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O fígado e as artes
© Lidel – Edições Técnicas, Lda. A confiança consubstancia -se na entrevista clínica; constrói -se na relação interpessoal, na transparência e na liberdade de opiniões. A confiança do doente é uma variável multidimensional, incluindo um componente afetivo, de tranquilidade em relação ao médico e às suas intenções, de consumação de expectativas que estiveram na base de uma escolha e no cotejo com informações e opiniões alheias. Aspetos tão comezinhos como a pontualidade, confidencialidade, atitude profissional, atenção e disponibilidade para ouvir com interesse o que o doente quer dizer (alguns doentes começam por dizer que vão começar do princípio…), sem constrangimento com a duração da consulta, trato respeitoso e realização de exame objetivo, são aspetos que o doente valoriza e que transmitem confiança.
A falta de confiança manifesta -se na omissão ou na sonegação de informação, no incumprimento das recomendações e na procura de outro médico – “saltar de médico para médico”. Alguns temas, como por exemplo a sexualidade, alimentação e a automedicação são amiúde omitidos intencionalmente se não existir confiança entre médico e doente. A ocultação dos hábitos alcoólicos é muito frequente, principalmente por parte das mulheres, exigindo delicadeza na abordagem e a renúncia às tentativas de culpabilização. Estou convencido de que o sucesso no tratamento das doenças funcionais, tão comuns na Gastrenterologia, beneficia muito da confiança do doente no médico que compreende e valoriza o sofrimento do doente.
A empatia, termo derivado do grego empatheia, que significa apreciação dos sentimentos de outrem, é uma qualidade cognitiva -emotiva, uma capacidade de compreender o estado de espírito de outra pessoa como se fosse seu; isto é, não se trata de partilhar os problemas do doente, o que é mais afim da simpatia. É antes uma capacidade de estabelecer com o doente uma relação de compreensão, valorando as suas queixas, preocupações e perspetivas; ou seja, “pôr -se na pele do doente”. Passa muito pela adoção de uma atitude humilde, sem ser subserviente, e comunicativa (já não
me lembro a quem pertence o seguinte aforismo: deixe o doente falar porque ele lhe dirá o diagnóstico), tendo o cuidado de não infantilizar o doente, usando diminutivos. Seguramente, não contribui para criar um estado de empatia, uma linguagem inadequada, denunciando desinteresse, arrogância, exibicionismo e vaidade; sem, contudo, cair numa posição contrária, pois “não há nada mais insuportável do que pessoas que se vangloriam da sua humildade”, escreve Marco Aurélio. Mas uma comunicação clara, cortês e calorosa contribuirá certamente para distender o ambiente, mesmo que seja preciso interromper “relatos de acontecimentos irrelevantes, descritos em mínimos detalhes”; ou intervir, com tato, numa disputa entre marido e mulher pela descrição das queixas do marido doente (“tu não sabes… não é assim senhor doutor”, intervém a esposa; “pronto… conta lá tu”, acede logo o marido, que permanece calado o resto da consulta, ou, então, reage com acrimónia: “o doente sou eu… eu é que sei… eu é que sinto”). Tão -pouco será bem visto pelo doente o descrédito de colegas, a troca de informação clínica e a recusa em transmitir o resultado de exames. A relação empática exige cumplicidade: seremos tanto mais empáticos quanto mais cúmplices formos com o sofrimento do doente, quão sensíveis formos aos problemas do doente, sentindo -os como se fossem nossos. O sorriso que expressa a compaixão ou a tristeza que revela a pena criam um ambiente de intimidade propício à abertura. Ao sorrir, o médico torna -se humano – o riso humaniza, não fosse o homem o único animal que tem a capacidade de rir! –, mediante o riso sóbrio, o médico perde a rigidez, e torna -se mais elástico, ou seja, torna -se mais acessível. Se bem que a compreensão empática implique a necessidade de o médico “se colocar na pele do doente”, isso não significa, nem tão -pouco deve significar, intromissão nos problemas do doente; é de todo conveniente conservar um certo distanciamento, que preserve a objetividade da intervenção médica. Para que serve, então, a empatia? Alguns médicos dirão que não serve para nada…. Outros dirão que faz toda a diferença: a empatia ajuda a
© Lidel – Edições Técnicas, Lda. colher histórias clínicas mais completas e, portanto, acrescenta eficácia ao diagnóstico; aumenta a eficácia terapêutica ao reduzir a ansiedade, sobretudo em doentes nos quais a ansiedade é um importante componente das queixas (alguns doentes exclamam no fim da consulta: “Oh, doutor, gostei muito de falar consigo, já me sinto melhor!); melhora a adesão ao tratamento e, por acréscimo, os outcomes. Julgo ser pertinente mencionar que nem sempre o médico busca a sintonia emocional, podendo inclusive expressar emoções negativas, especialmente quando há tensão entre o médico e o doente. Esta situação ocorre particularmente com médicos muito ocupados e sobrecarregados de trabalho; não sendo de excluir nestes casos situações de burnout. Será que o diagnóstico interessa assim tanto ao doente? Acho que não! O presente e o futuro estão latentes na inevitável pergunta: “É grave?” Quase tudo está contido nestas simples perguntas: “Que doença tenho?”, “Que tempo de vida me resta?”, “Tem tratamento?” Para o doente, ao contrário do médico, o diagnóstico é secundário: o seu interesse está em saber se o seu problema clínico tem solução. A esperança numa cura ou no alívio dos sintomas é ansiosamente procurada pelo doente – recusá -la pela fidelidade aos dogmas hipocráticos, privilegiando o rigor científico, é desumanizar a Medicina, destruir a esperança e fomentar o desespero; o que pode ter efeitos devastadores no doente e na progressão da doença. Guardo na memória o repúdio, grafado na forma de um artigo de opinião, de um colega do meu departamento hospitalar, revoltado com a insensibilidade e a falta de compaixão dos médicos ingleses que, fazendo uso da sua tradicional frieza, renegaram a “mentira piedosa” e revelaram desabridamente a incurabilidade da sua doença oncológica, sem ao menos endossarem uma palavra de esperança – pois de esperança tratava o artigo.
A esperança terá de ser alicerçada numa base de verdade, de partilha da informação que deve ser transmitida ao doente com sensibilidade e sensatez. Julgo que o doente deve saber aquilo que quer conhecer e na medida da sua capacidade de compreensão, especialmente no que diz respeito ao tratamento.
Voltando à estrutura deste livro, ou à “arquitetura narrativa”, como diria Eugénio Lisboa (porque na realidade a incerteza sobre este aspeto acompanhou, paradoxalmente, a escrita até ao fim), a solução engendrada foi transformar o livro numa grande história clínica. Sim, uma prosaica anamnese! – a história natural de uma doença: “Não vês como o ano se desenrola em quatro fases no seu percurso, à imitação da nossa própria vida?” (Ovídio – canto XV). Com longos interregnos, que representam as dúvidas, as questões e as explicações devidas ao doente e aos seus familiares.
Este livro não se destina, portanto, a descrever doenças propriamente ditas. Pretende, primordialmente, abordar e compreender o que circunda a doença, nomeadamente as circunstâncias, as dúvidas e anseios dos doentes, de seus familiares e trazer para primeiro plano os protagonistas. Numa palavra: responder ao muito que, por uma razão ou por outra, ficou por perguntar! Os achaques e o sofrimento que cerca as peçonhas do fígado, tudo o que de malsão acompanha as enfermidades hepáticas. Aborda, sobretudo, a relação das doenças do fígado com os doentes, familiares e a comunidade. É, portanto, sobre o indivíduo que sofre do fígado e que vive a incerteza da doença, sobre um órgão que tem história, uma história que se funde com a memória e os mitos da Humanidade e que continua a habitar o imaginário popular.
PARTE I
O doente, ou a rotina hospitalar
Mais um dia igual aos outros. Oito horas da manhã. Os cumprimentos habituais, os olhares inquisidores de sempre: receios e dúvidas que a noite gera. Esperanças que um novo dia traz! A boa notícia que se deseja ouvir sobre os que já cá estão e as incertezas que trazem os que entraram. Isto é, as tribulações que a noite propicia. Restabelecer as rotinas. Implementar os cuidados imediatos. Conhecer os doentes admitidos.
O estímulo do caso novo: uma promessa de novos desafios! O diagnóstico continua a ser a parte mais estimulante do ato médico! Este primeiro “contacto” com o novo doente tem muito de administrativo; mas não só… inclui também a informação sobre o seu estado clínico e as medidas a tomar no imediato.
Apenas um doente. Homem. Relativamente novo. Cirrose descompensada, primeiro internamento. Para os médicos mais jovens, o seu nome não despertou qualquer recordação, mas para os mais velhos, a interrogação foi imediata: Será quem o nome sugere? Uma figura conhecida do futebol? Vamos lá ver! Estava acamado na enfermaria de Hepatologia: primeira cama à direita, ou na última, se fosse seguida a numeração das camas. Calmo, olhar ausente, sem a angústia do primeiro internamento nem a placidez dos reinternados. Recostado contra o espaldar da cama, circunspecto, meditabundo, relanceava os olhos pela sala, alheio à azáfama das colheitas e das abluções. A posição em campo e as intermitências do jogo habituaram -no a ser um observador – do jogo e da multidão. Aqui estava fora do seu elemento, fora do seu habitat. Na expectativa. Sentia a falta do clamor da mole humana, aplaudindo ou verberando? Aqui, o jogo era outro – o jogo da vida! O cenário era desolador – os companheiros de infortúnio exibiam no corpo e na alma as vicissitudes do seu fígado doente. O ambiente era soturno.
Esta é uma história do fígado. Igual a tantas outras! Como pode começar, como se pode revelar uma doença hepática crónica: um doente assintomá‑ tico, considerando‑se saudável, que, subitamente, nota que algo está errado no seu organismo. Ninguém pensa nos órgãos internos até eles darem sinal! A doença, qualquer doença, tem uma vida própria, uma narrativa. Rara‑ mente se sabe quando começa, mas sabe‑se como acaba! Uma coisa é certa: como diria Mariana, no meio de tanta gente estamos sós! “Todos estamos sozinhos”! (Tanta Gente, Mariana)
Que órgão é este que, silenciosa e sub-repticiamente, se deixa atacar? Que nos ataca!
© Lidel – Edições Técnicas, Lda. O FÍGADO O fígado, o órgão mais volumoso do organismo humano (e de todos os vertebrados), pesando, em média, 1,5 kg, está localizado na parte superior do abdómen, no lado direito. Formado por dois lobos, correspondendo o lobo direito a dois terços do volume do fígado; o pequeno lobo esquerdo pode ser palpável na zona do epigastro, isto é, na região abdominal em for‑ ma de triângulo que se situa acima do umbigo, entre as costelas e a extre‑ midade do esterno. Um dos avanços mais significativos no conhecimento da anatomia do fígado deve‑se a Claude Couinaud, cirurgião e anatomista francês, que descreveu a segmentação do fígado. Este conhecimento re‑ volucionou a cirurgia do fígado, permitindo a hepatectomia: ressecção de um ou mais segmentos do fígado. A vesícula encontra‑se na face inferior do fígado, junto ao bordo anterior, logo debaixo da última costela direita. O conhecimento destas localizações é fundamental para a interpretação da dor com origem na vesícula e para se perceber a importância que os médicos atribuem à palpação do abdómen na procura do bordo fígado – um bordo cortante significa que o fígado é cirrótico.
Embora o fígado seja o órgão mais volumoso do corpo humano, a sua importância não deriva do tamanho, mas das funções que lhe estão atri‑ buídas – a realização de quase todas as funções metabólicas do organis‑ mo: síntese das proteínas, incluindo a albumina e os fatores da coagulação; produção e excreção dos sais biliares e da bilirrubina; armazenamento da glicose, o carboidrato energético, vitaminas e oligoelementos, incluindo ferro, cobre, zinco, etc.; destoxificação dos produtos nocivos; proteção contra os agentes invasores, pela presença de uma vasta rede de células imunitárias residentes. O fígado é o único órgão interno com capacida‑ de regenerativa. Normalmente, as células hepáticas não se multiplicam, mas perante uma agressão, seccionamento ou ressecção, entram em mul‑ tiplicação e restauram o órgão nas suas formas e funções. Esta capacida‑ de regeneradora, aliada à estrutura hepática em lobos e segmentos, é o que permite a cirurgia de ressecção hepática e, em certos casos, algumas modalidades de transplante.