DOI: doi.org/10.29327/565971.1-1
Globalização, Educação Intercultural e suas Proposições para Pedagogias Decoloniais Globalization, Intercultural Education and its Propositions for Decolonial Pedagogies Vicente Paulino1 1 Professor convidado da Universidade Nacional Timor Lorosa (UNTL). Diretor e pesquisador do Centro de Estudos de Cultura e Artes CECA, da UNTL. Investigador colaborador do Centro de Estudos de Migração e Relações Interculturais (CEMRI), da Universidade Aberta de Lisboa. Colaborador do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL), da Faculdade de Letras, da Universidade de Lisboa. Email: vicentepaulino123@gmail.com / ORCID: https://orcid.org/0000-0003-02159712.
Introdução
A
EDUCAÇÃO intercultural é conceituada na compreensão e no respeito aos valores de diversas tradições culturais. A educação intercultural é conceituada, também, nos desafios associados à distribuição desigual de recursos e oportunidades educacionais, entre grupos sociais (MARGINSON; SAWIR, 2012). Nesse sentido, a educação intercultural incorpora noções como alfabetização crítica e educação culturalmente responsiva, para combater a marginalidade e a discriminação social, no sentido de construir uma educação igualitária. Assim, educadores que adotam uma orientação de educação intercultural estão empenhados em contrapor relações coercitivas de poder em seus ambientes escolares (CUMMINS, 2015). Desse modo, é preciso pensar em um novo mundo que possa, pelo menos, acomodar as diferentes sociedades, em um princípio de humanização do viver e das relações sociais nos espaços escolares. Por isso, é importante pensarmos em caminhar no sentido do mundo dos outros, ou seja, ao mundo das sociedades A e B, para que conheçamos seu modo de viver socialmente
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e o seu modo de contato com a educação formal. Vale a pena realçar, ainda, que a compreensão mútua, a tolerância e a paz também são fundamentais para conhecer e entender o mundo dos outros. O mais importante é promover diálogos inter-religioso e intercultural em todos os espaços escolares, e esses diálogos devem figurar em todos os currículos escolares (KEAST, 2007). Atualmente, o sistema educativo de cada país confronta-se com a necessidade de responder de forma adequada, tanto em termos de materiais educativos como no que se refere a valores culturais e atitudes. Portanto, quando se pensa em “educação para todos”, é certo que leva as pessoas a pensarem moralmente sobre a importância que a educação tem para a sociedade. Por isso, é urgente que se construa uma ação educativa intercultural dentro e fora da escola. De fato, a educação é um processo dinâmico que envolve toda a comunidade na construção de uma sociedade justa e humana, através do diálogo e da ação orientada pelos valores éticos e pela interação de diferentes sujeitos que atuam em um espaço escolar, e fora dele. A intensificação das relações sociais à escala mundial é resultado do próprio processo de globalização. A intensificação das relações sociais da Humanidade, neste novo milênio, só pode ser concebida/pensada com base na diversidade cultural. Todas as nações no mundo têm suas preferências na condução do seu sistema educativo, mesmo assim todas elas começam a apostar na educação intercultural. Colocando o diálogo como ideia base do desenvolvimento de uma educação intercultural. Exemplo disto é que, nos últimos anos, as instituições escolares dos países da América têm desenvolvido um sistema de educação sustentado nos princípios de interculturalidade, logo, a escola em si mostra e afirma sua identidade como uma entidade educativa intercultural. Pois, em um contexto de globalização, fica o desafio de se promover, no nível de pesquisa e de serviço social à comunidade, incluindo prestar as práticas educacionais, a construção de identidades particulares e, ao mesmo tempo, fazer abertura ao espírito de respeito à diferença.
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Partindo desses pressupostos, procura-se abordar os fundamentos conceituais da relação entre a cultura e a educação, a globalização e a educação intercultural, incluindo suas proposições para pedagogias decoloniais. A educação intercultural e as pedagogias decoloniais são a chave para a consolidação das visões associadas à cidadania democrática, à mediação e ao diálogo, no processo de autoformação e de aprendizagens. Coloca o diálogo e a cidadania democrática como ideias base na construção do conceito da educação intercultural, e, também, os considera como proposições para pedagogias decoloniais.
Cultura e Educação: qual relação? A relação entre cultura e educação constitui uma área de grande importância na atualidade científica, uma área interdependente entre si, pois torna a ser de relevância social e de importante incidência, no domínio das políticas públicas educacionais e das culturas educativas. No âmbito dos estudos da cultura e da educação, cada vez maior consideração é atribuída à formação do caráter, à formação intelectual e à formação cultural dos cidadãos. A relação entre a cultura e a educação não responde a um esquema fixo e universal, mas aparece em formulações diferentes, ao longo da história e nos diferentes contextos que definem a relação da cultura com a educação, e/ou a relação da educação com a cultura. Deste modo, pode dizer-se que são duas áreas interdependentes, e para se desenvolver essas áreas precisam uma da outra. Sem a cultura, a educação não pode afirmar-se como uma ação exercida. Talvez se encontre aqui uma concepção antropológica de cultura, pois, cada espécie humana tem suas próprias práticas culturais carregadas pelas regras de convivência sociais. Tais regras são ensinadas de geração a geração, portanto, esses “ensinamentos” já são uma
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ação exercida dentro de uma sociedade culturalmente constituída. Assim, a cultura consagrada e transmitida pela escola dá especial destaque às normas do viver da sociedade. Se associar o conceito de cultura à educação, de certeza, que se definirá pela “cultura das letras” e “cultura das artes”. Essas figurações conceituadas são encontradas nas colunas dos periódicos do século XVIII e até dos anos 50, do século XX. Assim, a cultura passou a significar “formação” e a “Educação do espírito” (ALVES; ROCHA, 2019), porque aprender algo é uma cultura, conhecido por cultura de aprendizagem, que tem por missão ensinar e aprender para transformar o mundo. É por isso que em 1798, particularmente na percepção da ideologia Iluminista, o termo cultura foi associado às ideias de progresso, de evolução e de razão. Deste modo, a cultura é definida como uma “soma dos saberes acumulados e transmitidos pela humanidade, considerando sua totalidade ao longo da história” (CUCHE, 2002, p. 21). Além disso, segundo Bauman (2013), o termo “cultura” é usado para pôr a missão de educar as pessoas, sem diminuir os valores morais constatados nos seus costumes. É uma forma de aproximar o povo, pois ela é a base da sociedade hegemônica. Assim, A cultura manifestava-se, acima de tudo, como um dispositivo útil, consciente, destinado a assinalar as diferenças de classe e salvaguardá-las: como uma tecnologia inventada para a criação e proteção das divisões de classe e das hierarquias sociais (BAUMAN, 2013, p. 10).
Além disso, a cultura é, embora fonte de conflitos e de incompreensão, uma das bases do diálogo, da compreensão e da comunicação entre os povos. Ninguém vive sem cultura, todo ser humano vive com cultura e com ela afirma sua origem. Natália Ramos (2001) adverte que “a integração social e cultural do ser humano pode enquadrar-se numa dupla apropriação que se aproximam entre si, pois toda ela associa-se às estruturas simbólicas de relações: a apropriação do indivíduo pelo conjunto das estruturas simbólicas de um contexto social e cultural particular […]; a
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apropriação pelo indivíduo das estruturas simbólicas, do código cultural do contexto sociocultural no qual se desenvolve na sociedade por meio da educação.” (p. 162, grifo nosso). Já que A educação é, antes de mais nada, desenvolvimento de potencialidades e a apropriação de ‘saber social’, (ligados a um conjunto de conhecimento e habilidades, atitudes e valores que são produzidos pelas classes, em uma situação histórica dada de relações para dar conta de seus interesses e necessidades). Trata-se de buscar, na educação, conhecimento e habilidades que permitam uma melhor compreensão da realidade e envolva a capacidade de fazer valer os próprios interesses econômicos, políticos e culturais. (GRYBOWSKI apud FRIGOTTO, 1995, p. 13).
Vê-se aqui que a educação se apresenta como uma condicionante, e por isso que a cultura é, muitas das vezes, usada como se pertencesse apenas a pessoas que têm uma educação formal e estatuto social privilegiados. Na atualidade, geralmente, se reconhece que a cultura não é apenas o que um grupo de elite de pessoas pode fazer em tempo livre, mas a cultura é um conjunto de regras e de práticas sociais que conduz a vivência da sociedade. Enquanto a educação é alicerçada pelos princípios éticos e pelas práticas culturais que, de todo modo, é “um processo essencialmente coletivo no qual a aprendizagem e a construção do conhecimento se efetivam através da inter-relação entre os sujeitos e entre esses com o todo da vida.” (AHLERT, 2007, p. 93). A cultura e a educação são áreas diferentes, mas complementares, porque, muitas vezes, as práticas educativas se transformam em práticas culturais e isso permite identificar uma larga possibilidade de ações desenvolvidas pela escola. O esforço de um indivíduo no estudo para alcançar os objetivos desejados já é, em si mesmo, uma cultura de transformação da vontade. Enquanto, a relação do papel da educação, diante da cultura, há sempre uma discrepância no entendimento de possibilidades da ação da escola sobre a cultura e a vida em sociedade. Através da educação, um indivíduo tem necessidade de perceber sua
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cultura, e torna-se parte dela, quando a ideia de aprendizagem social favorece seu processo de preparação para o desempenho de papéis sociais. Embora a ideia de uma escola que tem a capacidade de reconstruir o mundo humano, de modificar costumes, padrões de comportamento da sociedade, não consegue confirmar a prática cotidiana associada à prática escolar. A cultura e a educação são áreas que têm relações profundas, e, por isso, precisam ser consideradas na escola, particularmente, na realização do processo de aprendizagem. Uma escola, enquanto verdadeiro lugar da educação, tem que fazer penetrar a sua missão de “educar” e “ensinar” na criança, influenciando-a em conformidade com a imagem ideal da educação oferecida, para que possa cumprir a natureza da missão escolar. Deste modo, a socialização da educação é uma ação exercida por pessoas que fazem parte de determinada sociedade (ERNY, 1982; DURKHEIM, 2011; WEBER, 1982), tornando-as portadoras de uma visão de mundo com sua cultura. Portanto, usando a cultura como luz de sua visão, para compreender o mundo parcialmente ou em seu todo. Na teoria sociológica de reprodução, Pierre Bourdieu (2007a) defende que não é apenas dinheiro, ou capital econômico, que determina a posição da estrutura social de uma pessoa, mas o mais importante é o que ele chamou de capital social e capital cultural. O capital social é feito com obrigações sociais e redes que são conversíveis em economias, capital; ou seja, o capital social é o conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de inter-reconhecimento (BOURDIEU, 2007b, p. 67). Enquanto o capital cultural pode ser definido com os gostos, desporto lúdico, valores, línguas e dialetos adquiridos, ou as qualificações educacionais que marcam uma pessoa como pertencente a uma classe social e cultural privilegiada. O sistema de ensino reproduz tanto melhor a estrutura de distribuição do capital
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cultural entre as frações de classes sociais quanto a cultura que transmite, quando se encontra mais próximo da cultura dominante; porque o sistema escolar só garante, completamente, o valor de reprodução do capital cultural e da reprodução do capital social, quando o capital econômico está bem direcionado à educação das crianças. O capital econômico é investido na educação, significa fazer um “investimento racional”, tanto no plano econômico como no plano educacional (BOURDIEU, 2007a, p. 324). A escola é uma instituição cultural, e sua relação com a cultura é concebida como dois polos interdependentes, porque, através da escola, se desenvolve também a cultura, sobretudo nos estudos acadêmicos e nos eventos escolares. Já que “a função do ensino se baseia na transmissão, não do simples saber, mas de uma cultura que possibilite o entendimento acerca da nossa condição que nos auxilie a viver e seja, ao mesmo tempo, favorável a uma forma de pensar mais aberta e livre” (MORIN, 2014, p. 11). Neste caso, a educação atua espontaneamente no homem e esse homem é aquele que representa agregação biossocial, a partir da noção de relação dialógica, cujo desenvolvimento é possível quando se configura numa relação dialética com a sociedade, ou seja, o homem cresce e é formado culturalmente pelo ambiente que o cerca (VYGOTSKY, 1978). Ao considerar a escola e a cultura como uma relação intimamente ligada ao universo educacional, então, cabe indagar sobre as práticas educativas em todo o processo de aprendizagem. Assim, a escola assume a função de conservação social, usando a pedagogia para despertar, como dizia Max Weber, “os ‘dons adormecidos’ em alguns indivíduos” (BOURDIEU, 2007b, p. 53), querendo dizer que a educação não forma o homem a partir do nada, como ditavam John Locke e Helvétius, mas se aplica às disposições que já se encontram na criança (DURKHEIM, 2011, p. 65). A escola é um lugar de transmissão do capital cultural, e, em sendo lugar de prática cultural, tanto no nível da família
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quanto social, produz o êxito de criação da confiança. Pois, “a ação no meio familiar sobre o êxito escolar é exclusivamente cultural (...). Ainda que o êxito escolar pareça ligado igualmente ao nível cultural do pai ou da mãe” (BOURDIEU, 2007b, p. 42). Fazer educação (e.g. BRUNER, 1990; VYGOTSKY, 1978), na sociedade como um fato social, tem de se elevar dentro da cultura, em uma abordagem de padrão baseada na visão humanística e social, porque a educação é desenvolvida em uma relação dialógica (BAKHTIN, 1986), para dar resposta ao que o destinatário pretende saber, como também é algo eminentemente social, como dizia Émile Durkheim (2011): A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre aquelas que ainda não estão maduras para a vida social. Ela tem como objetivo suscitar e desenvolver na criança um certo número de estados físicos, intelectuais e morais exigidos tanto pelo conjunto da sociedade política quanto pelo meio específico a que a criança particularmente se destine. Em suma, pode concluir-se que a educação é uma socialização metódica das novas gerações. (p. 53-54).
Assim, a educação é um instrumento tão importante que configura todo o processo de adaptação dos indivíduos à sociedade, e, além disso, a educação tem uma função primordial para dar garantia à interiorização das normas, pensamentos e padrões de comportamento na convivência social. Se a educação é uma socialização metódica, então, todo o processo de aprendizagem é desenvolvido em uma cultura de padrão do conhecimento. E, se a cultura for abordada como padrão, então a educação pode ser vista como uma coisa aberta e socializa-se na comunidade de prática cultural (MATUSOV; MARJAVONIC-SHANE, 2012, 2017; LAVE; WENGER, 1991). Aqui, compreende-se que a socialização da educação é baseada em padrões de reconhecimento da cultura, em que, na abordagem educacional, reconhecer os erros é uma tarefa da aprendizagem.
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Globalização e Educação Intercultural A sociedade contemporânea é dominada e controlada pela tecnologia e pela mercadorização global, como diria Bauman (1999), a noção de tempo e de distância modificou profundamente a movimentação de pessoas ao redor do mundo. A maior mudança na educação começou nas décadas de 60 e 70 do século XX, era uma mudança identificada pela ideia de “reproduções” no capital econômico, social e cultural (BOURDIEU, 2007a; BOURDIEU; PASSERON, 1978). Pois a educação daquela época foi pensada numa lógica econômica e na estratificação do estatuto social da sociedade. Atualmente, a mudança na educação é simbolizada pela globalização com a abertura das fronteiras e a constituição de blocos regionais, como a União Europeia, o NAFTA (Canadá, México, Estados Unidos), o Mercosul, o Pacto Andino, a APEC (Ásia-Pacífico), a CPLP e a ASEAN. Para os europeus, a constituição da União Europeia teve, até agora, mais consequências na área da educação do que a própria globalização, impulsionada pela OMC (Organização Mundial de Comércio). Para os países falantes do português, a constituição da CPLP teve origem nos laços históricos e culturais herdados pela colonização portuguesa, o mais marcante é a religião católica e a língua portuguesa; enquanto, para o sudeste asiático, a constituição da ASEAN foi impulsionada não pela razão cultural da região, mas pelo desenvolvimento econômico e da segurança da região. É bom perceber que os pensadores progressistas definem a educação para todos, mesmo assim a solidarização entre os membros da espécie humana continua a ser um desafio, porque a globalização não tem apenas um efeito positivo, mas também tem seus aspetos negativos. Por isso que a globalização é um termo apropriado para definir a mudança com uma percepção de interdependência entre os seres humanos, pondo em evidência a solidariedade entre os membros da soci-
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edade humana e coloca o universo da terra como um lugar do bem-comum. Portanto a abertura das fronteiras não é propriamente um problema para a soberania de um povo e de uma nação, mas o problema está na lógica do dinheiro e dos países mais fortes no capital econômico e no capital cultural dominante. O problema, nesse raciocínio, não é a globalização, mas sim, o próprio neoliberalismo. Sabendo que a educação no mundo neoliberalmente globalizado está, cada vez mais, baseando-se na economia política internacional, a mudança de natureza da economia capitalista mundial é encarada como uma força da globalização e procura ultrapassar os seus efeitos a partir do local (DALE, 2004). Por isso que Boaventura Sousa Santos (2004), em sua reflexão teórica e crítica, afirma que para definir a globalização há que compreender primeiro o seu sentido epistêmico, talvez contraditório, entre globalização e localização, entre Estado Nação e o não Estado transnacional, e entre a natureza político-ideológica. À luz destas três identificações, talvez definidas contrariamente, é muito claro perceber o processo de globalização em diferentes relações sociais, diferentes fenômenos globais e diferentes áreas de estudo. Assim, não existe estritamente uma entidade única chamada globalização no sentido singular, mas globalizações no sentido plural (SANTOS, 2004). Toda a interação humana é figurada na interculturalidade, pois as fronteiras geográficas de cada país estão praticamente ligadas por redes de tecnologia. É o resultado da globalização marcada por “um conjunto de relações sociais que se traduzem na intensificação das interações transnacionais, sejam elas práticas interestatais, práticas capitalistas globais ou práticas sociais e culturais transnacionais” (SOUSA, 2001, p. 63). Na educação, segundo António Teodoro (2003, p. 61), “a mediação obrigatória dos Estados nacionais na formulação das respectivas políticas, condicionada em geral por fortes movimentos sociais internos”, que ainda está em um possível paradigma por uma “globalização de baixa intensidade” (SANTOS, 2001, p. 93).
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A globalização é um processo que se desenvolve em termos de transversalidade temática, exigindo uma metodologia transdisciplinar interativa e aglutinadora das diferentes áreas do conhecimento científico (SANTOS, 2002). O processo globalizante da globalização também está na base de gênese dos estudos teórico-conceituais, estruturados pela realidade do ambiente transformacional dos relacionamentos transnacionais de origem no localismo, e ao mesmo tempo, operacionalmente voltado à uma realidade societal que é manifestada pela própria mudança. Pois, segundo Anthony Giddens (1990), “a intensificação das relações sociais no plano mundial que ligam localidades distantes de tal forma que os acontecimentos locais são moldados por acontecimentos que ocorrem a muitas milhas de distância e vice-versa”. Se o fenômeno da globalização é uma concretização de tendências identificadas na longa duração sócio-histórica, então, o termo da globalização, em si, é, segundo Victor Marques dos Santos (2002, p. 55), constituída por um processo de mudança essencialmente qualitativa, porque se liga ao aumento da diversificação do número de atores envolvidos na intensificação das interações; fazer crescer a convergência interativa de processos econômicos, políticos, sociais e culturais, científicos e tecnológicos; alteração decisiva das condições de produção e aplicação de conhecimentos adquiridos com uma política de renovação epistemológica que se projeta em todos os processos inerentes ao fenômeno globalizante. Nesse mundo globalizado e tecnologizado, o termo interculturalidade começa a ser aplicado nos sistemas econômicos e nos negócios de grande dimensão, nas tecnologias e comunicação de informação, incluindo nas relações políticas internacionais, e até que as questões interculturais ocupam também o lugar nos estudos comunicacionais e organizacionais, a sociologia política e até a própria economia e educação (CANCLINI, 2009). Além disso, pode considerar a interculturalidade
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como expressão que abre novo horizonte das pessoas em relação ao capital social e capital cultural. Já que na mediação cultural e no diálogo, como elementos necessários para darem resposta aos problemas básicos da sociedade global, residem a certeza de que é através da educação que se desenvolve o diálogo mais aprofundado, no intuito de conduzir a sociedade para uma sociedade intercultural e multicultural. Alguns pesquisadores, como Candau (2000, 2009) e Fleuri (2002, 2003), afirmam que educação intercultural pode acontecer no sistema educativo e na sociedade, quando o professor vivencia ativamente a diversidade dos diferentes grupos sociais. Porque, segundo Candau (2009, p. 170): [...] a educação intercultural não pode ser reduzida a algumas situações e/ou atividades realizadas em momentos específicos, nem focalizar sua atenção exclusivamente em determinados grupos sociais. Trata-se de um enfoque global que deve afetar todos os atores e todas as dimensões do processo educativo, assim como os diferentes âmbitos em que ele se desenvolve. No que diz respeito à escola, afeta a seleção curricular, a organização escolar, as linguagens, as práticas didáticas, as atividades extraclasse, o papel do/a professor/a, a relação com a comunidade etc.
São aspectos que colocam a educação como um meio que possibilita a convivência de diferentes sujeitos de culturas diferentes, dentro da escola. Os diferentes sujeitos que estão dentro da escola, como parte integrante das relações interpessoais e das práticas pedagógicas, na realização do processo de aprendizagem, e de ações educativas, devem seguir esse caminho, porque a perspetiva intercultural da educação promove a formação de relações dialógicas que orientam a vida das pessoas (FLEURI, 2002, p. 11). A educação intercultural deve contribuir para ultrapassar o etnocentrismo sociocultural, tendo em consideração na pedagogia global, as situações multilíngues e pluriculturais, proporcionando um melhor desempenho escolar aos
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filhos de trabalhadores imigrantes (sobretudo de meios desfavorecidos), correspondendo às suas necessidades específicas. Levar os jovens a conhecer e conviver com a diferença, valorizar capacidades específicas e talentos diversificados, sem requerer de todos exatamente o mesmo, preparar para desempenhos múltiplos, gerir a resolução de problemas e de conflitos, ressalvando valores consensuais das diferentes culturas e promover o conhecimento mútuo, a estima responsável e a cordialidade cívica, são os principais objetivos da educação intercultural. (ARAÚJO, 2008, p. 59).
É por isso que é imprescindível, no âmbito escolar, a discussão em torno da ação do diálogo e das práticas pedagógicas interculturais, que deve ser voltada sempre aos temas relativos às diferenças inerentes às culturas no mundo contemporâneo e globalizado (TANCINI, 2012). Nesse sentido, o intercultural é uma prática considerada como “uma opção sociológica global” (ABDALLAH-PRETCEILLE, 1986, p. 177), em uma racionalidade compreensiva. Talvez se encontre aqui uma concepção sociológica da educação que possa justificar sobre o campo de atuação da educação nesta era globalizada dominada pelo poder neoliberal, pelas novas tecnologias de informação e de comunicação. Esperando-se que a educação se ajuste às prioridades mais amplas, há que levar sua ação transformadora para garantir um mundo melhor, o bemestar da sociedade, porém, não parece nada fácil, “considerando que as instituições educativas estão entre as vítimas da dinâmica da própria globalização” (SACRISTÁN, 2007, p. 38).
O Diálogo como Conceito da Educação Intercultural O homem tem uma inteligência que é capaz de produzir pensamentos sobre algo a significar, interpretando com claros argumentos para poder provar a sua verdade existencial. A cultura é, nesse sentido, organizada pelo veículo cognitivo do ser humano que é a linguagem, definida como alma do diálogo social, pois é o capital cognitivo coletivo
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dos conhecimentos adquiridos, das experiências vividas, da memória histórica, das crenças míticas de uma sociedade, fundamentados nas consciências coletivas e no imaginário coletivo (MORIN, 2014). A educação “cria no homem um novo ser” (DURKHEIM, 2011), pela relação dialógica e troca simbólica da experiência. O ser novo pelo diálogo, pela concreta ação coletiva e por meio da educação, edifica o verdadeiro ser do homem, e em todo o caso, só no homem vive uma sociedade e só na sociedade vive o homem. O ser humano é um ser dialógico. É um ser que partilha sempre as suas ideias através do diálogo com o seu outro ser. O homem nasce para se dialogar com o outro, o diálogo faz o homem se comunicar com outro, o diálogo é sempre acionado pelos homens nos seus discursos políticos, sociais e culturais, anunciando o sentido social “vamos dialogar” e com o diálogo resolve as diferenças. O diálogo conduz o homem a encontrar o significado do seu verdadeiro ser como humano, por isso, o diálogo é uma condição existencial do ser humano no seu viver social. Ser dialógico significa ser-crítico que sabe-fazer e sabe-transformar algo para o bem comum. O diálogo é em grego “dialogein” que pode significar uma conversa durante a qual os interlocutores manifestam entre um com o outro, trocando argumentos com intuito de chegar a um acordo fundamentado. Isto quer dizer que o objetivo do diálogo é encontrar um “acordo’ ou um “entendimento” sobre o que está sendo debatido. Tratase de uma condição dialógica que prevalece mediante uma conversa efetuada entre duas ou três pessoas, para chegar a uma conclusão em busca da verdade. No diálogo se estabelece um conjunto de ideias para construir e implementar uma concreta ação associada ao bem comum. Por exemplo, falar na área da educação e sua respectiva socialização precisa mesmo de um diálogo permanente, para que a educação possa chegar a
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todo o cidadão. Para tal, define a “educação como uma prática da liberdade” (FREIRE, 1980) e seria bom que fosse fundamentada por uma “pedagogia da pergunta” (FREIRE; FAUNDEZ, 1985). A educação requer uma resposta imediata sobre a mudança da sociedade e do mundo, por isso, atualmente, fala-se muitas vezes da aplicação da educação intercultural nas escolas e nas sociedades educativas institucionalizadas. A base fundamental da educação intercultural é o diálogo, relações dialógicas entre professores, entre professores e alunos, entre alunos e alunos, entre professores e os pais dos alunos. Qual é o motivo de dizer que o diálogo é importante e colocá-lo como um conceito da educação intercultural? Porque o diálogo requer perguntas e respostas curtas que são submetidas a um exame racional. Pela troca de argumentações e objeções, o diálogo permite, a cada um, escapar da particularidade de sua opinião e ascender ao saber. Partindo do pressuposto de que a educação intercultural é, num certo sentido, acessível a todos aqueles que já possuem alguma experiência de vida no banco da escola, transmitindo um ao outro um conjunto de valores sobre a forma como se valorize a diferença através das relações dialógicas. Portanto, uma educação intercultural sustentada na base do diálogo é de certeza que revela respectivamente um posicionamento epistemológico, ético e social. Se olha-se para o resultado, qualquer que seja o ser humano, desde muito jovem já tem alguma visão epistemológica sobre o que é uma relação dialógica entre A e B, como também alguma ética social de se representar na sociedade. Todos os homens têm opiniões sobre o diálogo na interculturalidade. Nesse sentido, todos os homens são parte integrante daquilo que se chama “serdialógico” e “ser-intercultural”. Este fato justifica que seja possível colocar o diálogo como um conceito da educação intercultural. O diálogo na educação intercultural procura tornar mais exigente e consciente o processo da educação pelo qual se encontra nas escolas, em conformidade com um conjunto de ideias partilhadas entre
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diferentes sujeitos racionais. O diálogo intercultural é experimentado por toda a gente de qualquer idade e nível acadêmico. O mais fundamental é colocar o diálogo intercultural como algo que tem valor acrescentado quando, por exemplo, na sala de aula, os professores e os alunos se comunicam ativamente no compartilhamento do conhecimento. Para isso, propor que o professor comece o diálogo, no início de apresentação do programa da disciplina, para ouvir as ideias e os argumentos dos alunos sobre cada tópico da matéria. Pois a verdadeira relação só se constrói na “síntese cultural dialógica”. Isto é, (a) O educador é o que educa; os educandos, os que são educados; (b) o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem; (c) o educador é o que pensa; os educandos, os pensados; (d) o educador é o que diz a palavra; os educandos, os que a escutam docilmente; (e) o educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados; (f) o educador é o que opta e prescreve a sua opção; os educandos, os que seguem a prescrição; (g) o educador é o que atua; os educandos, os que têm a ilusão de que atuam, na atuação do educador; (h) o educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais são ouvidos nesta escolha, acomodam-se a ele; (i) o educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, que se opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes devem adaptar-se às determinações daquele; (j) o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, meros objetos. (FREIRE, 1987, p. 34).
Nestes enunciados, percebe-se que a educação deve e pode funcionar através do diálogo, em que professores e alunos são pais e filhos no espaço escolar e caracterizam a si mesmos como “sujeitos aprendizados”, no agir de “ensinar” e “aprender”. Destaca-se as palavras de Paulo Freire (1987, p. 68), que dizia: “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”. É absoluta verdade, pois, os professores não ensinam a simesmo, ensinam os alunos ou ensinam os outros, os alunos não com-
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preendem sozinhos algo se não há explicação de outros, fundamentalmente seus professores; portanto, precisam um do outro para se complementam entre si. O diálogo é a matéria-prima daqueles que pensam com ideias, pensam em contribuir alguma coisa com ideias, pensam em respeitar as ideias dos outros. A essência do diálogo é pensar e dar a solução ao problema sobre o que se está a pensar. Portanto, o pensar é fazer-nos dialogar, dialogar com o pensamento e procura entender o pensamento sobre nós como um ser-social e um ser-intercultural. Na educação intercultural aplica-se (também em outras áreas, como na sociologia, na antropologia, na medicina) o saber social que se emerge no “diálogo de saberes, no encontro de seres diferenciados pela diversidade cultural, orientando o conhecimento para a formação de uma sustentabilidade partilhada. (...) O diálogo de saberes se produz no encontro de identidades” (LEFF, 2009, p. 19), e também no encontro dos conhecimentos literários, pelo qual Max Weber descreve em seguinte forma: Houve uma época em que se aprendia a escrever discursos latinos e versos gregos para se poder ser conselheiro político de um príncipe e, principalmente, para ser memorialista. Foi a época do primeiro florescimento das escolas humanistas e das fundações principescas para professores de “poética”. Para nós, foi uma época transitória, que teve influência bastante persistente em nosso sistema educacional, sem maiores resultados políticos, porém no Leste da Ásia, foi diferente. (WEBER, 1982, p. 113).
Vê-se aqui claramente uma justificação associada à importância do diálogo em “aprender a escrever” sobre o que se passa em poesia. É necessário um diálogo permanente para perceber o que se passa noutro mundo além do mundo ocidental, por exemplo, O mandarim chinês é, ou antes foi originalmente, quase o mesmo que o humanista do nosso período da Renascença: um letrado treinado humanisticamente e testado nos monumentos linguísticos do passado remoto. Quando lemos os
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diários de Li Hung Chang vemos que seus maiores motivos de orgulho são seus poemas e o fato de ser um bom calígrafo. Esta camada, com suas convenções desenvolvidas e modeladas pela Antiguidade chinesa, determinou todo o destino da China; e talvez nosso destino tivesse sido semelhante se os humanistas, em sua época, tivessem a menor possibilidade de conseguir influência semelhante. (WEBER, 1982, p. 114).
Nesse sentido, o diálogo com outras culturas, através da cultura de leitura, é tão importante para ter uma cultura geral sobre o que se passou à época, antes do nosso tempo. Isto é, olha-se que no processo da educação chinesa e da Grécia antiga, o diálogo era essencialmente estabelecido nos conhecimentos literários e toda a forma do diálogo estava voltada à experiência contemplativa, fundamentada na compreensão de racionalidade (WEBER, 2004, 2005).
Que proposições da Educação Intercultural para Pedagogias Decoloniais? O termo intercultural foi usado pelo Conselho Europeu, desde o início dos anos 80, do século XX, e o seu uso foi adotado pelos estadosmembros nos seus documentos ministeriais, quando se decidiu enfrentar a questão da inserção dos estrangeiros nas escolas. Por isso que esse termo foi adotado como uma nova proposta alternativa para abrir o horizonte de convivência social, fundamentalmente na educação. Ou seja, como uma proposta de unificação de diferentes ideias e de diferentes pessoas de diferentes culturas, para dar o novo rumo ao sistema de educação, quanto à proposição do uso terminológico intercultural ou interculturalidade na educação. O uso terminológico intercultural ou interculturalidade é apontado para um projeto de proposta alternativa que, no plano educacional, procura intervir nas mudanças induzidas pelo contato com as diversidades, cujo objetivo é promover atitudes abertas ao confronto e conduzir os processos aculturadores a uma integração entre culturas, para que não discriminem umas às outras. Pois, segundo
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Paola Falteri (1998, p. 39), “a perspectiva intercultural, de fato, começa somente quando se criam as condições para a troca, quando se estabelece uma relação de reciprocidade, quando, reconhecer o ‘outro’, nos tornamos conscientes da nossa própria cultura”. Assim, na percepção da pedagogia decolonial, pode-se colocar o uso do termo intercultural ou interculturalidade, como sendo um poderoso motor de renovação do pensar e do agir sobre a educação para todos. Além disso, há de perceber que Num sentido figurativo, a escola fundamental e média torna-se um imenso parque de estacionamento, onde se encontram jovens com as mais heterogêneas origens sociais, étnicas ou culturais e os mais díspares projetos de vida e aspirações pessoais. Sobre esse imenso parque, onde potencialmente se encontram todos os jovens até aos 18 anos de idade, acentuar-se-ão, do lado do social as pressões para que a escola seja dominantemente uma instância socializadora, sobretudo numa época marcada pela perda de influência, em determinados grupos e contextos sociais, de outras instituições básicas, como a família e as igrejas, e a emergência da comunicação social de massas como a mais influente instância socializadora. (TEODORO, 2003, p. 95).
Portanto, o parque de estacionamento aqui pode ser definido da seguinte forma: parque pode significar uma escola e estacionamento pode significar um lugar onde se pode realizar a ação. Logo, o parque de estacionamento é metaforicamente definido como um espaço escolar onde os diferentes sujeitos de diferentes origens sociais, étnicas ou culturais se movimentam e se unem para realizar o processo de aprendizagem. A interculturalidade presente nesse no espaço escolar, metaforicamente conhecido por parque de estacionamento do conhecimento, apresenta uma nova forma de partilhar conhecimentos produzidos de “modo outro” (WALSH, 2009). De “modo outro” aqui refere-se, pelo menos, à transmissão do conhecimento que se constrói a partir do diálogo e da troca de experiências vividas e faladas, ligadas fundamentalmente no
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modo de dizer, “isto é conhecimento”, e de fazer, “como pôr em prática o conhecimento”. Por isso que a teoria da pedagogia decolonial aposta sempre na humanização dos saberes (WALSH, 2014, p. 23). Isto é, a educação é, na teoria de Hannah Arendt (2011), uma ação essencialmente conservadora que “conserva a herança de saber e de experiência recebida do passado e transmiti-la às novas gerações” (CANIVEZ, 1991, p. 141). É preciso tomar o passado como modelo, para estabelecer a figura de um educador que possa representar e mediar a velha geração e a nova geração, colocando a educação como ponto em que um educador desempenha a sua função, e assumir a sua responsabilidade mediante de uma inevitável mudança que se realize com a vinda dos novos e jovens (ARENDT, 2011). Diante destas considerações, pode compreender proposições da educação intercultural, para pedagogias decoloniais, nos seguintes aspectos: • valorização do ser, isto é, valorizar a memória, o corpo e a natureza, o pensamento e as ações que envolvem o sujeito humano enquanto ser-político, ser-social, ser-pensador e ser-inovador; • inter-relação do ser na família, na escola e no trabalho: manter uma relação recíproca com o lar, não podendo deixar o lar como lugar estranho, mas considerando-o como espaço de vivência e de união dos membros da família, constituída culturalmente. Atuação em espaços como a escola e o local de trabalho pode ser movida pela participação ativa dos diferentes intervenientes, valorizando a diferença, e colocando essa diferença como ponto de partida do sucesso; • Conscientização dos cidadãos sobre os seus direitos e deveres associados à educação, conduzindo-os para uma aprendizagem individual ao coletivo para a formação de uma justiça social;
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•
O estado de pertencimento pode ser destacado como “pertencer a um lugar”, ou fazer parte de um lugar”, significa que cada ser humano faz parte ou pertence ao lugar onde viveram seus antepassados;
Nessas considerações, percebe-se que o respeito, o dizer e o fazer de “modo outro” têm um papel fundamental na constituição de sujeitos diferentes, ao direito de obter a educação. O mais importante é não afastar o “outro sujeito”, além de “nós”, nos espaços de aprendizagem, procurando humanizá-lo na conquista de saberes diversos. Não podendo considerar “a revitalização, revalorização e aplicação dos saberes ancestrais” como algo ligado apenas “a uma localidade e temporalidade do passado, mas sim como conhecimentos que têm contemporaneidade para criticamente ler o mundo, e para compreender, (re)aprender e atuar no presente” (WALSH, 2014, p. 24). Porque, “numa sociedade dependente” (FREIRE, 1987), é preciso pensar em valorizar a diferença e considerar o “outro sujeito” como algo a significar, para que o “nós” também seja respeitado como algo valioso no olhar desse “outro sujeito”; pois, parte de um princípio de que Um ser humano (...) não tem apenas uma mão [escola clássica] e um coração [escola das relações humanas]. Tem também uma cabeça, o que significa que é livre para decidir e para jogar o seu próprio jogo, embora precise do outro para dar o seu ponto de vista sobre a forma como se decide e se faz o jogo. (CROZIER, 1964, p. 149 apud LIMA, 2012, p. 20, grifo nosso).
Pelo fato, no sistema social, cada pessoa humana é considerada agente livre que pode discutir seus problemas e fazer negociações sobre o que está em sua posse, enfatizando o processo de integração e de adaptação. É necessário tomar uma atitude que pensa na cultura local e procura preservá-la, sem esquecer de acompanhar os acontecimentos
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ligados ao mundo global. Não se esqueça de treinar também os aprendentes com certas habilidades necessárias, para se adaptarem à real mudança que acontece no quotidiano, e educar os aprendentes com certas ideias possíveis para a sua produção ou a sua construção (FREIRE, 2011). Humanizar a ciência e o conhecimento é para responder o interesse comum da humanidade, isto é, o bem-estar da sociedade. O ser humano é intrinsecamente limitado e não tem o dom de adivinhar o futuro, pois quem decide o futuro é aquele que criou o mundo. Porém, o ser humano pode preparar-se para o futuro próximo através da educação e procura aprender com outros nas escolas e em outras instituições sociais estruturadas. Mas, antes de tudo, o ser humano deve primeiramente viver o presente, isto é, aprender o que precisa aprender no presente, e, depois, que se prepare para o futuro próximo. Essa expressão “se prepare” é um processo que vai ser seguido com várias realizações nas escolas ou nas instituições educativas, para alcançar aquilo que se pretende alcançar. Assim, segundo John Dewey (1979), a educação é um processo de vida que se prepare para o futuro, e não uma preparação para a vida futura. A escola deve representar a vida presente e não a vida futura. É nesse sentido que A educação do futuro deverá ser o ensino primeiro e universal, centrado na condição humana. Estamos na era planetária; uma aventura comum conduz os seres humanos, onde quer que se encontrem. Estes devem reconhecer-se em sua humanidade comum e ao mesmo tempo reconhecer a diversidade cultural inerente a tudo que é humano. (MORIN, 2000, p. 47).
Tudo o que é humano, fazer parte do sentimento de pertença e a cultura afirma essa tal pertença. Pois, a cultura é a base de afirmação da cidadania de um indivíduo ou de um grupo social. Por isso, a necessidade de reforçar um ambiente cultural em casa e na escola, com os valores democráticos e humanísticos. Assim, que se prepare para o futuro, pelo fato de estarmos diante de um presente aberto ao futuro.
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Educação para a cidadania democrática O termo “cidadania” está sempre presente de uma forma transversal a todas as disciplinas, e existem conteúdos que se adequam mais à educação da cidadania democrática. Significa que as áreas sócio-humanísticas prestam-se mais à educação para a cidadania democrática. Aliás, a cidadania é uma área muito abrangente, que pode ser ensinada em todas as disciplinas, tais como a história, a geografia, o português, as línguas e mesmo as artes. Quando se pergunta sobre a educação para a cidadania democrática, entende-se que também é uma questão da política e da ética do conhecimento na afirmação do ser cidadão. O conceito de cidadania/democracia é ensinado nas escolas públicas, através do currículo de ciências sociais, tal qual encontrado no texto de padrões de estudos sociais e livros escolares selecionados. Na teoria da pedagogia crítica, os currículos escolares são criados na formação do estudante-cidadão, pois, o estabelecimento do conhecimento público faz parte do processo social democrático e o ensino é a base fundamental de um processo de formação para a cidadania. No âmbito da valorização do ser humano na ciência e/ou humanização da ciência, o ensino é definido como um eixo estratégico para promover o desenvolvimento humano e social. É um fluxo contínuo que evolui para o reconhecimento e o fomento da ciência, da tecnologia e da Inovação. Saber-pensar e sentir-se pertencente a um lugar – uma família, uma origem, uma escola, uma comunidade – significa reconhecer o nosso papel como um ser-cidadão. Para isso, precisa aprender e se desenvolver com referências que possam construir a identidade do nosso próprio ser e conduzir a nossa participação na vida social. Somente por meio do reconhecimento mútuo, que dá a importância recíproca entre indivíduo e grupo, para que estes desenvolvam as ligações entre a vida
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individual e comunitária na sociedade. Portanto, o verdadeiro sentido da cidadania numa sociedade democrática está nessa relação recíproca. É preciso ter uma formação moral para construir uma cidadania democrática na educação. Embora, dizia Émile Durkheim (2008, p. 59) “A disciplina moral não serve apenas para a vida moral propriamente dita; sua ação tem um alcance mais amplo. Ela desempenha um papel considerável na formação do caráter e da personalidade em geral.” Vê-se, aqui, um pressuposto psicológico durkheimiano, em relação aparentemente a aquilo que realiza no grupo, que, em termos éticos, reflete a primazia da sociedade em relação a um ideal coletivo que é considerado de forma particular como um ideal humano (DURKHEIM, 2008). Nesse sentido, o papel da escola é estimular a inteligência e a razão humana com vista a possibilitar uma adesão a ideias claramente associadas às normas coletivas na criação da cidadania democrática, em aspectos morais e de desenvolvimento do conhecimento. A cidadania é construída na base da ideia de autodeterminação, que segundo Habermas (1997), é sustentada por uma fonte de legitimação das ordens jurídicas, e os cidadãos podem conceber-se, a todo o momento, com a participação social numa governação democrática. Nesse contexto, “o sistema de educação escolar pode afirmar-se como um lugar central de afirmação da cidadania numa sociedade comunicacional gerida de um modo dialógico” (TEODORO, 2003, p. 64). Talvez, por isso, é que a educação intercultural seja construída na base de uma educação democrática, enformada pela participação e emancipação de todo o cidadão. No âmbito deste que a educação para a cidadania exige a coerência entre os conteúdos abordados, as estratégias metodológicas adotadas e a organização dos contextos onde ela se desenvolve. Para tal, entende que educação para a cidadania democrática
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não se resume à aprendizagem dos direitos e deveres dos cidadãos mas passa essencialmente pela construção da escola democrática onde seja possível vivenciar situações de mútuo (re)conhecimento, valorização e respeito, que assumam um caráter formativo e potencializador dessa formação nos vários contextos de vida dos indivíduos. (ARAÚJO, 2008, p. 79).
Não se ensina a cidadania, mas aprende-se na cidadania, porque “a educação para a cidadania não é um conteúdo escolar ou um conjunto de atividades: é uma finalidade essencial das políticas educativas” (FIGUEIREDO, 2002, p. 54), que promovem a civilidade do caráter dos cidadãos. Assim, a educação para a cidadania pode ser entendida como uma disciplina que pode oferecer aos estudantes-cidadãos e aos cidadãos em geral: a) para adquirir conhecimentos sobre direitos humanos; b) para refletir sobre problemas de cidadania e de democracia; c) para a resolução pacífica e democrática de conflitos. Nesse sentido, classifica a educação para a cidadania como sendo uma disciplina fundamental para promover a democracia da instituição escolar. A instituição escolar tem obrigação de contemplar no seu projeto educacional a vontade e a intenção de conduzir a escola, desenvolvendo ideias de cidadania no currículo, para que possa transmiti-la aos aprendentes. É fundamental que desenvolva escolas democráticas com base na educação intercultural, onde todos os sujeitos de diferentes culturas participem ativamente de forma consciente e responsável, no próprio processo de desenvolvimento do caráter e do conhecimento. O mais importante ainda é que a instituição escolar desenvolva ações em uma e outra área que, talvez, não tem força para mobilizar ou realizar de forma autônoma o projeto de uma escola cidadã. Pois, “a educação não é apenas uma preparação para a vida mas para a própria vida.” (BEANE; APPLE, 2000, p. 16).
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Uma educação igualitária e solidária Na contemporaneidade, a educação igualitária e solidária é direcionada para promover e fortificar um genuíno espírito democrático, com os princípios basilares da democracia, tais como: a liberdade crítica de expressão; a aceitação do princípio de alternância de poder; compreender o poder como mandato e não como um direito prerrogativo do chefe; a cultura de responsabilização social; o primado da lei; a promoção da justiça e igualdade sociais; o respeito pelos direitos fundamentais, pelo bem-comum e pela tolerância. Para tal, a escola é desafiada a adaptar os seus métodos e planos curriculares às novas e rápidas mudanças que ocorrem um pouco por todo o mundo, sugerindo novas atitudes sociais e novas reflexões para a prosperidade dos estados e sobrevivência do gênero humano. A escola é considerada de referência do povo, significa que a sua atuação é basear-se na noção de uma educação igualitária e solidária. Descentralizar o sistema educacional é para garantir que a educação é para todos, isto é, dar a formação de forma igual a todo o cidadão com espírito solidário. Assim, reafirmo que a educação é a base daquele que se preocupa com a pessoa humana e sem isso, é quase impossível formar uma pessoa capaz de pensar na família e na sociedade. É necessário conscientizar o verdadeiro processo de aprendizagem, evidenciando o valor básico da pessoa humana, indicando-lhe o seu direito pela vida e o seu dever para com os outros. Diante do exposto, a educação é um instrumento que norteia a vida de cada pessoa humana. É um processo que favorece a aquisição de uma nova postura frente aos problemas enfrentados, favorece também a igualdade de acesso aos meios básicos de vida e manutenção da mesma, através de políticas públicas mais igualitárias. Para tanto, é necessário que a efetiva mudança aconteça quando todos os meios da sociedade estão a promover o processo de canalização da igualdade social por meio da educação.
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É preciso socializar a educação igualitária e solidária para combater os estereótipos e os preconceitos dos indivíduos e da sociedade. É preciso formalizar a educação igualitária e solidária como uma arma, para combater expressões preconceituosas e estereotipadas, lançadas por alguns indivíduos irresponsáveis. De algum modo, os estereótipos e os preconceitos podem constituir obstáculos à comunicação intercultural e à educação intercultural, porque são elementos desmoralizantes e que provocam uma situação desagradável na construção das relações sociais, isto é, quando escondem a realidade, as características dos indivíduos ou dos grupos de outras culturas ou subculturas através de generalizações abusivas, porque impedem as mensagens de serem bem recebidas ou emitidas e podem influenciar as percepções. (RAMOS, 2001, p. 168-169, grifo nosso).
Educação igualitária e solidária é também parte da definição da educação intercultural. A natureza ensina o homem que todos são iguais e são diferentes, por isso, não pode conhecer o “outro” apenas pela sua língua, mas pela sua cultura. Deste modo, na educação igualitária e solidária, aprende-se a reconhecer a presença da diversidade de pensamento das diferentes culturas. Todo cidadão tem responsabilidade moral e social pelo desenvolvimento da escola igualitária e solidária. Uma escola é considerada igualitária e solidária quando a sua atuação se manifesta nas seguintes atividades: a) promove um relacionamento aberto e dialógico entre alunos, professores, funcionários e comunidade; b) desenvolve projetos educativos ligados ao serviço social; c) trabalha com responsabilidade e rigor e organiza os serviços acadêmicos e administrativos escolares na base da gestão democrática; d) promove a cidadania ativa no desenvolvimento da educação;
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e) oferece o espaço escolar para a realização das atividades comunitárias; f) integra em suas disciplinas os conteúdos relativos ao meio ambiente, cidadania, direitos humanos, consumo consciente, sustentabilidade; g) desenvolve uma educação para a paz e para a diversidade cultural como espaço de aprendizagem; h) faz parte de uma rede de escolas que fortifica a troca de experiências e o espírito de solidariedade; i) cruza a teoria e a prática em projetos escolares desenvolvidos pelos professores e alunos. Nestes pressupostos, percebe-se que todo o processo de elevação do estatuto do ser cidadão através da educação, fundamentalmente capacitado no ensino com pedagogia crítica-teórica e pedagogia prática, é para tornar o cidadão responsável, dialógico, trabalhador, cultural e social. Em suma, a escola e o trabalho pedagógico podem ser compreendidos quando estão relacionados ao sistema das relações dialógicas entre as classes sociais, dando valor aos princípios da educação igualitária e solidária, para que educação escolar seja emancipadora e que possa dialogar com os diversos tipos de conhecimentos, sejam eles científicos ou interculturais. A escola, nesse sentido, é uma instituição a serviço das classes sociais desfavorecidas.
A tolerância e a solidariedade como outro conceito de Educação Intercultural A tolerância à diferença e a solidariedade aparecem como o cimento que une os movimentos sociais em uma rede planetária, pela qual promove a igualdade com respeito às diferenças culturais, assim como a luta contra os processos crescentes de exclusão social inerentes à globalização. Por isso que a educação deve ser perspectivada para a
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noção de interculturalidade, orientada para a construção da sociedade democrática, plural e humana. A respeito disso, Catherine Walsh (2001, p. 10-11) define interculturalidade, como: um processo dinâmico e permanente de relação, comunicação e aprendizagem entre culturas em condições de respeito, legitimidade mútua, simetria e igualdade. Um intercâmbio que se constrói entre pessoas, conhecimentos, saberes e práticas culturalmente diferentes, buscando desenvolver um novo sentido entre elas na sua diferença. Um espaço de negociação e de tradução onde as desigualdades sociais, econômicas e políticas, e as relações e os conflitos de poder da sociedade não são mantidos ocultos e sim reconhecidos e confrontados. Uma tarefa social e política que interpela o conjunto da sociedade, que parte de práticas e ações sociais concretas e conscientes e tenta criar modos de responsabilidade e solidariedade.
O pensamento dessa autora é referenciado por vários estudiosos de ciências sociais e vários países introduzem a perspectiva intercultural nas reformas educativas, mas até agora não há ainda um consenso comum sobre os desafios encontrados na aplicação da pedagogia intercultural, nem outros elementos como “nós próprios” e “outro nós” se articulam cognitivamente. Por isso que A educação intercultural apresenta-se como um projeto educativo que valoriza a diversidade sociocultural e que, simultaneamente aposta na reanimação da cultura através da comunicação, relação, convivência e encontro entre culturas. Esta comunicação intercultural é essencial e uma pedagogia da relação intercultural deve ter como base a compreensão e a tolerância, o reconhecimento do outro e da diversidade. Esta pedagogia possibilita não só a determinação das suas próprias representações, dos modelos do seu sistema de valores, mas também a identificação das representações e dos sistemas de valores e de
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normas dos outros indivíduos e grupos, constituindo um meio de conhecimento e de aprendizagem do outro e de compreensão intercultural. (ARAÚJO, 2008, p. 61).
Na vida rural, por exemplo, a tolerância, a diferença e a solidariedade ainda estão bem preservadas e respeitadas como ícones de mútua convivência. Ainda hoje, na vida rural registra-se uma grande riqueza de valores como a tolerância, o respeito e a solidariedade que pode ser muita valia para a educação e a escola. A proximidade e a solidariedade entre famílias da comunidade apresentam uma característica do sentimento de pertencer à localidade, e pela convivência que produz união, auxiliando uns aos outros como uma forma de viver coletivo. Significa aqueles que vivem no campo caracterizam o seu território como uma porção de terra que dá o sentido de pertença e estabelece certa unidade na convivência coletiva, tanto familiar como social. Portanto, a convivência é expressada pela proximidade física e pela necessidade de cooperação (PORTO, 1999, p. 65). O reconhecimento de diferentes culturas no sentido plural permanece fundamentalmente reforçado pelas relações éticas e relações dialógicas, embora reduzido ao binômio das culturas hegemônicas versus culturas subalternas. Por isso que muitas vezes, As perspectivas pós-coloniais emergem do testemunho colonial dos países do Terceiro Mundo e dos discursos das minorias dentro das divisões geopolíticas de Leste e Oeste, Norte e Sul. Elas intervêm naqueles discursos ideológicos da modernidade que tentam dar uma normalidade hegemônica ao desenvolvimento irregular e às histórias diferenciadas de nações, raças, comunidades, povo. (BHABHA, 1998, p. 239).
Aqui, pode aplicar-se o conceito de cultura no singular de sentido e que aparece como indício de procurar uma vida melhor, ou pelo contrário, provoca o temor do nivelamento e anulação das especificidades, porque se não dobra-se à economia do mercado que faz explodir
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novas marginalidades e novos localismos. Pois, “a marginalidade, fundamentalmente, é um modo não básico de pertencer e de participar de um conjunto de elementos na estrutura geral da sociedade, e no mesmo sentido de seus membros” (QUIJANO, 1973, p. 28). E, isso cria a complexidade das culturas no plural sentido que não só de classes sociais ou grupos territoriais, mas de faixas etárias, experiências, instituições, organizações produtivas (FLEURI, 1998). Portanto, o discurso pós-colonial não é construído no binarismo nem nas formas holísticas, mas no hibridismo do pensamento e das relações sociais possivelmente manifestados em qualquer lugar. É esse fato que Hommi Bhabha (1998) chama de “transnacional” ou “transnacionalização” do espaço onde se move o pensamento e as relações sociais. Embora, por um lado, a transnacionalização seja um conceito que se associa a uma nova ordem mundial, surgida a partir da intensificação das operações de natureza globalizante da sócio-política e do econômico-social no período pósguerra, isto é, após a Segunda Guerra Mundial, onde os EUA davam o seu apoio na reconstrução da Europa com o Plano Marshall ou Plano de Recuperação da Europa pós-guerra. Além disso, o Plano Marshall possibilitou a transnacionalização do capitalismo ocidental, sendo um dos motivos para a vitória da esfera de influência dos EUA, na Guerra Fria. A transnacionalização pode ser caracterizada também especialmente pela desterritorialização, expansão capitalista em todas as camadas da sociedade, enfraquecendo o sentido de afirmação da soberania de pertença e emergência de ordenamento jurídico gerado pelo monopólio estatal. Por outro lado, a formação das ideias faz parte da construção dos interesses, das identidades e da consciência partilhada pelos agentes transnacionais, particularmente no que diz respeito à transnacionalização da transferência dos saberes diversos pela revolução das tecnologias de informação e de comunicação. A solidariedade entre as escolas é um fenômeno recente que se forja no enfrentamento com o poder público. A solidariedade se estende
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também ao que se denomina “pessoal encarregador” da educação que tem por missão sustentar a escola onde seus filhos se encontram, para frequentarem os estudos. A valorização do “pessoal encarregador” é reconhecida pela sua prontidão em atender as necessidades da escola, por exemplo, ajudar a construir o muro da escola, arranjar as carteiras escolares e etc. Na sociedade contemporânea, há vários nomes para solidariedade, tais como: solidariedade grupal, solidariedade inter-escolas e solidariedade pessoal. Essas solidariedades representam um valor importante no mundo da educação, particularmente nas escolas. Portanto, Em uma democracia, a escola deve educar cidadãos ativos. Não deve preocupar-se em ensinar aos indivíduos como defender seus interesses materiais, sociais e profissionais. Não deve também treiná-los para as lutas políticas, para a competição pelo poder, para as manobras partidárias. A propósito deste, a escola deve dar aos seus cidadãos as preferências positivas, como dar-lhes a cultura e o gosto pela discussão, que lhes permitirão compreender os problemas, as políticas pretendidas, e depois conduzi-los para fazer debates sobre isso. (CANIVEZ, 1991, p. 157, grifo nosso).
Neste contexto, “as teorias críticas da educação viram-se forçadas a incorporar um elemento de conservação, na defesa de funções e de objetivos mais tradicionais da educação” (MORROW; TORRES, 1998, p.129). Num campo de experimentação institucional, a escola se identifica como um lugar estrutural e cabe a ela conduzir as futuras gerações com novos modos de pensar e de criar um homem novo e um mundo mais justo.
Conclusão A ideia da escola abandonada e a pedagogia truncada têm despoletado uma retórica moralista sobre a intervenção apropriada a esta matéria, gerando sempre acusações morais, políticas e ideológicas aos setores da educação e dos agentes educativos. Afinal, quem abandonou
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as escolas, quem deixa a pedagogia de aprendizagem a ficar truncada? Claro que são aqueles que decidem politicamente o caminho da educação de acordo com a sua ideologia política, porque em muitos países a justiça social e a defesa pública têm-se tornado meios através dos quais um grupo na sociedade impõe os seus valores sobre os outros. Aliás, as agências de educação são maioritariamente constituídas por pessoas com dinheiro que decidem e definem a legislação sobre o funcionamento do sistema da educação. É necessário considerar a escola como um valor para todos os seres humanos, tanto para aqueles que vivem na cidade como na periferia e nos campos rurais. Basta perceber que o homem tem uma educação que pode transformar o seu ser como um ser-útil para sociedade. Há que se compreender, também, que não existe uma educação verdadeiramente igualitária, porque há uma educação que vem da cidade e outra que vem, simplesmente, dos campos, para dar um exemplo de Timor-Leste, no que diz respeito à primeira, é cheia de recursos, acompanhada de professor qualificado e com apoio do material pedagógico relativamente novo proporcionado por convênios e cooperações internacionais (BARBOSA; CASSIANI, 2015). Porém, esses materiais produzidos são insensíveis às pessoas que vivem no campo, pois eles são dificilmente compreendidos. A gente do campo pensa apenas na sua mão, que foi feita para pegar a enxada, considerando a caneta como uma coisa pesada para escrever uma letra na ponta de uma folha. Contudo, as práticas escolares no mundo atual são bastante diferentes das práticas escolares dos séculos anteriores, significa que as escolas atuais estão abertas ao mundo tecnológico e à mercadorização. Isto é, abertas à realidade concreta e à atividade produtiva (econômica, social, cultural) desenvolvida pela comunidade escolar (professores e alunos), em uma intervenção crítica e criadora, suscitando a cooperação ativa de pais, de professores e de grupos da comunidade, fazendolhes agentes responsáveis de transformação social e cultural.
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