, exibiam-se verdadeiros desastres, de vez que as ‘editoras’ eram, na verdade, impressoras mal organizadas para a produção de livros; além de pequeno repertório de tipos e má escolha de papel (por incrivelmente restrita), “sente-se que esses tipógrafos não tinham o hábito de imprimir livros e cometiam os erros mais simplórios. Aliás, grande número desses volumes era impresso em tipografias de jornais e revistas. Ora, impri-
2
Livros e bibliotecas no Brasil colonial (2a ed., Brasília, Briquet de Lemos / Livros, 2006), p. 131. Cf., do mesmo autor, O bibliófilo aprendiz (4a ed., Brasília, Briquet de Lemos / Livros; Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2005, p. 199.
Introdução
mir um jornal e fazer um livro exigem técnicas inteiramente diversas e demandam pessoal diferente”.3 Desde meados do século XIX se estabeleceram no Brasil (em particular no Rio de Janeiro) alguns europeus que fundariam casas editoras de renome: Laemmert, Villeneuve, Leuzinger, Ogler, Garnier... Contudo, se é verdade que alguns traziam novidades no concernente à impressão de livros, pouco acrescentaram à técnica de editoração. Em princípios do século XX as tipografias brasileiras achavam-se tão mal equipadas que as obras de autores como Graça Aranha, Machado de Assis, Coelho Neto, Aluísio Azevedo, Afrânio Peixoto, Euclides da Cunha e muitos outros eram impressas na França (Paris, Poitiers) e em Portugal (Lisboa, Porto). Observa Rubens Borba de Morais que não passavam de “impressões banais, correntes, baratas”, mas pelo fato de provirem de “países de tradição tipográfica, eram assim mesmo tecnicamente bem-feitas, com página de meio título, índices e outros detalhes, além do papel de boa qualidade”.4 Acontecia, porém, não raro, que os revisores portugueses de livros brasileiros ‘adaptassem’ a linguagem dos autores a usos gramaticais lusitanos, deturpando o ritmo e algumas peculiaridades intrínsecas a seu discurso.5 2) O segundo período sobreveio como consequência das dificuldades de comunicação entre Brasil e Europa, durante e logo depois da Primeira Guerra Mundial, e assinala a afirmação da indústria editorial brasileira. Monteiro Lobato, com sua frase célebre, “um país se faz com homens e livros”*, bem traduz o estado de espírito dos editores brasileiros naqueles tempos difíceis em que se impôs a libertação — embora forçada — da ‘ditadura’ europeia nesse setor. Mas a história de Lobato como dono de uma editora, suas dificuldades de produção e comercialização do livro, de 1917 a 1925, quando faliu, é também a súmula e o símbolo da luta de todas as casas publicadoras brasileiras pela conquista de sua identidade, assimilando (às vezes até copiando servilmente) o que se fazia na Europa e nos EUA, mas tentando inovar para adaptarse a um novo e impreciso mercado leitor. Em 1921, finalmente, emergindo dos escombros da falência de Lobato, a Companhia Editora Nacional de certa forma daria início a esse segundo período, ao lançar o volume de estreia de sua bem reputada coleção Brasiliana. O projeto era ambicioso, ousado mesmo, porém fez sucesso. Do ponto de vista da editoração inaugurava-se também uma coleção de textos díspares, mas em que, pela primeira vez e em ponderável quantidade, se imprimia a todos os volumes uma dada normalização, sob
3
Rubens Borba de Morais, O bibliófilo aprendiz, op. cit., pp. 199-200.
4
Idem, ibidem, p. 199.
5
Cf. Mário Pontes, ‘Aportuguesados à força’, em Jornal do Brasil, 10.1.1981.
*
A citação é do livro América (11. ed., São Paulo, Brasiliense, 1962, p. 45) que relata as impressões de Lobato sobre os EUA Os ‘homens’ estavam exemplificados por George Washington e Abraham Lincoln. Os ‘livros’, por meio dos quais “os avanços do espírito se perpetuam”, estavam exemplificados pela Library of Congress, ali descrita. (N. E.)
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formato e características idênticos, sem que se levassem em conta, na programação gráfica, as preferências pessoais porventura manifestadas até por autores de renome. Impôs-se a padronização que uniformizava o projeto editorial. Seu primeiro editor literário, Fernando de Azevedo, concebera livros em pequeno formato, mas a partir de 1924 também começaram a ser publicados sob grande formato, em numeração paralela à outra série. Em 1957 a Brasiliana passou a ser dirigida por Américo Jacobina Lacombe, que, certamente atendendo a problemas de editoração, autorizou a adoção de um tamanho intermediário entre as séries de grande e pequeno formatos, porém dando continuidade à numeração desta última. O exemplo da Brasiliana seria, daí em diante, seguido até hoje por coleções semelhantes. Ressaltem-se, também como pioneiras, a Documentos Brasileiros, iniciada em 1936, da Editora José Olympio, e a especializada Biblioteca Histórica Brasileira, iniciada em 1940, da Livraria Martins Editora. Não por acaso a partir de 1945 teve início um dos mais perfeitos trabalhos de editoração jamais realizados no Brasil a publicação de A comédia humana, de Balzac, a cargo de Paulo Rónai, só concluída em 1955 (Editora Globo). No ano de 1960 Afrânio Coutinho, ao apresentar a primeira edição da Obra completa de Castro Alves, publicada pela José Aguilar Editora, posteriormente Nova Aguilar, expunha a normalização desta empresa, aplicável aos textos de sua coleção Biblioteca Luso-Brasileira. Os especialistas em editoração começavam a ver seu trabalho aceito e aprovado na prática*. Nesse processo de reconhecimento os filólogos tiveram papel destacado. Aparentemente em atividade paralela à dos historiadores (Varnhagen, Capistrano de Abreu...), mas de fato sob rigorosa orientação ecdótica, valorizaram não só a recuperação dos textos como sua escrupulosa publicação em edições críticas. Muitos nomes poderiam ser destacados,6 porém o grande marco editorial nesse sentido foi a série de 11 volumes de textos arcaicos saídos entre 1963 e 1969, sob a direção de Antônio Geraldo da Cunha (Instituto Nacional do Livro). E coube a um filólogo, ademais, ocupar, na teoria e na prática, o espaço vago pela dissociação dos trabalhos de filologia e de editoração: trata-se de Antônio Houaiss, que não só elaborou verdadeiro tratado de textologia, sob muitos aspectos exaurindo o assunto, em sua obra Elementos de bibliologia (1967), como se encarregou da editoração comercial de obras complexas — em particular enciclopédias, dicionários — destinadas à mais ampla divulgação, até seu falecimento, em 1999. 3) O terceiro período, assim, teve, no Brasil, como a inaugurá-lo e servir de ponte para a editoração profissional, não amadorística, todo o trabalho de Antônio Houaiss. Desde a década de 1960, mas de forma irreversível e sistemática a partir da de 1970, as principais casas editoras parecem convencidas, como afirmou Amaral Vieira, de que “quanto mais investir nos originais, menos a editora está despendendo na fase gráfica;
*
6
O mais completo estudo sobre a indústria editorial encontra-se em Laurence Hallewell, O livro no Brasil: sua história (trad. de Maria da Penha Villalobos, Lólio Lourenço de Oliveira e Geraldo Gerson de Souza, 2a ed. rev. ampl., São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2005). (N. E.) Ver Anthony Julius Naro (org.), Tendências atuais da linguística e da filologia no Brasil (trad. Maria Bordenave & Marilda Averbury, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976), pp. 73-79.
Introdução
quanto mais os originais demorem na editoração, mais rápida e economicamente o livro sairá da gráfica”.7 Surgiu, em consequência, a necessidade de estabelecer, a partir do trabalho prático, os limites do ensino acadêmico dessa ‘nova’ atividade profissional. Já em 1970 e em 1971 a Fundação Getulio Vargas (Rio de Janeiro) realizava, respectivamente, um simpósio e um curso sobre editoração, do que resultou a publicação de estudos específicos reunidos num livro, Editoração hoje (1975). Ao completar setenta anos de atividades, a Editora Vozes, de Petrópolis (RJ), publicou número especial de sua revista dedicado ao livro no Brasil (1971), onde se incluía a matéria de Paulo Amélio do Nascimento Silva sobre ‘A editoração na universidade brasileira’.8 Em 1972, José Marques de Melo, da Universidade de São Paulo, sentiu-se premido a organizar ‘Uma bibliografia de editoração no Brasil’,9 justificando que os poucos trabalhos publicados sobre a matéria encontram-se esparsos em publicações periódicas ou em edições de pequena tiragem, quase sempre fora do comércio livreiro. Algumas contribuições sobre as técnicas editoriais, bem como algumas análises de natureza sociocultural sobre o processo de editoração, estão inseridas em volumes outros, cujos títulos, bastante genéricos, não indicam sequer a presença daqueles assuntos específicos e tampouco suscitam a curiosidade do estudioso da comunicação editorial.
Os cursos de editoração acabavam de implantar-se em algumas poucas universidades, quando sua matéria, os limites possíveis de seu horizonte, foram debatidos durante o I Congresso Brasileiro de Ensino e Pesquisa (Belo Horizonte, 1973), embora não se alcançassem resultados conclusivos. Em 1974 o segundo congresso, em Fortaleza, voltaria ao tema, mas já aqui Blásio H. Hickmann, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, atacava o problema de frente ao reconhecer que embora o termo ‘editoração’ seja polissêmico, como chamar a produção de discos e cassetes? De editoração? Por que não? Do ponto de vista semântico, nada em contrário, porquanto é o uso que gera a língua e leva à dicionarização. Não se poderia deixar, entretanto, de especificar: editoração de discos, editoração de microfilmes, editoração de cassetes etc. Aliás, existem cassetes de som e cassetes de imagem. Os primeiros poderiam ligar-se à editoração de discos; os segundos às técnicas de editoração de filmes ou de cinema.10
7
R. A. Amaral Vieira, ‘Redução dos custos gráfico-editoriais’, em Aluísio Magalhães et al., Editoração hoje (2ª ed., Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas, 1981), p. 135.
8
Revista de cultura Vozes, 65 (1971), pp. 213-218.
9
Em Cadernos de jornalismo e comunicação (Edições Jornal do Brasil), 38 (1972), pp. 56-61.
10
‘Tentativa de delimitar o objeto da disciplina editoração’, em Revista de comunicação social do Centro de Humanidades, Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará, 4 (1974), p. 9.
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Quanto ao ensino, portanto, impõem-se certos limites ao treinamento editorial, que em nenhuma hipótese pode formar profissionais polivalentes. Requer-se, ao contrário, a especialização consoante as técnicas próprias a cada setor: rádio, jornalismo impresso, televisão, cinema... O editor polivalente seria, na verdade, um especialista em generalidades, entendendo um pouco de tudo, exibindo competência, na prática, para ser editor de nada. No âmbito do livro, as empresas publicadoras estruturadas comercialmente para a produção racional não dispensam um departamento de editoração encarregado de: a) escolher e normalizar os originais; b) elaborar os projetos gráficos; c) acompanhar o restante de todo o processo industrial que transformará esses originais em texto impresso. A promoção e a comercialização (distribuição) do produto final, o livro, compete a um departamento especializado em pesquisa de mercado e circulação. Um calejado e combativo bibliógrafo, apesar de algo cético ao reivindicar para o livro brasileiro tipografias bem-aparelhadas, editores de texto, diagramadores, artefinalistas, bons revisores e a prática corrente da indexação, admite que “certos livros publicados ultimamente demonstram um progresso no sentido de apresentar melhor a nossa produção intelectual”.11 Hoje é assim, e não por acaso, visto que o público leitor aumenta, mas também escolhe cada vez mais seletivamente aquilo que compra. O próprio mercado, destarte, impôs a existência — sem mesmo suspeitar dessa existência — do supervisor editorial, encarregado, em última análise, da qualidade textual e gráfica desse produto chamado livro. No final das contas, chega-se à conclusão de que foram vitais quer o esforço dos tipógrafos da Impressão Régia, quer, sobretudo, o pioneirismo de editores como Monteiro Lobato e o resgate da editoração através do trabalho dos filólogos. Hoje qualquer casa publicadora de médio porte dispõe de um departamento editorial que controla todo o fluxo dos originais, inclusive solicitando a colaboração de especialistas nessa ou naquela matéria para esse ou aquele original cujo perfeito domínio escapa ao editor de texto. Pretende-se, em resposta às solicitações de um mercado cada vez mais exigente, produzir livros bem-acabados no binômio editoração/afeiçoamento gráfico. Com algum atraso no Brasil, essa é a atual realidade do especialista dedicado à editoração de livros, num país onde a prioridade, infelizmente, ainda não é (e está longe de ser) a fome de livros, mas a de comida e habitação.
11
Cf. Rubens Borba de Morais, O bibliófilo aprendiz, op. cit. pp. 201-202.
PA R T E I
PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS
Aparentemente simples, o trabalho prévio com o original é, todavia, quase sempre bastante complexo; da multiplicidade com que se apresentam, por exemplo, critérios ortográficos díspares, sistemas de notas, de bibliografia, de índices, de citações etc., o editor deverá imprimir ao original uma normalização harmônica desses e entre esses sistemas, compatível com a natureza mesma do texto. Ao editor impõem-se, naturalmente, certas restrições, em particular quando se trata de texto literário, onde o autor é soberano para realizar fraturas na linguagem e na ortodoxia das regras gramaticais. Mesmo aqui, não obstante, distinguem-se o ‘estilo’ literário e o ‘estilo’ gráfico, visual, da apresentação e representação material dos originais — em última análise, do livro impresso. A fronteira entre ambos os ‘estilos’ nem sempre é muito nítida, mas ela existe e ao editor cumpre divisá-la com clareza em benefício da legibilidade e até da inteligibilidade do texto, neste último caso sobretudo na edição crítica (a mais difícil), quando seu trabalho se confunde quase por inteiro com o do filólogo. O objetivo principal desta primeira parte é auxiliar os editores nas práticas de sua profissão, reunindo informações relativas às normas utilizadas no processo de editoração. A adoção criteriosa destas normas não apenas confere maior credibilidade ao livro, como também proporciona economia de tempo e de material. Mas o esforço, na cultura ocidental, pela preservação e transmissão de textos de forma sistemática e padronizada é milenar. No Brasil costuma-se tomar como base para a padronização de textos as normas estabelecidas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), que já existe há mais de seis décadas.
CAPÍTULO 1
Editoração, um conceito na história
O conceito básico de editor, ao que parece, só conseguiu manter-se presentemente em inglês. Nesta língua, editor possui o sentido de pessoa encarregada de organizar, i.e., selecionar, normalizar, revisar e supervisar, para publicação, os originais de uma obra e, às vezes, prefaciar e anotar os textos de um ou mais autores. Ao que, em inglês, significa publisher (proprietário ou responsável de uma empresa organizada para a publicação de livros), corresponde éditeur em francês, editor em espanhol, editore em italiano, editor em português, tal como Antônio Houaiss definiu, no sentido corrente de “pessoa sob cuja responsabilidade, geralmente comercial, corre o lançamento, distribuição e venda em grosso do livro, ou instituição, oficial ou não, que, com objetivos comerciais ou sem eles, arca com a responsabilidade do lançamento, distribuição e, 1 eventualmente, venda do livro”. Ora, o conteúdo semântico original, do latim editor, editoris, indica precisamente ‘aquele que gera, que produz, o que causa’, o ‘autor’, em consonância com o verbo edere, ‘parir, publicar (uma obra), produzir, expor’. O termo é correlato ao adjetivo grego ékdotos, ‘entregue, dado, revelado’, conexo com o substantivo ékdosis, em sentido especializado ‘publicação, tratado’ ou ‘edição da obra de um autor’, e com o verbo ekdído¯mi, também no sentido particular de ‘publicar’ (livros). Daí, modernamente, se introduziu o termo ecdótica, i.e., crítica textual ou arte de editar textos
1
Elementos de bibliologia (2 vols., Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1967), vol. 1, p. 3.
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criticamente, que pressupõe a expressão grega ekditik¯e tékhne, ‘arte de produzir, de publicar’. O significado original, conservado no latim, justifica, destarte, a compreensão da palavra como se emprega em inglês, qual seja, a de pessoa encarregada de produzir, dentro de determinados padrões literários e gráfico-estéticos, uma obra destinada a divulgação comercial. Nesse sentido, pelo menos, acha-se consignado o termo ‘editor’ 2 numa obra publicada pela Unesco: “pessoa responsável pelo conteúdo ou pela preparação da publicação de um documento para o qual pode ou não ter contribuído”. Hoje, segundo a definição mais corrente, editoração é o conjunto de teorias, técnicas e aptidões artísticas e industriais destinadas ao planejamento, feitura e distribuição de um produto editorial. Em outras palavras, editoração é o gerenciamento da produção de uma publicação — livros, revistas, jornais, boletins, álbuns, cadernos, almanaques etc. Vale observar aqui que, com o aparecimento da editoração eletrônica e suas ferramentas, os processos da editoração tradicional continuam existindo, mas de uma maneira mais rápida e eficiente. Este assunto será desenvolvido na segunda parte deste livro.
A . OS LIVROS DOS BIBLIOTECÁRIOS
O editor, naquela acepção, entendido como preparador de originais, caracteriza-se historicamente, no Ocidente, desde o século III a.C., como responsável pela edição de um texto a ser divulgado (transcrito) pelos copistas. Até então os livros figuravam na verdade como aides-mémoires dos autores, visto que sua divulgação — e transmissão — era basicamente oral. Não surpreende, nesse contexto, o prestígio desfrutado sobretudo por atores, rapsodos, oradores e leitores-recitadores. A função do livro, no sentido moderno, só teria lugar a partir das solicitações criadas pelos sofistas, da multiplicação das obras de prosa e da popularização da tragédia, o que estimulava a produção de textos. Os livros e seu comércio, por conseguinte, só começaram a desenvolver-se no século IV a.C., mesmo se considerarmos a atividade isolada de Antímaco de Colofão (c. 445 a.C.–?), que antecipou em cerca de cem anos a dos alexandrinos ao organizar uma edição de Homero. De fato, é Isócrates (436–338 a.C.) quem figura como o primeiro autor conhecido a escrever mais para ser lido do que recitado. Com o aumento do mercado leitor surgiram profissões estritamente associadas ao livro: o copista (bibliográphos), o especialista em pintar letras capitais (kalligráphos) e o livreiro (bibliopóles).
2
Gernot Wersig & Ulrich Neveling (comps.), Terminologie de la documentation (Paris, Unesco, 1976), s.v. ‘Editor’.
Editoração, um conceito na história
A ampla divulgação de textos chegou a propiciar a organização de algumas bibliotecas particulares. Entretanto, nada disso evitava uma editoração extremamente defeituosa, o que se dava pela ausência de textos normalizados, levando os copistas à adoção de critérios arbitrários — e danosos — no concernente a pontuação, transcrição, divisão de palavras etc. Em suma, um texto original jamais combinava com suas cópias precisamente pela multiplicação de variantes introduzidas de maneira involuntária, por falta de normas que guiassem o trabalho dos copistas de modo a uniformizar os textos segundo um padrão considerado ideal ou correto.3 Os problemas criados nesse sentido chegaram a tal ponto que Licurgo (c. 390–c. 325 a.C.) ordenou o depósito nos arquivos do Estado de ‘cópias públicas’, i.e., cópias definitivas, dos textos de Ésquilo, Sófocles e Eurípides, os três maiores trágicos da Grécia. Menos de cinquenta anos depois, Ptolomeu I Soter fundou, por volta de 290 a.C., uma biblioteca em Alexandria, que durante mais de dois séculos, até sofrer o incêndio de 47 a.C., exerceu profunda influência nos caminhos da editoração. Desde seu início, com efeito, cada diretor (prostates) dessa famosa instituição assumiu o encargo de recuperar e normalizar, em edições críticas, o maior número possível de textos, tarefa a que se entregaram pessoalmente muitos deles, sobretudo Zenódoto de Éfeso (diretor em cerca de 284 a.C.), Apolônio Ródio (diretor c. 260 a.C.), Eratóstenes de Cirene (diretor c. 247 a.C.), Aristófanes de Bizâncio (diretor c. 194 a.C.), Apolônio, dito Eidográphos, ‘organizador de textos’ (diretor c. 153 a.C.), Aristarco de Samotrácia (diretor c. 145 a.C.) e tantos outros que apenas se achavam ligados de algum modo à biblioteca, sobressaindo, dentre esses, o nome de Calímaco de Cirene (c. 350–c. 240 a.C.), que organizou um catalogue raisonné em 120 livros4 e travou célebre polêmica com Apolônio Ródio sobre a liberdade com que este reelaborava (ou interpretava) os textos; em outras palavras, era, na verdade, uma polêmica sobre os limites de atuação de quantos levassem a cabo editorar textos.5 Esses primeiros editores, de fato, entregaram-se principalmente à tarefa de estabelecer textos definitivos, vale dizer, de fixar um texto único e completo a partir de inúmeras cópias que corriam, de vez que os originais escritos pelo punho do autor haviam-se perdido para sempre. Os alexandrinos, de qualquer modo, só davam por cumprida sua tarefa depois de a obra achar-se catalogada, revisada, comentada, pro-
3
O problema específico do erro será desenvolvido em outros lugares deste livro: ver capítulos 2, H, i; 4, A, ii; e 6, A.
4
Ver capítulo 2, p. 138. Por sua importância, Albin Lesky, na grande Historia de la literatura griega (trad. espanhola de José Maria Díaz Regañón & Beatriz Romero da 2ª ed. alemã, Madri: Gredos, 1968), dedicoulhe seção especial às p. 730-749; ed. portuguesa: História da literatura grega (trad. de Manuel Losa, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995). [Ver também: Canfora, Luciano, A biblioteca desaparecida: histórias da biblioteca de Alexandria (trad. de Federico Carotti, São Paulo, Companhia das Letras, 1989).]
5
Sobre a vida e a produção de cada uma deles, as informações mais seguras e concisas se acham nos verbetes respectivos em N. G. L. Hammond & H. H. Scullard (eds.), The Oxford classical dictionary. 2a ed. Oxford, Clarendon, 1970; 3a ed., 1996, edited by S. Hornblower and A. Spawforth.
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A construção do livro
vida de sumário, índice e glossário, tabelas explicativas etc. E, sobretudo, estabeleceram minuciosa normalização para suas edições, de modo a uniformizar o texto sob padrões bastante rígidos, como Aristarco de Samotrácia, a quem se atribui não só o estabelecimento mais sofisticado (para a época) de sinais críticos destinados a orientar o leitor sobre as condições materiais do original, como a divisão da Ilíada e da Odisseia em 24 cantos cada, segundo as letras do alfabeto, e o primeiro emprego sistemático dos sinais de acentuação. A tradição editorial alexandrina prosseguiu em Roma, mas em bases muito diferentes. Valério Probo (?–88 d.C.), em Beirute, ainda preparava edições críticas de Terêncio, Lucrécio, Virgílio e Horácio de acordo com a normalização do alexandrino Aristarco de Samotrácia, mas já dividindo seu trabalho em três etapas: emendare, distinguire e adnotare. Entretanto, não muito depois, Suetônio Tranquilo (c. 69–c. 140) escrevia um tratado criticando os sinais utilizados pelos alexandrinos para orientar o leitor. Ademais, muitos eruditos se dedicaram ao estudo da gramática e da etimologia como veículo de compreensão intrínseca dos textos gregos e latinos antigos. Mas a produção de livros, especialmente a partir do século II a.C., já aumentara a ponto de registrar-se um comércio de vulto naquele setor, abrangendo pelo menos todo o mundo mediterrâneo e a França. “Eu ignorava”, diz Lívio, “a existência de livreiros em Lyon e fiquei contente de saber serem os meus trabalhos vendidos aí... Começo a estimar uma obra sobre a qual têm a mesma opinião homens de tão diferentes regiões.” Assim, afora o trabalho restrito de alguns filólogos que exercitavam a crítica textual, a regra era a produção em série ou ‘produção em massa’ para atender a uma demanda impressionante para a época. A figura do librarius (copista, depois livreiro e encadernador a um só tempo) tornou-se importante nesse fluxo comercial, e alguns ficaram famosos, sobretudo Tito Pompônio Ático (109–32 a.C.), que produzia e divulgava ‘tiragens’ de quinhentas a mil cópias, tanto em Roma quanto nas províncias, além dos irmãos Sosii (século I a.C.) e de Trifão (século I d.C.), também renomados comerciantes de manuscritos. Apesar da quantidade de exemplares, essas pessoas (ou especialistas contratados, neste caso aproximadamente como os atuais editores de texto) tinham de conferir o trabalho do escriba e do revisor em cada cópia, de modo a colocar no mercado exemplares tidos como satisfatórios. Os livros eram transcritos por copistas profissionais, que reproduziam em grupo, simultaneamente, o texto ditado por uma só pessoa; tal sistema, como é óbvio, levava à excessiva multiplicação de variantes, do que já se queixava Cícero a seu irmão: “Quanto às autênticas obras latinas, já não sei a quem devo recorrer, tão incorretamente são escritas e vendidas”. A bibliofilia, com seus naturais aficionados-colecionadores de obras raras, surgiu nessa época, e com ela a falsificação: há testemunhos suficientes para culpar muitos librarii de porem os rolos de papiro em montes de trigo para
Editoração, um conceito na história
que amarelassem; assim, parecendo mais antigos, eram vendidos por preços muito altos. Ainda à Antiguidade se deve uma invenção capital: o códice (codex), que suplantou rapidamente, a partir do século II d.C., a velha forma de apresentação do texto em rolo (volumen). Com isso, expandiu-se também um novo veículo de transmissão dos escritos, o pergaminho, em que as páginas de couro, mais resistentes que as de papiro (usado ainda até o final do século III), eram costuradas de modo a formar cadernos, em geral de três ou quatro folhas, geralmente numeradas no reto, o que constituiu outra grande novidade. A adoção do códice, com efeito, generalizou-se em relativamente pouco tempo: no século II, por exemplo, acha-se representada na literatura pagã do Egito com apenas 2,31%, no século III com 16,8%, mas já no século IV tal proporção ascende a nada menos de 73,95%, sem contar a Bíblia, cujos fragmentos, mesmo os mais antigos, aparecem quase sempre sob esse feitio. Já se afirmou, aliás, que o códice significou uma mudança radical na história do livro, talvez mais importante que a de Gutenberg, pois o atingiu em sua forma.6
B . OS LIVROS DOS MONGES
Um novo surto de editoração mais cuidadosa só foi possível após o declínio de Roma, do século V em diante, quando o processo de crítica textual se intensificou até o século XV. Os bizantinos tiveram papel relevante na preservação e divulgação de antigos escritores, destacando-se nomes como Fócio, no século IX, Tzetzes e Eustátio, no século XII. Sob a dinastia dos Paleólogos (1261–1453) a produção intelectual seria revigorada, do que resultou a edição de muitos autores clássicos, manuais, léxicos e comentários. Diz-se que sem essa vertente tradicional de estudos teria sido impossível o Renascimento. Vale mencionar também o esforço isolado de Orígenes Adamâncio (c. 185–c. 255) e de Eusébio Jerônimo (348?-420), assim como o trabalho coletivo dos chamados ‘massoretas’, entre aproximadamente 750 e 1000. A concepção editorial de Orígenes, de fato, seria singular, pois organizou o texto de uma Bíblia sêxtupla (Hexapla), distribuído em seis colunas: 1) o texto hebraico corrente na época; 2) o texto hebraico transcrito em caracteres gregos; 3) a tradução grega de Áquila; 4) a tradução grega de Símaco; 5) a tradução grega — por ele revista — da Septuaginta; e 6) a tradução grega da Septuaginta por Teodocião. Inspirado nos alexandrinos, utilizou,
6
É a opinião explícita de Albert Labarre, Histoire du livre. 2 a ed. rev., Paris, Presses Universitaires de France, 1974, p. 15; ed. portuguesa: História do livro, Lisboa, Livros Horizonte, 2006.
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na quinta coluna, símbolos especiais (asterisco, óbelo e metóbelo) para assinalar aproximações ou diferenças entre o texto hebraico e o da Septuaginta.7 A questão das variações gregas do texto bíblico parecia resolvida com Orígenes, mas restava estabelecer uma edição única e definitiva para as diversas traduções latinas que corriam no Ocidente. A iniciativa deveu-se ao papa Dâmaso, que, provavelmente no ano de 382, encarregou Jerônimo de proceder à revisão da Bíblia latina. Tomando todas as versões (inclusive a Hexapla) e manuscritos possíveis, Jerônimo terminou por renovar quase por completo o texto primitivo. A princípio houve resistência, e até hostilidade, contra sua edição, mas ela terminou se impondo, de fato, em toda a Europa ocidental, a ponto de o concílio de Trento, em decreto de 8 de abril de 1546, declarar que era a “mais amplamente divulgada” (de onde o nome Vulgata), oficializando sua adoção litúrgica. Jerônimo editorou também 64 homilias de Orígenes e a Crônica de Eusébio, esta organizada em três partes: tradução, notícias de outros autores e comentários dele próprio. Foi, por certo, o maior editor de texto de sua época.8 Já os massoretas (eruditos judeus), apesar de divididos em duas escolas, a oriental (babilônica) e a ocidental (palestina), realizaram, em conjunto, o mais notável esforço filológico — e editorial — de uma verdadeira padronização em língua hebraica do Antigo Testamento. Um grupo da escola ocidental, por exemplo, os naqdanim (‘pontuadores’), especializou-se na aplicação habilíssima de sinais diacríticos vinculados às consoantes para introduzir vogais inexistentes no original sem alterar a letra do texto sagrado. Utilizaram ainda, em respeito ao texto, a separação estrita entre qere¯, ‘para ler’, e kethib, ‘escrito’: tal como o nosso próprio uso, o primeiro caso significa a leitura corrente do texto, e o último notas marginais. Sua crítica textual, certamente por motivos religiosos, chegou a extremos que hoje parecem ociosos, como assinalar o número de versos, palavras e letras de cada livro, mas essas ‘extravagâncias’ revelavam um cuidado de editoração inusitado e que, a bem da verdade, se busca recuperar, embora sem tamanhos exageros, nos dias atuais.9 Entretanto, apesar de toda essa volumosa atividade de editoração (de Orígenes aos massoretas, de um lado, e dos bizantinos, de outro), aceita-se pacificamente que, no Ocidente, o maior impulso de estudos e de recuperação de textos se deveu, até o século
7
Ver H. M. Orlinsky, ‘The Septuaginta: its use in textual criticism’, em Biblical archaeologist, 9 (1946), pp. 21-34; Frederic Kenyon, Our Bible and the ancient manuscripts (3ª reimpr. da 4ª ed. rev., Londres, Eyre & Spottiswoode, 1951), pp. 57-60; e P. Kahle, ‘The Greek Bible used by Origines’, em Journal of biblical literature, 79 (1960), pp. 11-118.
8
Além de E. F. Sutcliffe, ‘The name of Vulgate’, em Biblica, 29 (1948), pp. 345-352, e A. Allgeier, ‘Haec vetus et vulgata editio’, em Biblica, 29 (1948), pp. 353-390, 1948, ver o fundamental trabalho de Evaristo Arns, La technique du livre d’après Saint Jérôme (Paris, E. de Boccard, 1953); ed. brasileira: A técnica do livro segundo são Jerônimo (São Paulo, Cosac Naify, 2007).
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Os principais problemas sobre o texto bíblico estabelecido pelos massoretas encontram-se resumidamente expostos por J. de Fraine, s.v. ‘Bíblia, manuscritos’ (colunas 190-191) e ‘Bíblia, texto’ (colunas 194-195), em A. van den Born, Dicionário enciclopédico da Bíblia (trad. da 3ª ed. holandesa por Frederico Stein, Petrópolis, Vozes, 1971).
Editoração, um conceito na história
XV, à iniciativa dos monges, que estenderam sua atividade por toda a Europa. Durante a Idade Média, de fato, sobretudo nos conventos e abadias, buscou-se com afinco não só a conservação dos textos clássicos através de cópias, como, ainda, pretendeu-se reagrupar em grandes enciclopédias e compêndios todo o conhecimento adquirido, de que constitui um bom exemplo as Etymologiae de Isidoro de Sevilha (560-636). Esse movimento começara na realidade com a figura excepcional de Flávio Magno Aurélio Cassiodoro (c.490–c.580), calabrês que chegou a ocupar, no reinado ostrogodo, os cargos de prefeito do pretório sob Teodorico e, em 533, sob Alarico, cônsul em 514 e chefe do serviço civil (magister officiorum) entre 523 e 527. Por volta de 537 retirou-se da vida pública e fundou na Calábria (golfo de Tarento) uma espécie de ‘mosteiro’, o Vivário, onde estabeleceu um scriptorium para estimular a cópia de autores pagãos e cristãos, ditando ele próprio as normas que se deviam seguir nessa tarefa. Para tanto, serviu-se decerto de sua experiência de homem de Estado, numa época em que selecionara e revisara uma coleção de 468 cartas e atas da chancelaria real (as Variae epistulae), que muito influíram no estilo das chancelarias medievais. Já no Vivário, elaborou um guia para os trabalhos da comunidade que formara, as célebres Institutiones divinarum et saecularium litterarum (543–555; Instituição das letras divinas e humanas). Vale sempre lembrar que Cassiodoro goza da reputação de ser o homem 10 que ‘inaugura’ a Idade Média. A iniciativa do Vivário para recuperar e copiar textos, contudo, só aparece como verdadeiramente consequente porque se conjugou com o trabalho dos monges beneditinos. Foi, na realidade, com Bento de Núrsia (480–549), patriarca dos monges do Ocidente e fundador do mosteiro de Monte Cassino, que se inaugurou de fato o movimento sistemático da editoração medieval. Depois de Monte Cassino (592), alguns mosteiros beneditinos logo se tornariam famosos por seus scriptoria na Itália (Bobbio, de 614), na Alemanha (Reichenau, de 724; Fulda, de 744; Corvey, de 822) e na Inglaterra (Canterbury, de 597; Wearmouth, de 674; Jarrow, de 681). Os monges desenvolveram efetivamente intenso trabalho de compilação de manuscritos, transcrevendo, ilustrando, reunindo os melhores exemplares destinados à mais ampla divulgação possível, sobretudo dentro da comunidade religiosa. A quantidade cada vez maior de cópias levou, com o tempo, a que se fixassem determinados padrões para os manuscritos, de modo a manter-se a uniformidade em cada cópia. Atuavam, nesse mister, diversos monges. O notarius, na época de Cassiodoro, depois armarius ou bibliothecarius, era uma espécie de supervisor editorial que dirigia os trabalhos do scriptorium. A predominância numérica era dos copistas; os trabalhos mais simples, como pautar levemente as folhas, dobrá-las em cadernos e copiar textos corren-
10
Sobre sua atividade e influência, ver Gustave Bardy, ‘Cassiodore et la fin du monde ancien’, em L’année théologique, 6 (1945), pp. 383-425; L. Teutsch, ‘Cassiodorus Senator, Gründer der Klosterbibliothek von Vivarium’, em Libri, 9 (1959), pp. 215-239; e F. J. Witty, Writing and the book in Cassiodorus (Ann Arbor, University Microfilms, 1967).
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tes, se confiavam sempre aos noviços ou aos monges menos hábeis (librarii, scriptorii), enquanto as obras tidas como importantes ou de difícil realização se destinavam, conforme o grau de complexidade, ao bibliographius, ao calligraphius ou ao antiquarius. Alguns se tornaram famosos, como Reginbert de Reichenau (?–847), Froumund de Tergensee (?–c.1010) e Otloh de Saint-Emmeran (?–1072). Pronto o texto, era este encaminhado aos especialistas em ilustração, chamados de iluminadores (illuminatores) e miniaturistas (miniatores) ou rubricadores (rubricatores), e por último chegava ao encadernador (illigatorlibrorum). Não se pode dizer que o rendimento individual fosse grande: sabe-se, por exemplo, que Otloh de Saint-Emmeran transcreveu durante toda sua vida 23 missais, duas obras de Santo Agostinho, um evangelho, sete regulamentos, um saltério e dois lecionários. Houve momentos, no entanto, em que no scriptorium de certos conventos se agrupavam até quinhentos copistas, do que resultavam ‘tiragens’ equivalentes às primeiras grandes edições de incunábulos, quando a tipografia, por assim dizer, engatinhava. De qualquer forma, a produção dos mosteiros era suficiente para suprir suas próprias bibliotecas e o mercado que abastecia grande número de aristocratas, eruditos e colecionadores. No século XII, o cônego Gaufredus de Sainte-Barbe resumia o papel da biblioteca e do scriptorium na célebre frase: “claustrum sine armaria, quasi castrum sine armamentario” [“mosteiro sem biblioteca é como quartel sem arsenal”].11 As instituições docentes chamadas, a partir de finais do século XII, de studium generale ou, mais tarde, no século XIV, universitas, contribuíram enormemente para a mudança fundamental do tamanho dos livros de grande formato, de difícil manuseio, produzidos pelas bibliotecas abaciais. As solicitações de um novo mercado leitor estimularam a divulgação mais generalizada do conhecimento, e não tardariam a aparecer as oficinas leigas dirigidas por librarii, afora os copistas ambulantes que ofereciam seus serviços a particulares. As universidades chegaram a promover a elaboração em série de livros normalizados, e, por isso, autorizados para leitura como “bons e legíveis e verdadeiros”, com vistas ao melhor aproveitamento de seus alunos e mestres. Surgiram, nesse contexto, os stationarii, profissionais cuja principal função era fornecer aos estudantes códices eruditos novos (de seus próprios copistas) e usados, além de venderem material de escrita; seus estabelecimentos seriam algo como as nossas ‘livrarias-papelarias’. Os stationarii sujeitavam-se ao controle rígido das universidades, que os autorizavam a negociar os textos aprovados, no que se incluíam, além do conteúdo dos manuscritos, seu tamanho e o preço de venda (portanto, sua margem de lucro). Em atividade paralela, havia os vendedores ambulantes, encarregados de ‘colocar’ nos mais distantes mercados os textos já produzidos em scriptoria de particulares.
11
Apud Hans Foerster, Abriss der lateinischen Paläographie (2ª ed., Stuttgart, A. Hiersemann, 1963), p. 89.
Editoração, um conceito na história
A atividade dos editores, no pertinente à normalização dos escritos que divulgavam, continuava fazendo-se exclusivamente sob os princípios alexandrinos, i.e., sob a crítica textual mais rigorosa, incluindo a utilização corrente de signos especiais para assinalar alterações do original, como o óbelo, o asterisco, o diplo ou ângulo, o antissigma e outros. Rábano Mauro (c.785–856) dizia, não por acaso, que “a gramática é o conhecimento que interpreta os poetas e os historiadores e também o método para corrigir os escritos e os discursos”. Tampouco se trata de uma coincidência que um dos compêndios mais lidos durante toda a Idade Média fosse a Ars grammatica de Hélio Donato (ativo no século IV), constituindo-se na chave da cultura escrita por mais de mil anos. O que se verifica, em verdade, é um esforço milenar, na cultura ocidental, pela preservação e transmissão de textos, mas de forma sistemática e padronizada, a fim de que seus exemplares aparecessem tanto quanto possível iguais entre si. Assinalou com propriedade Antônio Houaiss que o ideal da uniformidade, “que vai culminar nos sistemas de padronização, preside a esse esforço de editoração, a esse esforço de multiplicação gráfica, desde o século XIII até hoje, sem que possamos fazer uma distinção essencial entre o período manuscrito e o período tipográfico”.12
C . OS LIVROS DOS IMPRESSORES
De finais do século XIII ao primeiro quartel do século XV foram introduzidas na Europa duas novidades de origem chinesa que revolucionariam a indústria do livro: o papel e a xilogravura, que terminaram por associar-se. Sabe-se, com efeito, que em 1276 se estabeleceu uma fábrica de papel em Fabriano (Itália), levando esta cidade a tornar-se durante certo tempo o principal centro fornecedor para a Europa. Contudo, embora esse material se destinasse a superar o alto custo do pergaminho, sua expansão concorreu com este durante muito tempo, até mesmo depois do aparecimento da imprensa. Quanto à xilogravura, seu emprego na Europa data de inícios do século XV, e logo a técnica seria utilizada para ilustrar cartas de baralho e manuscritos, bem como imprimir, geralmente, textos de pequenas obras devocionais de aceitação popular, caracterizando-se, destarte, como xilotipia. Daí para a introdução do procedimento tipográfico foi um passo, de vez que este usa também o recurso da impressão em relevo como na xilogravura. Mas enquanto na xilotipia os caracteres acham-se ‘presos’ ao bloco de madeira, na tipografia as letras são soltas, em consequência móveis, podendo ser trocadas ou reutilizadas à vontade. Havia a intenção deliberada, por parte dos
12
Antônio Houaiss, ‘Preparação de originais’, em Aluísio Magalhães et al., Editoração hoje (2ª ed., Rio de Janeiro, Fundação Getulio Vargas, 1981), pp. 68-69.
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tipógrafos, de concorrer com a sólida indústria de manuscritos, a essa altura já utilizando bastante o papel. Tal concorrência, no âmbito da apresentação gráfica do texto, foi no começo muito difícil; predominava então a escrita gótica, de traçado pesado mas de fatura tão correta e regular que se igualava ao trabalho tipográfico. É óbvio que a difusão da tipografia foi vital para incrementar o processo de multiplicação de textos, e justamente sua velocidade de reprodução terminou por destruir a tradicional indústria de manuscritos. Observe-se, no entanto, que o objetivo primeiro da mecanização era evitar a incidência de erros tal como se verificava nas reproduções manuscritas, eliminando, assim, a presença fatal de variantes nas cópias. Esse resultado, porém, jamais seria alcançado. E quanto mais se recua na história da tipografia, iniciada na década de 1450, mais se verifica que a ambicionada uniformidade de reprodução do texto, ainda que parcialmente livre de erros de transcrição, se achava submetida a frequentes e inquietantes acidentes de impressão, de modo que uma página, linha, palavra, letra, podia sair diferente das outras em exemplares distintos. Importa assinalar, todavia, que em termos de padronização da forma do livro o progresso foi muito rápido e decisivo: em menos de trinta anos o novo produto tomou basicamente a aparência com que o conhecemos até hoje. Aceita-se como ponto pacífico que a partir de Johann Gutenberg (c.1400–1468?), que superou a arte da xilotipia com a invenção dos tipos móveis, surgiu a profissão do impressor. Ora, os pioneiros do livro impresso foram, na realidade, mais do que simples ‘tipógrafos’ ou ‘impressores’, na medida em que tiveram de buscar elementos destinados a facilitar a leitura, substituindo a riqueza intrínseca dos manuscritos por uma qualidade diferente, a da paginação. Nesse sentido, além de tipógrafos, eram também editores, responsáveis pela normalização do texto e pelo conjunto da obra que imprimiam. Com isso, criaram o livro moderno, a partir de certas soluções gráfico-estéticas cujos marcos principais evoluíram como segue. Em 1457 Johann Fust (1410–1466) e Peter Schöffer (1425–1502) imprimiram o Psalmorum codex, conhecido como Saltério de Mogúncia, primeiro livro em que figuram data, colofão e letras capitulares a cores. Em 1460 a oficina de Gutenberg produziu um vocabulário de língua latina, o Catholicon, em que aparece um prefácio. Em 1469 Johann von Speyer (?–1470), ao editar as Epistolae ad familiares de Cícero, utilizou uma fonte de tipos cujo corpo originou o termo cícero para designar o ponto como medida tipográfica. Em 1470 Wendelin von Speyer (?–1477) publicou em Veneza uma obra de Tácito com reclamos, i.e., sílaba ou palavra colocada ao pé da última página do caderno e repetida no início da primeira palavra do caderno seguinte com vistas a facilitar o alçamento; nesse ano também surgiram um volume das Homilias de são Cristóvão, impresso em Roma, no qual as folhas se acham numeradas, e um tratado de Eusébio de Cesareia, impresso em Veneza por Nicolas Jenson (1420–1481), em que se deu a fixação definitiva dos tipos romanos. Em 1472 Johann Koelhoff
Editoração, um conceito na história
(?–1493) introduziu o uso de assinaturas, i.e., letras, mais tarde números, que indicam a sequência dos cadernos. Em 1476, finalmente, Erhard Ratdolt (1442–1528) estampou em Veneza a primeira folha de rosto completa, com nome do autor, título da obra, nome do impressor, cidade e data de publicação. A preparação do texto nem sempre era feita pessoalmente pelo impressor, ainda que alguns deles realizassem também essa tarefa, aparecendo, assim, como verdadeiros e completos editores. De qualquer modo, muitos impressores levaram a cabo a publicação de velhos textos outrora copiados pelos monges, mas já agora se tornava absolutamente necessário corrigir o trabalho defeituoso dos escribas no concernente às alterações que se multiplicavam em intrincada rede de variantes. O labor específico de reconstituir as obras através de suas cópias até o estabelecimento final de um texto o mais próximo possível do original coube, mais uma vez, aos filólogos, que retomavam no Renascimento a tradição iniciada com os bibliotecários de Alexandria. Dessa vez, no entanto, eles não se encontravam vinculados ao poder civil de soberanos ou à autoridade eclesiástica, mas a casas comerciais impressoras, como assalariados. Pode-se afirmar, por conseguinte, que nessa época se deu a diferenciação do trabalho entre impressor e editor de texto, fugindo-se da tradição manuscrita, em que uma só pessoa se encarregava de normalizar e transcrever o original. O tipógrafo suíço Hans Amerbach (1443–1513), por exemplo, contratou como ‘diretor literário’, entre 1463 e 1467, seu ex-professor na Universidade de Paris, Jean Heynlin (?–1496), além de utilizar correntemente o trabalho, na qualidade de editores ou de revisores, de vários mestres da Universidade de Basileia. Os eruditos renascentistas inauguraram, destarte, a atividade exclusiva de editor (nesse caso preparador de originais), em que se destacaram nomes famosos como Erasmo de Roterdã (1466–1536), que preparou, para a conceituada tipografia de Hans Froben, uma edição bilíngue, em grego e latim, do Novo Testamento (1516), base, aliás, para a tradução alemã de Lutero; o cretense Marcus Musurus (c.1470–1517), principal editor do célebre estabelecimento de Aldo Manuzio em Veneza; o belga Josse Bade (1462–1535), preparador de originais na tipografia de Johann Trechsel, em Lyon, e depois ele próprio também reputado impressor; o doutor espanhol Miguel Servet (1509–1553), que veio a trabalhar para Trechsel, editorando, entre outros livros, a grande Geografia de Ptolomeu (1535); o francês Etienne Dolet (1509–1546), que antes de se firmar como impressor — o que se deu a partir de 1538 —, fora editor de texto, em Lyon, da empresa do alemão Sebastian Greyff, e assim por diante. As polêmicas que com certa frequência esses filólogos travaram entre si, acerca de critérios a adotar para a recuperação e a normalização das obras que pretendiam restituir em sua mais estrita fidedignidade, levaram ao estabelecimento de certos princípios de padronização editorial que, três séculos mais tarde, redundariam na fixação sistematizada de uma técnica seguida até os dias atuais. Pela primeira vez, na reali-
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dade, eram superados os cânones dos alexandrinos, projetando-se em ampla escala a prática corrente da editoração. Marc Antoine Muret (1526–1585), por exemplo, distinguia a eruditio (conhecimento e explicação dos textos) da emendatio (técnica filológica para reconstruir textos). Tommaso Campanella (1568–1639) satirizava os gramáticos que perdiam seu tempo in grammaticando et rhetoricando; para ele, o importante, no discurso, era a clareza, em detrimento de tudo quanto fosse supérfluo, i.e., suprimível, chegando a advogar o uso corajoso de neologismos em traduções de autores latinos. Posição análoga, aliás, já sustentara Erasmo, para quem o editor de texto, vale dizer, aquele que se propõe a lidar com obras alheias (em sua época, no âmbito da atividade filológica, ainda ligada aos padrões da Antiguidade clássica), devia ter conhecimento das múltiplas disciplinas: história, numismática, botânica, geografia, astronomia etc., de modo a julgar, em questões duvidosas, sobre a propriedade da escolha de termos e ideias que não desvirtuassem a harmonia da forma e do conteúdo. Suscitavam-se no Renascimento, como se vê, questões que afligem os preparadores de originais até hoje, como devem ter afligido Erasmo, quando editor dos textos solicitados pelo impressor Hans Froben.
D . OS LIVROS DOS EDITORES
Desde o princípio, praticamente desde que os primeiros tipógrafos começaram a funcionar em caráter comercial, colocaram-se para as casas impressoras os problemas de concorrência, margem de lucro, distribuição do livro, custos de matéria-prima (sobretudo papel), censura (eclesiástica, no início), fixação de salários, especialização do trabalho gráfico, direitos autorais e tantos outros que permanecem entre as modernas empresas do setor editorial. A diversificação das áreas do conhecimento teria reflexos imediatos, como é natural, no campo da publicação; na medida em que aumentava o número de títulos surgia a necessidade de melhoramentos técnicos de impressão e de soluções mais práticas e rápidas para o fluxo do original, desde sua leitura em manuscrito até o processo de composição tipográfica, diagramação, revisão etc., a fim de tornar o texto visualmente agradável e, ao mesmo tempo, o mais fidedigno possível, quer reproduzindo de modo servil o manuscrito, quer este devidamente normalizado em seu conteúdo. Sobretudo no último caso não se podiam dispensar os conhecimentos do editor de texto. Ainda durante o século XIX essa atividade exercia-se em grande parte pelos filólogos, e foi a partir do trabalho de alguns deles que a técnica da editoração conheceu um grande avanço, sobretudo com Karl Lachmann (1793–1851), a quem se devem os princípios básicos da crítica de textos, modernamente desenvolvidos por especialistas como Paul Maas, Henri Quentin e Giorgio Pasquali. Todavia, a essa altura já não se
Editoração, um conceito na história
dava o caso de se reunirem em uma só pessoa (as exceções são até hoje raríssimas) a atividade do filólogo e a do editor, salvo quando se tratava de recuperar, para publicação, textos de autores mortos ou, especificamente, para edições críticas sob um rigor próprio do labor filológico. Do século XVI datam as primeiras casas publicadoras ou editoras, dirigidas por pessoas sem qualquer vínculo com a ‘famosa arte da impressão’. A partir da segunda metade do século XVIII sua posição consolidou-se; nos centros urbanos mais desenvolvidos, com efeito, separaram-se nitidamente as funções do publicador das do impressor ou tipógrafo e das do livreiro, o que se tornaria definitivo com a especialização imposta pela Revolução Industrial. De resto, foi precisamente em virtude dessa especialização que se registraram notáveis progressos na área editorial. No setor tipográfico, vários melhoramentos seriam introduzidos por Friedrich König (1774–1833), com a substituição da platina por um cilindro e o prelo duplo que, em 1814, imprimiu o jornal The Times; por Richard Hoe (1812–1886), que lançou, em Nova York, a máquina de imprimir dita rotativa, com os caracteres dispostos sobre um cilindro (1846); por Ottmar Mergenthaler (1854–1899), que em Baltimore inventou a linotipo (1884); e por Tolbert Lanston (1844–1913), que lançou, também nos EUA, a monotipo. A apresentação geral do livro acompanhou, do mesmo modo, as solicitações do mercado, das pesquisas tipológicas de Baskerville, Didot e Bodoni à apresentação material externa, com a vulgarização, já em finais do século XVIII, da brochura. O apelo visual tornar-se-ia cada vez mais presente, tanto do ponto de vista iconográfico, desde a xilogravura, o talho-doce, a água-forte e a litografia, até a fotografia, quanto do puramente tipográfico, em que programações visuais arrojadas passariam a reduzir o texto quase que a um elemento decorativo, exposto em linhas sinuosas, margens irregulares, audaciosas misturas de corpos e famílias de tipos etc. Por fim, uma tendência que se configurava desde a década de 1850 viria a ser uma realidade irreversível ainda na primeira metade do século XX: o livro de massa, quase sempre apresentado como ‘livro de bolso’. Lançado na Inglaterra em 1935, com os Penguin Books, desenvolveuse com extrema rapidez na Europa e nos Estados Unidos. Tudo isso veio tornar o mundo editorial muito diferente do que se vira no passado, mas um elemento permaneceu vital para que ele existisse: o texto, e com o texto o profissional que, na grande ou pequena empresa, trabalha com o acerto de informações desse texto, sua objetividade de comunicação, sua normalização literária e o programa gráfico com que se apresentará ao público. Ao contrário dos antigos filólogos, porém, tem de levar em conta que sua tarefa se subordina à velocidade imposta por altos investimentos e sobretudo à contingência de agir como especialista cuja área de atuação, no produto final (o livro), é reduzida, mas não acanhada, é limitada, mas não desprezível:
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A construção do livro com ou sem conselho editorial, nenhuma editora poderá funcionar se não possuir, com autonomia profissional, um departamento incumbido, entre outras tarefas, de: revisão de originais, normalização, marcação, elaboração do projeto gráfico, escolha de tipologia e do processo de composição e impressão, execução ou aprovação de artes-finais de ilustrações, capas e anúncios, execução de orçamentos gráficos e apuração de custos, escolha de papel e controle de estocagem e revisão tipográfica. O livro deve ser entregue a um especialista, o técnico de editoração. Trata-se de profissional necessariamente de nível universitário, que alia aos conhecimentos de artes gráficas o domínio do vernáculo. É, ao mesmo tempo, técnico gráfico porque há de conhecer todos os processos gráficos, há de ser redator porque redigirá e ‘copidescará’ textos, há de ser tradutor porque deverá conhecer, pelo menos, o espanhol, o inglês e o francês de forma a habilitar-se 13
tanto a analisar originais a serem traduzidos, como a traduzi-los.
Assim, precisamente em virtude da própria imposição do mercado de trabalho contemporâneo, vale dizer, da multiplicação e complexidade de tarefas cada vez mais específicas, observa-se a tendência a recuperar-se aquele sentido primitivo do vocábulo editor, tal como perdurou na língua inglesa. No Brasil já se tornou corrente, por exemplo, designar profissionais de certos setores da editoração como ‘editor de arte’ (responsável pela programação visual de uma publicação), ‘editor de texto’ (encarregado do preparo e revisão literária dos originais) e assim por diante. Introduziu-se até o termo editoria para nomear seções de uma empresa publicadora ou a organização colegiada de editores que individualmente respondem por essas seções: editoria de esportes, editoria econômica, editoria de história etc. Paulo Amélio do Nascimento Silva resume o conceito de Antônio Houaiss (ver nota 1) e desdobra-o da seguinte forma: É evidente que, desta definição, resulta englobar a editoração um complexo de campos de trabalho distintos, que vão desde a direção editorial até as atividades de distribuição e vendas, além de relacionar-se, a ponto de tê-los como pressupostos essenciais, com dois outros ramos da bibliologia, a saber, a bibliotecnia e a ecdótica. Assim compreendida, a editoração, pode-se afirmar, confunde-se com a própria atividade editorial, ou, para sermos mais precisos, com a atividade a que se dedica uma empresa editora, desde que, é óbvio, estruturada a sério. [...] Em sentido restrito, editoração significa, ou o termo tem sido usado para significar, o conjunto de técnicas (de produção em si ou rigorosamente editoriais) usadas na produção de livros. Entre as técnicas de produção, citem-se a tipologia, a revisão, a paginação, a diagramação etc., enquanto as técnicas editoriais podem ser exemplificadas, entre outras, pela técnica da linguagem de ficção, a da linguagem técnico-científica, a 14
promoção e a distribuição.
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R. A. Amaral Vieira. ‘Redução dos custos gráfico-editoriais’, em Aluísio Magalhães et al., op. cit., pp. 134135.
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‘A editoração na universidade brasileira’, em Revista de cultura Vozes, 65 (1971), p. 46.
Editoração, um conceito na história
Observa-se, portanto, que as tarefas de um moderno editor de texto diferem, pela maior diversidade, das do filólogo. O primeiro, contudo, em graus diversos, tem de partir de operações basicamente filológicas em sua apreciação do original, por amor à palavra, à fidedignidade do texto e à transmissão de seu conteúdo. Com efeito, no trato imediato com o original, o editor aplica normas (em especial nas edições críticas) próprias do exercício filológico. O termo filologia, de resto, apareceu pela primeira vez em Platão, que chamava os atenienses de filólogos, por seu gosto de falar, e os espartanos de braquílogos, por sua concisão ao falar (Leis, 641, E). Os alexandrinos incorporaram o termo com o sentido de erudição literária, no que foram seguidos fielmente pelos romanos, a exemplo de Cícero, sobretudo nas Epistolae ad atticum (‘filologia’ em 2, 17, 1; ‘filólogo’ em 13, 52, 2; 13, 12, 3). Muitos escribas medievais e, principalmente, os editores de texto renascentistas aplicaram correntemente técnicas filológicas em seu trabalho com antigos originais e cópias, mas foi no século XVIII, a partir de Friedrich Auguste Wolf (1759–1824), que se definiu de maneira sistemática a filologia como disciplina ou, segundo Wolf, como ciência (philologischen Wissenschaften). Para ele, entretanto, a filologia consistia, em última análise, na recuperação do conhecimento da Antiguidade clássica: criou, em 1787, a expressão ‘ciência da Antiguidade’ (Altertumswissenschaft), atrelando-a ao conceito de filologia como sinônimo de conhecimento histórico. Nascia, pois, a filologia clássica, à sombra e por estímulo do movimento historicista de finais do século XVIII, e assim permaneceu até o século XX. No entanto, justamente em virtude desse amparo historicista, surgiu, já em 1826, como afirmação de nacionalismo, o primeiro volume dos Monumenta Germaniae historica, que deslocava o objeto do trabalho filológico para a história da Idade Média local. Daí em diante, embora tenha permanecido como uma disciplina cuja atitude é, por definição, historicizante, seu campo alargou-se a ponto de ajudar a produzir — e muito — um subproduto: a editoração, a técnica da editoração. Contudo, embora a editoração, como disciplina autônoma, houvesse tomado rumos diferentes dos da filologia, mantém com esta (e não podia ser de outra maneira) o vínculo básico e crucial do escrito, da transmissão da palavra escrita, da leitura e da penetração do texto. Assim, muito do próprio conceito de filologia se aplica à editoração de texto. Uma filóloga profissional, por exemplo, não hesita em declarar que “filologia é para nós a ciência da palavra”.15 Mais ainda, em primeiro lugar estará o texto: do qual o que é preciso estabelecer não será uma simples ‘ideia’ irrealizada, mas a ideia na sua dinâmica atual e funcional. Esta ideia se revelará então reconstrutível na base de critérios imanentes, internos, e não transcen-
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Luciana Stegagno Picchio, A lição do texto (trad. Alberto Pimenta, Lisboa, Edições 70, 1970), p. 215.
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A construção do livro dentes. Será uma ideia identificável sobretudo com ideia formal: uma ideia cujo tema é a forma, aquela forma.16
Outro filólogo expressa noções semelhantes, enfatizando um pressuposto vital para a editoração: o amor à palavra e à sua transmissão fiel. Assim, mais uma vez, filologia poderia definir-se como o gosto representativo da palavra escrita, ou [...] como o sentido da concretude e individualidade da palavra em sua genuinidade e plenitude originais, quando a percebemos em conexão direta com o universo do escritor [...] A própria leitura, o gosto pela leitura, é uma primeira forma de interpretação (que é um dos aspectos da filologia). [...] Em seu aspecto mais simples é precisamente a filologia este gosto ou saboreio da palavra, que produz uma percepção aderente, concreta e sensível de seu conteúdo. A palavra alheia que se limita a resumir ou a referir nem acomoda nem persuade. A vontade de possuir (filologicamente) a palavra exata, textual, é sinal de exigência de concreção, de verdade, de precisão, de certeza, fidelidade, integridade, perfeição. Atesta interesse filológico. É indício de capacidade para apreender e penetrar o pensamento, a imagem no vigor de sua potência original encarnada no vocábulo que a expressa. [...] A filologia é, assim, condição do conhecimento verdadeiro e íntegro. Não é história, nem filosofia, nem 17
erudição. É percepção sensível de um conteúdo sensibilizado em sua forma.
A editoração, entretanto, vai além: ademais da forma original, da reconstituição, da fidedignidade, da preservação dessa forma literária, pressupõe, como dado igualmente importante, o suporte material com que se apresentará o texto restaurado por inteiro (ou, no caso de escritor vivo, sobretudo em ensaio ou monografia, corrigido e normalizado), de modo a não trair — ao contrário, preservar, ressaltar — o pensamento do autor. A tendência natural da editoração, portanto, caminhou no sentido de dilatar o horizonte da própria filologia, numa inversão de papéis acentuada sobretudo no século XX. No âmbito restrito do original destinado à impressão tipográfica, o editor passou a ter cuidados especiais com as variações tipológicas indicativas da feição original do escrito e com a programação visual (forma material) sob a qual se apresentará o texto, de modo a produzir uma leitura cômoda. Todavia, o periódico, o rádio e a televisão obrigaram a um alargamento ainda maior dos próprios limites da editoração de texto. Esses três meios de comunicação de massa trabalham com material quase sempre fugaz, procedente da pauta destinada ao repórter ou ao entrevistador em busca da notícia, em suma da informação ou do comentário que pulsa e existe no agora, no presente mais imediato, geralmente de
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Idem, ib., p. 220.
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Gaetano Righi, Historia de la filologia clásica (trad. J. M. García de la Mora, Barcelona, Labor, 1967), pp. 20-21, 23.
Editoração, um conceito na história
vida limitada, mas cuja continuidade dentro do cotidiano dá-lhe o respeitável poder de formador de opiniões e, em última instância, de ações. A fugacidade desses meios de comunicação tornou-se mais acentuada a partir do advento, na década de 1990, da rede mundial de computadores, a Internet. Fugacidade intrínseca à própria velocidade com que os fatos são cobertos, praticamente em tempo real. ‘Ao vivo’ não quer dizer apenas que uma transmissão de televisão não foi antes gravada, mas que os fatos relatados estão acontecendo naquele instante. A Internet torna-se cada vez mais um meio de publicação, para a qual se colocam muitos dos problemas e soluções da edição em papel. Os sítios da Internet têm seu projeto gráfico, suas peculiaridades editoriais, sua dialética de forma e conteúdo, suas imposições mercadológicas, assim como os têm os livros, jornais e revistas impressos. O advento dos periódicos e livros eletrônicos, apesar de todas as discussões quanto ao seu futuro e à sua conveniência, existe de fato e, no que é pertinente à sua organização e afeiçoamento, eles refletem muitas das mais antigas técnicas da edição em papel. A própria terminologia, não só da editoração eletrônica, mas também da edição na Internet, deve muito às artes gráficas em geral e à velha tipografia. Caímos, nesse ponto, em pantanal onde se afogam, debatendo-se embora, as teorias da informação, da propaganda, da editoração, da comunicação em geral, todas ainda no caos, esforçando-se por separar elementos singulares, por afirmar sua própria linguagem, por adquirir autonomia de ação, por consolidar suas técnicas específicas, em que o texto passa a configurar-se como elemento quase secundário. Trabalho para Sísifo, pois seria impossível banir por inteiro a palavra, o que, nos veículos de comunicação, sempre significa textos para serem lidos ou ouvidos; permanece, ainda, um texto, qualquer que seja a sua transmissão (livro, jornal ou revista, audição, audição–visão). O periódico — diário, semanal, mensal — impõe ao editor e a seus auxiliares imediatos (chamados, neste caso, redatores e copidesques) uma linguagem mais ágil, mais próxima do coloquial. O rádio e a televisão exigem, por outro lado, no primeiro caso textos para serem ‘ouvidos’, e no segundo, ‘vistos–ouvidos’, em virtude do imenso poder da imagem. E aqui, nesse intrincado de veículos, do livro à imagem ‘televisada’, se separam em definitivo filologia e editoração, seja quando o preparador de originais passa a levar em conta a feição do produto final em suas possíveis formas materiais, seja, ainda, e sobretudo, quando passa a considerar fatores como ‘linguagem jornalística’, som, imagem–som. Essa confluência e conjugação de meios e técnicas faz nascer novos produtos, novos recursos, novos profissionais. O vocábulo imprensa vai sendo paulatinamente substituído pelo latinismo media que aqui chegou com sua pronúncia estropiada pelo contágio do inglês e virou mídia. E temos ainda seus derivados, como hipermídia, multimídia e midiateca. Ao lado do designer gráfico, temos outros profissionais que
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