Aline Monteiro • Sheila Almeida Sabor de História • Perfis de cidadãos cujos antepassados ajudaram a construir o desenvolvimento de São Vicente
Sabor de
história
Perfis de cidadãos cujos antepassados ajudaram a construir o desenvolvimento de São Vicente
Aline Monteiro Sheila Almeida
sabor de hist贸ria
Aline Monteiro Sheila Almeida
sabor de história Perfis de cidadãos cujos antepassados ajudaram a construir o desenvolvimento de São Vicente
1ª edição - 2009 -
Copyright © 2009
Capa Montagem produzida com restos da parede da Casa de Pedra, edificada por volta de 1516 pelo bacharel Cosme Fernandes Pessoa. Martim Afonso de Sousa teria vivido na casa de 1532 a 1533, quando voltou para Portugal. Colaboração: Taísa Lira As fotos que estão sem assinatura foram feitas pelas autoras. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Monteiro, Aline; Almeida, Sheila Sabor de História: Perfis de cidadãos cujos antepassados ajudaram a construir o desenvolvimento de São Vicente Aline Monteiro, Sheila Almeida. — Santos : Edição das Autoras, 2009 Título original: Sabor de História
Orientação e revisão Márcio Calafiori
[2009] Todos os direitos desta edição reservados aline.monteiros@yahoo.com.br almeida.sheila@yahoo.com.br
Sumário
Introdução
Floriza Abrantes Ramos José Joaquim de Azevedo Neto Paulo Horneaux de Moura Filho Eglair Pereira Requejo Emílio Vaz Cid
Sugestões de leitura
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um dia abrirás esta torneira cabeça de leão e beberás da água que ela verte e sentirás um sabor de séculos percorrendo a tua garganta se expandindo pelas veias e artérias e saberás que valeu a pena ter vivido tantos anos para beber desta água Narciso de Andrade: O visgo do tempo A única coisa que o homem realmente entende, a única coisa que ele de fato conserva em sua memória, são os relatos. Hayden White
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Introdução
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ão Vicente foi fundada em 22 de janeiro de 1532 pelo colonizador português Martim Afonso de Sousa, tornando-se a primeira vila do Brasil. Ali foram instaladas a primeira Câmara Municipal das Américas, uma coluna de pedra edificada em espaço público chamada Pelourinho, uma cadeia e uma igreja, símbolos da colonização e bases da administração portuguesa. O título de primeira vila do Brasil é revivido há 27 anos com a Encenação da Fundação da Vila de São Vicente, espetáculo responsável por um dos principais momentos turísticos da Cidade, na praia do Gonzaguinha. A produção teatral ganha um mote diferente a cada ano, mas sempre retrata a chegada das caravelas lideradas por Martim Afonso, a fundação da vila e as lendas que adquiriram diferentes significados no convívio entre os índios e os portugueses. O Município está localizado junto à cidade de Santos,
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Compreende os anos entre 1500 e 1822. Está dividido nas fases de pré-povoamento, ciclo da cana-de-açúcar e o ciclo do ouro.
na Ilha de São Vicente, antes chamada pelos nativos de Ilha de Gohayó. A palavra de origem tupi quer dizer “separação por força”, em alusão ao afastamento entre a ilha e o continente, por interferência do oceano. O nome São Vicente tem origem em 22 de janeiro de 1502, quando em uma expedição o navegador Gaspar de Lemos passou pela costa brasileira, mapeando os principais acidentes geográficos. Na época, era costume batizar os novos territórios com o nome do santo do dia. Como 22 de janeiro é o dia de São Vicente, mártir da Igreja Católica, a ilha foi chamada assim, ratificada em 1532 por Martim Afonso. Como em todas as cidades, a construção histórica de São Vicente ultrapassa o período colonial. Como não poderia deixar de ser, a evolução do Município ocorre paulatinamente, por força da necessidade dos moradores, da iniciativa dos governantes e da participação popular. Imigrantes portugueses, espanhóis e de outras nacionalidades que aportaram nas terras vicentinas trabalharam para a construção do desenvolvimento da ainda chamada Vila de São Vicente. A Cidade compõe a Região Metropolitana da Baixada Santista — criada por uma Lei Complementar do Estado de São Paulo, em julho de 1996 — com Bertioga, Cubatão, Guarujá, Itanhaém, Mongaguá, Peruíbe, Praia Grande e Santos. Com 477 anos e quase 320 mil habitantes, São Vicente tem a segunda maior população da região;
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possui 29 bairros na área insular e continental, agregando um território de 146 km². Mudanças significativas em sua infraestrutura ocorreram em 1932, quando houve a celebração dos seus 400 anos. Floriza Abrantes Ramos, José Joaquim de Azevedo Neto, Paulo Horneaux de Moura Filho, Eglair Pereira Requejo e Emílio Vaz Cid, personagens deste livro, nasceram neste período. Aqui, eles narram parte da história de seus antepassados, cidadãos que podem até não ter nascido no Município, mas são considerados vicentinos pelo destaque que tiveram em iniciativas importantes para o seu desenvolvimento: no transporte, no turismo, no comércio, na cultura e na exploração da Área Continental. Parte desses feitos contribuiu para a elevação oficial de São Vicente à Cidade, em 31 de dezembro de 1895, de acordo com a Lei Municipal nº 31; este cenário é o pano de fundo das páginas que virão a seguir, com os perfis desses personagens que preservam as lembranças de cidadãos notáveis que ajudaram a construir a importância de São Vicente. No fim do século 19, a Vila começou a passar por modificações no transporte, com a circulação de bondes puxados por burros que pertenciam a uma linha inaugurada em 1875 pela Companhia Jacob Emmerich & Ablas. Antes disso, traçar caminhos e rotas era difícil, pois as construções e estradas ainda estavam surgin-
Em 7 de julho de 1873, dois anos antes da inauguração da linha, um bonde de tração animal circulou pela primeira vez em São Vicente, realizando um trajeto até a cidade de Santos.
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A fachada da Prefeitura foi tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Cultural e Turístico de São Vicente, em 2008.
do, fato documentado em 1880 pelo jornal Diário de Santos, segundo o qual só existiam sete ruas registradas em São Vicente. Em compensação, em 1893 estaria pronto para a residência de Julião Leocádio Neiva de Lima, o Julião Caramuru, o casarão que se tornaria o Palácio Martim Afonso, onde hoje está a Prefeitura. Ainda nesse período, a iluminação pública passava a funcionar com lampiões a querosene. Enquanto isso, José Joaquim de Azevedo erguia a primeira olaria da Cidade e iniciava a produção de artigos de barro. Ele chegou ao Brasil em 1866 e também construiu embarcações que chegaram a fazer a travessia no trecho onde fica hoje a Ponte Pênsil. Em 1905, a iluminação a gás acetileno era instalada pela primeira vez em uma casa vicentina. Quatro anos depois, era a vez dos bondes elétricos começarem a circular pelas ruas; os primeiros automóveis chegaram à Cidade só em 1910. Um dos primeiros foi trazido justamente por Azevedo. Nascido em 1940, José Joaquim de Azevedo Neto preserva histórias do avô e do pai, com quem aprendeu a valorizar São Vicente. A população só começou a usufruir de um sistema de abastecimento de água em 1889, após a construção de dois reservatórios no Morro dos Barbosas. Perto dali, morava o pescador João Pereira de Almeida, o João do Morro. Por volta de 1917, ele doou à Prefeitura a área
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por onde passava a água da Biquinha de Anchieta, uma das principais fontes de abastecimento da Cidade. Nascida em 1931, Floriza Abrantes Ramos conta que o avô construía cercas de bambus para preservar as nascentes da Biquinha, hoje um importante ponto turístico de São Vicente. O pescador João do Morro chegou ao Município em 1860. Tornou-se popular por salvar pessoas que estavam prestes a se afogar nas praias. Em meados de 1910, as terras da Área Continental de São Vicente começaram a ser exploradas para o extrativismo. O pioneiro Ignácio Gonzalez Requejo extraía e exportava a areia do sítio Samaritá, que servia de matéria-prima para a fabricação de vidro. A atividade trouxe riquezas para a Cidade. Eglair Pereira Requejo, um de seus netos, conta que um trecho do sítio foi vendido para a construção de um leito da Estrada de Ferro Santos-Juquiá, que mais tarde virou a Estrada de Ferro Sorocabana, fato que levou o progresso para o outro lado do Município. Assim como o transporte ferroviário recebia investimentos, a infraestrutura rodoviária também começou a se desenvolver. Perto de onde morava João do Morro, permanece até hoje um cartão-postal da Cidade que ele e José Joaquim de Azevedo viram ser construído: a Ponte Pênsil. Azevedo participou da inauguração do equipamento, em 1914. Na data, 180 automóveis da
Integra a Cidade fora do território da Ilha de São Vicente. Possui acesso pela Área Insular com a ponte Jornal A Tribuna sobre o Canal dos Barreiros e pelas cidades de Praia Grande e Cubatão, com a Rodovia Padre Manoel da Nóbrega.
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Com o surto da gripe espanhola e a superlotação da Santa Casa da Misericórdia de Santos, em 1918 foi iniciada uma campanha para construir um hospital em São Vicente, inaugurado em 29 de junho de 1921.
região, incluindo o dele, fizeram a travessia da ponte, marcando assim o incremento do turismo, que atualmente constitui com o comércio uma das principais economias de São Vicente. Em 1919, começava a instalação do meio-fio da Avenida Presidente Wilson, via que liga o Centro à orla da Praia do Itararé. O primeiro táxi começou a circular no mesmo ano, tornando necessária a regulamentação do trânsito de pedestres, cavaleiros e veículos nas ruas. O calçamento da Rua Frei Gaspar começou na década de 1920, quando também foram inaugurados o Hospital São José e o Mercado Municipal. No comércio, o local marcante para esse segmento é a Praça Barão do Rio Branco. Ali, em 1935, vicentinos viram ser erguido o maior prédio da Cidade, o edifício Anchieta, inaugurado por José Antônio Zuffo. Do outro lado da praça, funcionava a loja da família de Emílio Vaz Cid. Aos 67 anos, o comerciante relembra a primeira, a segunda e já pensa na terceira geração que continuará A Veranista, loja fundada pelo pai, Emílio Vaz Affonso, em 1943. Este chegou ao Brasil em 1919 e, em 1940, iniciou os negócios na Cidade. Com a experiência de quem cresceu observando o comércio do Centro, Emílio Cid conta como mantém o estabelecimento em atividade diante da intransigente concorrência das grandes lojas de rede. É na Praça Barão do Rio Branco que o padre Paulo
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Horneaux de Moura, de 83 anos, caminha todas as manhãs. Ele é neto do delegado Antero Alves de Moura, que viveu de 1864 a 1941, foi prefeito de São Vicente e fundou os jornais O Dia e A Época, além de colaborar com a construção da Escola do Povo, em 1893. Todos cumprimentam padre Paulo por onde ele passa. Pudera, além de ter realizado missas na Matriz de São Vicente por 13 anos, seus familiares são históricos. Seu tio-avô, Antão Alves de Moura, recebeu do então presidente da República, Floriano Peixoto, o título de capitão honorário do Exército Brasileiro pelos serviços prestados na Revolta da Armada. Também seu tio-avô, o capitão Luiz Horneaux foi um dos fundadores do Clube de Regatas Tumiaru. De 1951 até os dias atuais, a população de São Vicente aumentou em 287.765 habitantes. Naquele ano, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, divulgava um censo populacional que apontava 32.235 residentes na Cidade. O aumento do número de habitantes trazia novas preocupações quanto ao sistema de abastecimento de água, que se tornava obsoleto. Com a meta de resolver o problema, as obras da Adutora do Itu tiveram início em 1952 e foram concluídas em maio de 1953. Mais de dez anos depois, em 1964, outra mudança significativa ocorria no transporte vicentino. No dia 15 de novembro circularam pela última vez os bondes das linhas 2, 13, 22 e 32 que passavam pela praia. O bonde 1
Movimento ocorrido entre 1891 e 1894, sob a liderança dos almirantes Saldanha da Gama e Custódio de Melo, em oposição ao governo de Floriano Peixoto, acusado de tentar continuar no poder ilegalmente.
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percorreu as ruas vicentinas até 1º de junho de 1966, quando esse meio de transporte foi extinto. Em comum aos cinco personagens deste livro há o orgulho de preservar histórias que cruzam o passado, o presente e o futuro de São Vicente.
Aline Monteiro e Sheila Almeida
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Floriza Abrantes Ramos
João do Morro, seu avô, era pescador e se tornou popular por salvar pessoas prestes a morrerem afogadas. Ele zelava também pela área por onde corria a água da Biquinha de Anchieta, no Morro dos Barbosas, e acabou doando-a ao Município.
Floriza Abrantes Ramos
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la não gosta muito de falar de si mesma. Aos 78 anos, prefere contar histórias do avô, João Pereira de Almeida, o pescador João do Morro, um dos personagens que marcaram a história de São Vicente por ter sido dono de áreas que se tornaram referência no desenvolvimento turístico da Cidade. Em uma de suas propriedades, passava a água da nascente da Biquinha de Anchieta ou simplesmente a Biquinha, como é conhecida. Nascida em 7 de agosto de 1931 na casa construída pelo avô, no sopé do Morro dos Barbosas, Floriza Abrantes Ramos cresceu ouvindo casos envolvendo a família. Ela conta que João do Morro construía cercas de bambus para preservar e proteger as nascentes da bica. Como na época não existia serviço de abastecimento de água no Município, os moradores invadiam o cercado para ter acesso à fonte. Cansado da reconstrução das cercas, ele decidiu doar a área à Prefeitura de São Vicente.
Hoje, a Prefeitura utiliza bombas para puxar da nascente a água que é tratada e direcionada à bica.
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O local abrigou a primeira fazenda vinícola do País no período da colonização portuguesa e começou a receber plantações de café em 1755.
Sem lembrar exatamente da data, Floriza diz que a transação se efetivou por meio do compadre João Francisco Bensdorp, prefeito nomeado que administrou a Cidade de fevereiro a outubro de 1917. Bensdorp batizou Guiomar de Almeida, a 13ª filha de João do Morro. Foi a partir deste mesmo ano que a concessionária de abastecimento City Santos Improvements Co. passou a vender água para a Prefeitura de São Vicente, abastecendo posteriormente dois reservatórios no Morro dos Barbosas, em áreas que não pertenciam a João do Morro. Atualmente, lá existem reservas de Mata Atlântica, casarões antigos e uma travessa particular chamada Mussa Acras, que abriga casas mais simples. O morro está geograficamente relacionado a diferentes pontos turísticos. Em seu topo pode ser avistada a maior bandeira hasteada em mastro do País, posicionada ali desde a celebração dos 500 anos do Descobrimento Brasil, em 2000. Rodeado pela Ponte Pênsil e pela Praça 22 de Janeiro, o Morro dos Barbosas fica na área que divide as águas do Mar Pequeno e da Baía de São Vicente. Era nessa região que João do Morro navegava com as canoas Vicentina, Columbina e Trajana, tornando-se conhecido como o “pescador de peixes e de vidas”, como consta em uma nota biográfica sobre ele, escrita em 1913.
Floriza Abrantes Ramos
(...) No peito largo daquelle canoeiro não faria má figura a medalha Humanitaria que, si lhe não traz vantagens temporárias, tem pelo menos o mérito de ser para João do Morro uma honrosa recompensa de nossa gratidão (...)
O trecho se refere ao pedido feito ao presidente do Estado — na época, os governadores eram nomeados presidentes — para conceder uma Medalha Humanitária ao pescador, em 1904. A homenagem não ocorreu. Quem registrou isso foi o então jornalista de A Tribuna, Edison Telles de Azevedo, que conheceu João do Morro. No livro Vultos Vicentinos — Subsídios para a História de São Vicente, ele conta que a Câmara Municipal tentou também uma homenagem similar, solicitando ao ministro do Interior e da Justiça do Estado uma Medalha de Distinção, mas a honraria não foi efetivada:
Era João do Morro um tipo perfeito dos antigos navegadores, profundo conhecedor da profissão que desde longos anos abraçara. Conhecia todas as qualidades de peixes, e as marés. Previa facilmente o tempo. Observava, com carinho e satisfação, o mar em seus mínimos detalhes enamorando-se dele. Rápido e ágil, salvou, com sua canoa, vidas preciosas, arriscando a própria vida. Seus atos de heroísmo, humanidade e desprendimento não foram bem compreendidos pelas nossas autoridades. Aliás, não ligava para recompensas nem louvores. Seus feitos heróicos foram testemunhados por Deus, e sentia-se feliz com o conceito de que gozava e a gratidão dos salvados.
João do Morro salvou muitas vidas. Até mesmo autoridades foram resgatadas por ele em situações de
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Pintor nascido em Itanhaém, litoral Sul do Estado de São Paulo, em 14 de outubro de 1853. Autodidata, foi também desenhista, historiador e professor. Em seus quadros, retratou paisagens e fatos históricos da Baixada Santista. Morreu em 31 de maio de 1927.
perigo — o então presidente da Câmara, Hermann Hayn; o juiz de paz, Joaquim Vilas Boas Sobrinho; o intendente municipal, Salvador Leal; o delegado de polícia, Alberto Carvalho Drummond; e, à época, o subdelegado, Antero de Moura. — Meu avô nunca se envolveu com política, não sabia ler nem escrever, mas tinha amigos importantes — diz Floriza. Ele sustentava a família com a criação de porcos e frangos, da venda de ovos e das plantações de café e cana. Mas a pesca era a sua principal atividade. Floriza lembra que na volta das jornadas, os peixes eram comercializados, consumidos em casa e também distribuídos entre os conhecidos do avô. O pescador chegou a acompanhar Dom Pedro II na visita que o imperador fez à Vila, em meados de 1880. A comitiva passou pelo local onde fica hoje o Hotel Chácara do Mosteiro — na entrada do Morro dos Barbosas pela Rua do Colégio. Na época, o lugar abrigava uma casa de veraneio de propriedade dos padres beneditinos. Era da vista da mesma chácara que Benedicto Calixto se acercava da paisagem para pintála, isso por volta de 1900. João do Morro foi modelo da obra Os Falquejadores, pintada pelo artista em 1904. Floriza conta que o avô também colaborou na construção da Ponte Pênsil. Inaugurada em 21 de maio de 1914, a ponte é considerada o primeiro equipamento
Floriza Abrantes Ramos
deste tipo no País. Outra lembrança que tem do avô está relacionada a uma ressaca. No fim da década de 1940, o mar invadiu a Praça 22 de Janeiro, chegando à esquina da Rua do Colégio. Na ocasião, ela estava com cerca de 15 anos e lembra do desespero da população. — Meu avô avisou a quem ele pôde avisar que água estava vindo forte — relembra. São Vicente convive com as ressacas desde o período da fundação da vila. Construída muito próxima ao mar, a primeira delas destruiu a igreja Matriz da Cidade, a Casa do Conselho, a cadeia, os estaleiros e inúmeras residências, isso em 1542. As ressacas que ocorreram depois não foram tão graves, pois a vila já estava recuada para pontos mais elevados. Floriza diz que sempre ouviu dos mais velhos que existia uma espécie de vulcão na ilhota conhecida como Pedras do Mato — onde está o monumento Marco-Padrão de São Vicente. Na verdade, a história contada por Floriza reflete a modificação operada no local pela ação das marés. A ilhota Pedras do Mato era ligada ao sopé do Morro dos Barbosas. Com o tempo, as águas foram avançando terra adentro, transformando o local numa ilha de rochedos. De acordo com Floriza, o avô nasceu em Itapecerica da Serra, cidade hoje pertencente à Grande São Paulo. Ele estava com 17 anos quando chegou com a família em São Vicente. Foi ao morar na Praia do Itararé que iniciou
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Em 1933, um ano após o 4º Centenário da Fundação de São Vicente, o marcopadrão foi instalado na ilhota Pedras do Mato. Na inauguração, uma passarela de madeira foi construída ligando a pedra à Avenida Presidente Getúlio Vargas.
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As ruínas da casa do pescador João do Morro ainda existem no Morro dos Barbosas. O acesso a ele foi interditado pela Prefeitura, com a construção de um muro, a fim de evitar acidentes e o depósito de lixo.
o ofício de pescador. Herdou as terras no Morro dos Barbosas após a morte do pai, o fazendeiro Luciano Pereira de Almeida. João do Morro conheceu Ana Rodrigues de Almeida durante uma pescaria em Iguape, no Vale do Ribeira. Casaram-se em 1885. Tiveram 14 filhos, entre eles a mãe de Floriza, Alice. A família morava na casa da Praça 22 de Janeiro, onde parte dela viveu até 1973. A propriedade foi abandonada e demolida anos depois por estar com a estrutura comprometida. O canoeiro viveu 103 anos. Morreu em consequência de uma gripe forte, em 30 março de 1946. Atualmente, Floriza mora na Vila São Jorge, perto do 2º Batalhão de Infantaria Leve de São Vicente. Não herdou bens do avô, mas é responsável por um imóvel que pertence a sua tia Guiomar. Outro imóvel de propriedade da família, na Praça João Pessoa, permanece fechado por questões de inventário. A casa em que reside foi comprada após a morte do marido Milton Alves Ramos. Ele sofreu um infarto fulminante, em 1973. Depois que ficou viúva, nunca pensou em casar de novo: — Gato escaldado tem medo de água fria — diz, lembrando que se casou com o primeiro namorado. Floriza gosta de ficar em casa, um local de cinco cômodos repleto de objetos de decoração. Vasos com flores artificiais enfeitam um espaço entre as portas de dois quartos, que escondem coisas sem serventia. Quase
Floriza Abrantes Ramos
todos os móveis são cobertos por panos. Fotos dos familiares e bibelôs organizados em todas as divisões da estante são presentes que ela não pretende jogar fora. Os filhos reclamam da mania que tem de guardar tudo. Em uma das paredes da sala, um aparador dourado apoia miniaturas de deuses egípcios junto a um espelho. Nas outras paredes estão pendurados quadros com motivos religiosos, acompanhados de imagens de santos e folhetos de orações dispostos sobre os móveis. — Aqui vivo eu e Deus — enfatiza quando pergunto se mora sozinha. Observando os santos no móvel, confundi a imagem do padre Cícero com a do padre José de Anchieta. Criada na Igreja Católica, Floriza me corrige e conta: — Fiz a primeira comunhão. Eu saía vestida de anjo nas procissões. Congregada Mariana, ela já foi professora de catequese e queria ser freira, mas foi pressionada pela família a se casar. Agora viúva, ainda frequenta a igreja, apesar de se considerar médium: — Quando eu era pequena, fui levada a um centro espírita porque sofria desmaios. Hoje, se alguém está carregado e vem conversar comigo, olho nos olhos e já digo o que a pessoa tem. Lá no morro, eu era conhecida como “dona Maria Benzedeira”. Floriza tem dois filhos. Nilton nasceu em 1955, seis
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Jesuíta espanhol nascido em 19 de março de 1534. Chegou em São Vicente aos 20 anos, quando teve o primeiro contato com os índios. Foi um dos fundadores da cidade de São Paulo e morreu no povoado de Iritiba, atual Anchieta, no Espírito Santo, em 9 de junho de 1597.
Conhecido como Padim Ciço, Cícero Romão Batista nasceu em Crato, no Ceará, em 24 de março de 1844. Sua dedicação aos pobres resultou na construção de uma estátua de 27 metros, projetada na cidade de Juazeiro do Norte, onde morreu em 1934.
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anos após o casamento, e Milton, um ano depois, quando estava com 23 anos. A pequena diferença de idade e os nomes parecidos que o marido escolheu faziam com que todos pensassem que os garotos eram gêmeos. — Antes de tê-los, eu criei algumas crianças de famílias pobres — diz Floriza, ao contar que o marido se solidarizava quando conhecia pessoas que estavam passando por situações difíceis. Passeando pelos arredores do Morro dos Barbosas, em minha companhia e na da amiga Ana Maria Augusto dos Santos, de 68 anos, Floriza revive a subida da travessa Mussa Acras que afirma não intimidar “a menina que nasceu subindo morro”. Na Biquinha, tira da bolsa um copo retrátil e pergunta se queremos beber água. Ana Maria disputa espaço com os banhistas, enche o copo e bebe da bica. Floriza então relembra: — Quando eram crianças os meus filhos frequentavam os carrinhos de pipoca da Biquinha. Na década de 1960, aqui só eram vendidos amendoim, pipoca e cocada. Depois, isso aqui se transformou na feira de doces caseiros, com muitas barraquinhas, que ficaram famosas. Em 1996, as barracas foram urbanizadas com a construção de 22 boxes que funcionam até hoje com a venda de doces que, agora, não são mais caseiros. Era na Biquinha — um dos principais pontos turísticos da Cidade — que o padre José de Anchieta dava aulas
Floriza Abrantes Ramos
de catecismo e apresentava peças teatrais. A imagem que representa este período está desenhada no paredão do lava-pés. A Praça da Biquinha de Anchieta tem uma estátua em tamanho natural do jesuíta. Esta dá nome à fonte e a uma feira de artesanato montada diariamente no local, que deve ser substituída por 54 boxes de alvenaria até o fim de 2009. Floriza se orgulha de já ter estudado datilografia, taquigrafia, corte e costura e bordado. Além de já ter trabalhado como auxiliar de análises clínicas, auxiliar de radialista e cabeleireira. Mas seu sonho mesmo era ser enfermeira. Estudou para isso, mas o marido não a deixava trabalhar em hospitais. Após a morte dele, começou um estágio na área, mas a experiência não passou do primeiro dia. — Quando fui atender um paciente, vi o meu marido sentado em um dos leitos. Saí de lá e nunca mais voltei. Ele dizia que eu não seria enfermeira nem com ele morto ― conta, séria. Investiu então na profissão de cabeleireira e manicure, atividade na qual se aposentou, sem conseguir determinar exatamente o ano. — Acho que faz 20 anos — diz. Floriza não aparenta a idade que tem. Ela cuidou da tia Guiomar, hoje com 88 anos, até que os médicos sugeriram a sua internação em uma casa de repouso, em
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Estátua na Biquinha representa José de Anchieta escrevendo um poema na areia.
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razão do Mal de Alzheimer. Agora, a neta de João Pescador aproveita o tempo livre para fazer ginástica duas vezes por semana e cuidar da casa. Ela diz que aprendeu com o avô quais os fatores que influenciam a mudança do tempo e das marés. Com base nas fases da lua, quando exerceu a profissão de cabeleireira, passou a aconselhar as clientes sobre o melhor período para cortar o cabelo: — Eu avisava, por exemplo, que o cabelo cresceria mais bonito se fosse cortado na lua nova ou crescente. Para os conhecidos, Floriza insiste em fazer previsões sobre o tempo. Por exemplo, ela costuma alertar quando a chuva vem para durar apenas uma tarde ou dias. Na segunda quinzena de setembro, acertou em cheio ao garantir-me que a chuva só pararia depois de sete dias, quando teria início a lua crescente. A.M.
Floriza Abrantes Ramos
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Floriza Abrantes Ramos na casa da Vila SĂŁo Jorge, onde mora atualmente. Ela ficou no Morro dos Barbosas atĂŠ 1973, ano em que o marido morreu
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Floriza guarda muitas fotografias do avô, João Pereira de Almeida, o João do Morro. Na imagem à esquerda, ele posa em frente à casa do prefeito João Franscisco Bensdorp. À direita, o pescador exibe uma de suas canoas. Abaixo, uma foto histórica da sua casa, no Morro dos Barbosas
Reprodução: Casa Martim Afonso
Arquivo pessoal da família Almeida
Arquivo pessoal da família Almeida
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Arquivo pessoal da família Almeida
Floriza Abrantes Ramos
João do Morro retira água da Biquinha de Anchieta, hoje um dos principais pontos turísticos de São Vicente. Segundo a neta, ele construía cercas de bambus para proteger as nascentes da bica que, por muitos anos, foi uma das principais fontes de água da Cidade
A Biquinha era decorada por um paredão branco rústico datado de 1850, com cabeças de leões. A revitalização seguinte só ocorreu em 1943, quando o local ganhou um mosaico português, com pintura sobre azulejos, denominada terracota. A obra foi depredada no mesmo ano
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Em 1947, foi entregue à população a nova pintura do painel da Biquinha de Anchieta. A arte foi feita por Waldemar Moral Sendim. A foto da página seguinte mostra os 22 boxes construídos em 1996 para organizar a venda de doces na praça. Ao fundo, a Biquinha e algumas barracas de artesanato
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José Joaquim de Azevedo Neto
Seu avô, José Joaquim de Azevedo, trouxe um dos primeiros automóveis que circularam em São Vicente, construiu a primeira fábrica de tijolos e telhas e ampliou o transporte público da Cidade.
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osé Joaquim de Azevedo — o Juca Morgado — foi o proprietário de um dos primeiros automóveis trazidos para São Vicente. Noventa e nove anos depois, com 74.295 veículos acrescentados à frota da Cidade, há um descendente da família que pode contar essa história. Mas, por ironia, José Joaquim de Azevedo Neto chega para falar sobre o assunto de bicicleta. — Tenho um Fiat Uno 96 que nunca dá problema, mas justo hoje ele está no mecânico. Ainda bem que pedalar é um hobby, sempre gostei — esclarece. A sua bike é bem conservada, com amortecedores traseiros e 21 marchas. Apenas os pneus estão um pouco gastos, sinal de que não fica só de enfeite na garagem. Azevedo Neto também é dono de uma Caloi Speed, com pneus finos e guidão para baixo. Para pedalar, ele se veste a caráter, com boné, tênis, shorts e camiseta regata, disfarçando os 69 anos de idade pela Praia do Itararé.
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Nasceu em Macaé, Rio de Janeiro, em 1869. Foi o décimo presidente do Estado, e presidente da República de 1926 a 1930. Morreu em 4 de agosto de 1957, após apresentar sintomas de gripe.
A única lembrança material que ele tem do avô é uma foto publicada no livro Vultos Vicentinos — Subsídios para a História de São Vicente, que mostra dois homens sentados em um automóvel antigo, por volta de 1910. Na foto, quem o dirige pela manivela — já que o modelo não tinha volante — é Juca Morgado, aos 58 anos de idade. Ao seu lado, está o cunhado Heraldo Lapetina, que o ajudou a comprar o carro de Pérsio de Souza Queiroz, que, por sua vez, o importou da Alemanha. — Meu avô devia se sentir o próprio “Rei do Gado” — diz Azevedo Neto, rindo e apontando o avô na foto. Um dos orgulhos de José Joaquim de Azevedo foi ter participado da travessia da Ponte Pênsil quando esta foi inaugurada, em maio de 1914. O seu carro integrava a comitiva de 180 veículos, liderada pelo prefeito de São Paulo, Washington Luís. Um texto referente à inauguração do equipamento foi reproduzido pelo jornal A Tribuna, de 16 de março de 1969.
“O discurso do dr. Domingos Jaguaribe mostra como a ponte iria influir na vida social e turística da época. Antes, o transporte era feito por meio de botes. Agora, ´o oceano que separou por mais de três séculos S. Vicente do continente, desde hoje deixou de ser um embaraço às comunicações fáceis, podendo-se percorrer os 70 quilômetros da Ponta da Praia, em Santos, até Conceição de Itanhaém por uma praia de areia firme, formando uma avenida natural e única pelo espectaculo grandioso das mais bellas...´”
José Joaquim de Azevedo Neto
Azevedo marcou a história do desenvolvimento do transporte vicentino. Ele nasceu em 30 de setembro de 1852, no Villar dos Frades, província do Minho, em Portugal. Aos 14 anos de idade, veio para o Brasil num barco à vela, batizado de Santa Madalena. A viagem durou três meses. Aportando no Rio de Janeiro, trabalhou com um engenheiro que o trouxe para Santos. Após participar das obras do primeiro edifício da alfândega, mudou-se para São Vicente, onde, aos 39 anos, casou com Catarina Lapetina, isso em 1891. Na Cidade, naturalizou-se brasileiro e começou a trabalhar como arruador da Intendência Municipal, na execução de serviços rurais, atendendo requerimentos sobre edificações públicas. Nessa época, a Intendência doava terras aos munícipes. Estes tinham obrigação de erguer construções nas áreas. Se nenhuma obra fosse efetivada, o direito da doação era retirado. Pelas mãos de José Joaquim de Azevedo passou também o assentamento da linha de bondes puxados a burros. Em seguida, como proprietário, ele construiu a primeira olaria de São Vicente, entre 1885 e 1886, no antigo Paquetá, bairro conhecido hoje como Japuí. Registros históricos citam apenas que a fábrica de tijolos e telhas ficava próxima a uma pedra junto ao Mar Pequeno. Mais tarde ele construiu outra olaria, na Rua do Colégio. Quando não estava na Intendência, Juca Morgado tra-
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O sistema de intendências foi instituído em 1905 e foi utilizado até cerca de 1930. Nele, o presidente de cada estado apontava o intendente, hoje prefeito, de cada município.
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As receitas começaram a ser feitas por Maria Blume, avó da atual proprietária, Osnilda Blume. O comércio fica na Avenida Newton Prado, 49, ao lado da Ponte Pênsil. Espaço de embarque e desembarque localizado onde hoje está o início da Ponte Pênsil, no bairro Japuí.
balhava no sítio de sua propriedade, no Sambaiatuba, hoje Catiapoã, em uma grande oficina mecânica de ferraria e encanamento. Ali, em 1887, ele inventou a primeira canoa de rodas da Vila. A embarcação — com duas rodas laterais, impulsionadas por alavancas — era mais veloz do que as movimentadas por remos. Além deste invento, Morgado adaptou motores em barcos, tornando um deles apropriado para corridas náuticas. Antes da inauguração da Ponte Pênsil, Morgado chegou a disponibilizar embarcações de sua propriedade para a travessia de animais da Casa das Bananadas até o Porto do Campo. Sua forte ligação com o transporte levou-o a atuar como um dos empreiteiros responsáveis pela instalação da linha de bondes puxados a cavalo, em parceria com Antônio Emmerich. Em 1881, participou também da construção do primeiro hipódromo de São Vicente, extinto em 1894 por causa da Revolta da Armada. Somente depois de 55 anos é que foi erguido em São Vicente um novo Jockey Club, que deu nome ao bairro Jóquei Clube, existente até hoje. O eclético José Joaquim de Azevedo também foi o responsável pela implantação da lavanderia pública, no Largo de Santa Cruz, hoje Praça Bernardino de Campos. Ali se reuniam as mulheres que lavavam as roupas dos patrões e de suas famílias. O empresário ajudou ainda na obra do monumento ao IV Centenário da Descoberta do Brasil,
José Joaquim de Azevedo Neto
entre 1898 e 1900, na Praça da 22 de Janeiro e integrou parte da equipe que construiu a Escola do Povo. A ele pertenceu um terreno que começava no São Vicente Golf Club, passava pelas Indústrias Reunidas Vidrobras e ia até a antiga Estrada de Ferro Sorocabana, onde hoje é a Linha Amarela. A via ainda abriga os trilhos da antiga concessionária. José Joaquim de Azevedo Neto nunca procurou os documentos que comprovam a posse da área. O avô morreu em 27 de abril de 1933. José Joaquim de Azevedo Júnior — pai de Azevedo Neto — foi chefe do Alistamento Militar e do Departamento de Cadastro da Prefeitura de São Vicente. Ele tem o nome eternizado na Caixa Municipal de Pecúlios pelo trabalho exemplar que prestou à Cidade. Hoje, o filho lamenta não se recordar de detalhes mais claros e precisos da infância. Mergulha o olhar em direção ao chão e, sentado com uma mão sob a perna e a outra segurando a bicicleta, conta o que conseguiu guardar: — O meu pai levantava todos os dias às quatro da manhã e me acordava para ajudá-lo a colocar a canoa na água, para ir pescar. Não vou dizer que eu gostava disso. Eu tinha 10 anos! Queria mesmo era ficar dormindo. Eu ia reclamando, mas ia. Meu pai era muito severo. Lembro também de que todos os dias eu voltava à praia às 11 horas para ajudá-lo a recolher a canoa e levar os peixes para casa. Minha mãe sempre aprontava o almoço na
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Criada sob a Lei Municipal 1377/68, a Caixa de Saúde e Pecúlio dos Servidores Municipais de São Vicente visa assegurar assistência médica e odontológica aos servidores e seus dependentes.
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Foi prefeito de São Vicente por dois mandatos seguidos, de 1997 a 2004. Eleito em 2006, atualmente é deputado federal pelo estado de São Paulo.
hora certa para ele ir trabalhar. Às 3 da tarde, em ponto, eu tinha de estar na Prefeitura, esperando-o no refeitório com o chá que a minha mãe preparava. Aposentado desde dezembro de 2008 como chefe do Departamento de Tributos, Azevedo Neto tem passe-livre na Prefeitura de São Vicente. O prédio abre para visitação e atendimento ao público às 9 da manhã, mas às 8 ele já estava lá dentro. Os passos rápidos indicam a sua firmeza e segurança ao percorrer um local que lhe é tão familiar. Após cumprimentar os guardas e ser saudado pelos funcionários e ex-colegas de trabalho, logo se dirige ao setor onde começou a trabalhar aos 18 de idade: — Isso aqui mudou muito. Agora está muito mais fácil de trabalhar — avalia. Referindo-se à reestruturação física da sala, Azevedo Neto conta que antes o escritório não possuía tantas divisórias e o balcão tinha um vidro com uma abertura pequena, o que dificultava o atendimento aos munícipes: — Uma vez, uma senhora chegou aqui e precisou se abaixar demais para conseguir falar com o funcionário. Furiosa, ela subiu para reclamar com o prefeito Márcio França, que mandou mudar o sistema de atendimento na semana seguinte. Agora, a repartição tem um balcão mais amplo, onde atende Edinaldo dos Santos, chefe da Fiscalização de Tributos. Ele substituiu José Joaquim de Azevedo Neto,
José Joaquim de Azevedo Neto
que se diverte ao contar que quando trabalhava na seção havia uma brincadeira: todos os nomes eram acrescidos de um “r” no meio. Edinaldo virava “Edinaraldo”; e Azevedo, “Azeveredo”, e assim por diante. Com 30 anos de experiência na repartição e 46 anos de idade, Edinaldo dos Santos concorda com Azevedo Neto quando este se refere às dificuldades do setor, quase sempre envolvendo políticos e seus apadrinhados e até mesmo munícipes que se julgam superiores aos outros, uma embaralhada teia de privilégios que os funcionários da Fiscalização de Tributos tentam desmanchar. Interessado em atualizar-se quanto às principais pendências do setor — referentes à revisão de isenções a aposentados —, Azevedo Neto demonstra estar por dentro quando o assunto são as mudanças físicas por que passou o prédio da Prefeitura. Ele conta: — Antigamente, onde ficava o elevador, havia uma bomba de combustível elevada da Shell, onde os caminhões que prestavam serviços ao Município abasteciam; a entrada e saída de veículos era pelo portão de trás, na Rua João Ramalho; na sala de xerox, ficava o Serviço de Alistamento Militar, onde eu trazia sempre o chá para o meu pai; e aqui, no IPTU, ficava o refeitório. Azevedo Neto não esteve sempre na Prefeitura. Ele começou a trabalhar no serviço público em 1958, quan-
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Os veículos estão guardados no pátio da Secretaria de Transportes, Segurança e Defesa Social de SãoVicente (Setrans), na Rua Theotônio Gonçalves Corvello, 532, Cidade Náutica.
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Agora denominado Parque Ecológico Voturuá, o local mede 850 mil m² e possui trilhas da Mata Atlântica e um minizoológico.
do o Horto Municipal tinha quatro anos de funcionamento. Para ingressar na administração municipal foi preciso passar uma espécie de concurso. Aprovado, foi ser operário na Produção de Parques e Jardins. Deixou a função para prestar o Serviço Militar Obrigatório. Depois, atuou como ajudante geral na indústria de cigarros Souza Cruz e, voltou para a administração pública nomeado pelo prefeito. Como escriturário já ajudava no Setor de Tributos. Decidiu tentar outra carreira e foi admitido como controlador de painéis na Cosipa, em Cubatão, onde ficou de 1971 a 1978. Ele conta: — Não dava mais para ficar lá. Era horrível. Tinha acidente quase todos os dias. De volta à Prefeitura, mais uma vez por nomeação do prefeito, exerceu a função de fiscal de tributos, passando, mais tarde, a chefe de departamento, cargo em que permaneceu até se aposentar, em 2008. Enquanto visita o prédio em minha companhia, Azevedo Neto é abordado por funcionários que fazem questão de parar para cumprimentá-lo. Além de “Azeveredo”, foi chamado de “Zeca”, “Zequinha” e “Zezinho”. — Meu pai teve mais seis filhas mulheres e dois homens. A primeira filha foi a Cremilda. A partir daí, ele gostou da ideia e passou a registrar todos com “cre”. Vieram Crescira, Crenira, Credídia, Crenídia, Creuza, Creso e Cremiro. E eu, o mais novo, José Joaquim de
José Joaquim de Azevedo Neto
Azevedo Neto. Ah, que alívio! — diz, brincando. Neto conta que nas reuniões de família os irmãos se divertiam tentando descobrir que outro nome com “cre” ele poderia ganhar. Nessas reuniões rolavam as histórias que o pai, José Joaquim de Azevedo Júnior, contava aos filhos. Neto fez questão de ressaltar uma sobre a esperteza de um padre em um reino imaginário: — A majestade descobriu que havia um padre no reino que não fazia nada, apelidado de Padre Sem Cuidados. Procurando algo para o tal padre fazer, o rei mandou chamá-lo. Preocupado, o vigário mandou um amigo em seu lugar. No palácio, o rei fez três perguntas: “Quantos jacás de terra têm aquele morro?”. O amigo do padre respondeu que dependia do tamanho do jacá. A segunda questão era: “Onde ficava o meio do mundo?”. O homem respondeu que era exatamente onde estava e que, se duvidasse, mandasse outro recontar. Na terceira pergunta, o rei disse que o homem só sairia ileso se lhe respondesse o que ele mesmo, o rei, estava pensando naquele momento; e o amigo do padre respondeu: “Vossa majestade pensa que eu sou o Padre Sem Cuidados”. Satisfeito de ter passado a história adiante, Azevedo Neto ri ao lembrar do amigo, o padre Paulo Horneaux de Moura Filho que hoje, aposentado, não gosta da história. Além de contar casos para os filhos, Azevedo Júnior escrevia histórias para os jornais A Tribuna e S. Vicente Jornal.
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Era uma seção do jornal A Tribuna. Nela, José Joaquim de Azevedo Júnior contribuia escrevendo fatos do passado de São Vicente.
Azevedo Neto guarda os textos que a mãe recortou e colou em um caderno de capa dura: — Eram dois cadernos. Um, a minha sobrinha pegou, e este dei um jeito de esconder... Nos recortes guardados, o pai registrou na seção “Reminiscências Vicentinas”, a história do primeiro clube de futebol de São Vicente, de 1901; o caminho percorrido pela água da Biquinha; os antigos comércios, chamados de “sêcos e molhados”; e até uma festa junina organizada pela família. Na última página, ele próprio, José Joaquim de Azevedo Júnior, aparece numa charge feita em sua homenagem pelos funcionários do cadastro da Prefeitura. O desenho foi publicado no dia em que se aposentou e o mostra indo pescar, já que teria mais tempo para o hobby. Declarando-se mais atarefado do que quando trabalhava na Prefeitura, Azevedo Neto insiste que precisa ir embora para casa. Embora aposentado, sua rotina é intensa: cuida e limpa o terreno da casa onde cria cerca de cem cães encontrados na rua. Para isso, acorda cedo; depois, vai buscar o pão na única padaria de que a mulher gosta. Em seguida, preparara o seu leite em pó, pois não gosta do leite de caixinha; lê o jornal; faz palavras cruzadas e tem de estar sempre pronto e atento para levar a sogra ao médico. Apesar de se considerar ranzinza — e parece mesmo, já que implica com tudo —, Azevedo
José Joaquim de Azevedo Neto
Neto deixa escapar evidências de que é romântico com a mulher, Edna, a quem chama de Nenê. Seus cinco filhos, porém, não são com ela, mas com a primeira esposa, com quem casou aos 22 anos de idade, permanecendo assim por 24 anos. Respondendo à minha última pergunta, o neto do homem que trouxe um dos primeiros automóveis para São Vicente diz: — Se tenho um sonho?... O de todo o brasileiro: ter um carro mais novo. Podia ser igual ao meu mesmo, mas mais novo. Só isso! S.A.
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Arquivo pessoal: Família Azevedo
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Na página anterior, José Joaquim de Azevedo Neto com recortes de textos publicados pelo pai em jornais da época. Uma das colagens, reproduzida ao lado, é uma charge em homenagem à aposentadoria de Azevedo Júnior
Reprodução
Abaixo, José Joaquim de Azevedo no volante de um dos primeiros carros trazidos para São Vicente. Ele está ao lado do cunhado Heraldo Lapetina.
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Inauguração da Ponte Pênsil, em 21 de maio de 1914. Antes da construção, Azevedo disponibilizava suas embarcações para atravessar animais até a outra margem
Reprodução: Casa Martim Afonso
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Paulo Horneaux de Moura Filho
Entre outras atividades importantes, os familiares do padre atuaram na ampliação da linha de bondes e na construção da Escola do Povo, prédio onde funciona hoje a única Escola Técnica Estadual da Cidade.
Paulo Horneaux de Moura Filho
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poiando-se na bengala, padre Paulo Horneaux de Moura Filho caminha devagar. Aos 83 anos de idade, ele faz a Praça Barão do Rio Branco parecer o jardim de uma pequena cidade do interior. Os vendedores das lojas o cumprimentam. Senhorinhas, ambulantes e mendigos também. Um motorista brinca que não vai deixálo atravessar a rua, mas para o carro e espera passar o homem que não precisa usar clergyman — a tira branca colocada sob o colarinho da camisa — para ser reconhecido e tratado como padre. Paulo Horneaux nasceu em São Vicente em 15 de dezembro de 1925. Ele foi pároco da igreja São Vicente Mártir, a Matriz de São Vicente, de 1990 até 2003. Mas a popularidade que obteve no sacerdócio não teve início aqui, e sim nas casas populares da Bacia do Macuco, no Estuário, em Santos. Foi lá, no início da década de 1970, que o padre começou a atuar junto aos jovens, aproximando-
A igreja atual é a terceira construção, datada de 1757. A primeira foi destruída pelo maremoto de 1542 e a segunda, por piratas. A data da invasão da Cidade não consta nos livros históricos.
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os da igreja. Padre Paulo incentivava a prática de esportes, como o futebol, que era praticado em pequenos amistosos nas ruas ou em terrenos baldios. Durante a missa de Páscoa de 1972, ele notou a alegria com que alguns meninos faziam música batucando em latas nas proximidades da paróquia São Jorge Mártir, onde era o primeiro vigário. Após a missa, padre Paulo aconselhou o grupo a se organizar para desfilar no bloco "Dona Dorotéia, Vamos Furar Aquela Onda?" A turma levou a sério, se uniu e formou o Bloco de Carnaval Mocidade Independente de Padre Paulo. Mais tarde, o grupo conseguiu autorização para ensaiar em uma quadra municipal, dando início à fundação da escola de samba santista Mocidade Independente de Padre Paulo, em agosto de 1974. O padre conta como reagiu diante da notícia de que uma escola de samba receberia o seu nome: — "Mas que ideia! — exclamou — Dar o nome de um padre a uma escola de samba!" Jean Herrero, um dos fundadores da escola, tentou justificar: — "Isso é normal, padre! No Rio de Janeiro tem uma escola chamada Mocidade Independente de Padre Miguel." — "Padre Miguel é uma estação de trem que fica num bairro que também tem esse nome, rapaz!" — tentou argumentar o padre.
Paulo Horneaux de Moura Filho
Sem conseguir convencer os jovens a mudar o nome da escola, a única alternativa que teve foi contribuir com o grupo, saindo à frente da agremiação nos desfiles do carnaval de Santos. Muitos estranhavam o envolvimento do padre na escola de samba, mas ele sempre manteve o respeito à igreja, desfilando ao lado das irmãs, com vestimenta normal, sem fantasia e, claro, sem batina. — Era apenas um cortejo de apoio aos meninos. Ainda temos contato. Entrei na avenida com eles nos primeiros seis anos. Havia quem não quisesse mais me pedir a bênção e na época o bispo Dom David Picão se tornou muito severo comigo, embora fosse um grande amigo — confessa padre Paulo. A escola de samba foi campeã do carnaval de Santos pela sexta vez em 2006. Segundo o padre, o enredo de 2010 vai se chamar Sensação. Orgulhoso, ele diz que a maior sensação da escola foi ter contado com a presença de um padre. Em um carnaval, o jornalista Carlos Tramontina, da TV Globo, perguntou-lhe o que um padre fazia numa escola de samba. Ele respondeu que “o samba é a alegria do povo, e o povo, a alegria de Deus”. O sacerdote garante que essa frase foi repercutida diversas vezes pelo jornalista. Padre Paulo atuou em Santos durante 37 anos. Período em que deu aula para turmas do curso de Direito da Universidade Católica de Santos e lecionou Cultura
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Assumiu a função de 4º bispo da Diocese de Santos em 13 de dezembro de 1966. Faleceu em 30 de abril de 2009.
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Religiosa no Colégio Santista e no Escolástica Rosa. Ele também manteve programas nas rádios Cultura, Tribuna e Atlântica. O retorno para a cidade em que nasceu ocorreu após forte apelo dos fieis para terem um padre vicentino. Em São Vicente, viveram também três de seus antepassados, homens que se destacaram em atuações profissionais relacionadas à administração da Cidade. Padre Paulo é neto, por parte de pai, de Antero Alves de Moura, que veio de Portugal em 1882, com os irmãos Antão e Adão Alves de Moura, que morreu ainda jovem. — Eu convivi mais tempo com o meu avô, mas posso dizer que tanto ele, quanto Antão, embora tivessem uma vida social muito intensa, nunca deixaram a família de lado — diz. O capitão Antão Alves de Moura, seu tio-avô, nasceu em 1865, em Portugal, na cidade de Penafiel. Em São Vicente, tornou-se vereador em 1900 e quatro anos depois assumiu a função de primeiro-secretário da Câmara, que tinha como presidente Hermann Hayn. Administrou a Cidade de 1906 a 1915. Teotônio Gonçalves Corvelo foi prefeito interino durante o ano de 1914, por causa do afastamento de Antão de Moura. Os livros históricos não narram o porquê do afastamento. — Minha família sempre foi simpatizante da política de direita. Via os intelectuais da Revolução France-
Paulo Horneaux de Moura Filho
sa como inimigos. Meu pai achava que eu seria político, mas nunca fui tão apaixonado pela política quanto ele — conta padre Paulo. Antão Alves de Moura recebeu do então presidente da República, Floriano Peixoto, o título de capitão honorário do Exército Brasileiro por serviços prestados na Revolução da Armada. Quando exercia a função de intendente municipal, ele atuou em diversas obras na Cidade, como a instalação da Ponte Pênsil, prolongamento da linha de bondes, ampliação da rede de instalações elétricas, abertura da estrada para Praia Grande e da ligação viária, pela praia, de São Vicente com Santos. Casado com Horieta Brunckenn Ribas, descendente de vicentinos e cubatenses, Antão de Moura teve dois filhos, Egas e Eulina. A esposa Horieta prestava serviços de assistência social, área considerada precária na época. Ela distribuía alimentos e medicamentos aos pobres. Antão de Moura foi delegado e comerciante, proprietário de um armazém de “sêcos e molhados”, a Casa do Antão, na Rua XV de Novembro. Ali se reuniam os cidadãos que fundaram, em 1893, a Escola do Povo, em um imóvel em frente ao armazém. Em 1898, a escola foi transferida para a Praça Coronel Lopes e, sob a administração do Estado, passou a ser denominada como Primeiro Grupo Escolar de São Vicente. Hoje, o prédio abriga a primeira Escola Técnica Estadual da Cidade.
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Antes de permanecer na Praça Coronel Lopes, a escola também funcionou em um imóvel no Largo Batista Pereira, a Praça João Pessoa.
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Antão Alves de Moura morreu aos 66 anos, em 1931. O capitão tornou-se nome de rua. A Antão de Moura liga as avenidas Luis Antônio Pimenta e Senador Nereu Ramos, no Parque Bitaru. Irmão de Antão, Antero Alves de Moura, avô de padre Paulo, nasceu em 1864 e era dono da concessão de transporte de passageiros e cargas. Suas lanchas saíam de um ancoradouro onde fica a Casa das Bananadas. A Ponte Pênsil ainda não havia sido construída, e na parte do continente, as lanchas faziam o ponto final no Porto do Campo. Antero de Moura, como o irmão, foi delegado por 21 anos. Costumava levar comida da própria casa para os presos. A cadeia e Câmara funcionavam no Largo Batista Pereira, a Praça João Pessoa, onde está hoje o Mercado Municipal. O delegado também participou da fundação da Escola do Povo. Além disso, colaborou com a construção do novo prédio que foi erguido para a escola na Praça Coronel Lopes. Fundou em São Vicente os jornais O Dia e A Época, mas faleceu como despachante aduaneiro em Santos, em 1941. Antero de Moura nomeia a via que começa na Rua Frei Gaspar e termina na Rua Doutor Wenceslau Brás, na Cidade Náutica. Antero de Moura havia se casado em 1897 com Izabel Horneaux, filha de franceses que era chamada pelos mais próximos de dona Titina. O irmão de Izabel, Luiz Horne-
Paulo Horneaux de Moura Filho
aux, também contribuiu com a história da Cidade. Vicentino, nasceu em 21 de setembro de 1888. Participava do Centro Municipal de São Vicente, um partido de oposição, e como militar foi responsável por organizar na Cidade a sucursal do Tiro de Guerra (TG) nº 11, por ocasião da Primeira Guerra Mundial (1914—1918). Preocupado com a comunidade, o capitão criou o primeiro curso de alfabetização para adultos no intuito de auxiliar os militares que só se dedicaram à carreira militar; participou também da erradicação da gripe espanhola com integrantes do TG nº 11. Luiz Horneaux era comerciante e apaixonado por esportes. Ele está entre os fundadores do Clube de Regatas Tumiaru, que, em 1905, tinha sede náutica no Costão do Morro dos Barbosas. Pedalando a toda velocidade em sua bicicleta, ele saía da sede do Tumiaru e seguia até o Bar Sport, na Praça Barão do Rio Branco. Na prática do esporte, o capitão vestia camisa de punhos e colarinho fechados, boné e calças presas à barriga da perna. Morreu aos 32 anos, e deu nome à Avenida Capitão Luiz Horneaux, que tem início na Avenida Antônio Emmerich e termina na junção das avenidas Doutor Alcides de Araújo e Penedo, na Vila Melo. Paulo Horneaux de Moura, pai de padre Paulo, é filho de Antero de Moura e Izabel Horneaux, que tiveram no total 14 filhos. Coincidentemente, Paulo de Moura conheceu a então futura mulher, Antonieta Lapetina de
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Centro de treinamento cívico que ensinava práticas e técnicas militares. O Serviço Militar Obrigatório foi decretado pelo presidente Afonso Pena, no início do século 20. O Tiro de Guerra nº 11 foi fundado no dia 25 de janeiro de 1908.
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Moura, aos pés de Nossa Senhora do Monte Serrat. Começaram a namorar depois que Paulo de Moura voltou dos estudos que havia realizado na Inglaterra. Como a família Moura era muito culta, e a de Antonieta humilde, o casal enfrentou preconceitos: — Meu avô era boníssimo e minha avó uma mulher justíssima. Então ela adotou a nora como filha. Mas logo minha mãe conquistou todos com o macarrão que preparava todo domingo — relembra padre Paulo. As irmãs mais velhas do padre já faleceram. Clélia foi casada e seus filhos vivem fora do Brasil. Célia faleceu há dois anos e sempre foi solteira. Durante a infância do sacerdote, a família morou na casa que ficava na esquina da Rua Ipiranga com a Jacob Emmerich. Padre Paulo considera este o período áureo da família. O pai era advogado e trabalhava em uma casa inglesa que comercializava café, mas o fanatismo que tinha pelo Santos Futebol Clube atrapalhou a vida financeira da família. Paulo de Moura atuou na secretaria do clube de 1927 a 1935 e sempre acompanhava o time nas viagens. Por causa dos períodos de afastamento, a empresa decidiu demiti-lo. — Perguntaram se meu pai preferia o trabalho ou o Santos. Ele escolheu o Santos — conta padre Paulo. Ele diz que o pai permaneceu desempregado por seis anos, até começar a trabalhar no jornal A Tribuna. A paixão pelo clube foi passada ao filho. Padre Paulo é santis-
Paulo Horneaux de Moura Filho
ta e entre 1983 e 1985 ministrou palestras para os jogadores do time. O padre foi homenageado pelo Santos, que batizou uma Unidade de Formação Profissional de Padre Paulo Horneaux de Moura, em agosto de 2006. A unidade fica no Centro de Treinamento Rei Pelé e oferece cursos profissionalizantes aos jovens moradores do bairro Jabaquara. — Na minha vida eu busco ser santo, porque Santos eu sei que já sou — diz padre Paulo, orgulhoso. Durante o período em que o pai esteve desempregado, a família passou um período na casa de Antero de Moura, que morava em frente à igreja Matriz. Desse período, 1935, ele preserva na lembrança as conversas que mantinha com o avô: “As maiores recordações humanas que já tive”. Ainda menino, com cerca de 10 anos, saía todas as noites para passear com ele na praça pouco iluminada da igreja Matriz. Lá, sentavam e olhavam o céu. Padre Paulo mostrava as constelações Órion e Cruzeiro do Sul para o avô. Este ficava impressionado. — Depois, ele voltava para casa e contava à minha avó o que havia aprendido. O céu material me atraia. O sky, como dizem os ingleses. Porque o céu de Deus para eles é heaven. Nós, brasileiros, não fazemos essa distinção. Mas depois descobri que o meu fascínio não era pelo céu das estrelas, e sim pelo céu da grande estrela, a estrela de Deus — conta o padre.
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Atual Colégio Martim Afonso, cujas atividades foram iniciadas em 1931, na residência da família da professora Zina de Castro Bicudo. Em 1939, passou para a Rua 11 de Junho como o primeiro ginásio de São Vicente e transferido depois ao governo do Estado, em 1948.
Paulo Horneaux era considerado ótimo aluno. Estudou no Colégio São Paulo e concluiu o ginásio no Colégio do Estado, atualmente o Colégio Canadá, em Santos. Foi após esse período que decidiu seguir para o seminário. — O filósofo e santo São Tomás de Aquino disse que amar é fazer alguém feliz, e o amor é o ponto alto da minha vida — diz. Aos 17 anos, ele ia começar a namorar uma moça quando sentiu a vocação mais forte. Pensando sobre seus afetos, padre Paulo chegou à conclusão de que se tratavam de sentimentos fraternos, e decidiu escolher o sacerdócio. — Minha vocação veio como toda vocação deve vir, aos poucos, como uma semente que Nossa Senhora colocou no meu coração. Até que um dia tive de escolher entre a Maria da terra e a do céu. Escolhi a do céu — diz emocionado. Padre Paulo conta que a jovem que gostava dele entendeu que não poderia atrapalhar a vocação e se tornaram amigos. Segundo ele, a sua religiosidade é reflexo da grande devoção, característica da sua família. — Mas os meus pais não sugeriram que eu me tornasse padre — enfatiza. Aos 18 anos, entrou para um seminário, em Campinas. A clausura o deixou doente do estômago. Então, foi obrigado pelos médicos a voltar para casa:
Paulo Horneaux de Moura Filho
— Quando me recuperei, percebi que o meu pai não simpatizava com a minha vocação. Ele queria que eu fosse advogado, como ele, até que um juiz de direito aconselhou-o a não me cercear, a exercer a liberdade que defendia nos textos que escrevia em meio à Segunda Guerra Mundial. Depois do conselho do amigo, meu pai chegou disse: “Meu filho, vá estudar o que você quer. Só lhe peço uma coisa, seja padre com pê maiúsculo.” Com o apoio do pai, Paulo Horneaux iniciou o Seminário Central do Ipiranga, onde cursou sacerdotismo e filosofia. Saiu com 27 anos, mas nunca parou de estudar. Hoje, aposentado da função de professor universitário, padre Paulo só celebra missas quando recebe convites. Ele mora no apartamento que era de sua irmã Clélia, na Rua Jacob Emmerich. Por isso, é tão fácil encontrá-lo no Centro da Cidade, onde compra diariamente pelo menos dois jornais na banca da Praça Barão do Rio Branco. Escreve crônicas, poesias e versos religiosos, mas se recusou a mostrar. Apenas declamou um verso que escreveu: — “Eu amo tanto, tanto, que às vezes penso não ser meu amor santo. Mas a verdade é que o amor, para ser santo, é necessário que ele seja tanto, que se aproxime o mais possível do amor de Cristo, que por ser santo, seu amor era tanto.” Cada vez que o padre fala de amor menciona Maria,
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a mãe de Jesus, chamada de Nossa Senhora e representada na figura de diversas santas da Igreja Católica. Sua devoção o fez inserir a palavra Maria em seu nome quando comemorou 50 anos de sacerdócio, em 2003. Agora prefere ser chamado de padre Paulo Maria Horneaux de Moura. — O amor por Maria foi uma das razões que me levaram à Renovação Carismática Católica (RCC), fortalecendo esse movimento católico em São Vicente, na década de 1990. Padre Paulo conta que para ser fiel a Jesus passou por muito sofrimento na sua “luta humana”: — Evitei muitos apegos e afagos. Diziam que eu era um padre boa pinta. Existia assédio, às vezes violento, mas eu dizia: “Filha, estão dizendo que gostas de mim. Acontece que já estou comprometido com uma mulher, com Maria, a mãe de Jesus — recorda. — Vivi meus anos de padre amando Nossa Senhora de um modo extraordinário. Também amo São Vicente desesperadamente. Tudo aqui me traz recordação. A.M.
Paulo Horneaux de Moura Filho
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Padre Paulo Horneaux de Moura na Praรงa Barรฃo do Rio Branco, o seu jardim de cidade do interior
Reproduções
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Reprodução: site Várzea Santista
Padre Paulo sempre apoiou a prática esportiva. Nesta foto, ele posa de pé, no meio de um time de futebol. Ao seu lado direito, com gravata preta, está Athié Jorge Cury, que foi presidente do Santos Futebol Clube de 1945 a 1971 Acima, o busto de Antão Alves de Moura, tio-avô do padre, que exerceu a função de vereador e de primeiro-secretário da Câmara; e também prefeito. À esquerda, Antero Alves de Moura, avô do padre. Ele foi delegado por 21 anos, fundou dois jornais e atuou também como despachante aduaneiro.
Luiz Horneaux, à direita, era tio-avô do padre Paulo. O capitão Luiz Horneaux de Moura foi responsável por organizar o Tiro de Guerra nº 11, ajudou da fundação do Clube de Regatas Tumiaru, que tinha sede náutica no Morro dos Barbosas. Seu nome foi eternizado numa avenida que dá acesso à Rodovia dos Imigrantes, na altura de São Vicente
Paulo Horneaux de Moura Filho Na Praça João Pessoa, fica a igreja São Vicente Mártir, a Matriz da Cidade, onde padre Paulo celebrou missas de 1990 até 2003
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Eglair Pereira Requejo
É neto de Ignácio Gonzalez Requejo, o empresário que explorou a Área Continental de São Vicente, a fim de extrair e exportar para a Argentina areia para a fabricação de vidro.
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música não tem nada a ver com a exploração de terras, mas na família Requejo essas atividades aproximam descendentes que nem se dão conta disso. Tudo começou em fevereiro de 1891, quando o espanhol Ignácio Gonzalez Requejo chegou ao País, com 16 anos de idade. De pais abastados, em meados de 1910 ele comprou uma área de 935 alqueires, dividida em duas partes: uma adquirida de Francisco Xavier dos Passos e a outra de Marcelino José Nogueira. Juntos, os terrenos formavam o Sítio Iguá, hoje correspondente a uma área do bairro Vila Samaritá, na Área Continental de São Vicente. Assim, Requejo se tornou o primeiro explorador de terras do Município a lidar com o extrativismo, exportando areia para a Argentina para ser utilizada como matéria-prima na fabricação de vidro. Filho de Érico Gonçalves Pereira e de Sarah Requejo Pereira, Eglair Pereira Requejo — como o próprio sobrenome
Primeiro demarcador de ruas de São Vicente. Conhecido como Chico Botafogo, tocava baixão, pois não existia ainda o baixotuba, na Sociedade Musical 22 de Janeiro. Nasceu em São Vicente em 3 de março de 1838 e faleceu em 22 de agosto de 1915.
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Organização beneficente, fundada em 1865, na cidade de Londres. A entidade chegou ao Brasil em 1922. Hoje, atua em 115 países por meio das igrejas e da assistência social.
indica — é neto de Ignácio, que adorava música; tanto, que foi um dos fundadores da Sociedade Musical 22 de Janeiro. ― O meu pai não fez parte da entidade musical fundada por meu avô, mas adorava tocar. Lembro dele com o violino... Que coisa! ― suspira, relembrando a cena de olhos fechados, enquanto movimenta o braço direito para frente e para trás, como se estivesse com um arco, tirando sons de um instrumento imaginário. ― Meu pai se reunia com amigos que tocavam violão, cavaquinho, bandolim... Foi dele que herdei o dom da música ― diz Eglair, sem atribuir a influência do dom também ao avô, talvez por distração. Caçula de uma família de três irmãos — Ewald, o do meio, faleceu de hepatite, e Ércio, o mais velho, afogado —, Eglair tocava apenas por passatempo. Primeiro uma flauta que o pai lhe comprou na feira. Mais tarde, foi presenteado com uma gaita harmônica e, depois, aprendeu a tocar violão. Com a tragédia familiar, Érico e Sarah buscaram conforto espiritual na igreja. Deste modo, colocaram o filho que restou no Exército de Salvação, onde, aos 10 anos, ele teve a oportunidade de aprimorar o talento musical. Começou com o saxofone e, logo em seguida, aderiu ao trompete. Ao se afastar da religião, Eglair começou a se apresentar em bailes, ou, como prefere dizer, virou músico, se apresentando com o Everest.
Eglair Pereira Requejo
Formado por seis integrantes, o conjunto — como se dizia na época — se tornou conhecido pela execução de mambos, boleros e sambas, isso já no fim da década de 1950. Eglair é aposentado da Petrobras, mas o seu verdadeiro orgulho é a carteirinha com o registro de músico profissional. Ele passa muita confiança com a voz calma e o modo seguro de falar. No entanto, ao contar sobre o passado, mede um pouco as palavras. ― Eglair, se você pudesse voltar no tempo, o que consertaria? ― pergunto. ― Ah, eu mudaria muita coisa. Perdi muito tempo na vida, na adolescência, quando me afastei de Deus. ― Mas o que exatamente o senhor fez para se arrepender tanto? ― Ah, muitas coisas. Passei pelos contratempos da vida ― enfatiza. ― Mas, se pudesse voltar atrás, o que não teria feito? ― Eu já respondi isso. Misterioso, ele muda de assunto e me leva para a sala onde mantém porta-retratos com a fotografia de cada um dos filhos, Márcio, Marcos, Marta e Marcelo. No dia seguinte, volto ao assunto de sua adolescência e repito as perguntas: ― O senhor se arrepende de alguma coisa que fez quando jovem?
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― Não. Acho que não. Foi uma época boa... ― Quando se afastou da igreja não se envolveu com coisas erradas? O senhor disse que havia perdido tempo com coisas da vida... ― O que eu falei?... Coisas da vida?... ― diz rindo ― Até acho que tive uma juventude animada; o período do conjunto foi bom também, conheci muita gente... Neste ponto da conversa, Eglair reforça a importância da fé. Com a tranquilidade de sempre, ele elogia a mulher e, com orgulho, diz que ela foi a responsável por mudanças importantes em sua vida. ― Só voltei para a igreja quando me casei com a Denise, aos 33 anos de idade. Ela que me levou para o bem de novo. De volta à igreja, Eglair só esperou enturmar-se para libertar a sua veia musical numa canção, que compôs na década de 1980. Ele canta: “Bem logo de manhã, eu vejo a tua luz. É boa a tua paz. Eu sou de ti, Jesus. Vem buscar só Jesus. Cristo vai te salvar. A verdade aqui vai a você libertar.
Eglair Pereira Requejo
Quando o senhor voltar, Vai aos céus nos levar Para com ele estar No celeste lugar.
Vem, Jesus. Venha já Venha nos consolidar Espírito Santo, Deus a nós Vem cuidar”.
Em 1988, quando estava com 48 anos, ele começou a trocar os versos de felicidade e fé por poemas tristes. Foi quando ele caiu do telhado de casa. ― Como morávamos perto da praia, era só ventar que a calha ficava entupida de areia. Dias antes do acidente, tinha chovido muito e eu falei para o Eglair não subir no telhado, porque estava escorregadio. Mas foi só eu ir ao mercado e quando voltei encontrei a casa cheia de gente, com uma ambulância na porta ― conta Denise. Eglair fraturou o crânio em três partes. Uma delas o deixou três anos sem movimentos e por mais 12 anos completamente surdo, aguardando o implante coclear para voltar a ouvir. ― Tentei compor no período em que estava completamente surdo, tinha as notas musicais na minha men-
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te, mas tive de aprender leitura labial e parei. Desde então, doei todos os meus instrumentos musicais para a igreja e nunca mais toquei nada. Em sua casa, na Avenida Capitão-Mor Aguiar, ao receber as visitas, Eglair costuma mudar de ambiente. Como a sala tem uma janela muito próxima à rua, para que o ruído dos carros não atrapalhe as conversas, prefere a sala de jantar. Desde a entrada já é possível notar os muitos quadros com motivos de caminhos infinitos e flores de todas as cores e tipos ornamentando as paredes. ― Você não acha que aqui tem quadros demais? ― pergunta Eglair, explicando em seguida que a mulher Denise os pintou. Já na sala de estar, uma mesa com seis cadeiras e oito quadros compõem o ambiente. Sete das obras são de flores e uma do rosto de Jesus. Nos acomodamos. Eglair tira do bolso da camisa uma embalagem com meia dúzia de baterias. ― Não ando sem isso. Quando a potência do meu aparelho auditivo está pela metade, já tenho dificuldade para ouvir ― e ajeita o aparelho. Ele conta que quando sofreu o acidente foi desacreditado pelos médicos. Ao ter alta do hospital, descobriu que estava com uma infecção hospitalar. Hoje, Eglair agradece a esposa que, junto com uma enfermeira, cuidou dele. Apesar dos 68 anos, não fica se queixando. A
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completa recuperação e a força de vontade permitem que ele pratique hidroginástica e natação duas vezes por semana. Sua aparência fragilizada, com passos vagarosos e as rugas próprias da idade, engana. No dia da entrevista, ele me fazia companhia enquanto eu aguardava a carona chegar. Quando começou a chover, correu rápido até o fim da rua, arranjando abrigo embaixo de um toldo. Por causa da deficiência auditiva — o aparelho não oferece sensibilidade suficiente para distinguir as notas musicais —, Eglair passou a se dedicar ao segundo hobby favorito, o de escrever. Enquanto não estava na igreja, ele pesquisava em sua Bíblia os nomes com que Deus é evocado. Após relacionar as informações e catalogálas em ordem alfabética, publicou a obra intitulada Os Versos de Deus. Já na quinta edição bancada por ele mesmo, o livro reúne em quase quatro mil versos, 15.768 denominações divinas. Os últimos cinco volumes tiveram capa verde, amarela, azul, branca e vermelha. Organizado, ele arranjou um modo de guardar a memória familiar, transformando pastas em grandes álbuns de fotografias. As imagens ficam coladas em uma folha sulfite com o nome de quem está na foto. Cada folha é guardada em um plástico. Muito se perdeu por causa da umidade. Mesmo criticando a presença do bolor em algumas páginas, Eglair me mostra o álbum com fotos do
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Capa do livro escrito por Eglair
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pai e dos irmãos. Preserva também a história do avô. É o único dos netos de Ignácio Gonzalez Requejo que escreve sobre as terras da Área Continental pertencentes à família. Retira as informações das reuniões entre os parentes, que acontecem desde 1985. ― Tenho quase um dossiê, documentando tudo o que discutimos nas reuniões. São cerca de 200 páginas datilografadas. Na época do acidente, uma prima escrevia para mim. Agora não sei o que faço com as informações, mas acho que vou escrever um livro — diz com expressão de dúvida. A documentação Eglair guarda a sete chaves. Quando toca no assunto, deixa transparecer algumas de suas características mais marcantes, a insistência e a determinação. Quando quer, ele contorna as perguntas e foge do assunto. Mas mesmo pretendendo guardar segredo deixa escapar o motivo de tanto suspense: ― A família começou a se interessar pelas terras porque percebeu que o terreno deixado pelo avô era grande o suficiente para ser aproveitado. Uma empresa cuida da parte judicial para comprovar que as terras pertenceram ao meu avô e, em troca, ficarão com parte do terreno. ― Que empresa é essa, Eglair? Vão construir uma indústria ou algo assim no bairro? ― Também não posso falar. Apesar do segredo, conta sobre as informações his-
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tóricas que conseguiu reunir. Segundo ele, o terreno que pertenceu a Ignácio Gonzalez Requejo, hoje conhecido como Vila Samaritá, corresponde a mais de 730 alqueires paulistas de terra ou uma área de mais de 17 km². Uma matéria do jornal A Tribuna, de 10 de abril de 1988, informa que Requejo possuiu 935 alqueires paulistas do denominado Sítio Iguá ou Samaritá, mas Eglair explica que, segundo a sua pesquisa, a diferença dos números se dá porque parte do sítio foi vendida para a construção da antiga Southern São Paulo Railway, sucedida em 1927 pela Estrada de Ferro Sorocabana, que mais tarde se tornou a linha Santos-Juquiá. Hoje, seria impossível chamar de Samaritá toda a extensão onde Ignácio Gonzalez Requejo tinha terras, pois o bairro tem apenas 2,81 km² de extensão. A confusão dos números ocorre porque antigamente toda a Área Continental de São Vicente era chamada de Distrito do Samaritá. Com o tempo, a Prefeitura criou bairros e eliminou outros, como a Vila Matias, a Vila Iolanda e o Jardim Rio Negro. Atualmente, a Área Continental possui nove bairros: Jardim Irmã Dolores, Jardim Rio Branco, Humaitá, Parque Continental, Parque das Bandeiras, Vila Samaritá, Vila Emma, Vila Nova Mariana e Vila Nova São Vicente. Nas terras que lhe pertenciam, Ignácio Gonzalez Requejo mantinha plantações para subsistência própria e também para vender os produtos no próprio comércio e
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Homenagem à espanhola Maria Dolores Muniz Junqueira, a Irmã Dolores, pelos trabalhos sociais que desenvolveu nos antigos bairros Quarentenário e Vila Ponte Nova, unificados após a sua morte, em 2008. Em 2005, aos 79 anos, seu nome foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz.
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Trecho da Linha Férrea da Southern São Paulo Railway.
no do irmão Ricardo Requejo. ― Minha avó materna contava histórias do meu avô. Ela dizia que tinha saudades das frutas que havia no sítio, como bananas, abacaxis, cajus e também das verduras que o meu avô cultivava. Além de utilizar o plantio para o consumo da família, o avô de Eglair mantinha o armazém de sêcos e molhados e o salão de bilhar, a Casa Requejo Bilhares. Funcionando no Largo Baptista Pereira, hoje Praça João Pessoa, o negócio comercializava principalmente carvão vegetal, produto da lenha que queimava no próprio sítio. De acordo com Eglair, o avô também teve um chalé na Rua Jacob Emmerich, 24, no Centro de São Vicente. A casa foi alugada por muitos anos para a sede da Delegacia de Polícia, cujo delegado era Antero de Moura. Com a exploração das terras para a exportação da areia, o comércio e o aluguel do chalé, Requejo ficou conhecido e tentou entrar na política. Foi candidato a vereador, mas só conseguiu uma suplência na Câmara. Ao morrer em 14 de novembro de 1944, aos 69 anos de idade, deixou dez filhos e 25 netos. No dia de sua morte, o comércio fechou as portas em sinal de luto. Das terras que pertenceram ao antigo bairro Vila Samaritá, hoje restam oficialmente lá: uma igreja, uma Unidade Básica de Saúde mantida pela Prefeitura, uma base policial e três escolas. Uma delas foi, inclu-
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sive, a primeira da Área Continental, a escola Armindo Ramos. A unidade fica no terreno que pertencia a Armindo Ramos, que também vendeu parte de suas terras para implantação da Southern São Paulo Railway. A unidade de ensino até hoje fica no mesmo lugar e mantém a estrutura original, construída inicialmente para residência dos engenheiros que trabalharam na implantação da ferrovia. Onde hoje está a Ponte dos Barreiros passava somente uma ponte ferroviária que dava acesso à Área Continental. Antes, quando a ferrovia ainda não existia, o acesso rodoviário era feito por Cubatão ou Praia Grande, pela rodovia Pedro Taques, hoje conhecida como rodovia Padre Manoel da Nóbrega. Ignácio Gonzalez Requejo não viveu para ver a construção da Ponte dos Barreiros, mas Eglair sim. As obras, que inicialmente foram pensadas para se parecerem com a Ponte Pênsil ― com vigas de madeira, com mão única de direção alternativa, sob controle de semáforos ― começaram em 1986 e terminaram em 1994. Mesmo assim, o local não estava completamente pronto para uso porque a Avenida Angelina Pretty, duplicada em 2004 e que hoje liga a Ponte dos Barreiros ao bairro Jardim Irmã Dolores, não estava pronta. Mesmo depois da ponte, da avenida e da melhora do acesso aos bairros, a Vila Samaritá não cresceu como o esperado. Por causa do abairramento, que re-
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Iniciada em 1908, quando a Prefeitura de Santos autorizou o assentamento de uma linha de ferro que ia até Conceição do Itanhaém, cruzando São Vicente, e chegando a Peruíbe e Juquiá.
Primeira mulher a integrar a Câmara Municipal de vereadores no ano de 1955, legislando até 1982. Nasceu em 28 de outubro de 1915 e faleceu aos 81 anos, em 1996.
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ordenou os bairros na Cidade, o local só abriga 1.472 moradores dos cerca de 100 mil habitantes da Área Continental. Eglair não sabe ao certo quantas famílias estão na área que pertence aos Requejo. Prefere esperar enquanto escreve o próximo livro e junta dinheiro para comprar um aparelho auditivo de melhor qualidade, para voltar a tocar. S.A.
Eglair Pereira Requejo Eglair Pereira Requejo, na sala de jantar, com um dos álbuns onde guarda a memória fotográfica da família
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Reproduções: Arquivo pessoal da família Requejo
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Eglair também preserva as lembranças de seus momentos em relação à música. À esquerda, com o violino, que aprendeu a gostar ouvindo o pai. Abaixo, um pouco mais velho, tocando trompete
Eglair Pereira Requejo
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Da esquerda para a direita, os irmãos Ewald, Ércio e Eglair. Abaixo, Eglair aparece no centro da foto com o trompete. Os outros integrantes eram do Exército de Salvação
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Emílio Vaz Cid
O pai, Emílio Vaz Affonso, iniciou o comércio de calçados na década de 1940. A loja cresceu com o Centro de São Vicente e é ainda uma das mais antigas em funcionamento na Cidade, sob a administração da mesma família.
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seu Emílio é aquele homem de cabelos brancos atrás do balcão”, informa um jovem vendedor na porta da loja. Após os corredores formados por prateleiras repletas de calçados, se vê o tal homem: alto (mede 1,84), tem olhos castanhos-escuros e usa óculos de hastes marrons. Quando cheguei ao balcão, ele me olhou sério e logo deu-me as costas para pegar algo, que estendeu oferecendo: — Se faltar alguma coisa, me liga. Deixou comigo um saco plástico desses de feira, com um cartão da loja colado com durex. Dentro dele havia três folhas dobradas escritas à caneta. Em vez de contá-la a mim, Emílio Vaz Cid preferiu resumir em 524 palavras os seus 77 anos de vida. Mas ele não é de conversar muito. Costuma deixar isso para a mulher, Dilma, que o ajuda na loja. Sempre ocupado, ora está num telefonema com cara de preocupação, ora fala com
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um representante comercial, fazendo um pedido que pode durar quase a tarde toda. Esse escudo revela uma de suas principais características: a timidez intensa, que lhe imprime a aparência de um senhor severo demais. — Não sou assim, não. Só não gosto de falar sobre mim — disse-me ao interromper a conversa ao telefone, para pedir à mulher um palpite sobre a compra de uma mercadoria. Quando ele resolve conversar e se sente mais à vontade, sou informada de que o homem sistemático, despreocupado com a aparência, muitas vezes veste roupas que a mulher escolhe: — Tenho muitas camisas, mas gosto só de algumas. Uso sempre as mesmas. Por isso, a Dilma acaba escolhendo o que eu visto. As camisas de mangas compridas sob um colete de lã acinzentado são usadas apenas quando vai ao médico ou precisa tirar fotografia. No dia a dia, Emílio Cid é adepto do tênis branco e do casaco surrado, daqueles que a gente não se desfaz porque é gostoso usá-los com calça jeans. Nessas ocasiões, quem o vê na loja com roupas mais descontraídas pode até confundi-lo com um cliente, não fosse pelo hábito de ficar ajeitando pares de sapatos. Para os funcionários que costumam avaliar as pessoas pelo modo de se vestir, ele aconselha: “Nunca julguem alguém pela aparência.”
Emílio Vaz Cid
A loja de sua propriedade também não deve ser considerada pelo aspecto. A porta de entrada se torna pequena, abaixo do grande letreiro com o nome, na rua Frei Gaspar. O estabelecimento guarda parte da história da família que fundou o 15º comércio oficialmente registrado no Município de São Vicente. Com o mesmo nome até hoje, A Veranista é uma das mais antigas lojas de família em funcionamento no Centro da Cidade. Há outras, como a Casa das Bananadas, fundada em 1921, mas a Prefeitura não tem mais os registros das 14 inscrições municipais anteriores à A Veranista. Para os mais atentos, a pista que revela a importância do local está nas paredes, onde fotos amareladas coladas próximas ao caixa e atrás do balcão dão indícios de que a rotina daquele senhor, já de sobrancelhas acinzentadas, é quase a mesma, desde os 10 anos de idade, quando começou a trabalhar com o pai. Nos últimos 67 anos, Emílio participou da evolução do Centro da cidade que mais movimenta hoje o comércio da Baixada Santista. — Eu não tenho nenhuma importância histórica. Sou importante apenas para a minha família —, diz, ainda se queixando por ter de falar sobre si mesmo. Filho dos imigrantes espanhóis Emílio Vaz Affonso e Assumpção Cid Vaz — atualmente com 102 anos —, Emílio Vaz Cid nasceu em 8 de dezembro de 1932, predestinado a herdar a loja da família, junto com o irmão
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mais velho. Cursou Direito apenas para ter um diploma universitário. Considera o trabalho e a honestidade as principais heranças deixadas pelo pai, que quatro anos após a sua morte, em 1978, foi homenageado com o nome de uma rua, no bairro Japuí, fruto do reconhecimento pelo trabalho em prol do desenvolvimento de São Vicente. Nascido em 1905, na cidade de Mourisco, Emílio Vaz Affonso chegou ao Brasil com 14 anos de idade. Antes de começar o negócio em que o filho trabalha e administra até hoje, foi office boy e trabalhou no restaurante da Bolsa Oficial de Café, em Santos. Logo, montou o seu próprio negócio no Clube Comercial do Gonzaga. Em 1940, decidiu começar a carreira no comércio vicentino. Seu primeiro estabelecimento foi o Bar Royal, na Biquinha. Depois, adquiriu da família Spilotros uma loja de calçados, a Casa piloto, que ficava na Rua Martim Afonso, 251. Ao assumir o negócio, em 1943, mudou o nome para Fidalga e, depois, para A Veranista Modas Ltda., como reconhece a inscrição municipal nº. 300015. Quando Emílio Vaz Cid era pequeno, a loja era uma espécie de bazar que vendia de tudo, inclusive calçados. Mais tarde, passou a comercializar principalmente artigos de praia como maiôs, sungas, guarda-sóis e boias; mas os sapatos eram cada vez mais procurados e, por isso, se tornaram o principal produto da casa.
Emílio Vaz Cid
Na década de 1950, com o salto das vendas, a loja foi ampliada. Na época, o empresário Alexandre Neves Teixeira construiu um prédio próximo ao endereço comercial da família Cid. Concluído em 1954, o local abrigou a Câmara Municipal de Vereadores e no térreo, em formato de “L”, passou a funcionar A Veranista, cuja entrada ficava na Rua Martim Afonso e a saída, na Praça Barão do Rio Branco. Apesar de o prédio ser alugado, foi ali que a loja viveu o seu auge comercial, principalmente na década de 1980, quando era a top do ramo. — Podíamos estocar muita coisa. Tínhamos sapatos de todos os tipos e para todos os gostos — conta Emílio Cid. Ele diz que quando começou a assumir o negócio sozinho, esperava o pai viajar para investir na loja: — O meu pai era do tipo que escondia do cliente a mercadoria nova só para que a velha não encalhasse no estoque. Cismava que sapato preto era o que todo mundo usava e não o comprava de outras cores. Com receio de contrair dívidas, ele discutia comigo, pois achava caras as mercadorias que eu e a minha esposa comprávamos. Em 1984, quando A Veranista já desfrutava da tradição e faturava como uma grande potência de calçados, o local pegou fogo numa ação de marginais que tentaram assaltar o prédio. A loja ficou completamente destruída, mas Emílio soube administrar o prejuízo e reerguer o negócio no mesmo imóvel, onde ficou até 1996.
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— Naquela época, faturávamos bem. Tínhamos sapatos caríssimos estocados e o incêndio resultou numa grande perda. O que não pegou fogo ficou boiando na água com a atuação dos bombeiros — lembra. Enquanto a loja estava em reforma, as vendas continuavam na Rua XV de Novembro, 217, e Frei Gaspar, 663. Atualmente, o prédio da Martim Afonso — que serviu como sede da Câmara e ponto de vendas da família Cid — abriga a loja de móveis Marabraz. A antiga e pequena entrada da A Veranista virou acesso aos andares superiores do edifício, ainda em funcionamento comercial. De lá, pode-se avistar a Caixa Econômica Federal, as Casas Bahia, a Besni e outras lojas da Praça Barão do Rio Branco, revitalizada em 2001. O espaço comercial ainda é forte, mas a sua infraestutura, mesmo após a revitalização, não suporta mais o crescimento comercial de São Vicente. O trânsito nos arredores da praça é caótico. Apenas uma faixa para carros a contorna. As vagas de estacionamento regulamentado são poucas. As ruas onde antes se viam trilhos de bonde e fios de trólebus, agora fervilham, com veículos e pessoas disputando espaço palmo a palmo. A saída da A Veranista do antigo e mais movimentado endereço, no entanto, não foi um problema. Um dos motivos é o fato de a família Cid ter dirigido quatro lojas ao mesmo tempo, todas em São Vicente. Os clientes con-
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quistados na extinta Big Boot e na Da Pé — fundada em 1992 e existente até hoje, com o nome Veranista logo abaixo do letreiro — são fieis. Na grande maioria, são filhos e netos de quem aprendeu a comprar sapatos na loja e procuram a família Cid até hoje, onde estiver, garante Emílio. Como reflexo da confiança na administração de seus negócios, ele foi diretor e vice-presidente da Associação Comercial de São Vicente, integrou a diretoria do Sindicato do Comércio Varejista de Santos, foi fundador do Clube dos Lojistas de São Vicente e é até hoje conselheiro fiscal do Lar de Assistência ao Menor. A experiência adquirida permite que opine com segurança sobre a concorrência entre o Shopping Brisamar, as grandes lojas de calçados no Centro e outros pontos de comércio da Cidade. — O vicentino não se acostuma com shopping. Você pode perceber que só as lojas de rede resistem. As pequenas estão fechando. Mas há espaço para todos no Centro, para lojas pequenas e grandes. É só saber trabalhar. Mesmo assim, Emílio Vaz Cid confessa na carta que me entregou a dificuldade de disputar espaço com as grandes redes, que também estão em outras cidades e estados do País: “Atualmente, com o crescimento de inúmeras firmas do ramo calçadista na cidade, nossa loja foi uma das poucas que conseguiu sobreviver, en-
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Fundada em 17 de maio de 1949, a Associação Comercial, Industrial e Agrícola de São Vicente, entre outras atividades, combateu a taxa de turismo que era cobrada pela Prefeitura até 1958.
Foi inaugurado na Rua Frei Gaspar, 365, no Centro, em 27 de abril de 2007, gerando cerca de dois mil novos empregos na Cidade.
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frentando a concorrência feroz das lojas gigantes que aportaram por aqui”. A experiência não o faz se sentir à vontade para falar sobre o seu aprendizado na loja em relação ao gosto dos clientes: — Aprendi a vender sapatos... Também, se não tivesse aprendido — diz, irônico e depois, sem jeito, revelando o lado mais mal-humorado e embaraçado quando não sabe o que dizer. — Eu aprendi a decifrar exatamente o que cada pessoa quer quando entra na loja — continua. — O senhor consegue saber exatamente o que a pessoa quer comprar, só pelo fato dela entrar na loja? — pergunto. — Sei. É fácil perceber, pois quem está interessado em comprar entra procurando. Quando pergunta, já percebo o que quer dependendo do que chama a sua atenção e até pelo que está calçando. No momento, ele está decidido a passar o ponto da loja da XV de Novembro para ter mais tempo de assistir aos shows de Agnaldo Timóteo, curtir músicas italianas e francesas e praticar o seu hobby, montar e desmontar aparelhos elétricos ou eletrônicos: — Se me derem um chuveiro ou qualquer coisa, eu conserto —, garante. Um equipamento em especial fica atrás do balcão da loja, uma filmadora Nikon da década de 1980.
Emílio Vaz Cid
—Tenho umas 600 fitas gravadas em casa. Adoro filmar e assistir filmes — diz. A Veranista foi a primeira loja a vender calçados por meio da internet, pelo www.sapato.com.br, em 1998, sete anos após a criação da World Wide Web, rede mundial de computadores. A simplicidade do aspecto visual do site e dos recursos para a efetivação da compra continua até hoje. Na página virtual, os internautas podem ver os modelos de sapatos, assistirem a um vídeo produzido pela própria família e até mesmo obter dicas de como escolher a numeração correta de sapatos, já que o estabelecimento trabalha com numeração grande, do 40 ao 44, para sapatos femininos, e do 44 ao 49, para masculinos. Apesar do pioneirismo, Emílio Vaz Cid não acessa o site. Mesmo com o conhecimento básico em informática, adquirido com muito esforço, ele ainda prefere montar, desmontar, arrumar e usar a sua velha máquina de escrever, que fica nos fundos da loja. — Quem criou o site foi o meu filho. Ele é quem mexe com isso — alegou para encerrar o assunto. O comerciante prefere explicar a importância da venda dos sapatos de numeração grande: — Quem compra esse tipo de numeração, já vem irritado, pois muitas vezes chega exausto por não ter encontrado o seu tamanho. É um segmento trabalhoso
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para o comerciante, pois o calçado maior tem de ser encomendado, é mais caro e tem menor diversidade de modelos. Mas é um negócio necessário e faz parte da tradição da loja. Mesmo assim, o motivo pelo qual começou neste ramo é um segredo que a família resolveu não revelar. Dizendo apenas que alguém tem de vender sapatos grandes, Emílio olha para a mulher, resmunga de um lado, enquanto ela resmunga de outro. E dizem juntos: — Não, melhor não contar. Quanto ao futuro da loja, Emílio diz que talvez esteja chegando ao fim, pois não quer obrigar os filhos a continuá-la. Ele repassou o ponto da Rua XV de Novembro para ter mais tempo livre, cuidando de uma loja só. — É natural, cada um tem de seguir o seu caminho. Fiz o que eu fiz porque eu tinha de fazer. E sai para fechar mais um negócio de compra de mercadorias, enquanto a nora Ieda Maria, trabalhando atrás do balcão, aposta: — Ah, essa loja aqui não morre, não. S.A.
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Emíllio Vaz Cid atrás do balcão de sua loja A Veranista. Na prateleira, ele guarda uma de suas relíquias: a filmadora Canon que adquiriu na década de 1980
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No canto direito da imagem, é possível ver uma faixa indicando o novo endereço de A Veranista, já com a frente para a Praça Barão do Rio Branco. O imóvel de esquina que separava os pontos comerciais foi unificado, como mostra a foto da página seguinte
Reproduções: Arquivo da família Vaz
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Na foto à esquerda, a loja adquirida pelo pai de Emílio Cid, Emílio Vaz Affonso. No endereço da Rua Martim Afonso, o estabelecimento cresceu e, mais tarde foi ampliado. Abaixo, é possível ver o toldo da mesma loja, no lado esquerdo da foto
Emílio Vaz Cid Construído na década de 1950, o local abrigou uma galeria no térreo, onde ficava a loja da família e a Câmara Municipal, nos andares superiores. Em destaque, no canto direito, o letreiro azul que mostra o símbolo do estabelecimento Atualmente, o prédio abriga uma loja de móveis e salas comerciais, como podemos ver na foto abaixo. A Veranista, com o nome fantasia Da Pé Calçados, foi para a Rua Frei Gaspar. No canto direito da página, a fachada da loja atual
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Arquivo pessoal: Família Vaz
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Sugestões de leitura
Fama & Anonimato, Gay Talese, Companhia Das Letras, 2004. O nosso livro é influenciado pelo jornalismo literário e, em especial, por Gay Talese. Considerado um dos mais brilhantes repórteres americanos, ele foi um dos que nos anos 1960 inovaram o texto jornalístico, ao unir a técnica da reportagem à técnica literária. Fama & Anonimato, uma compilação de perfis, nos inspirou a tentar reproduzir neste trabalho, modestamente, é claro, o estilo das reportagens de Talese. Jornalismo Literário, Felipe Pena, Editora Contexto, 2004. Apaixonada explicação didática para quem quer conhecer o gênero, na teoria e na prática. O autor também aproveita para comparar o texto literário com a música, partindo daí para outras explicações.
Perfis e como escrevê-los, Sérgio Vilas Boas, Summus Editorial, 2003. Reúne 12 perfis escritos pelo jornalista na Gazeta Mercantil, apurando a sensibilidade de outros escritores a descobrirem como é possível abordar diferentes personagens de diversas formas.
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Poesia Sempre, Narciso de Andrade, Editora Unisanta, 2006. Um dos momentos “dramáticos” da construção deste livro foi o título. Discutimos muito, adotávamos ideias que pareciam perfeitas, mas em seguida pairava a dúvida, a inquietação. Até que o nosso orientador nos apresentou um poema de Narciso de Andrade, O visgo do tempo. Encontramos nele o que procurávamos, a relação das pessoas com o tempo, com o passado. Narciso é considerado por muitos o maior poeta santista. Faleceu em 29 de dezembro de 2007. Poliantéia Vicentina, Fernando Martins Lichti, Editora Caudex Ltda, 1982. O livro reúne informações sobre São Vicente de 1532 a 1982, ano em que foi lançado. A abordagem histórica do livro possibilitou que checássemos datas e acontecimentos relevantes para o desenvolvimento dos textos.
Senhora, José de Alencar, Editora Martin Claret, 2002. Um romance que, ao mesmo tempo, coloca o leitor na psicologia da personagem Aurélia e critica a sociedade que dá mais valor ao dinheiro que ao sentimento. Esta obra aguçou ainda mais a nossa vontade de escrever. Vultos Vicentinos — Subsídios para a História de São Vicente, Edison Telles de Azevedo, Editora Gráfica Revista dos Tribunais S.A., 1972. Ideal para quem quer conhecer um pouco mais da história de São Vicente, apresenta pequenas biografias de personagens vicentinos. A obra nos aproximou de algumas das famílias abordadas no nosso livro, nos munindo de dados que ajudaram na ambientação e composição da abordagem jornalística e histórica.
Floriza Abrantes Ramos, José Joaquim de Azevedo Neto, Paulo Horneaux de Moura Filho, Eglair Pereira Requejo e Emílio Vaz Cid. As histórias desses cidadãos se cruzam aqui na reconstituição da memória de seus antepassados, personagens que em algum momento da História contribuíram para o engrandecimento de São Vicente. DONO DE UMA área no Morro dos Barbosas, João do Morro, avô de Floriza, preocupava-se com a conservação do trajeto da água que chegava à Biquinha de Anchieta. Quando as cercas de bambus que construía deixaram de ser eficientes para evitar o assédio da população, ele doou a área à Prefeitura, liberando assim o abastecimento em uma das principais fontes da Cidade. NA INAUGURAÇÃO DA Ponte Pênsil, em 1914, José Joaquim de Azevedo atravessou-a, guiando um dos primeiros veículos que circularam pelas ruas de São Vicente. Ele chegou ao Brasil, vindo de Portugal, em um pequeno barco à vela. Mais tarde, construiu a primeira fábrica de tijolos e telhas da Cidade. A FAMÍLIA HORNEAUX de Moura atuou no prolongamento da linha de bondes, na inauguração do tradicional Clube de Regatas Tumiaru e na criação da Escola do Povo, prédio histórico que abriga na Praça Coronel Lopes — a Praça do Correio —, a única Escola Técnica Estadual de São Vicente. O ESPANHOL IGNÁCIO Gonzalez Requejo se embrenhou na Área Continental e começou o negócio de extração de areia, a fim de exportála para a Argentina, onde era utilizada para a fabricação de vidro. JÁ O CRESCIMENTO do comércio no Centro foi protagonizado por outro espanhol, Emílio Vaz Affonso. Em 1943, ele abriu a A Veranista, tradicional loja de calçados. Seu filho, Emílio Vaz Cid, soube adaptar-se às mudanças e mantém o estabelecimento funcionando até hoje.